EDUARDO KENEDY IVO DA COSTA ROSÁRIO MARIANGELA RIOS ANA BEATRIZ ARENA BETHANIA MARIANI LUCÍLIA SOUSA ROMÃO VANISE MEDEIROS SILMARA DELA SILVA ORGANIZAÇÃO
ROBERTO PAES 1ª edição rio de janeiro 2013
Conselho editorial bethania sampaio correia mariani, magda ventura, mariangela rios de oliveira, paula caleffi, roberto paes de carvalho ramos, rosaura de barros baião Organizador do livro roberto paes de carvalho ramos Autores dos originais eduardo kenedy nunes areas (capítulo 1), ivo da costa rosário (capítulo 2), mariangela rios de oliveira e ana beatriz arena (capítulo 3), bethania sampaio correia mariani e lucília maria sousa romão (capítulo 4), vanise gomes de medeiros e silmara cristina dela da silva (capítulos 5 e 6) Projeto gráfico e desenho didático paulo vitor fernandes bastos Redação final e desenho didático roberto paes de carvalho ramos Revisão linguística aderbal torres bezerra Com a colaboração de daniela ferreira reis, flavia oliveira teófilo da silva, jarcélen thaís teixeira ribeiro Site de apoio ao projeto editorial andré renato fernandes lage, danielle vilar goulart dos santos, rafael de freitas alvarez jourdan, tainara oliveira da rocha e thiago lopes amaral. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Copyright seses, 2013. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) l755 Língua, uso e discurso: entremeios e fronteiras
Roberto Paes [organizador].
— Rio de Janeiro: Editora Universidade Estácio de Sá, 2013.
128 p
isbn: 978-85-60923-05-2
1. Língua portuguesa, estudo e ensino 2. Linguagem 3. Texto
4. Discurso 5. Comunicação escrita I. Título. cdd 469.09
Diretoria de Ensino – Fábrica de Conhecimento Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa Rio Comprido – Rio de Janeiro – rj – cep 20261-063
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Sumário Prefácio
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1. Linguagem, sociedade e cognição
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A linguagem humana Linguagem e língua Língua = fenômeno cognitivo e sociocultural Aquisição da linguagem Formas e funções linguísticas Arbitrariedade Iconicidade A linguagem humana em ação A enunciação Função referencial x metáfora Para concluir
2. Língua e variação linguística Papel e status dos interlocutores na comunidade linguística Propósitos da língua: exemplificando pela modalização Transformações na trajetória da língua: mudança e variação Variação linguística Por que a mesma língua é, também, diferente? Explorando mais o tema: variações dialetais Variação diatópica (dialetal) Variação diastrática (sociocultural) Língua padrão e língua culta Língua culta E as outras formas de uso? Preconceito e poder no uso da língua
3. Linguagem, unidade e diversidade Língua vernacular Propriedades do texto falado Propriedades do texto falado: a fragmentação Propriedades do texto falado: a situacionalidade Propriedades do texto falado: a reiteração Propriedades do texto escrito Propriedades comuns da fala e da escrita
10 12 15 17 21 24 25 27 30 32 33
35 36 37 38 39 40 42 42 42 44 47 48 49
53 55 57 58 59 61 62 65
4. Gênero, tipologia e sentido O gênero discursivo Do gênero para o funcionamento do discurso Tipologia discursiva Discurso lúdico Discurso polêmico Discurso autoritário Situações de oralidade Homofonia Das tramas orais para a análise da conversação Linguagem em contextos midiáticos: o caso do blog Blog e jornalismo
5. Texto: coesão e coerência Referência e referenciação Da referência para a coesão Coesão referencial endofórica Coesão por elipse Coesão sequencial Organização da estrutura textual Argumentação e texto argumentativo Argumentação e ironia Intertextualidade
6. Texto, discurso e interpretação Do texto ao discurso Retomando o conceito: condições de produção O não-dito e os sentidos O não-dito e o silêncio O dizer e o já-dito Sujeito e sentido
69 72 75 77 77 79 79 80 81 82 85 86
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Prefácio Durante muito tempo, atrevo-me a dizer que estivemos trabalhando a língua, as situações de linguagem, de forma quase “estática”, enfatizando somente um aspecto da língua: o aspecto formal ou a forma de prestígio, como hoje é denominada essa formalidade da língua. Essa denominação, na verdade, parece ser a mais adequada, já que a referida forma é extremamente considerada e serve como determinante de um “bom falar” e de “saber se comunicar”. Será que é assim? Diversas atividades nos mostram a língua sendo utilizada de forma extremamente versátil, não só em relação a vocabulário específico e à forma de falar de cada região mas também em relação às situações com as quais nos deparamos. Bem, estamos falando de atividades de linguagem que, como tais, pressupõem a existência de “sujeitos” para se efetivarem. Logo, estamos falando de interações sociais, troca de mensagens, e os sujeitos que atuam nesses cenários são diferentes, porque têm formações diferentes, histórias diferentes, experiências diferentes. Isso nos dá enormes possibilidades de trocarmos mensagens de várias maneiras, o que não significa que, necessariamente, teremos comunicações superiores a outras. Claro que podemos, sim, ter comunicações