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Director: Amosse Mucavele l Email: r.literatas@gmail.com l Maputo l Ano III l Edição: Nº. 61 l 02 Julho de 2014
“Sou apenas mais um negro ciente da minha condição enquanto negro em uma sociedade racista” Entrevista a Ricardo Riso pág. 9 à 13
“Kuphaluxa” uma nova geração da Literatura Moçambicana? Professor Francisco Noa pág. 5 & 6
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Sumário
Leia, leia, leia sempre a revista
“Kuphaluxa” uma geração da nova da Literatura Moçambicana? | Palestra com o Professor Doutor Francisco Noa | Pág.. 3 & 4
Entrevista com Ricardo Riso|( …) Sou apenas mais um negro ciente da minha condição (…)| Pág.. 10, 11, 12 e 13
Editorial | Japone Arijuane
A cultura de desvalorizar a cultura
E
u sou moçambicano, ou seja, um homem que não ama a sua cultura. Os meus patrícios, que não se zanguem. Todos dizem que amam e não são capazes de revelar um simples gesto possível de amor.
A cultura, a arte em Moçambique, que nem deveria ser um elemento de adorno e ostentação, passou a ser uma simplicidade fútil de adulação e um elo de junção entre fúteis e inúteis, a cargos e posições cujo status prevalece o nepotismo. Como se pode chamar a um moçambicano um homem culto? Enquanto a literatura, sobrevive a um palmo e meio de leitores, que mal podem comprar um livro, em que o maior número desses livros nascem e morrem no dia do seu lançamento? A música, que para além de conteúdo fútil e de passagem provisória e, como isso não bastasse, é pirateada e vendida a preço de banana podre; as artes plásticas sem rumos, em que as exposições, por mais tempo que permaneçam em nossas reles galerias, são somente apreciadas às moscas? O teatro, o cinema, a fotografia, as danças e outras manifestações artístico-culturais, só coexistem em papel passado a rascunhos. Como chamar os moçambicanos de um povo?, do povo moçambicano? Se bem se diz, e outorgo, que não há povo sem cultura? Alguns, de espírito frágil, moçambicanos desprovidos de rácio, comprometidos pela causa do “povo”, dirão que estou a ser demasiadamente antipatriota, e diriam mais: que existe cultura e que os moçambicanos são cultos. – Ainda bem que a opinião significa posição individual. Mas que cultura seria essa? A cultura de ver a falsificação massiva de produtos culturais e deixar andar?, a cultura de ter uma juventude inculta, aliás, reles juventude sem sensibilidade artística, que têm como cultura o indispensável abuso e gozo excessivo do álcool?, a cultura de dizer que se ama e somente em palavras esse amor morrer?, ou essa cultura de desvalorizar a própria cultura? São várias e tantas as questões que me seriam desgastante faze-las, porque sei que ninguém, mas ninguém, pelo menos que eu conheça neste país, que me poderia responde-las. Assim vai a nossa cultura, a arte, sobretudo, sem crítica, que digam, - também a sociedade, exaltando um dogmatismo doentio que torna a própria cultura elemento de alienação e uma indiferença colectiva. Dessa colectividade aculturada cujo presente esquiva o futuro e faz das massas um entulho de seres não pensantes, aliás, sem cultura. Boa leitura e Bem-haja a cultura!
Ficha técnica
Centro Cultural Brasil-Moçambique | Av. 25 de Setembro, Nº 1728 | Maputo | Caixa Postal | 1167 | Email: r.literatas@gmail.com | Tel. (+258): 82 35 63 201 | 84 51 03 474 | 84 57 03 750 Movimento Literário Kuphaluxa | www.kuphaluxa.blogspot.com | www.facebook.com/movimento.kuphaluxa
DIRECTOR Amosse Mucavele | amosse1987@yahoo.com.br Cel: +258 82 57 03 750 | +228 84 07 46 603 EDITOR Japone Arijuane| jarijuane@gmail.com | japomati75@hotmail.com Cel: +258 82 35 63 201 CHEFE DA REDACÇÃO Nelson Lineu | nelsonlineu@gmail.com Cel: +258 82 27 61 184 CONSELHO EDITORIAL | Amosse Mucavele | Japone Arijuane | Mauro Brito | Nelson Lineu. REPRESENTANTES PROVINCIAS Dany Wambire - Sofala Lino Sousa Mucuruza - Niassa Jessemuce Cacinda - Nampula
COLABORADORES FIXOS Moçambique: Carlos dos Santos Matiangola Brasil: Rosália Diogo Marcelo Soreano Pedro Du Bois Samuel Costa Portugal: Victor Eustaquio Angola: Lopito Feijóo Cabo Verde: Filinto Elísio PAGINAÇÃO & FOTOGRAFIA Japone Arijuane PERIODICIDADE Mensal
COLABORAM NESTA EDIÇÃO:
Portugal Samuel Pimenta
Angola João Tala Luís Kandjimbo Brasil Neide Medeiros Santos Rosana Piccolo Manoel de Barros
Ronaldo Cagiano Cabo Verde Mário Lúcio Sousa Moçambique Sara Jona Jacaré Fernanda Anguis Elcidio Bila Celles Leta Hirondina Joshua
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A revista Literatas é uma publicação electrónica idealizada pelo Movimento Literário Kuphaluxa para a divulgação da literatura moçambicana interagindo com as outras literaturas dos paises da lusofonia. Permitida a reprodução parcial ou completa com a devida citação da fonte e do autor do artigo.
Às segundas-feiras saiba quem é a personagem da semana em: http://revistaliteratas.blogspot.com
Diálogos
O
ntem Noite de inverno, regurgita o vento norte, tem
saudades dos trópicos, quentes, las-
S
onho a lamparina acesa aos trajectos tão jovens aos ve-
lhos destinos. Numa noite breve, o
civos, afinal, para que ventar em
norte dos sentidos perdidos no meio
outras partes, se ensimesmado com
do nada. No mesmo nada que faz da
sua própria sorte, não sabe onde?
vida pouca coisa. Sonho o antes de
Cadeias o prendem, políticas do pe-
todos os depois que o outro não precisou para não fazer da
queno universo, em sua volta, quem é o ser?, e afinal,
vivência uma convivência, senão um abismo abismal, que
para que, o sonho acompanhado de um sono, profundo
faz das aves apenas cinza a flora fumaça o homem o fogo.
e à flor de uns lilases ao fundo e um pleito.
Sonho invertido num verbo conjugado a sangue frio, na re-
Temeria, agora,não encontrar-se no teu fundo de poço e
ciprocidade ignorante de uma qualquer bala perdida no si-
as orquídeas assim o sentem, olhares dormidos, sentir-
lêncio da fala, de quem esperado não passa. Nas brilhantes
se entre balcãs, e longínquos continentes noite fria se
estrelas o além o comum a iluminar a mimica duma amné-
espalhando, muito além,e o próprio vento engasgado na
sia de consensos plenos. Sonho o sono que sonha o man-
tua ilha,fãs dos primitivos instintos, e embalar da no-
cebo acordado no meio do nada a fazer mutuamente o na-
ite,em refinado lamento, pelos cantos a palmeira não se
da. Sonho o antidoto à febre bélica que os miúdos ingenua-
percebe, o homem esquecido,na cidade o beco, noite
mente propalam aos quatro ventos nas paredes do medo, o
de inverno, regurgita o vento norte. O arrepio das aves.
alísio a fragrância desenhada à pólvora frenética dos músculos da pedra engatilhados na mente urbana.
(Mário T. Saroka - Brasil) (Japone Arijuane - Moçambique)
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04 | 02 de Julho de 2014
Questão de Fundo | Redacção
“Kuphaluxa” uma geração da nova da Literatura Moçambicana?
Nelson Lineu e o Professor Francisco Noa
M
Este evento, segundo o Momento Literário Kuphaluxa, na voz do coordenaais uma vez o Movimento Literário Kuphaluxa mostrou ao seu jovem
dor Nelson Lineu: “visa discutir assuntos ligados a literatura moçambicana e
público que tem capacidade e força de vontade, para apostar na cul-
juntar no mesmo espaço o escritor e seus leitores”.
tura e com a cultura desenvolver.
Com o Professor Noa, as intervenções do público, os ensinamentos sábios
No dia 17 de Dezembro de 2013, esta a agremiação artístico-cultural de jovens lo-
do Professor, foram bastante produtivas, aliás, assim são todos os debates
tou a sala do centro cultural Brasil-Moçambique, com o evento Eu a e Leitura com
deste projecto. Motivo mais do que claro que o movimento deve continuar
o Professor Francisco Noa, que foi a figura de cartaz.
mobilizando jovens, o que é difícil nos dias que correm, pior ainda quando se trata de um sexta-feira, quando aconteceu o debate, aliás, isto revelouse bastante curioso nos olhos do Professor Noa, suas palavras inicias: “Vocês se esqueceram que hoje é Sexta-feira?, o quê que estão aqui a fazer?, não deveriam estar nas barracas?” Na sua apresentação começou por afirmar que a cultura é uma forma de elevação, ou seja, Auto elevação, por exercitar o espírito contra a corrente de mediocridade e futilidade, que não se faz sentir apenas em Moçambique. Tornando assim numa crise generalizada de referência, por causa da ausência dos pais, professores, avós porque essas pessoas corporizam valores. Citando o Professor: “Nos últimos anos tivemos várias transformações de todos os cantos do mundo, a globalização do mal é real, e em países como Moçambique têm grandes contornos. Tendo uma relação umbilical com a educação, não só a formal como a informal”. Este foi mais longe ao afirmar que, para a mudança apela a responsabilidade individual. O evento, bastante concorrido pelo público que, pela felicidade destes, o projecto Eu e a Leitura tratar-se-á de ciclo de debates e Tertúlias Culturais, que teve inicio no mês Julho com o escrito Suleimane Cassamo, seguiu-se com o João Paulo Borges Coelho e agora o Professor Noa, e assim sucessivamente seguir-se-ão os outros, segundo o programa.
Participantes 05 | 02 de Julho de 2014
Questão de Fundo A obsessão pela escrita faz-nos pensar que para saber ler é preciso conhecer a escrita, pois acima de tudo, a leitura é fundamental para a formação do cidadão”. Quando questionado pela morte ou não da literatura moçambicana, este lembro-se de um episódio, em que um grupo de jovens, há alguns anos, escreveu uma carta, fazendo esse anúncio, querendo que o professor assinasse a certidão de óbito. O que não o fez, embora na altura, concordasse com alguns pontos descritos na carta. Para Noa, o que estava a acontecer eram sinais da morte da qualidade. E hoje verifica-se alguns sinais de retorno, porque segundo ele: “a literatura moçambicana nasce pela signo da qualidade, com jovens como Noémia de Sousa, José Craveirinha, Aníbal Aleluia entre outros; desde a qualidade estética, tendo compromisso com a tradição literária universal; e qualidade temática”. E diz mais ao afirmar: “é em função dessa génese que deve olhar-se a literatura moçambicana, pois, a vitalidade de uma literatura está ligada a sua qualidade”. O Professor, como sempre o é (o Professor), deixou um puNoa ainda partilho como o público ali presente que: “A partir da pesquisa de uma
xão de orelhas aos jovens que estavam e gostariam que um dia fos-
professora da Pensilvânia, constata que os jovens que usam menos os audiovisuais
sem escritores, e os novos autores, o desafio para estes, lessem por
têm mais facilidade de ler o mundo em que estamos, ou melhor ler o outro.
prazer e que fosse essa leitura aos clássicos da sua literatura, e
Hoje, as pessoas não só, não tem hábitos de leitura como não gostam de ler, porque
mais do que ir a cenário de querelas com os mais velhos, trazerem
lêem por um objectivo concreto, e quem assim o faz, não é por gostar de ler. Para
novas propostas.
Noa, a leitura é transcendental a escrita.
E este fechou colocando a questão se estávamos perante a uma nova geração: “A Geração Kuphaluxa?” A nós, resta-nos: dizer que sabe? Só o tempo dirá.
Participantes 06 | 02 de Julho de 2014
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Ensaio Lapidar a Palavra em
Dentro da Pedra ou a Metamorfose do Silêncio* Sou professor do silêncio/ensino o nada sei/ a faculdade das minhas sensibilidades/a tornar-se pedra/sangue e suor/flor e fogo/[…], pg 81.
