A CULTURA DO NOVO CAPITALISMO

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2008

A CULTURA DO NOVO CAPITALISMO NOTAS DE LEITURA Cultura do Novo Capitalismo, de Richard Sennett

Sennett tem esperança numa revolta, em nome do bom senso e de uma vida sensata, contra as formas de poder nas empresas, e contra a cultura de superficialidade que as acompanha, que se espalhe por toda a sociedade (nomeadamente no campo político). Uma primeira questão é a de tentar saber se alguma vez as pessoas encontrarão os meios para esta revolta. E, supondo que esse será o caso, mesmo que as pessoas tenham imaginação e força bastantes, está convencido de que essa revolta seguramente não terá condições para restabelecer a pirâmide burocrática à moda antiga, tal como existia antes das mudanças que acontecem actualmente. Como conciliar a eficácia económica, as exigências de estabilidade psicológica e social que permitem aos indivíduos encontrar um sentido narrativo para as suas vidas, com os valores da liberdade e de iniciativa individual? Como superar o dilema entre a “gaiola de ferro” das burocracias protectoras e o “donjuanismo” predador dos heróis da nova cultura económica?

Jorge Barbosa http://web.mac.com/jbarbo00/ 14-06-2008


A CULTURA DO NOVO CAPITALISMO 2008

NOTAS DE LEITURA La Culture du nouveau capitalisme Richard Sennett Traduzido do inglês para o francês por Pierre-Emmanuel Dauzat Paris, Albin Michel, 2006, 160 p. ISBN: 2-226-17097-9

Richard Sennett, sociólogo, professor na London School of Economics e na New York University, apresenta no seu livro de 2006 uma nova síntese das suas duas obras anteriores: Le Travail sans qualités. Les conséquences humaines de la flexibilité (Paris, Albin Michel, 2000), e Respect. De la dignité de l’homme dans un monde d’inégalité (Paris, Albin Michel, 2003). Embora seja constituído pela recolha de textos de conferências dadas em Yale, este livro, que retoma todas as pesquisas de Sennett sobre o trabalho, dirige-se a um público que se situa muito para além das fronteiras do mundo académico, e é de esperar que seja lido por muitos leitores, pois trata-se de uma obra-prima de “filosofia popular”, de filosofia endereçada a toda a gente. O título do livro anuncia desde logo que o “novo capitalismo” deve ser pensado como um modelo cultural ; esta ideia parece pertinente, na justa medida em que o discurso, nele contido, versa sobre o trabalho e as suas formas. Ao longo da sua história, a filosofia, sem ter verdadeiramente consciência disso, sempre pensou o trabalho de um modo estreitamente ligado ao seu lugar e valor na cultura, pensou-o no quadro de uma análise da cultura – quer na perspectiva aristotélica como desvalorização da actividade poiética, quer na ética protestante estudada por Max Weber, quer nas consequências que Hegel e Marx tiraram da leitura de Adam Smith, ou nas considerações desencantadas de Hannah Arendt em Condição do Homem Moderno (livro que assume explicitamente uma perspectiva histórica e cultural). Esta visão é bastante para invalidar qualquer interpretação filosófica sobre o trabalho em geral, que não preste atenção à diversidade das suas formas e ao seu lugar num dado momento cultural e social. Está por fazer uma história da filosofia do trabalho. Fosse ela feita, e certamente se demonstraria que o trabalho só muito tardiamente ocupou um lugar central na reflexão filosófica, aproximadamente a partir do momento em que se instalou no centro do “estilo de vida” ocidental, caracterizado pela disciplina de trabalho das sociedades industriais e pósindustriais, em que se tornou possível a produção intensiva pela divisão e organização do trabalho e em que foram alargadas as possibilidades de consumo.