mais claras, mais organizadas que outras. Na busca de melhor entendimento dessa questão, diria que a consciência da necessidade de adequação das mensagens funciona como fator de fundamental importância para o bom andamento da interação. Melhor dizendo, cada situação necessita de adequação da linguagem, o que inclui formalidade, informalidade e semiformalidade. Essa imagem fica mais clara quando falamos de festas: algumas exigem roupas a rigor, outras, como festas ou reuniões com amigos, jantares ou almoços com familiares, por exemplo, permitem roupas e cores diferentes. Enfim, para cada situação, concordamos que há uma vestimenta adequada. Pois bem, o mesmo se dá com a organização de nosso discurso, de modo que adquirir o aspecto formal da língua também faz parte das habilidades do falante. Dito isso, podemos anunciar o objetivo deste livro: focalizar a linguagem em movimento, dando ênfase à formalidade e à semiformalidade através de várias possibilidades de organização do discurso e práticas textuais, sem desconsiderar o potencial linguístico de cada um. Mas como fazer isso? Trabalhando com a habilidade de leitura e a produção escrita, refletindo sobre a relação dos elementos que compõem o texto, pois este é tomado como ponto de partida por ser lugar de interação, de interpretação e produção de mensagens, onde há produção de sentido. Entendemos que trabalhar atividades de linguagem focalizando a língua em movimento potencializará as habilidades dos leitores, enfatizará um comportamento maduro em relação ao uso linguístico, podendo, com isso, auxiliar na tarefa de desfazer preconceitos e alargar a noção de língua — algo muito maior que, essencialmente, as regras gramaticais. Estas, juntamente com contextos socioculturais que integram a noção de mundo de cada um, constituem esse fenômeno que possibilita diversas formas de comunicação. Celebramos, juntamente com os autores que fizeram parte do início dessa conquista, o nascimento de um livro que pretende conduzir à reflexão de assuntos urgentes em termos de linguagem, mesmo considerando que alguns assuntos ou conceitos, pela própria dificuldade de tratamento que trazem, não são muito acessíveis. Se a “leveza” com que pretendemos tratar tais assuntos for percebida e digerida por você, teremos dado um grande passo.
rosaura de barros baião
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Linguagem, sociedade e cognição
eduardo kenedy
1 CURIOSIDADE Sons da linguagem: É com base em apenas três ou quatro dúzias de sons que nós, falantes de uma língua natural qualquer – como o português, por exemplo –, conseguimos dominar dezenas de milhares de palavras, as quais, quando combinadas entre si de maneira ordenada, permitem-nos a produção e a compreensão de um número potencialmente infinito de frases e textos.
CURIOSIDADE Língua de surdos: O Brasil possui a Língua Brasileira de Sinais (libras). Ao contrário do que muitos pensam, a libras não é uma gestualização da língua portuguesa; na verdade, é uma língua à parte. Tanto é que, em Portugal, a língua de sinais é diferente da brasileira.
Linguagem, sociedade e cognição A linguagem humana A linguagem humana é um fenômeno impressionante. Ela se faz presente em quase todos os momentos da vida de uma pessoa: desde o seu nascimento, quando recebe um nome e é inserida em uma comunidade de fala, até a maturidade, quando transita diariamente pelos complexos sistemas de comunicação e interação social modernos. Concretizada em uma das milhares de línguas hoje existentes no mundo, a linguagem humana nos surpreende porque é capaz de fazer muito a partir de pouco. A posse da linguagem, com seu ilimitado poder expressivo, faculta aos humanos a organização e a veiculação de pensamentos, ideias, conceitos, valores e, dessa forma, insere cada indivíduo que domina (pelo menos) uma língua no dinâmico e intenso fluxo comunicativo das sociedades contemporâneas. Com efeito, os poucos sons da linguagem oral podem ser substituídos por algumas letras em um sistema de escrita ou por centenas de sinais em uma língua de surdos sem que, com isso, o poder mobilizador da linguagem seja significativamente alterado. Seja na fala, na escrita ou na sinalização, a experiência humana se faz rica e ilimitada com a linguagem e pela linguagem. Para que você tome consciência da complexidade social e cognitiva subjacente a um simples ato da linguagem humana, pense no seguinte exemplo:
EXEMPLO Um homem caminha distraído pela cidade, aproveitando os momentos que ainda lhe sobram de seu horário de almoço. Subitamente, ele se dá conta de que pode estar atrasado para o retorno ao trabalho e diz para si mesmo, com aquela voz interna e silenciosa que, muitas vezes, ordena os nossos pensamentos: “Devo estar atrasado!”. Com essa impressão, o homem se dirige a um transeunte e pergunta: — Com licença. O senhor pode me informar as horas? O transeunte, por sua vez, compreende o estado mental de seu interlocutor – sua intenção de ser informado a respeito do horário – e busca o comportamento adequado para a situação: olha para o relógio de pulso e dele retira a informação necessária, que é codificada na frase-resposta: — São doze e trinta!