A homenagem ao silêncio pode ser realçada através da ideia de recolhi-
Sara Jona - Moçambique
mento nos versos que seguem: Para mim volto/nas mãos acesas do avesso/naquilo que me é essência/ à intrínseca introspecção […] ilumino o destino em mim ancorado […] que me traz a mim, pg 23. […] O objecto pode ser: 1) criado como prosaico e percebido como poético; 2) criado como poético e percebido como prosaico. Isto indica que o carácter estético de um objecto, o direito de relacioná-lo com a poesia, é o resultado de nossa maneira de perceber; chamaremos objecto estético, no sentido próprio da palavra, os objectos criados através de procedimentos particulares, cujo objectivo é assegurar para estes objectos uma percepção estética. Chklovski (1999:41)
M
[…] a morte não é o fim/ […] é a indiferença das coisas/à espera do novo dia, pg. 42.
O silêncio de que se fala não é só o de ausência de companhia ou de ruído. É também o das palavras; o que é reforçado pelo poema da pg. 22, no qual vemos afirmado: Das palavras/sinto o inexplicável amor/pela ineficácia que tenho/em descrevê-las/com amor/o que por elas sou/Nunca me
aior parte dos poemas em Dentro
eduquei para amar/qualquer que fosse o silêncio/senão o das
da Pedra ou a Metamorfose do
palavras.
Silêncio podem ser colocados na área dos Estudos
O procedimento a partir do qual a pedra é tratada permite
Literários que analisa o metapoema. Esses poemas
atribuir-lhe diferentes valores, nomeadamente:
revelam a preocupação do autor em fazer da palavra a
Valor de espelho:
sua matéria-prima, lapidando-a ou esculpindo-a a fim de obter poesia. Neste labor, ele colocou um sujeito
É no silêncio da pedra/ que espelho a alma, pg. 10.
poético que fala sobre a função da poesia; que fala
Valor
sobre a própria poesia e indaga-se sobre o seu pro-
de
silêncio:
um
universo
de
silêncio/
metamorfoseado/em pedra, pg.11 e 31.
cesso de criação. Em síntese, o autor: afinou, retocou,
Valor estético: Lavo a cara nas pedras do medo/vejo
envernizou, burilou a palavra a fim de compor os seus poemas. O esmero nesse trabalho de “construir” a po-
sangue na maciez da pedra/[…] vivo colhendo o pó-
esia, assemelha-se ao de moldar, lixar, alisar, polir,
len das pedras. Um outro exemplo desta categoria pode
uma pedra com intuito de a transformar.
ser encontrado na pg. 14. Valor de pessoa (personificação):
O título do livro remete-nos a esse tipo de leitura. O poema da pg. 35, por exemplo, contém significados que o condensam. É como se as palavras, depois
A/ cidade/um pássaro / mastiga a felicidade da pedra, pg. 39.
de esculpidas, saíssem da pedra a desfilar. São pala-
Quanto ao metapoema importa referirmo-nos a reflexão
vras que resultam de uma exaustiva lavra que as adorna, a fim de serem capa-
que o sujeito poético faz acerca do poema utilizando três critérios: O primeiro - para que serve o poema, de onde podem ser apontados os
zes de transmitir significados: Aprumadas as palavras/ acordadas no sono da pedra/ relíquia reinven-
seguintes exemplos:
tada em sonhos/ gestos inauditos em vozes/ desfilam lento o som/ pela
Quando/ escrevo um poema/tento compreender-me à vida./ Se escrevo
vaidade do silêncio/ a palavra aprumada/ a dizer o nada, pg. 25.
um poema/vivo/ e/ vivo-me, pg. 15. Navego-me/ a poesia me aconchega ao cais/meu destino é encontrar-
Até porque, as expressões repetidas em trocadilho: aprumadas as pala-
me/comigo à deriva/na imanente vastidão do mar. /(incrédulas certezas/
vras, palavra aprumada e o verso relíquia reinventada em sonhos reforçam es-
se esboçam na fé/ de me tornar espécie/ de coisa alguma)/ pinto no vão
sa imagem de retocar.
o cão vadio/ que encontra na escuridão/ a felicidade de não ser visto/
O mais espantoso nesse esforço de burilar é que, mesmo depois de tan-
por si…/ , pg. 27.
to trabalho, a palavra não atinge a sua plenitude para comunicar. Ela transporta
Ao Nhambaro/da minha poesia,/só os surdos/ancorados/à sombra do
consigo algumas limitações, uma vez que, o sujeito poético refere, no poema
silêncio/saberão dançar/no ritmo quente de Junho/saberão sonhar, pg.
acima, que dada a força do silêncio, essas palavras nada dizem. O verso: “a
57.
dizer o nada” permite-nos chegar á essa constatação. Há nisso uma contradição, porque as palavras, nunca são de silêncio. Isto faz-nos colocar este tipo de poesia no niilismo, corrente filosófica centrada na busca do ideal, negando o que é facilmente perceptível.
Um outro exemplo desta categoria de poemas pode ser encontrado na pg. 81. Acerca da segunda dimensão de análise - poema em que o sujeito poético fala sobre o próprio poema encontramos os seguintes exemplos:
Nos poemas desta obra, a pedra, não é apenas um objecto prosaico, não tem o valor de um objecto morto ou que sufoca. Não é em objecto comum, corriqueiro que, por vezes, é percebido como banal. Ela ganha o lugar de desejo, de objecto vital e estético e de busca do si mesmo. É dentro da pedra que o sujeito poético procura alcançar o seu mundo ideal, o do silêncio. Da adoração do silêncio temos como exemplo:
Lavo as faces do vento/ como quem rasga a emoção do poema/ as faces do vento não me são excitantes/ como o papel em branco onde cabe da/ caneta o cio/ a pureza do papel não e emociona/ poderia fazer barcos de papel/ poderia fazer barcos de poema/ barcos de papel fi-los na infância/ os de poema fazem-nos os poetas/ Eu…/ lavo as faces do vento como quem rasga a emoção do poema, pg. 31.
[…] quem se vê ao espelho/ não vê senão o espelho…/ É no silêncio da pedra/ que espelho a alma, pg 12.
07 | 02 de Julho de 2014
Todos os dias em: www.revistaliteratas.blogspot.com
Ensaio os moçambicanos Armando Artur, Eduardo White, Filimone Meigos e
Nesta classe podemos ainda incluir os poemas das pgs. 22 e 27.
Jorge Viegas; os brasileiros: Carlos Drummond de Andrade e José
O terceiro critério - o processo de criação do poema pode ser demonstrado a
Cabral de Melo Neto.
partir dos poemas das pgs. 35, 48, 50 e 79.
E outros que devolvem à pedra o grande valor que ela tem para a hu-
Gostava ainda de me referir a dois aspectos referentes á caracterização do
manidade, homenageando-a, tal como o fizeram Carlos Drummond e
sujeito poético desta obra:
os angolanos Ana Paula Tavares e Ruy Duarte de Carvalho. Os poemas do livro acabado de apresentar demonstram a bus-
Num momento ele revela-nos a sua essência, ou seja de que é feito - e é todo poesia, tal como o revela no poema da pg. 54:
ca do si mesmo, por parte do sujeito poético, uma vez que a maioria encontra-se na primeira pessoa. E utilizar a primeira pessoa contra-
Não tenho senão/essa vontade/de me reinventar/em palavras./ Meu mundo/ é esse pedaço/de papel. /Imortal pedaço/riscado/de silêncios./O que não sou/só termina/onde neste espaço/me começo./(ser poeta é isto/extinguir-se num papel estreado de silêncios)
posta a multi-identidade reforça a ideia de busca de sentido para a alma, para a identidade própria e a pedra acaba por ser essa entidade ôntica.
No outro momento revela-nos a sua essência multifacetada. Isso é-nos demonstra-
Um estudo da poesia de Japone Arijuane poderia fazer o levan-
do a partir de um poema que não segue as características dos que acabei de menci-
tamento das diferentes contradições propositadamente elaboradas por
onar, pois não louva a pedra, não se venera o silêncio, não se indaga sobre a poe-
este autor.
sia, nem sobre a sua função e processos de elaboração; apenas, diz-nos quem é o sujeito poético da obra, alguém com múltipla identidade, tal como o seria uma imagem de Moçambique, um país multicultural. Essa ideia é espelhada através da representação dos seus diferentes grupos étnicos: machuabo, machangana, makonde, ndau, macua, chewa, nyungues, yaos, no poema da pg 58: O machuabo em mim/não é senão um/matchangana disfarçado/a sonhar-se
___________________ BIBLIOGRAFIA ARIJUANE, Japone. Dentro da Pedra ou a Metamorfose do Silêncio. Maputo: Revista Literatas. 2014. PAZ, Olegário; António Moniz. Dicionário Breve de Termos Literários. Lisboa: Editorial Presesença. 1997.
makonde/com engenho da sua arte/se esculpir ndau/m´siro na fé/pintar a crença makua/adormecida nos chewas/, nyungues e yaos/à minha diáspora.
*Notas para apresentação da obra Dentro da Pedra ou a Metamorfose do Silêncio de Japone Arijuane. Junho de 2014.
Do ponto de vista do labor poético podemos colocar Japone Arijuane em paralelo com outros poetas que se dedicam a escrever sobre a poesia, nomeadamente:
Ensaio A respeito da leitura sensorial, Alberto Manguell (1997) estabelece uma relação íntima, física entre o ato de ler e os sentidos quando diz que os olhos colhem as palavras; os ouvidos escutam os
LEITURA: UM UNIVERSO MÚLTIPLO
sons que estão sendo lidos; o nariz inala o cheiro familiar de papel, cola, tinta, papelão ou couro; o tato acaricia a página áspera ou suave, a encadernação macia ou dura; e até mesmo o paladar pode participar da leitura, quando os dedos do leitor são umedecidos na língua. Consideramos que o paladar pode ser também despertado pelas referências gastronômicas. Eça de Queirós, em seus romances, inúmeras vezes, faz o leitor sentir vontade de saborear as delícias da
Neide Medeiros Santos – Brasil
cozinha portuguesa.
A leitura guarda espaço para o leitor imaginar sua própria humanidade e apropriar-se de
O mesmo ocorre com Jorge Amado, especialmente, no livro Gabriela,
sua fragilidade, com seus sonhos, seus devaneios e sua experiência. A leitura acorda no
cravo e canela. A decantada comida baiana parece adquirir um gosto
sujeito dizeres insuspeitados enquanto redimensiona seus entendimentos.
(Bartolomeu Campos de Queirós. Sobre ler, escrever e outros diálogos).
A
peculiar quando preparada pelas mãos de Gabriela. O escritor Bartolomeu Campos de Queirós (2012), criador do projeto “Por um Brasil Literário”, no artigo Entre silêncios e diálogos, fala sobre seu primeiro
reflexão sobre leitura e o ato de ler nos conduz, inicialmente, o livro de
livro de leitura.
Maria Helena Martins (1984) – O que é leitura. Neste livro, a autora
A leitura que nos deixa alegres ou deprimidos, que desperta a
estabelece três níveis básicos de leitura: sensorial, emocional e racional. O primeiro nível de leitura é sensorial, fase da descoberta do mundo; a
curiosidade, estimula a fantasia, provoca descobertas e lembranças, é a leitura emocional. Maria Helena Martins afirma que na leitura emocional
visão, a audição, o olfato e o gosto são os referenciais desse nível.
não importa perguntarmos sobre o que o texto trata, mas sim o que ele
Paulo Freire (1995), quando fala da leitura da “palavra-mundo”, da leitura do
provoca em nós. É a leitura da paixão, das emoções, lida com os
quintal e dos quartos de sua casa, refere-se a uma leitura sensorial, a uma leitura
sentimentos, com o subjetivismo, é a leitura que foge do controle do
presa aos órgãos do sentido.
leitor.