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A CULTURA DO NOVO CAPITALISMO 2008 O trabalho está, portanto, no centro das nossas vidas e esta particularidade histórica e etnológica tende a mundializar-se na base do que Karl Polanyi analisou sob o nome de “grande transformação”, isto é, a criação e o desenvolvimento do mercado mundial. O significado e o valor moral e social do trabalho, nos dias de hoje, ainda são para nós determinados pelo estilo de vida ocidental e pelo devir-mercadoria do mundo. Nenhuma análise que esqueça este dado é plausível. O “fim do trabalho” não é para amanhã! E o “valor trabalho” está de muito boa saúde, não é necessário recolocá-lo no centro porque nunca o abandonou desde Adam Smith. Os discursos ideológicos e políticos que agitam estes temas correm o risco de esconder os verdadeiros problemas ligados ao trabalho, sendo que o primeiro é o do emprego. É por isso que o “valor trabalho”, muito longe de diminuir, se impõe a todas as vidas, elas sim, em risco de uma extrema desvalorização por inacessibilidade ao emprego. O segundo problema colocado pelo trabalho tem uma muito menor importância de natureza económica do que de natureza filosófica : o valor atribuído ao trabalho permite a realização dos indivíduos dentro e fora do trabalho? A perspectiva de Sennett é precisamente a de provocar uma reflexão sobre a maneira como a cultura do novo capitalismo pretende fazer convergir as novas formas de organização do trabalho e as exigências de realização que emanam do indivíduo. A respeito deste problema do valor humano do trabalho, a reflexão filosófica não pode desprezar o declínio evidente do marxismo. O marxismo, ao analisar as potencialidades de emancipação, mas também de alienação completa, envolvidas nas diferentes formas de trabalho, colocou no centro da reflexão filosófica, e também no centro da acção política e até da história da humanidade, a questão do trabalho servil. Concebia a resolução desta questão nos termos de uma dialéctica histórica, onde o impulso das forças produtivas permitiria a libertação da humanidade do trabalho servil e das relações de produção capitalista. No entanto, embora a tensão entre emancipação e alienação esteja sempre no centro da reflexão sobre o trabalho, já não nos é possível usar essa dialéctica securizante (pelo menos dava-nos uma orientação). O marxismo fragilizou-se gravemente por via do fracasso de algumas das suas profecias, do carácter muito utópico da sua concepção de mecanização, e, sobretudo, da sua incapacidade para desenvolver uma concepção justa dos meios políticos e sociais adequados para fazer triunfar os seus objectivos (a conjunção do partido único com as nacionalizações provocou incêndios perigosos); a acrescentar a isto, temos ainda as mutações do trabalho desde os anos 60 que fizeram do “proletariado” e da “classe operária” conceitos, cujo referente social e político deixou de ser facilmente identificável. A reflexão filosófica deslocou-se então para duas grandes linhas de orientação: 1. A abolição do trabalho servil deixa de ser uma preocupação. O problema, do ponto de vista económico, passa a situar-se na redução do tempo de trabalho; do ponto de vista filosófico as questões centram-se nas teorias da justiça (repartição e retribuição do trabalho servil, igualdade de oportunidades). 2. Partindo da constatação de que Marx não abordou a realidade mesma do trabalho (o que é que fazemos exactamente quando trabalhamos ?), trata-se agora de analisar a

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A CULTURA DO NOVO CAPITALISMO 2008 realidade complexa do trabalho na sua relação com as diferentes situações de trabalho. A hipótese que estrutura os trabalhos de Yves Clot e de Yves Schwartz, por exemplo, é a de que se aborda o trabalho de demasiado longe, se avaliarmos o seu conteúdo não tendo em conta as situações complexas onde ele se realiza, e a experiência intersubjectiva que toma forma nessas situações. As pesquisas de Sennett situam-se nesta segunda linha de orientação; os seus livros têm o propósito de descrever, de uma forma sistemática, o conjunto das consequências que as transformações técnicas, sociais e culturais do capitalismo induzem na organização do trabalho. O seu objecto não é, portanto, o todo da actividade económica contemporânea, mas aquilo a que ele chama « ângulo de corte »1 da nova economia, isto é, o fenómeno das empresas que se situam na vanguarda do capitalismo actual, e que um elevadíssimo número de discursos classificam como modelos de organização do trabalho, e de produção e difusão de mercadoria. Podemos caracterizar este ângulo de corte da actividade económica com três aspectos principais : 1. A participação activa na mundialização, através nomeadamente da independência do capital, e, por conseguinte, das suas estratégias relativamente às fronteiras nacionais e de deslocalização de certas actividades para países onde os custos do trabalho são reduzidos. 2. A tomada do poder nas empresas pelo capital financeiro (os accionistas) em detrimento dos gestores, com exigências de rentabilidade elevada e de resultados a curto prazo. 3. Utilização intensiva das novas técnicas de automação e de informação. O capitalismo continua a ser capitalismo, mas veste-se com uma nova indumentária; um dos aspectos do talento de Sennett é ser capaz de descrever a complexidade do novo com a ajuda de algumas características essenciais. Um aspecto, muitas vezes referido, do novo capitalismo, correlacionado com um certo apagamento das figuras dominantes do trabalho operário, é que a organização da produtividade do trabalho já não assume a formas taylorianas clássicas. A cultura da nova economia vangloria-se de ter substituído o mecânico pelo inventivo, e o segmentado pelo relacional. Todavia, a impressão dominante é de que o novo modelo económico e social (regulado sempre pela busca da rentabilidade económica, e pelo assalariado como forma normal de relação social com o trabalho na empresa) só consegue digerir as inovações em matéria de produtividade com um custo social muito elevado: a precarização generalizada do mundo assalariado, em termos de emprego e de condições de trabalho. O mundo do trabalho parece dominado pela instabilidade e pela insegurança ; o imperativo de “trabalhar de outro modo” perdeu a sua ressonância utópica de forma convincente. A tese central de Sennett é a de que estas impressões são justas, são correctas, e que se explicam pela ruptura do contrato que ligava os assalariados à empresa no modelo fordista e no modelo de capitalismo social alemão. 1