08 | 02 de Julho de 2014
Envie-nos os seus comentários sobre a entrevista da semana por e-mail: r.literatas@gmail.com
Ensaio Na leitura racional, destaca-se o aspecto reflexivo, o leitor quer
No livro La Poétique de L´Espace, ao analisar a imagem poética, o
compreender o texto, dialogar com ele. Para Martins, a leitura racional
filósofo estabelece diferenças entre o fenomenólogo e o crítico literário que
acrescenta à sensorial e à emocional o fato de estabelecer uma ponte entre o
merecem registro.
leitor e o conhecimento. A leitura racional questiona tanto o mundo individual
O crítico literário ou o professor de retórica julga uma obra que não poderia fazer
como o universo das relações sociais, amplia as possibilidades de leitura do
ou que não desejava fazer. “O crítico literário é um leitor necessariamente
texto. [...] que oásis! Abrir minha estante e senti-los um por um nos seus
severo”. Distanciamento, não envolvimento, imparcialidade são marcas do
couros, carneiras, pergaminhos, papéis, percalinas – como quem passa a
crítico literário.
mão, sente e palpa a pela da mulher amada. (1987: p. 51)
Atitude diferente é a do fenomenólogo, ele cria a ilusão de participar do
Cabe lembrar aqui Roland Barthes (1988), que, em O Prazer do texto, estabelece distinções entre o “prazer do texto” e o “texto de fruição”. Para o semiólogo francês, o texto que provoca prazer é o que contenta, enche, dá euforia, é aquele que vem da cultura, não rompe com ela e está ligado a uma prática confortável da leitura. O texto do prazer corresponde à prática bachelardiana – “ler-sonhar”. O texto de “fruição” é aquele que desconforta, que faz vacilar as bases históricas, culturais e psicológicas do leitor, a consistência dos seus gostos, valores e recordações. Barthes ainda afirma que a fruição não implica o prazer, pode até, aparentemente, causar aborrecimentos. “O texto de fruição é absolutamente intransitivo”
livro, é um coautor. Essa atitude de coparticipante não é assumida na primeira leitura, geralmente esta se faz com excessiva passividade. Se o livro nos agrada, devemos fazer uma segunda, uma terceira leitura e, pouco a pouco, vamos sendo envolvidos a tal ponto que chegamos à conclusão de que “devíamos ter escrito isso”. A releitura apaixonada alimenta e recalca o desejo, o sonho de ser escritor. Quando o leitor ascende a esse matiz, ele se aproxima do fenomenólogo. A vivência de um escritor muitas vezes condiz com a do leitor. Se vivemos em uma mesma época, se participamos do mesmo espaço geográfico, se falamos a mesma língua, se ouvimos e lemos as mesmas histórias que falam do nosso povo e da nossa cultura, não obstante as diversidades individuais, os nossos
Ele aprendeu a ler na cartilha O livro de Lili, de Anita Fonseca e, neste artigo, reverencia a professora que lhe ensinou a decifrar as letras e as somas. A palavra foi a grande mestra, através da palavra aprendeu a encurtar distâncias, alcançar a fantasia, ultrapassar a linha do horizonte. Cada página virada, cada folha passada era uma esquina dobrada, uma montanha escalada. O livro passou a ser o porto e a porta, o cais e a sua rota.
O
sonhos, nossos devaneios se aproximam. Após essas observações de escritores e de teóricos da leitura, concluímos que ler significa ver, sentir e refletir sobre o objeto da leitura. A boa leitura é aquela que apaixona, que leva o leitor ao devaneio. A leitura que não é sentida, que não proporciona uma reflexão, é incompleta.
escritor e memorialista Pedro Nava (1987) expressou muito bem a sua visão
O bom leitor complementa, recria, acrescenta sonhos, enriquece o texto-mãe.
de leitor no livro Galo-das-Trevas. Ao olhar as estantes que continha os livros
Ele participa do livro, é um coautor, sente o sabor do texto, identifica-se com ele.
de que mais gostava, ele revela: A professora Eliana Yunes (2012), discorrendo sobre o conceito de leitura, no
E mais adiante, prossegue:
Vejo-os nas letras de que se enfeitam: caracteres góticos,
os
das
impressões
com
capitais
texto Leitura e ética ou a ética da leitura, assegura que: A consequência maior do aprendizado da leitura reside na ampliação dos
livrescas,
horizontes de mundo e da capacidade neurológica de pensar. A leitura é, pois,
minúsculas carolinas, maiúsculas insulares, itálicos, caixas
instrumento para tornar-nos efetivamente humanos, mais racionais, uma vez
altas, baixas, versais e versaletes contemporâneos. (p.51)
que a sensibilidade animal e vegetal que nos habita também precisa de
Pedro Nava revela um amor material pelo livro, um amor tocado pelos sentidos, principalmente pelo tato. O ver se associa ao sentir. Passar a mão pelos livros amados, ver as letras que enfeitam as capas lhe dá uma
refinamento e apuro. (2012: p. 13) Depreendemos, através das palavras de Eliane Yunes, que a leitura nos torna mais humanos, mais sensíveis e refinados, além de ampliar nossos horizontes.
sensação de posse, de ser dono de um tesouro precioso – muitos livros.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
O poeta Elias José (1997), em um texto-depoimento – Leitura: prazer, saber e
BACHELARD, Gaston. La Poétique de L´Espace. 4 ed. Paris: Quadrige, 1994.
poder, publicado na revista Leitura: teoria e prática, ao falar sobre sua
BARTHES. Roland. O prazer do texto. Trad. Eduardo de Prado Coelho. Lisboa: Edições
experiência com a leitura, assim se expressa:
70, 1988.
Somos capazes de sentir no texto, os cheiros, os gostos, os sons, as cores e as formas do mundo, quando tocados pela magia das palavras. Os bons leitores também são artistas. Artistas recebedores, recriadores do texto. Eles enriquecem o jogo com suas vivências. Acrescentam sonhos aos sonhos, mistérios aos mistérios. Completam ou modificam o que lhes foi proposto. Na soma de experiências entre o que vivi e a porção diferente de vida que o poema e a ficção me trazem, como autor ou leitor, está o prazer do texto. É um prazer sensual, uma fruição. (1997: p. 69)
JOSÉ, Elias. Leitura: prazer, saber e poder. In: Leitura: Teoria & Prática. Associação de Leitura do Brasil. No. 29. Campinas: São Paulo: ABL: Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. Campinas: Mercado de Letras, 1995. MANGUELL, Alberto. Uma história da leitura. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1984. NAVA, Pedro. Galo-das-Trevas. (Memórias). 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
Se tudo é leitura no universo, talvez a melhor postura a ser adotada seja a do
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Sobre ler, escrever e outros diálogos. Belo
fenomenólogo, que examina cada coisa minuciosamente, que procura tirar os
Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
véus que encobrem as palavras. Essa atitude fenomenológica conduz o leitor
YUNES, Eliana et al. Manual de reflexões sobre boas práticas de leitura. São Paulo:
ao encontro de Gaston Bachelard (1994).
Editora UNESP: Rio de Janeiro: Cátedra UNESCO de Leitura PUC-RIO, 2012.
09 | 02 de Julho de 2014
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Entrevista | Pombal Maria
Entrevista com Ricado Riso Fonte: Jornal o País– Angola
U
rge a cura do complexo de papagaio residente na maioria dos jovens doutores e mestres de literaturas africanas no Brasil.
Importante frisar que a questão de gênero de certa maneira é melhor resolvida. Temos Paulina Chiziane, Paula Tavares, Isabel Ferreira, Vera Duarte, Dina Salústio, Odete Costa Semedo, Conceição Lima, entre as contemporâneas... nomes restritos, mas, e para não me acusarem de essencialista, destaco as ausências de Maria Helena Sato e Carlota de Barros, duas escritoras caboverdianas de grande valor. Porém, e o negro escritor?
P:- Ricardo Riso é um grande activista de luta contra o racismo na cultura, especificamente na literatura, há racismo na literatura brasileira e como vocês combatem esse fenómeno?
As escritoras e os escritores negros para quebrar esse círculo ininterrupto e fechado de exclusão atuam com meios próprios para divulgação, distribuição e formas de atingir o seu público leitor, em sua maioria formado por negros. Sim, existe um leitor negro que a literatura canônica sempre ignorou, pois não percebe o negro como consumidor de literatura nem como escritor. A literatura negro-brasileira visualiza um leitor negro, algo que o cânone jamais conseguiu, por isso, a insistência de personagens negros subalternizados e estereotipados nos textos nacionais, o que reflete as posições étnico-raciais no país. Os autores negros divulgam suas obras nas redes formadas pelos movimentos sociais negros, na internet através de blogs e redes sociais e assim “traficamos” esses livros. Hoje temos editoras próprias, mas boa parte das obras ainda são financiadas pelos próprios autores, as famosas edições de autor. Com o livro pronto, o escritor vende de forma “artesanal”, ou em espaços específicos como a “Kitabu – Livraria Negra”, de Heloísa Marconde e Drª Fernanda Felisberto, no Rio de Janeiro. Outro dado importante para a constituição dessa rede é a publicação coletiva, frisando que a opção pelo coletivo é oriunda da dificuldade de aceitação pelas grandes editoras que não querem ter nos seus catálogos títulos que demonstrem as tensões raciais no Brasil, assim como os altos custos gráficos que são extremamente pesados para boa parte dos escritores negros. Nesse sentido, a série “Cadernos Negros” ocupa lugar de destaque. Desde 1978 que esta série publica negras e negros intercalando poesia em um ano e no seguinte, contos. Cadernos Negros é um referencial obrigatório para o escritor e o leitor negro; em Cadernos Negros deparamo-nos com a diversidade da literatura brasileira. Contudo, apesar de atingir neste ano a 36ª edição, a série ainda enfrenta problemas com a divulgação e distribuição de seus exemplares, contando com as diferentes redes negras do país e no estrangeiro. Uma outra ação que merece destaque é o site “Ogum’s Toques”, coordenado por Guellwaarr Adún e que sou colaborador. A proposta de Ogum’s Toques é divulgar as literaturas negras no mundo, em qualquer língua. Literatura que expõe as dificuldades da mulher negra, do homem negro na diáspora ou em África, estará na Ogum’s Toques. Por um humanismo que contemple as diferenças conforme proclamava Aimé Césaire, pela pluriversalidade contra as restrições da universalidade do sulafricano Mogobe Ramose, Ogum’s Toques representa tudo isso. De suma importância e que não poderia ficar de fora é o portal “Literafro”, organizado pelo Dr. Eduardo de Assis Duarte (UFMG). Neste portal estão catalogados mais de duzentos autores negro-brasileiros com biobibliografias, textos críticos e excertos de textos literários.
Sou apenas mais um negro ciente da minha condição enquanto negro em uma sociedade racista como a brasileira, que conseguiu não se tornar mais um dado estatístico do genocídio que afeta a juventude negra; ciente do corpo-natureza pré-concebido pelos olhares sociais que vêm em mim os atributos físicos e sexuais, jamais o intelecutal ou relacionado a qualquer atividade que exija o mínimo de reflexão; ciente dos entraves no mercado de trabalho; ciente das dificuldades dessa condição de ser negro nos bancos escolares; ciente dos entraves de ser um pesquisador negro com temática negra no território hostil que é a universidade brasileira, (...)
Sou apenas mais um negro ciente da minha condição enquanto negro em uma sociedade racista como a brasileira, que conseguiu não se tornar mais um dado estatístico do genocídio que afeta a juventude negra; ciente do corpo-natureza pré-concebido pelos olhares sociais que vêm em mim os atributos físicos e sexuais, jamais o intelecutal ou relacionado a qualquer atividade que exija o mínimo de reflexão; ciente dos entraves no mercado de trabalho; ciente das dificuldades dessa condição de ser negro nos bancos escolares; ciente dos entraves de ser um pesquisador negro com temática negra no território hostil que é a universidade brasileira, da ousadia de deslocar-me de objeto para sujeito, a todo instante sendo chamado atenção por ostentar um discurso militante, como se essa violenta censura epistêmica não fosse militante; um negro atento às violências no campo do simbólico nos meios de comunicação; e, desde sempre, temeroso com a próxima blitz policial, já que minha cor representa a marca da suspeita. Conforme o poema de Éle Semog, “Do Ser”: “Sou universalmente negro/ Na ponta deste lápis/ No âmago desta alma// Sou universalmente livre/ Em cada canto/ Desta raça/ Em cada labirinto desta prisão”. Essas são algumas das questões que passam pelo cotidiano de um negro inserido na farsa da democracia racial. Sendo assim, quando você me pergunta se há racismo na literatura brasileira, eu preciso dizer que o Brasil republicano, desde sua proclamação, não preocupou-se em inserir os negros na sociedade, mas sim em como resolver o problema dos negros, tanto que “intelectuais” da época apostavam em diferentes formas de embranquecimento da população: pela entrada de imigrantes europeus, pelos cruzamentos inter-raciais em que o fenótipo do europeu prevaleceria, pela esterilização compulsória e permanente, pelo abandono à própria sorte dos negros e sem condições de emprego ou acesso à saúde, ou educação. Os responsáveis atuaram em múltiplas áreas e até hoje são “nomes respeitáveis do pensamento nacional”, dentre outros, Silvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha, Renato Kehl, Monteiro Lobato, Belizário Penna... A doença psíquica do racismo é tão forte que Joaquim Batista Lacerda representou o país como “delegado oficial do Brasil” durante o Universal Races Congress, dentre outros presentes estavam Franz Boas e W. E. B. Du Bois, em Londres, em 1911, e teve o disparate de dizer que em menos de um século negros e mestiços desapareceriam da população brasileira. Bom, essa ideia é tão forte e tão presente entre a nossa elite que basta olhar para as novelas brasileiras e veremos que esse ideal ainda é almejado. Ou seja, a literatura brasileira, elitista como é da sua natureza, não pode ter negros no seu cânone. E assim, embraquecem Machado de Assis. Sendo assim, a questão é: o que o leitor angolano conhece da literatura brasileira engloba algum escritor negro-brasileiro? O que o leitor angolano conhece da literatura produzida por negros brasileiros? Mudando um pouco o prisma: o pesquisador brasileiro que estuda a literatura angolana propõe o comparativo com a literatura negro-brasileira? Ou seja, se dependermos daquilo que é reconhecido
P:- Quer dizer que o Canone literário no Brasil é escolhido com base na pigmentação da pele? Quais os grandes autores negros brasileiros? Você sabia que Machado de Assis era negro? Os autores negros não são inseridos no cânone da literatura brasileira. Os poucos que são aceitos, casos de Machado de Assis, Cruz e Sousa e Lima Barreto, têm suas vivências de negros completamente excluídas das análises literárias. São embranquecidos. Convivemos com absurdos de que Machado não tocava na questão racial e olhava com desdém o processo abolicionista. Pura mentira e injúria! O olhar atento de Machado ao problema do negro está presente nos seus romances, contos, crônicas e poemas. O Dr. Eduardo de Assis Duarte fez uma brilhante pesquisa que redundou no livro “Machado afro-descendente”, de 2007. Este livro é ignorado pelas universidades brasileiras. Nele, Duarte demonstra com perspicácia como Machado estava atento aos problemas do negro antes e depois da abolição. Além disso, há uma incapacidade da intelectualidade e dos meios de comunicação de admitirem o nosso maior escritor como negro. No que diz respeito à representação de Machado, recentemente, a Caixa Econômica Federal divulgou um comercial televiso que o ator que representava o escritor era branco, quase um caucasiano. Óbvio que as organizações que formam o movimento social negro protestaram e o comercial precisou ser refeito e foi novamente ao ar com um Machado negro. Precisava disso?
12 | 02 de Julho de 2014
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Entrevista O que motiva o embranquecimento do escritor? Já Cruz e Sousa sofre(u) com a doença psíquica do racismo dos críticos literários que insistem na brancura de sua poesia e ignoram os seus diversos poemas que denunciam o racismo e o problema do negro. “Emparedado”, “Caveira” estão entre esses poemas. Chega a ser desonestidade com a obra de Cruz e Sousa falar essas verdadeiras bobagens. Enquanto Lima Barreto muitas vezes é tratado como o louco, o bêbado que não sabia escrever. Todas as características do modernismo brasileiro já estão presentes em sua obra, e ele é considerado um pré-modernista. Por quê? Mas, Lima Barreto denunciou a hipocrisia da elite carioca, e a denúncia do racismo é central em textos como “Clara dos Anjos” e “Recordações do escrivão Isaías Caminha”. Os angolanos conhecem a obra de Lima Barreto? Necessário destacar que o véu branco à frente da crítica brasileira impediu-a de analisar a ausência do escritor negro e de como a personagem negra era representada na nossa literatura. Somente a partir da análise de brasilianistas que essas ausências na literatura brasileira vieram à tona, casos dos pioneiros trabalhos de Roger Bastide (A poesia afro-brasileira, 1944), Raymond Sayers (O negro na literatura brasileira, 1958), Gregory Rabassa (O negro na ficção brasileira, 1965) e David Brookshaw apresenta “Raça e Cor na literatura brasileira” em 1983. Por causa desse silenciamento da crítica brasileira, os escritores negros, principalmente a partir da geração dos anos 1970, passaram a desenvolver ensaios questionando o cânone literário e a defender a existência de uma literatura negra no Brasil. Desde então, vários autores sentiram a necessidade de entrar para a Academia e realizar esse debate nesse espaço de poder. Conceição Evaristo e Cuti são exemplos de escritores negros que se tornaram doutores em literatura, aquela na UFF, este na UNICAMP, como forma de “legitimar” os seus discursos. Alguns nomes que posso destacar são os de Luiz Gama, que foi vendido como escravo por seu pai branco, depois tornou-se poeta, advogado e abolicionista. Ele sim o verdadeiro “Poeta dos Escravos”. Momentos pioneiros da literatura brasileira vieram de autores negros: o primeiro romance escrito no Brasil veio de um negro, Teixeira e Sousa, assim como a primeira mulher a escrever um romance foi Maria Firmina dos Reis em 1858. Outros nomes marcantes no decorrer do século XX foram Lino Guedes, Solano Trindade, Eduardo de Oliveira, Oswaldo de Camargo, o fenômeno Carolina Maria de Jesus que vendeu cem mil exemplares da primeira edição de “Quarto de despejo” em 1960, posteriormente traduzido para mais de uma dezena de idiomas. Os angolanos conhecem Carolina Maria de Jesus? Porém, é a partir dos anos 1970, durante a ditadura e lembrando que abordar o racismo enquadrava a pessoa na Lei de Segurança Nacional, e no decorrer dos anos 1980 que coletivos negros começam a se rearticular e destacar seus escritores, caso do Grupo Palmares (Porto Alegre/RS), Gens (Salvador/BA), Garra Suburbana e Negrícia (Rio de Janeiro), Cadernos Negros e Quilombhoje (São Paulo/SP). Literatura e movimento social negro atuam lado a lado e na distensão da ditadura fortalecem organizações como CECAN, MNUCDR, IPCN, SINBA, GTAR e jornais como Árvore da Palavra, do MNU, Tição, entre outros. Os 90 anos da Abolição, em 1978, foi uma data marcante nesse processo. Também temos que considerar as influências e contatos externos: as lutas pelos direitos civis nos EUA e a descolonização dos países africanos, principalmente os de língua portugesa, foram eventos motivadores para os negros brasileiros. Há uma aura de solidariedade negra no Atlântico negro. Assim, nomes como José Craveirinha e Agostinho Neto influenciaram os autores negros brasileiros e contribuíram no resgate de África como capital simbólico para nós. Autores marcantes desse processo são Éle Semog, José Carlos Limeira, Cuti, Jamu Minka, Oliveira Silveira, Adão Ventura, Paulo Colina, Abelardo Rodrigues, Márcio Barbosa, Jônatas Conceição, Geni Guimarães, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Arnaldo Xavier, Edimilson de Almeida Pereira, Lia Vieira, Ronald Augusto... a partir dos anos 90 consolidam-se Conceição Evaristo, Lande Onawale, Lepê Correia, Cristiane Sobral, Cidinha da Silva...
P:- Um dos principais produtos da relação África- Brasil devia ser a cultura. Acha que o Brasil dá a África em igual proporção ao que a África e países como Angola deram ao Brasil durante séculos, culturalmente? Dentro do nosso processo de rejeição ao passado africano e ao negro brasileiro, tanto que por aqui transforma-se o que é oriundo da cultura negra em mestiço e assim vira identidade nacional, caso do samba, e assim naturaliza-se certo desprezo das políticas culturais voltadas para os países africanos. Quando acontecem, tendem para a valorização do exótico e das representações estereotipadas. Mas, o que os angolanos conhecem da cultura negro-brasileira? Há interesse desse intercâmbio por parte dos angolanos?
P:-Como a África no geral, e Angola em particular, é vista hoje no Brasil, principalmente pelas Meios de Difusão Massiva, depois do longo tempo de guerra civil? A visão de África de uma forma geral, e de Angola não foge da extrema estereotipia, da África selvagem que aparece sempre no “Globo Repórter”. Nas escolas temos que começar pontuando que Angola e outros países falam português, que passaram por uma guerra de independência, depois civil... é tudo muito raso por aqui. Exceto os pesquisadores, para a população em geral falar de África ainda é falar de miséria, fome, guerra...
P:- Porquê que os mídias africanos têm dificuldade de penetração no Brasil? Creio que pelo apontado anteriormente. Não há interesse do Brasil em aproximarse dos países africanos. E a maioria dos canais que buscam esse contato com os africanos são os que lidam com a cultura negra,
P:-Na relação com as antigas colónias portuguesas, o Brasil supera Portugal, pela influência dos mídias e produtos culturais como a música, cinema, literatura e televisão, além do poder económico. Acha que o Brasil tem aproveitado essa hegemonia e superioridade da melhor forma? Percebo práticas neocoloniais que em nada favorecem Angola e Moçambique, por exemplo. Para além da nefasta ideologia dos canais de televisão que levam os seus péssimos produtos. Tenham cuidado!
P:- O mundo vive o fenómeno das manifestações governamentais. Na sua observação o que se está passar?
anti-
No caso brasileiro, vejo sobretudo a explosão de uma profunda crise de representação partidária e de movimentos sindicais. Após longo silenciamento, o Padrão Fifa estimulou a população a analisar a falta desse padrão nos transportes, na saúde, na educação, nos serviços como saneamento... percebeu o excesso de ordem ao qual estamos submetidos e quase nada em troca. Um pouco de desordem faz bem à saúde democrática, ainda tão fragilizada no país. Chama atenção a heterogeneidade de reivindicações, cenário normal diante de tantos absurdos e governança voltada para a elite. E as pautas negras estão inseridas nesse processo, dentre tantas necessidades urgentes, temos como maior preocupação o genocídio da juventude negra. Os índices só aumentam com o passar dos anos e vários meninos são mortos pela Polícia Militar sem nenhum motivo aparente. A triste realidade dos negrotérios, neologismo de Éle Semog, é algo que precisa terminar. Porém, matar negros não causa indignação à população nem vira notícia de televisão ou primeira capa de jornal. É algo natural.
P:-Esta é apenas uma questão de desigualdade social. Ou uma mudança progressiva na relação social ao nível do mundo? No Brasil é um problema racial que a esquerda política jamais quis participar. Em relação ao mundo, o modelo neoliberal já mostrou o seu esgotamento e a ampliação descarada das desigualdades. Por isso, a urgência dos conflitos e manifestações.
P:- Quando restam grandes desigualdades sociais e desafios culturais dos países lusófonos, como caracteriza a sociedade brasileira hoje? Com uma dificuldade imensa de encarar os seus problemas e em apresentar solucões. Reina a histeria e a hipocrisia na defesa de privilégios enraizados desde o tempo colonial. Ações afirmativas para negros, bolsas-família, novos direitos trabalhistas para empregadas domésticas são alvos de intensa campanha contrária e insatisfação das classes abastadas.
P:- Ricardo Riso, tanto quanto soubemos os negros no Brasil e América tem sido descriminados e até hoje há grandes dificuldades de inserção social. Quais as estratégias que vocês tem para inverter a situação? Pode nos falar das ideias pan-americanistas hoje? O que a África precisa de ouvir de vós? W. E. B. Du Bois no sermão “Sobre as nossas lutas espirituais”, no seu imprescindível “As almas da gente negra”, aponta para o problema de “ser negro e americano sem ser amaldiçoado e cuspido por seus camaradas, sem ter as portas da Oportunidade brutalmente batidas na cara”. Nós, afro-americanos, ainda avançamos para a construção de um diálogo pan-americano. O problema do racismo é mundial, atravessa espaços e o tempo, por isso, é pertinente quando o historiador cubano Carlos Moore fala do protorracismo, das origens dos enfrentamentos raciais entre melanodermos e leucodermos na antiguidade e como isso foi crescendo no decorrer dos séculos. Não sinto-me confortável para dizer algo aos angolanos e/ou africanos no sentido de soluções. O que precisamos é de aproximação, de cooperação, do resgate e atualização de uma luta pan-africana antirracista.
Envie-nos os seus comentários sobre a entrevista por e-mail: r.literatas@gmail.com 13 | 02 de Julho de 2014
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Entrevista Pergunta:- O ministro da Educação de Angola, Pinda Simão, disse, no dia 10 do corrente mês, na sede da União dos escritores Angolanos, que Angola ainda está aprofundar a reflexão sobre o acordo ortográfico que considera positivo, mas que pensa haver aspectos dos povos de Angola que devem ser tidos em conta e que o acordo poria de parte. O que tem a comentar sobre este facto? O novo acordo ortográfico gerou enorme polêmica aqui no Brasil, muito pela sua ineficiência e que em nada contribui para solucionar o problema da educação no país. Trata-se de algo menor diante de tantas carências que temos e que precisam de soluções emergenciais nas áreas de saúde e educação. Creio que em Angola seja assim também. Isto é apenas mais um dado que reflete o total descompasso do brancocentrismo da elite com o restante da população, assim como a manutenção da dominação pela língua; a língua como processo de seleção e exclusão. Além disso, há o agravante dos gastos estratosféricos com as reedições de livros didáticos para que estejam conforme as novas regras. Enquanto isso, escolas permanecem desaparelhadas e os professores precisam usar a criatividade para ter condições mínimas de trabalho.
P:- Será que podemos estar diante de uma crise sobre a ratificação e implementação do acordo ortográfico na lusofonia? Precisamos sim questionar este acordo. Por que temos que falar e escrever da mesma maneira? Por que a referência/submissão a Portugal? O que é lusofonia? Há espaço para o negro na lusofonia? A quem interessa? Para que precisamos de um novo acordo? Não estamos nos comunicando? Precisamos de menos ordens, normas, obediências e afins.