Em francês “arête tranchante”, que traduz “cutting-edge” do inglês.

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A CULTURA DO NOVO CAPITALISMO 2008 Sennett centra as suas análises nas transformações da cultura institucional nas empresas. Os nomes de Ford e Bismark reenviam para uma organização burocrática do trabalho, de que Max Weber forneceu a descrição magistral em Economia e Sociedade. Esta máquina burocrática foi submetida a críticas filosóficas radicais, em perspectivas tão diferentes como a do perfeccionismo de Nietzche (que via nela uma organização social de domesticação e destruição da individualidade) e a da “Nova Esquerda” americana (a que Sennett pertenceu nos anos 60). Ora, pelo menos do ponto de vista do “ângulo de corte”, esta organização burocrática foi desmantelada. Assistimos a mudanças importantes na maneira como as pessoas trabalham. Digamos de passagem que é por isso que as considerações críticas de H. Arendt sobre o “trabalho” como elo social parecem tão abstractas, tão pouco instrutivas. Pois entre a pirâmide burocrática de Weber e a « modernidade líquida » de Zygmunt Bauman, o modo de trabalhar e os elos sociais alteraram-se definitivamente. Numerosos discursos glorificam estas mudanças, por favorecerem a liberdade, o desenvolvimento dinâmico das competências, a criatividade, a realização de si. Sennett não adere a este discurso empresarial e cultural de vocação apologética. Pensa que a nova organização do trabalho não produz libertação, e que tem um significado social negativo. Segundo ele, as instituições do novo capitalismo, caracterizadas pela desregulação e pela incerteza, construíram um sistema menos prometedor social e psicologicamente do que o capitalismo social descrito por Max Weber. Em Economia e Sociedade, Weber analisa o capitalismo social como uma aplicação militar prussiana à organização da empresa. Este modelo permite à empresa pensar-se estrategicamente, conceber a sua actividade como uma campanha, e resistir às crises e aos golpes mais duros. A organização militarizada constitui uma hierarquia piramidal onde, do general ao simples soldado, toda a gente tem o seu lugar, e cada lugar corresponde a uma função e a uma competência bem definidas. Weber alimentava sentimentos mais do que ambivalentes relativamente à militarização da sociedade, que encerra cada indivíduo “numa gaiola de ferro” (A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo). Mas a sua descrição permite ultrapassar a crítica unilateral produzida por filósofos como Nietzsche e Hannah Arendt, pois revela também a positividade social da pirâmide burocrática. No seu seio, como no exército, a disciplina refina o talento e, eventualmente, substitui-se a ele. Permite, portanto, a integração social pelo trabalho de todos os que não têm nenhum talento em particular e que, nem por isso, foram afastados e votados à vergonha ou humilhação social. Do ponto de vista de Bismarck, uma administração militarizada justifica-se em termos de integração e evidentemente não de eficácia. É este o lado social do capitalismo. Mais, num exército, como o lembra Sennett (Weber não se deu conta deste pormenor), a transmissão das ordens ao longo da hierarquia requer, em cada nível, uma modulação interpretativa. A disciplina deixa portanto lugar livre para uma certa dose de iniciativa, onde é atribuído um papel importante à experiência profissional, ao saber institucional (o conhecimento do funcionamento da empresa, de quem é quem e o que faz, do significado das palavras numa ordem de serviço), e à representação das metas e dos meios da empresa. Enfim, a estabilidade da pirâmide permite a cada um programar a sua vida a longo