P:- Como classifica as literaturas africanas de língua portuguesa? Toda classificação é arbitrária e a maneira vaga como foi colocada a pergunta deixame em difícil posição. Penso que podemos problematizar esse grande guarda-chuva denominado literaturas africanas de língua portuguesa. Ser “tudólogo” em literaturas africanas exige que escolhas sejam feitas. Sendo assim, começamos a perceber as exclusões. As literaturas de Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe são as maiores prejudicadas nesse processo. Pensando na Academia, no caso a brasileira, por que não podemos estudar a literatura angolana, a cabo-verdiana, a moçambicana, a guineense ou a sãotomense, e a partir daí nos aprofundarmos em cada uma delas? Outra questão: por que somente as literaturas produzidas em língua portuguesa? Por que esse neocolonialismo acadêmico? Já que por exigência acadêmica somos obrigados a saber inglês, francês, espanhol, entre outras línguas europeias, seria interessante que o pesquisador das literaturas de cada país incorporasse a literatura angolana em quimbundo, a literatura cabo-verdiana crioula e assim em diante. No caso de Cabo Verde há uma vasta produção em crioulo que é ignorada pela crítica brasileira. Por que isto? Penso que é urgente rever esta posição, até como respeito ao pluralismo linguístico desses países africanos.
P:- Acha que elas estão no mesmo nível de concepção estéticodiscursiva, divulgação de livros e autores no Brasil? Se é que existe essa divulgação na terra do rei pelé? Dentro das suas especificidades temporais e históricas, elas têm o seu valor no plano estético, basta partir para o texto literário. Creio ser desnecessária a comparação. A respeito da divulgação, muito já foi feito e a Lei 10.639/2003 (obriga o ensino de História e culturas africanas e afro-brasileira em todo a educação bási-
ca) foi um grande estímulo e incentivador para o mercado editorial, assim como para os professores que passaram a se interessar por essas temáticas. Há dez anos, chegávamos às livrarias e encontrávamos os livros de autores africanos em lugares pouco privilegiados. Hoje, temos bancadas ou estantes sobre assuntos africanos e alguns autores luso-descendentes ocupam posições de destaque nas vitrines. Importante frisar o trabalho crítico desenvolvido nos cursos de pósgraduação ao longo dos anos que contribuíram para o desenvolvimento desse processo. Porém, ainda estamos distantes do que seria uma boa divulgação de autores africanos, muito em razão da restrição ao reconhecido cânone lusodescendente do mercado editorial e das universidades. E no caso angolano, isso é gritante. A pluralidade de autores está longe de ser atingida, levando em consideração critérios como raça e gênero. Para conhecer outros autores, é preciso que o pesquisador saia da inércia e se transfigure em um arqueólogo. Hoje temos o Facebook, revistas como a Literatas e blogs como o de minha autoria. Buscar outros autores que não constam no cânone estabelecido, pode trazer surpresas agradáveis.
P: Quais os nomes que mais lhe ressalvam nesta literatura, tanto na velha como nova gerações? Creio que sua pergunta esteja direcionada à literatura angolana. Bom, é importante para o pesquisador conhecer o sistema literário em sua plenitude. Hoje vejo nos congressos que participo poucos trabalhos a respeito dos textos fundacionais da literatura angolana, sinto falta de Cordeiro da Mata, Castro Soromenho... Necessário olharmos para o passado e resgatarmos nomes que foram ostracizados e não ficarmos dependentes do cânone. Isso é um ponto essencial para o investigador. Avançando um pouco no tempo, deparamo-nos com a pouca referência ao nome de Viriato da Cruz, por exemplo. Lembrando que falo daqui do Brasil. A geração dos anos 40/50 é essencial. Não falar de literaturas africanas sem mencionar essa época, em particular, a antologia “Poesia negra de expressão portuguesa”, organizada por Mário Pinto de Andrade e Francisco José Tenreiro é um erro gravíssimo. Tenho especial carinho por esse período. Um texto que gosto de lembrar e divulgar é o “Mestre Tamoda”, de Uanhenga Xitu. Um personagem fascinante! Com receio de esquecer algum dos autores atuais, mas já como uma longa trajetória, aprecio muito e vejo como nomes incontornáveis da poesia Trajanno Nankhova Trajanno, Lopito Feijoó, João Tala, João Maimona, Conceição Cristóvão, José Luis Mendonça... na prosa, os contos de Tala, Roderick Nehone, o Carmo Neto de “Degravata”... dos mais novos, gosto particularmente de Abreu Paxe, inclusive as análises críticas deste, Akiz Neto, Antonio Pompílio, Pombal Maria, Nok Nogueira... mas, vejo muita pretensão em outros nomes que não atingem o conseguimento estético almejado, tornando suas poéticas exaustivas... agora, o gênero é que fica comprometido na literatura angolana... houve Alda Lara, agora a Paula Tavares, a Isabel Ferreira... a pouca visibilidade da escrita feminina angolana é algo que precisa ser tensionado, principalmente na constituição de seu cânone e de antologias angolanas recentes. Do publicado aqui não preciso dizer, muitos brasileiros já dizem – ou só dizem – sobre essas obras e autores.
10 | 02 de Julho de 2014
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Entrevista P:- Falando das novas gerações, acredita que as novas gerações tem pouco ou nada a oferecer a literatura angolana? Até que ponto está afirmação serve de incentivo aos novos autores angolanos? Toda nova geração tem algo a oferecer e o tempo é o melhor filtro. Caso contrário, pararemos no tempo. O que é necessário é que os jovens literatos leiam, leiam muito dos grandes nomes espalhados pelo mundo e também conheçam os grandes autores angolanos. Mas, uma leitura concentrada, assim como o ato da escrita... sem pressa, estudada... vejo como o maior problema entre os jovens é a rapidez em publicar. Talvez pela facilidade da internet, o “curtir” do Facebook, necessidade de visibilidade, status... é um caminho perigoso. A palavra poética precisa ser lapidada com calma e é essencial a troca com outros autores. P:- Em Angola temos estado a assistir um forte conflito de gerações. Até que ponto esse conflito é prejudicial e/ou ajuda os novos autores? A literatura é um espaço de poder, não podemos perder isto de vista. Sendo assim, os conflitos sempre existirão e serão múltiplos: de tendências literárias, gênero, classe, raça, etário. Temos que estar atentos às reivindicações dos mais novos. Há o ímpeto da juventude, que pode ser bom ou ruim, e inserido nisso podem estar alguns problemas da máquina literária, tais como a dificuldade em publicar, os prêmios literários viciados, invisibilidade nas tertúlias e cadernos literários...
P:- Que responsabilidade tem os escritores de gerações consolidadas na afirmação de novos autores e/ou gerações? A responsabilidade desses autores está presente nas suas obras, nos desafios com a linguagem e o compromisso com a palavra depurada que cada um se comprometeu; é responsabilidade sim dos mais novos conhecerem essas obras. É claro que o contato e o incentivo aos mais novos é sempre um fator relevante, de apoio e fortalecimento para os mais novos. Penso que é sempre frutífero o convívio entre os escritores de diversas gerações. Não se deve separá-los ou alimentar inimizades.
P:- Enquanto isso, cada vez é mais visível a promoção de autores africanos luso-descendentes. O que se passa? será que há descriminação na promoção das nossas literaturas a nível de Portugal e Brasil? Em 2012, eu e a pesquisadora Geny Ferreira Guimarães (doutoranda em Geografia/UFBA) apresentamos, na UFOP/Minas Gerais, um exaustivo levantamento de autores africanos de língua portuguesa publicados no Brasil, intitulado: “Mercado editorial brasileiro: seus entraves para a aplicação da lei 10.639/2003 e o permanente não reconhecimento do negro escritor”. Nosso levantamento reuniu 115 livros das literaturas africanas de língua portuguesa (romance, contos, poesia e infantil) lançados de 1962 a outubro de 2012. Da literatura angolana levantamos 62 livros, sendo que 48 obras são do cânone luso-descendente (Pepetela, Ruy Duarte de Carvalho, José Eduardo Agualusa, Luandino Vieira e Ondjaki). Ou seja, 77% da literatura angolana publicada no Brasil durante o período pesquisado resume-se a cinco autores, quadro ainda mais agravante após 2003, ano da lei 10.639. E não há como se estranhar este dado? Onde está o escritor negro angolano? Nos catálogos das editoras brasileiras é que ele não se encontra. Quem racializa a questão? E a situação só não atinge algo perto do zero porque editoras especializadas em temáticas afro-brasileiras se preocupam com essa disparidade, casos da Mazza, Nandyala e Pallas. Por outro lado, hoje temos editoras com forte suporte financeiro, de divulgação e obras com qualidade gráfica invejável que se escoram no conceito da lusofonia. Entretanto, a lusofonia nada mais é que a renovação da discriminação ao negro escritor. Enquanto elas tentam fugir da estigmatização de autores africanos, eliminam as representações nacionais e continentais e incorporam um discurso diluído na lusofonia. Essas novas editoras mantêm a discriminação de raça e de gênero, fato já denunciado anteriormente pela Drª Laura Cavalcante Padilha (UFF) no seu brilhante artigo “A diferença interroga o cânone” que, ao se referir à constituição do cânone das literaturas africanas, cita as antologias “No reino de Caliban” (1975), de Manuel Ferreira, e “Entrevistas com Escritores” (1991), de Michel Laban, diz o seguinte: “Lembrando o fato de que o acervo crítico dessas literaturas se ter forjado inicialmente fora da África – na Europa e nas Américas, com Portugal e Brasil à frente –, começo a questionar até que ponto, o cânone ‘consagrado’ por outras vozes que não as africanas, submeteu-se aos mesmos mecanismos de dominação e poder que sempre tiveram como meta elidir as diferenças, sobretudo se o objeto recortado são questões como de gênero e raça” (2002, p. 164). Mudamos nesse sentido? De maneira nenhuma e só vamos fortalecendo a exclusão. E se analisarmos teses, dissertações e comunicações nas universidades e congressos de literaturas africanas, o que constataremos?
P:- As nossas literaturas africanas de língua portuguesa, francófonas são estudadas nas universidades brasileiras?
Infelizmente, desconheço a respeito das francófonas. De uma maneira geral, escritores e/ou pensadores negros não são traduzidos pelo mercado editorial brasileiro. E quando não são traduzidos, a circulação desses textos é excessivamente restrita. Nesse ponto, considero importante a relação mercado editorial/ universidade como forma de práticas de biopoder, o que dificulta a inserção de novos autores e outras bases epistemológicas nas universidades. Quando muito, temos casos isolados como o de Chinua Achebe. Um nome reconhecido no mundo como Wole Soyinka somente teve a sua primeira obra aqui publicada no ano passado. A íntegra de “Cahiers d’un retour au pays natal” de Aimé Césaire somente ano passado ganhou uma edição brasileira. Temos uma obra de Patrick Chamoiseau, de outros negros, mas dispersas nos catálogos das editoras... Nomes consagrados da luta antirracista nos EUA, do Harlem Renaissance, da Negritude, afro-americanos de línguas espanhola, inglesa ou francesa são raríssimos por aqui, assim como de outros países africanos. Até textos de líderes africanos como Amílcar Cabral, Stevie Biko e Samora Machel não são reeditados há anos. Ou seja, essas ausências não são gratuitas. No caso angolano, o livro “Sagrada Esperança”, de Agostinho Neto, foi lançado em comemoração ao primeiro decênio de Angola independente. Desde então... No que diz respeito às universidades, muito já foi feito nas públicas graças aos esforços e competência dos nossos professores consagrados que todos nós sabemos seus nomes. Entretanto, há uma realidade entre os grandes centros universitários de literaturas africanas de língua portuguesa e outras universidades públicas e particulares, distantes do eixo Rio de Janeiro-São Paulo-Belo Horizonte. Ainda ocorre certa rejeição às literaturas africanas, quando muito são encaixadas em “literaturas de expressão portuguesa”. Importante frisar que são raras as disciplinas de literaturas africanas nas grades de graduação dos cursos de Letras espalhados pelo país; nos cursos de pós-graduação a situação é um pouco melhor. Ou seja, já avançamos bastante nesse sentido. Entretanto, há outro problema no que diz respeito à circulação da crítica literária produzida nos países africanos de língua portuguesa. Sinto falta de maior contato de ensaios críticos de angolanos como Luis Kandjimbo, Francisco Soares e Abreu Paxe, dos moçambicanos Francisco Noa e Lucilio Manjate, do cabo-verdiano José Luis Hopffer Almada e das epístolas de Timóteo Tio Tiofe. Esse estranho distanciamento reflete-se na crítica produzida no Brasil. Quais serão os seus motivos?
P:- Quais são os autores mais referenciados e porque? As duas últimas edições do Encontro Internacional de Professores de Literaturas Africanas (UFRJ, 2007 e UFOP-PUC/MG, 2010) oferecem um bom parâmetro para percebermos o que vem sendo estudado pelo país. O cânone lusodescendente, e acrescento o moçambicano Mia Couto, foi predominante nas comunicações. Por isso, insisto na relação universidades/mercado editorial. A justificativa cômoda diz que são os autores publicados aqui. Mas, não causa estranheza as análises críticas concentradas nos escritores luso-descendentes? Estamos falando de literaturas africanas, e até quando o escritor luso-descendente será o porta-voz dessas literaturas? O que essa ausência quer dizer? Como há um desprezo das universidades brasileiras por nossa literatura negra, será que o nosso pesquisador carrega o seu olhar brancocêntrico para as literaturas africanas e isso o impede de investigar os textos de autores negros africanos? Com a doença psíquica do racismo, o pesquisador branco, instruído desde os bancos escolares a não reconhecer o negro como escritor, ao lidar com as literaturas africanas percebe-se diante de um dilema que tem dificuldade de resolver, logo, escora-se naqueles que lhe são fenotipicamente parecidos e ideologicamente próximos. Talvez por isso o discurso da mestiçagem constante na obra de Mia Couto ofereça o conforto necessário e seja ovacionado por aqui. A internet facilitou o contato entre os pesquisadores e os escritores africanos. Podemos ser independentes ao mercado editorial. Hoje nos relacionamos diretamente com os autores. Minha trajetória é um exemplo disso. Entre livros e arquivos em pdf, tenho um pouco mais de duas centenas de títulos de prosa e poesia graças a generosidade dos escritores, que agradeço a todos. Quem presta um excelente trabalho para o deslocamento do cânone é a revista moçambicana “Literatas”, idealizada por jovens autores que perceberam essas restrições e decidiram encarar a ordem vigente. No que diz respeito às pesquisas nas universidades, acompanho com muito interesse as investigações da Drª Lívia Natália, Dr. Jesiel Oliveira e Dr. José Henrique Freitas, todos da UFBA, assim como o Dr. Amarino Queiróz (UFRN) e a Drª Ana Lucia Silva Souza (UNILAB). Esses competentíssimos pesquisadores encontram-se à margem dos grandes centros e propõem linhas investigativas “incomuns” e comparativos não estimulados no Sudeste como entre as literaturas africanas e a literatura negro-brasileira. Além disso, ampliam as discussões ao apresentarem outras bases epistemológicas, oxigenando as literaturas africanas. Também não posso esquecer da trajetória pioneira da relação das literaturas africanas com demais literaturas negras realizadas pela Drª Maria Nazareth Soares Fonseca (PUC-MG) e Drª Florentina Silva Souza (UFBA). Vejo como a melhor maneira de homenagearmos nossos principais pesquisadores é com a expansão e a diversidade nas linhas investigativas, e não a cômoda reprodução do que já é/foi feito com excelência por eles.
11 | 02 de Julho de 2014
Espaço dedicado a divulgação de escritoires emergentes. Envie os seus textos (poesia, conto, romance) para análise através do e-mail: r.literatas@gmail.com 33 minutos até era bom. Dava para que algumas pessoas dormitassem
“33 SEGUNDOS DE SILÊNCIO” (*) Celles Leta - Moçambique
É
aconchegados a um pseudo conforto nos seus lugares, aqui neste ventre de poesia, enquanto voam pelos mundos que não conseguem chegar usando apenas os seus pés que pisam a sua última morada. No entanto, é melhor que se pergunte: como é que as coisas ficariam,
a segunda vez que me faço a este palanque. E olhá-los cá de ci-
se pudéssemos pensar, por hipótese, que haja aqui alguém conversan-
ma, a sensação que tenho é que estou num avião prestes a cair
do com os seus botões, a si mesmo perguntando “quando é que este
aos vossos pés. O medo de meter os pés pelas mãos aperta-me a alma.
chato irá abandonar o palanque?”
O nervosismo é um frio que me corre a espinha dorsal. Serpentes de suor já se fazem aos meus poros excitados. É um turbilhão de sentimentos
Seja como for, em memória às 33 vítimas da queda do VOO MT 470,
que, mais do que me fazerem chorar, fazem-me morrer a cada segundo
concedamos ao momento “33 segundos de silêncio”.
que confirmo, através do acto de respirar, que estou vivo e, com certeza, há outras mortes que me esperam, para além daquela que me levará di-
VOO TM-470
recto à minha última morada. E a sensação de estar prestes a cair aos
(Em memória de Carlinhos,
vossos pés traz-me à memória o fatídico acidente aéreo de mais um avião
Yumala, Laisa e Jeinia Sambo)
das linhas áreas de Moçambique: O VOO MT 470, no dia 29 de Novembro de 2013, no Parque Nacional de Bwabwata, em Namíbia.
o pedaço de papel foi amassado na coberta do punho serrado
Ter em memória um luto nacional que chora 33 almas que se foram para
nada se sabe das palavras ali escritas:
o outro lado da existência, estando cá em cima, neste palanque que mais
vida, feridos, ou morte encontrada;
se parece ao pináculo do “Binga”, agora que me revisto da tarefa de de-
prosa, poesia, ou um papel em branco
clamar alguns poemas, vejo-me na condição de uma rainha em xeque-
nada! nada de nada! nada!
mate no infinito tabuleiro da poesia, eu que nada mais posso fazer, a não ser insuflar-me de “eus” poéticos no leve mexer dos lábios deste declama-
VOAR SEM ASAS
dor que (penso) sou, este declamador que declama a dor dos que ficam,
conforto?
assim que o Voo MT 470 trocou Luanda pelo céu que a todos espera.
que conforto? que conforto
O sensato seria que eu declamasse 33 poemas, posto que foram 33 al-
no confronto
mas que pereceram neste acidente. Mas, se, por um lado, não se mani-
de ser ave sem asas
festa aqui dispor de tempo para tanto, por outro, se os 33 poemas do pri-
e ter que voar?
meiro livro (VOO MT 470) da colectânea poética intitulada 33 POEMAS SOBRE UMA AVE MORTA (obra inédita) fossem declamados hoje,
COMUNICADO A BORDO
possivelmente, ninguém mais a compraria quando este fosse parar às
“Caros passageiros,
prateleiras. Por isso, sendo que o número 33 é composto por dois dígitos
pedimos as nossas sinceras desculpas
do número 3, números que se ladeiam como duas almas abraçadas, irei
pelos embaraços que possamos causar
aqui declamar apenas 3 poemas.
pelo sucedido mas temos a informar
Contudo, antes que eu os declame, devo dizer: além da sensatez que
que o voo MT470
acabo de mencionar nas linhas anteriores, existe uma outra, que é melhor
terá de efectuar três aterragens
que eu a aduza imediatamente, sob pena de que eu passe por distraído
de emergência:
ou algo a isso transversal: seria totalmente justificável que, em cumpri-
1º Parque Nacional Bwabwata;
mento da praxe, perante fatalidades como a presença da morte, com vo-
2º Cemitério de Lhanguene;
tos de que as almas perecidas na queda do Voo MT 470 alcancem em
3º Cemitério de Michafutene.”
paz o reino dos céus, a minha declamação fosse antecedida por um pedido de “1 Minuto de silêncio”. Mas não irei fazê-lo. Por uma razão muito
(*) Texto lido no Instituto Cultural Moçambique-Alemanha – ICMA, a 23
simples.
de Maio
O 1 de um minuto nada tem a ver com a queda do VOO MT 470, o qual vitimou 33 pessoas. 1 minuto equivale a 60 segundos. Não morreram 60 pessoas neste acidente. Tão-pouco podemos chamar aqui a equivalência do 1 minuto com as horas, pois encontraríamos menos que uma pessoa perecida. Restou-nos, portanto, duas opções: “33 minutos de silêncio” ou “33 segundos de silêncios”. 14 | 02 de Julho de 2014
Leia os poemas da semana às terças feiras em: www.revistaliteratas.blogspot.com Você também pode publicar. Envie-nos o seu poema pelo e-mail: r.literatas@gmail.com
Poesia Arco e flecha
CORES DO CORPO E DA ALMA
Samuel Pimenta - Portugal
A recta que verga ao galho firme, forma trespassada pela força elástica do impulso que caça e domina a morte.
Jacaré - Moçambique João Tala- Angola
De raspão povoamos a língua do nada escritos, escrevências nada mais do que escrevivendo o costume alma cheia o texto é pão escrevi vendo a multidão, a fonética. Multiforme. Da multiplicação do sonho bandeiras. Arde um hospício de corpo e alma
Dos ricos corações; Das belas emoções... África! Foste tu que despertavas o coração dos homens forasteiros... Transformando o teu continente de naikuros e tu mesmo os atavas... África! África dos tempos de marfim; África dos tempos de ouro; África dos tempos de escravidão sem fim... Dos teus homens conscientes; Dos teus homens pacientes; Oh! África! Onde estão aqueles homens “naikuros” que navegavam mares e oceanos, Que abriram estes caminhos duros – ao mar iam lançados – alguns levados e nunca alcançados?
Poemas da ausência
Tapete Persa
Mário Lúcio Sousa– Cabo Verde
O Sol, ordem de todas as manhãs A Lua, que não nos viu ontem O dia, que não sabe de nós O Mundo, sem saber de nada marcam suas presenças na nossa mente mente que criou o Sol, a Lua, os dias e as manhãs No meu coração cheio de tudo, porque sabe tudo, tudo espera para ser tão cedo apareças.
De boa vontade...!
Oh! África! Teus caminhos por onde homens passavam, Com os seus barcos e canoas navegavam, Navegavam, remavam e iam... Iam... contra a brisa do frio, Iam... contra a fome e porradas, Iam... vestidos a maneira – marcados como mais um boi importado, Iam... jamais voltaram - só você sabe confessar… Por onde os homens que saíram e não voltaram... donde sonegam! África! 04/04/03
Rosana Piccolo - Brasil
Ovelhas contínuas fervem o leite da constelação. À margem flores de lótus ou ânforas de Júpiter. A seda derrama o zodíaco na areia. Derrama fornalhas, rígido fio de luar. Cidades bordam o centro: crisântemo explosivo – princípio do outro, caríssimo também. Azul não faltará de tinteiro tombado, pavão noturno e inacessível e tão difícil de pisar, tão fácil com ele todavia voar.
15 | 02 de Julho de 2014
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Poesia "IGNOTO DEO"
A estética da minha vida
Hirondina Joshua-Moçambique
Amosse Mucavele-Moçambique
Nelson Lineu-Moçambique
Pretendo chegar a Deus No rosto da minha vida a beleza nunca foi o fim é sempre um dos meios por onde as possibilidades se encontram em mim em vez de rugas
Sílaba a sílaba Com sangue puro Como quem luta E nunca soube o que é lutar Sou inerme Na carne da substância pura:
em cada encontro
morri no mar e ressuscitei no rio tenho saudades do sal
Sob a Lua
Matéria do trabalho cósmico,
um novo toque desponta e se escreve no belo
Fenómeno do fogo “Strictu sensu”. Chamo a Deus No semblante amorfo da música.
Luís Kandjimbo-Angola
A lua traz no halo meses e calendários Das mulheres amáveis na curta medida Zekeene Chichava - Moçambique
Das sementes magníficas Do nascer e da morte
\
Manoel de Barros– Brasil
Vento? só subindo no alto da árvore que a gente pela ele pelo rabo… in DE COMPÊNDIO PARA USO DOS PÁSSAROS, 1961
As vezes a minha poesia
A lua desaparece na nebulosa malha
sou eu mesmo,
Da noite resignada
Meu corpo
A lua perde o centro
Minha alma
Na noite com meses e calendários
E cada palavra
Ficam estrelas para mulheres solitárias
Que nasce
E saudosas aguardam sementes magníficas
sobre a minha nudez...
Do nascer e da noite
Sou cada palavras Que bebo Para minha sede Em cada livro Naufragar... 16| 02 de Julho de 2014
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Cronica tamanho é o de uma rola, a cabeça redondinha e azul, a cauda muito longa e mais escura. Fico presa à sua beleza e desejaria ter uma máquina fotográfica. Recordo os pássaros da Inez Paes e gostava e lhe perguntar se sabe o nome
Fragmentos de um Diário
deste. E O MEU DIA TORNA-SE MENOS TRISTE... Na machamba da Lena, a minha amiga advogada que adora trabalhar a terra e ver desabrochar seus frutos, há muitas mangas, muitas papaias, abacates, bananas, ananases e atá morangos! Além da couve, do feijão, pimentos, alface, piripiri e mandioca. E o que se come em casa vem quase tudo da machamba que fica junto ao Umbeluzi, um rio lindo onde alguns hipopótamos vêm morar e que devem ser protegidos para que a população os não mate. As contradições de um país a crescer, tão diferentes e tão iguais às de um país, o meu, a envelhecer e a deixar morrer o que de mais belo sempre o caracterizou: o sonho de ser maior!