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A CULTURA DO NOVO CAPITALISMO 2008 prazo, viver, portanto, numa considerável segurança e de acordo com uma perspectiva biográfica bastante clara. A “gaiola de ferro”, diz Sennett, numa fórmula curiosa, é também “o dom do tempo organizado” (p. 36): embora a máquina burocrática seja frequentemente descrita como desumana ou desumanizante, permite na realidade aos indivíduos inscrever-se num tempo humanizado, porque nele se pode construir uma narrativa de vida e desenvolver relações sociais bastantes estáveis e previsíveis. A gaiola de ferro é aborrecida, mas humana. É insuportável para Nietzche, mas oferece um quadro psicológico protector a todos os indivíduos que não são Nietzche e que não se tomam por “espíritos livres”. Foi precisamente este tempo humanizado e este quadro psicológico e social que foram destruídos pela organização do trabalho do novo capitalismo. A transformação da relação com o tempo resulta antes de mais da tomada do poder na empresa pelos accionistas. A lógica do capital financeiro não é a dos gestores. O capital é impaciente, e para o acalmar ou seduzir, as empresas têm de assumir uma plasticidade institucional nos antípodas da impassibilidade da máquina burocrática militarizada. O que é valorizado na bolsa e que é susceptível de atrair os investidores é a imagem de dinamismo, de mudança estrutural permanente, da flexibilidade sempre em acto. A plasticidade institucional torna-se uma espécie de paixão devoradora, comparável ao consumismo das vítimas da moda, que se auto-alimenta sem cessar correspondendo tão só à necessidade de dar uma imagem agradável de si (no capítulo 3, Sennett aplica esta análise às novas formas de relação entre homens políticos e eleitores). Um dos aspectos desta valorização da revolução permanente na organização é a intervenção sistemática de consultores, supostos reformadores ou dinamitadores das estruturas Os consultores não respondem simplesmente à necessidade para a empresa de fazer apelo a competências externas. Na realidade, eles vão à empresa sobretudo para fazer o trabalho sujo, sem ter que, depois, suportar a correspondente responsabilidade. São portanto sintomas de um outro aspecto da cultura do novo capitalismo: o divórcio do poder e da responsabilidade. O general mantinha-se no terreno e podia ser atingido por uma bala de canhão. Não é esse o caso nem dos accionistas nem dos consultores. Ao mesmo tempo, as tecnologias da informação reforçaram a centralização do poder tornando caduca a modulação interpretativa. Com a informática, as ordens são transmitidas sem intermediários, e o poder central pode acompanhar em tempo real a actividade e as performances dos seus executantes. Na nova geografia da empresa, a informática não disseminou o poder pelos indivíduos, ela aumentou-o ao centro. Por seu turno, a automação fez desaparecer os postos de trabalho rotineiros. O novo capitalismo já não realiza a inclusão das massas, já não tem essa dimensão social. Finalmente, as análises consagradas à valorização da iniciativa individual e do espírito de empresa, contra a dependência institucional são verdadeiros actos de bravura – valores que Sennett defendeu noutros tempos quando fazia parte na nova esquerda americana. Agora demonstra como, na esfera cultural da nova economia, esses valores impõem a cada sujeito o imperativo de estarem à altura de um “eu idealizado”, independente, empreendedor, móvel. O primeiro problema levantado por este modelo ideal remete-nos para a crítica clássica da “meritocracia”. A meritocracia é, claro, um progresso relativamente à transmissão hereditária http://web.mac.com/jbarbo00/ |

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A CULTURA DO NOVO CAPITALISMO 2008 das posições sociais, como mostrou Rawls. O capitalismo social temperava a meritocracia doseando a promoção pelo mérito com a antiguidade. O novo capitalismo reforça a meritocracia na justa medida em que multiplica os procedimentos de avaliação, transforma cada falhanço num fracasso testado, certificado, objectivado e interiorizado. Avaliam-se os indivíduos mantendo-os a funcionar em estruturas fluidas com funções desconectadas (o contrário da pirâmide de responsabilidades atribuídas) e a ocupar postos de trabalho ambíguos. Um contexto desta natureza valoriza o “relacional”, mas isto é o mesmo que atribuir uma importância crucial ao capital relacional e social (no sentido de Bourdieu) de cada um. Na pirâmide weberiana, a definição das funções e a gratificação diferida funcionavam como suporte da auto-disciplina e substituíam a ausência de capital social; pelo contrário, o novo capitalismo reforça a desigualdade social face à adaptação Para além disso, enquanto a organização taylorista distribuía tarefas diferentes a indivíduos diferentes que trabalhavam em coordenação, a nova organização coloca os indivíduos em situação de concorrência interna em modelos de jogo onde o vencedor rapa tudo; daqui resultam relações sociais equívocas com colegas que são também concorrentes. Finalmente, a avaliação toma frequentemente a forma de juízos de potencial, que são profundamente pessoais, pois não incidem sobre a performance mas sobre a personalidade do sujeito e são desvinculadas de qualquer referência à experiência profissional. O juízo de potencial exprime uma nova fórmula do valor pessoal que está em oposição com o modo tradicional de aquisição de uma competência e de uma utilidade social. As qualidades requeridas, na medida em que os valores tradicionais da experiência profissional contam para quase nada, de facto esvaziam as pessoas e retiram-lhes as munições que poderiam usar para um combate legítimo de promoção social. Privam-nas de qualquer possibilidade de se auto-avaliarem na base de normas objectivas, partilhadas sobre o que caracteriza a “profissão”. Colocam-nas numa posição de vulnerabilidade e de sede de reconhecimento sempre diferida e sempre frágil, pois as virtudes de hoje, (por exemplo, tenacidade, proximidade com os colaboradores, ligação aos produtos da empresa), podem ser amanhã percebidos como defeitos. Embora as análises de Yves Clot condicionem a melhoria das situações de trabalho à tomada em conta da experiência dos trabalhadores, não podemos esperar de forma nenhuma que o novo capitalismo, que glorifica a adaptabilidade e a mobilidade profissionais, venha a valorizar de novo a experiência. Por esta razão, a tonalidade do livro de Sennettt é francamente crítica (sem cair numa perspectiva apocalíptica). O novo capitalismo não liberta os indivíduos ; produz mais desigualdade. O eu idealizado que a cultura do risco faz espelhar no imaginário social só pode corresponder a uma categoria muito restrita de indivíduos muito particulares: aqueles que se divertem, (mas por quanto tempo?), a representar a sua vida como uma série descontínua de acontecimentos singulares, de transacções excepcionais, de intervenções pontuais libertas de toda a dependência, portanto de qualquer responsabilidade relativamente aos outros – uma espécie de Dom Juan na esfera económica. Ora, se a insegurança é um aspecto da vida social, não se percebe por que razão há-de ela assumir um papel preponderante quando é tomada no sentido de uma competição. Pelo contrário, é evidente que qualquer sociedade precisa de ser

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A CULTURA DO NOVO CAPITALISMO 2008 bem ordenada, e que a vida individual só é suportável para a maior parte das pessoas se nela existir um mínimo de coerência. Desvalorizando a experiência e as relações duradouras, a cultura do novo capitalismo não favorece a emancipação : provoca stress e incita a que sejam tomadas atitudes superficiais, ou mesmo moralmente condenáveis. Nas instituições que se conformam a este modelo, os elos sociais sofrem necessariamente de um enfraquecimento da lealdade, da confiança informal e do saber institucional. Distanciando-se das ilusões de juventude, Sennett pensa agora que os valores culturalmente sustentáveis são os que permitem dar à vida um sentido biográfico, a utilidade social e a « profissão » - isto é, os valores a que a cultura do novo capitalismo retirou os dentes substituindo-os por fancaria. Para um professor de filosofia, não é difícil subscrever esta tripla reavaliação, mas não se trata de uma simples conveniência pessoal. Estes valores devem ser defendidos porque as pessoas têm necessidade de uma âncora mental e emocional suficientemente estável para terem condições para avaliar as mudanças sociais que afectam a sua vida ; isto é, para se assumirem como sujeitos. Ao chamar a atenção para isto, Sennett respeita o papel mais nobre da teoria filosófica e da crítica social, numa época em que as burocracias de Estado e dos sindicatos, cuja função é proteger a vida das pessoas, fazem prova de uma grave falta de imaginação (e, por conseguinte, de lucidez). Rousseau atribuiu a tarefa prioritária à filosofia política de fazer ver os problemas ; criticou infatigavelmente os teóricos do seu tempo que dissimulavam os problemas nos discursos. A crítica social é, antes de mais, uma questão de percepção da injustiça e da tirania. Não é por acaso que este livro expõe a mudança das ideias do seu autor, isto é, a evolução biográfica que liga a sua juventude à maturidade. Todo o livro é orientado por esta questão da biografia: como é que é possível organizar e articular o tempo para inscrever nele a vida? Nesta atenção concedida ao tempo e à vida humana como biografia residem a originalidade do livro, a sua pertinência e a sua grandeza teórica e filosófica. O ponto de vista biográfico não é mais do que o ponto de vista das pessoas ; é este ponto de vista que Sennett legitima, sem recorrer a uma linguagem exageradamente académica, solidarizando-se assim com os seus sofrimentos e as suas reivindicações. Este livro não responde a todas as questões que levanta; talvez seja legítimo lamentar que Sennett não tenha rentabilizado o núcleo positivo dos valores críticos da sua juventude, para os reformular de um modo mais lúcido e mais adaptado aos problemas de hoje.

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