Fernada Angius –Moçambique
H
A viagem a Inhambane Regressei há pouco de Inhambane, a "Terra da boa gente”.É, acima de tudo, ter-
oje senti-me muito infeliz ao recordar a minha família perdida e ten-
ra de belas águas e lindas praias! Foram 3 dias de encanto, a partilhar uma casa
tei recordar todos os que ficaram ao meu lado quando os momentos
fantástica, junto ao mar. Rever o Calane da Silva e a Mila, ouvir as "novelas" lo-
maus me tocaram e abateram. E foram muitos os de longe e poucos os de per-
cais, e, sobretudo, projectar a nova Oficina de Escrita Literária para Inhambane
to... Será que os de longe, se estivessem estado perto, continuariam a ser mui-
foi bom! Será uma operação muito interessante a que me voltará a fazer traba-
tos?... Agora que estou longe, sinto que sou muito mais perto dos que deixei
lhar com os alunos da escola primária. Julgo que a ideia terá muitos adeptos e
longe... E penso na minha irmã e nas minhas sobrinhas, no meu cunhado de
dos resultados prometo dar conta a partir do próximo mês de Maio de 2014.
Portugal, nos meus cunhados e sobrinhos no Brasil...
Até lá, sonho e trabalho! A corrosiva mesquinhez de quem se preocupa com os
Nos amigos que em Portugal, na Espanha, França, Itália, Alemanha e em todas
galões a mim não afecta. Tentarei passar por cima e provar aos que ignoram a
as terras por onde passei e deixei amor!... E estou certa de não ter o direito de
medida da sóbria apreciação do néctar que o belo do que se saboreia está na
me sentir infeliz se os que mais amo e sempre amarei me maltrataram, incom-
capacidade de reter o sabor na boca e não na pressa de engolir...
preenderam e esqueceram. Um dia saberão que o amor que se despreza cedo
De Inhembane, além do gosto a mar, trouxe a esperança de retomar a literatura
se revolta contra quem o maltrata e se faz pagar em infelicidade e amargura que
infanto-juvenil nas escolas primárias. Recordo as minhas queridas Angelina Ne-
o arrependimento não remedeia; porque quem renuncia ao amor perde o direito
ves, a Amélia Russo e a Samima que tanto se bateram comigo para levar para a
à felicidade. Ora eu nunca renunciei ao amor...
frente o projecto que o Camões fez abortar porque me obrigou a regressar a Por-
Então, não devo sentir-me infeliz!... Penso que o dia de hoje foi, apenas, muito fatigante: todo o dia no Banco para conseguir levantar os euros que pedi a Lisboa para poder, daqui, pagar parte das dívidas contraídas a quando do roubo de que fui vítima em Itália. O dia todo! E só amanhã poderei ir enviar o que devo! É aqui que eu sinto que a Europa está muito mais rica, não porque tenha mais dinheiro, mas porque tem mais meios de comunicação E MAIS eficazes... Se para levantar dinheiro de uma conta é preciso um dia, imagine-se para regularizar um negócio em que é preciso pensar na forma de ganhar mais do que se pode manifestar que se ganhou... E começo a compreender o funcionamento do país que está para além da Literatura; o país que passa mais perto de mim, agora que estou neste bairro periférico, mas ainda muito encostado à cidade "branca" de outrora. Ainda não tenho
tugal (indiferente aos pedidos do próprio vice-ministro da Educação moçambicano), dado que já estava há mais de 8 anos em Moçambique e os Leitores não podiam exceder 6! É fantástico como certas regras tão rigorosas, em determinados momentos, se tornam permissivas e ligeiras em momentos seguintes. Neste momento, já há quem conte 17 anos no mesmo lugar!... Mas o projecto que envolvia o Ministério da Educação, a UNICEF e financiado pelo Banco Mundial, coordenado por mim e pelo INDE, sem custos para Portugal além do meu vencimento, CAIU!!! E que importância tem isso? Perguntarão... De facto teve muita! Embora hoje tenha aprendido que tudo aquilo com que a vida nos magoa nos deixa sempre uma lição importante. Julgo que a aproveitei e hoje estou a recomeçar um sonho que já encontra mais vozes que o irão tornar mais real. Sei que Inhambane é a "terra dos bons sinais" e aquela onde as "mangas verdes com sal" se oferecem aos bons paladares...
o meu alojamento no bairro da Polana, perto da Embaixada de Portugal, e estou em casa de uma amiga que me acolheu na sua casa de MÃE grande, onde me sinto irmã dela e avó dos seus filhos e netos... E no bairro da Malhangalene já não há cafés, nem Centros Comerciais elegantes... só existem os grandes Aramazéns Shoprite e Premier. De resto, as ruas e pracetas, que um tempo foram lindas, hoje apenas conservam os sinais dessa beleza antiga, quase apagados, nas acácias e jacarandás maltratados e nas abundantes mangueiras cheias de frutos pendentes, oferecendo-se em promessa de abundância a qualquer passante. E eu olho-as com gula, lamentando o facto de ainda estarem tão verdes e tão longe da sua cor doirada ou rosa sangue! Dentro do carro da Lena, enquanto a espero, à nossa porta, observo a abacateira quase sem folhas e cheia de flores prestes a se transformarem em frutos.
Este espaço pode ser seu envie seus textos para:
r.literatas@gmail.com
Num dos seus ramos nus, poisa um pássaro lindo! É multicor e iridiado! O seu
17 | 02 de Julho de 2014
Art&factos
18 | 02 de Julho de 2014
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Resenha Embora os volumes contenham pouco mais de sessenta páginas,
Ensaio crítico resgata Gonzaga
as informações contidas e o juízo crítico dos autores convidados para a confecção da obra rastreiam o essencial, fornecendo, de forma sucinta, mas analítica e reflexiva – como no enfoque de Adelto sobre Gonzaga –, informações básicas, seguidas de um breviário de poesias ou excertos do homenageado.
Ronaldo Cagiano (*)
Sobre Gonzaga, o professor Adelto mapeou trajetória pessoal e literária, palmilhando aspectos políticos, sociais, afetivos e culturais dominantes naquele período, como as conspirações na época da Inconfidência, as
F
paixões, as cobiças, o movimento da Derrama, o degredo na África e sua morte em Moçambique em 1810. Com essa edição, a ABL deixa o registro e firma a memória definiti-
ruto de uma incursão crítica em sua vida e obra, o poeta Tomás Antônio Gonzaga acaba de merecer um justo resgate em
va, por meio desse breve, mas lúcido e detido estudo, daquele que foi al-
publicação da Academia Brasileira de Letras, que em sua coleção “Série
çado à condição de um dos poetas mais líricos e populares no arcabouço
Essencial” convida um especialista para discorrer sobre autores que
da literatura lusófona. Um poeta que, apesar das vicissitudes por que pas-
inauguraram as cadeiras da Casa de Machado de Assis.
sou, em razão da detenção e exílio após a Inconfidência Mineira, deixou
Coube ao professor, crítico e ensaísta Adelto Gonçalves, um os
uma obra de dimensão épica, humanista e universal, um canto de exalta-
grandes estudiosos da bibliografia do patrono da Cadeira 37, mergulhar
ção ao amor e à liberdade, que nos inspiram nesses tempos vigentes, em
no universo gonzaguiano (nascido no Porto em 1744), buscando nas
que experimentamos um dilacerante e veloz de escalonamento de valores
suas raízes históricas a gênese estética de sua poesia, a partir de sua
morais, políticos e culturais.
vida e de seus estudos, divididos entre a infância/juventude na Bahia, Recife e Rio de Janeiro e seu bacharelado em Coimbra.
Adelto Gonçalves, autor de vasta e premiada obra - entre as quais Mariela Morta, Os Vira-Latas da Madrugada, O ideal político de Fer-
Nesse livro, que tem a chancela editorial da Imprensa Oficial do
nando Pessoa, Barcelona Brasileira, Bocage – o Perfil Perdido, Direito e
Estado de São Paulo, o professor Adelto colige alguns de seus melho-
Justiça em Terras d´El Rei: ouvidores, juízes de fora, juízes ordinários e
res poemas, com estudos e comentários que situam a produção do au-
vereadores em São Paulo colonial (1709-1822) – faz justiça a Gonzaga e
tor do antológico “Marília de Dirceu” no contexto histórico em foram pro-
reforça a consolidação de uma obra basilar de nossa literatura.
duzidos, na esteira do que já havia publicado em seu Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Ed. Nova Fronteira, Rio, 1999), resultando de sua tese de doutorado na USP. As publicações da ABL sobre seus patronos
_________________________
constituem pequenas preciosidades que alcançam não apenas a leito-
(*) Ronaldo Cagiano, escritor, é autor de Concerto para arranha-céus (contos,
res e estudiosos, mas também àqueles que se interessam de um modo
LGE, Brasília, 2004, Dicionário de pequenas solidões (contos, Língua Geral, Rio,
geral pelo conhecimento de nossa ancestralidade literária, naquilo que
2006) ,O sol nas feridas (poesia, Dobra Ideias, SP, 2011) e Moenda de silên-
de fundamental a produção dos nossos antepassados têm para a forma-
cios (novela em parceria com Whisner Fraga, Dobra Ideias, SP, 2012), entre ou-
ção de nossa identidade cultural e na constituição de um autêntico câ-
tros.
none brasileiro.
Anuncie neste espaço
internacionalize sua marca e contribua para desenvolver a cultura.
19 | 02 de Julho de 2014
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Conto
O Mistério do Tesouro
se trio há rumores de que num deles possa correr o sangue do cunhado. Todos queriam saber a fonte da riqueza repentina. Os mais achegados garantiam não se revelar o mistério nem a esposa. Tchaúque sempre foi à machamba. Lá não só trabalhava como também comia o tempo. A machamba era grande, somavam-se inúmeros hectares. Era a mais extensa da aldeia. Quando a família cresceu – as mulheres casaram-se e os homens emigraram outros faleceram – Tchaúque herdou o património e fez dele o seu ganhavida. Certa manhã, como era de costume, começava a labuta do humilde camponês. A enxada de cabo curto perfurava a terra, o tronco negro, nu recebia os primeiros raios de sol; trazia na cabeça a camisa amarrada para protege-lo do brilho que
Elcidio Bila - Moçambique
ainda se erguia na nascente e calções jeans que foram calças um dia. O suor gotejante anunciava tamanho esforço que a terra seca e pálida investia nos seus músculos minúsculos.
C
No decorrer do trabalho, certo momento a enxada não foi fundo. Repetiu o movimento, dessa vez com mais pujança, mas o obstáculo limitava o percurso da inomeçou por comprar caniço, de luxo, pouco adquirido na aldeia que só compram individualidades de vulto, até tinha direito de pinceladas
de verniz para resistir ao mau agoiro de aves e outros animalejos.
vestida. Tchaúque largou o objecto que dormiu à meio-metro e perfurou o local com as garras. Nesse gesto indiscreto sentia um objecto a coçar-lhe os dedos, por isso curvou o corpo comprido alargando mais o buraco. Desse exercício nasceu
Quando o caniço conquistou volume, amontoado no quintal, a aquisição de ou-
uma caixa de madeira que pelo aspecto data há séculos. Puxou-a para debaixo
tros materiais não atrasou. Em poucos dias a casa de Tchaúque marcava dife-
da única árvore que doa sombra à machamba e abriu-a com cautela, medos e cu-
rença e era digna de virtuosos comentários.
riosidades cruzavam-se. O recipiente continha barras de ouro.
A partir do período em que a casa terminou, o muro de arrames e bambu e o poço marcaram a nova época da vida do camponês. Ele já se distanciava dos atributos preconceituosos e olhares inferiorizantes da vizinhança. Mesmo discriminado outrora não impedia que tirassem a água no seu quintal e afiançava a quem necessitassede dinheiro, mesmo que não se encontrasse em apuros. Tchaúque nasceu na aldeia. Fugindo as rédeas da sua dinastia não emigrou à África do Sul, preferiu as minas de plantação. Todos condenavam-no pela opção, pois, bastava ser homem, com idade de se casar, para não escapar a fronteira de Ressano Garcia. Ninguém concordava com a escolha feminina – ir às plantações – embora bons frutos sua enxada produzisse. Na rua, os rapazes de sua idade disfarçavam não o ver e quando o dirigissem a palavra era para o menoscabar por causa da sua actividade. De tanto ser crucificado, acreditava-se ser homossexual porque nunca se tinha casado e não era do seu agrado conversar com mulheres, mesmo que fossem solteiras. Tal boato só teve fim quando, finalmente, se casou.
Desde aquele dia a sua vida seguiu novos hemisférios. Constantemente ia ao mercado onde trocava a sorte em dinheiro. Quem comprava a fortuna era o monhê. Conheciam-se desde a tenra idade, foi amigo dos avós e dos pais. Foi dele que soube que as barras outrora encontradas eram de ouro e que valiam os olhos da cara a vida toda. E só monhê sabia do sigilo. O monhê era o maior comerciante do mercado, importava e exportava quase tudo. Era conhecedor de vasta complexidade de minerais. Era ourives no oriente, sua primeira moradia, também vendia jóias e tecidos diversos em grandes proporções. Enquanto Tchaúque prosperava o Régulo reclamava o constante roubo do seu enorme gado. O curral era vandalizado todas as madrugadas, pouco a pouco minguava sua herança. Ele era o maior criador de gado na aldeia e quem tinha muitas mulheres e uma multiplicação de filhos. Não vendia seu rebanho, nem com dinheiros avultados, somente esfolava sempre que um dos trinta netos o visitava. O único desconfiado na rotina dos assaltos era Tchaúque, por ter progredido de
Nos rapazes de sua geração, Tchaúque foi o último a se casar, numa altura em
forma substancial em tão insuficiente tempo.
que já não se vislumbrava esperança. Pois, os seus três irmãos, todos mais no-
Ao Régulo e a aldeia, embora soubessem da sua boa índole, não sobraram dúvi-
vos, haviam se casado faz tempo e trabalhavam na terra do rand. A felizarda é uma moça que já se instalou em vários lares. Por causa do seu comportamento atormentado vezes sem conta foi corrida. Chamava-se Isabel, bonita e caprichada no visual. Vestia-se como as moças da cidade, já que vivera nos prédios em tempos remotos a convite da sua irmã mais velha. Tal mordomia fugiu-a quando foi flagrada no quarto da irmã com o seu próprio marido – a história gerou muita intriga -, mas, a pedido da mãe, foi perdoada. Quando se casou não era tão jovem como as que listavam o número de lobolos
das. Certo dia, depois da explanação do Régulo sobre os assaltos no posto policial foram ao encontro do indiciado no seu sítio de sempre. Encontraram-lhe inclinado, golpeando a terra como de costume enquanto a canhenha mão afastava o capim desencharcado. Os polícias interromperam-lhe com um mandato de prisão. Sem nenhum minuto para interrogar as causas foi levado ao posto. Esteve preso cinco dias. Aguardava o interrogatório. Quem lhe incumbia a missão
na altura. Mas porque Tchaúque também perdera a fase gloriosa preferiu con-
era o comandante que não se encontrava na aldeia. Diziam estar a participar em
tentar-se com ela, sem atender os chamamentos do passado deficiente dela.
simpósios policiais na capital. Mas se sabia, sem claros testemunhos, que se em-
A festa teve pouca gente mas muita comida. Os mais velhos condenaram a união, justificando o atropelamento das normas impostas pela tradição – o lobolo é mais do que um casamento, é um ritual – é a cantiga dos mais esclarecidos que soava para os petizes –, para que não se descurassemna altura de seguir na
briagava na companhia de prostitutas em lugares modestos, para que não o vissem. - Tchaúque, como explica tanta riqueza em pouco tempo? Olhou para sala onde se encontrava.
mesma aventura. Aquele era o terceiro casamento de Isabel. Mas o que agravava o descontentamento dos familiares do marido eram os três filhos que trouxera da cidade. Nes-
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Conto A palhota era enorme mas degradada, numa das paredes estava afixado a
O comandante, perante aquela desilusão, ordenou ao polícia que o algemasse no-
fotografia do presidente da república; tinha uma secretáriaempoeirada,
vamente e prometeu:
com um molho de papéis sobre a mesma e beatas de cigarros que fugiam
- Hoje mesmo levo-te à cadeia da cidade, sacana!
do cinzeiro; tinha também duas cadeiras plásticas, de cores confusas –
- Espera Senhor comandante, vamos perguntar a minha esposa, talvez saiba.
numa ele estava sentado e noutra o comandante –, um dos polícias estava
Isabel, desde que o marido ficou preso nenhum dia o visitou, alegando o trauma
de pé com um chamboco numa mão e noutra par de algemas enferruja-
que passara desde que o pai morreu na cela da cadeia.
das. O outro polícia tinha se ausentado. O ofendido – o Régulo – não esta-
Quando chegaram à sua residência, o aspecto arejado do quintal mostrava ausên-
va no interrogatório, porém alguém o viu logo cedo, acredita-se que ia ex-
cia de gente há dias. Ninguém sabia do seu paradeiro e desde o cárcere de
torquir o chefe.
Tchaúque nunca mais foi vista.
- Tchaúque não respondes? Não temos todo o tempo!
Antes de abandonarem o local, a vizinha do lado revelou que Isabel encontrava-se
Enquanto descrevia o cenário com a vista dissimulada pensava se devia
às escondidas com Samuel, amigo de infância de Tchaúque, todas as noites na
ou não desvendar o mistério. Ocorriam reacções no seu gordo pensamen-
mata.
to. Até que o desvendou:
Admitia-se que os dois se escapuliram com o tesouro, sem se indagar com que es-
- Fiquei rico porque encontrei ouro na machamba.
pertezas o ouro foi descoberto.
Lá foram, para certificar, com as algemas cravadas nos pulsos. O coman-
Na noite do mesmo dia, Tchaúque recebeu no posto a visita do amigo monhê,
dante tomava a dianteira, Tchaúque no centro seguido pelo polícia, quem
quem levava a fortuna de volta. Não consentiu compra-la das mãos de Isabel, pois
todo o trajecto batia na sua própria palma com chamboco num gesto de
sabia que até ela desconhecia o segredo.
engolir a longa distância.
No lugar do camponês, Isabel e Samuel ficaram encarcerados e transferidos à ca-
Chegados à machamba, Tchaúque dirigiu-se à cova. Curvou-se, ajoelhou,
deia da capital também indiciados de roubo de gado, com testemunhas até de so-
já com as mãos soltas, escavou a terra. Escavou fundo, mais fundo do que
bra.
o costume, escavou com mais força que noutros dias, escavou até se cansar, até dar-se conta que não mais existia a caixa.
Quando a arte interessa a vida vale a pena Leia a revista
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-Ligou-me agora o meu advogado a dizer-me que ele se recusa em
Conto(s) Contigo
assinar a papelada do divórcio. -Deverias é estar feliz, pelo menos continuas casada, ainda que seja no papel. Sabes quantas mulheres sonham e lutam, vida toda para
Lobolo
um dia se casarem…?
O casamento é a maior causa do divórcio. Groucho Marx
Japone Arijuane - Moçambique
N
o interior de mim, a alegria convertia-se numa tristeza que o exterior não mostrava. Mantive o aparente aspecto. Enquanto isso, vi-a, a Be-
te, na sua gloriosa entrada. Trajada a rigor para o momento. Mãos dadas ao pai. Dois petizes com a indumentária caprichada. Nas suas ingénuas mãos, vasos ar-
-Tantas mulheres sonham e lutam porque ainda não se casaram. -A tua experiência faz de ti insensível à esta ordem social… -Não interessa a ordem , para mim foram dois e últimos meses de agonia! -Só dois para tanta certeza?, dá-me arrepios ouvir isso de uma mulher a jorrar juventude!... -Tempo suficiente para entender o tamanho da aberração que isso é: viver a dois para a vida toda. Ora bolas…
tisticamente trabalhados a verterem de pétalas de rosas.
O meu espírito caçador ia se nutrindo de chances, nada há de melhor
Todos se levantaram. Olhei a Bete, como se da primeira vez a visse, não a reco-
que uma presa fragilizada. Animal ferido requer bons cuidados e con-
nhecia. Esbelta e alegre, fixava os olhares em mim.
solos. Mas, mantive-me no meu lugar, esperando iniciativa dela, afi-
Meu corpo estremeceu de um sentimento que recuso descrever; foi quando meu
nal, “puxa a manta quem o frio sente”...
padrinho mo disse: ―esta aí a mulher que irá viver contigo para o resto da tua
Dei sinal ao barman para trazer-me outra cerveja. O mesmo gesto fez
vida.
ela.
Foi num sábado, estava eu sentado numa mesa de bar. Um copo de cerveja ia
-Desculpa, como que te chamas?
fazendo o que de bom sabe fazer. Assistia ao vaivém da espuma no copo, o es-
-Bete.
petáculo único que esta faz com mestria própria. Pensava absolutamente em nada. O tempo corria a passos galopantes, persegui-lo é correr atrás de prejuízo, e a minha espécie de homem evita, ao máximo, ter prejuízos. Estava no segundo gole, quando uma mulher feita em pouco tempo se sentou. Disfarcei, logrei esse intento com mais outro gole na então bem gelada Dois Emmy ali na minha frente. Chegou o barman, depois do “faz favor minha senhora”, na mesa oposta a minha,
-Betinha… ofereço-te o meu peito e um lenço para enxugar as lágrimas… -Enxugo as lágrimas num copo de cerveja bem gelada!... Respondeu ela num tom cómico. Confesso que as palavras a seguir me foram difíceis de as pronunciar, mas como o difícil é sempre possível, lá vieram elas:
já lá estava uma cerveja. Um copo semicheio, um tange de batom nas extremida-
-Aposto que os dois meses de casamento foram dois meses de muita
des do mesmo.
cerveja bem gelada…
Um vibrar de telefone estancou o silêncio nos ares. Curta e discreta. Ao tirar o
-Não é bem assim, mas é quase isso, excluindo duas semanas de lua-
aparelho dos ouvidos, pareceu-me perder toda alegria que ostentara.
de-mel passadas no Zalala Lounge.
- Pelos vistos o telefonema não te fez bem… Lá vim eu, que não via hora de
Parecia voltar a magia, naquele rosto de linda mulher. Em seguida en-
abordá-la.
trou um homem baixo, fazendo abdómen apresar-se antes dele, um
-Por favor…? Disse ela, da forma mais melódica possível e como se não ouvisse
protótipo ideal dos frequentadores do bar. Vimo-nos impedidos de
o que eu dissera.
continuar com o papo, a presença do barrigana criara uma muralha. O
-Suponho que o telefonema te arrancou a alegria do dia…? -E como…! -Sem querer intrometer-me, mesmo estando a fazer. já li numa destas revistas de auto-ajuda que o desabafo é uma das melhores terapia … Juro que o meu espírito de homem caçador estava em alta naquele sábado. Antes mesmo de dar-lhe tempo para pensar, capacidade rara nas mulheres, pior as que frequente aqueles lugar, continuei:
que me parecia negativo revelou-se, contudo, bastante positivo: para minha alegria, ela veio juntar-se a mim. Já na terceira cerveja, falámos de tudo e de nada, aliás, até do nada falamos. Na manhã seguinte, bem ao meu lado, uma mulher de curvas que paralisam qualquer transito, estavam bem estacionadas na minha cama.
-Problemas, todo mundo diz que os têm, mas na verdade somos nós os proble-
Corpos totalmente nus. Eu que já havia acordado, fui direito a geleira,
mas de nós mesmos. Espero que sejas uma excepção.
bebi uma água e trouxe-lhe, como mandam as regras do cavalheiris-
-Claro que não!, senão não estava aqui a afogá-los.
mo. Deitada, enquanto bebia eu a contempla, corpo claro, cabelos
Discordei, embora não mostrasse nenhum sentimento de discórdia no rosto. Pois,
compridos que me pareciam ser de uma outra raça humana. E disse
contrariamente ao que outros pensam, o bar é o pior dos lugar para afogar os pro-
para mim: Como é que um homem é capaz de esperdiçar uma festa
blemas; pelo contrário, é o bar quem afoga as suas vítimas no fundo do abismo.
dessas?
Mas, como é próprio dos homens da minha espécie (quiçá em vias de extinção),
Depois de ter bebido, eu ainda admirando-a. Conversámos, conversá-
quando se está para conquistar não se pode mostrar, à prior, qualquer oposição;
mos tanto! Que o tempo passou sem nos darmos conta do mesmo!
nada melhor que a indiferença, o que no fundo é o mesmo. Entretanto, ela continuou: -Tenho problemas com meu ex. -Este géneros de problemas, até onde eu sei, só os dois podem resolver…
Um dia… Duas semanas… Três meses… E… já tínhamos encomendado as alianças e falávamos do Lobolo!
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