A aparente banalidade de um evento como esse esconde sob si um fenômeno extraordinário: a interação entre a mente humana e a
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realidade sociocultural na tarefa de produzir e compreender estruturas e significados linguísticos. Podemos não nos dar conta, mas, na comunicação humana, o indivíduo que fala executa trabalho sociocognitivo muito complexo. Ele deve codificar os seus pensamentos e as suas ideias em palavras, que, por sua vez, devem ser combinadas entre si em frases, as quais, por fim, são pronunciadas para um interlocutor em um dado contexto discursivo. Da mesma forma, a tarefa do indivíduo que compreende é também engenhosa: ele deve decodificar os sons da fala que lhe são dirigidos no ato do discurso, de modo a identificar palavras e frases para, assim, conseguir interpretar os pensamentos e as ideias de seu colocutor.
CURIOSIDADE
Ciências da linguagem:
ocorre? Pense bem, pois as respostas para essas perguntas não são nada
Essas ciências vêm alcançando um extraordinário desenvolvimento ao longo das últimas décadas e, assim, muitos segredos a respeito da estrutura e do funcionamento das línguas naturais estão sendo rapidamente revelados. Algumas dessas descobertas serão apresentadas a você neste livro.
fáceis ou simples.
REFLEXÃO Ora, podemos perguntar: como os humanos fazem isso? De que maneira essa sequência de codificação e decodificação de formas e significados linguísticos
Lembre-se de que as estruturas das frases e dos textos nas línguas naturais são, geralmente, muito complexas. Mesmo se analisássemos uma frase simples, como “O senhor pode me informar as horas?”, encontraríamos nela regras de ordenação de palavras, concordância, regência, seleção de pronomes… Enfim, verificaríamos a existência de uma suntuosa maquinaria gramatical a serviço da comunicação e da interação social. Entretanto, a despeito de toda essa complexidade, nós, humanos, somos capazes de produzir e compreender frases e textos com extrema facilidade. Em uma conversa qualquer, produzimos e compreendemos dezenas, centenas, milhares de enunciados, um após o outro, em uma velocidade incrivelmente rápida, muitas vezes medida em milésimos de segundo.
REFLEXÃO Em circunstâncias normais, fazemos isso de maneira inconsciente e sem esforço cognitivo aparente. Ora, como somos capazes disso? De que maneira nossas mentes se tornam aptas a estruturar nossos pensamentos em frases e textos codificados em sons, socialmente compartilhados?
Ao formularmos essas perguntas, acreditamos ter despertado em você a consciência do complexo mundo sociocognitivo que se esconde sob cada uso cotidiano que fazemos da linguagem. De fato, esperamos ter também aguçado o seu interesse pelos estudos linguísticos. Você deve saber que encontrar respostas para tais perguntas é tarefa das ciências da linguagem.
capítulo 1
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AUTOR Ferdinand de Saussure: Saussure (1857-1913) é considerado o “pai da Linguística”. Nascido na Suíça, seu pensamento exerceu grande influência na Literatura e nos Estudos Culturais, principalmente para o desenvolvimento do Estruturalismo no século xx.
CURIOSIDADE Linguagem: Para entender melhor isso, pensemos no seguinte: você acha que animais não humanos, como cachorros, gatos, macacos, pássaros etc., possuem algum tipo de linguagem? A resposta é um tanto óbvia: é claro que sim. A maior parte dos animais possui algum sistema de comunicação que permite a expressão de seus estados internos e a interação com o seu ambiente. Embora as mensagens que cães e gatos possam transmitir sejam um tanto limitadas (com seus ruídos característicos, com a posição do corpo, do rabo e com a emissão de certos odores), não há dúvidas de que se trata de um tipo de linguagem que permite a comunicação tanto entre os membros daquelas espécies animais quanto entre eles e os seres humanos.
Por exemplo, se você possui um cão ou gatinho, certamente é capaz de perceber o tipo de latido (ou miado) que ele produz quando está com fome, com dor, quando se sente em perigo ou está alegre.
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Neste capítulo inicial, vamos aprender alguns conceitos fundamentais e indispensáveis ao estudo da linguagem. Começaremos pelas noções de linguagem e língua. Os termos parecem se referir a conceitos aproximados, mas teremos uma seção inteira para entendermos que se trata, na verdade, de duas realidades diferentes. Com base no que estudaremos sobre a noção de língua, seguiremos para a seção em que diferenciaremos a dimensão cognitiva da dimensão sociocultural da linguagem. Aprenderemos que uma língua sempre existe simultaneamente no interior do indivíduo que a fala e no seio da sociedade em que esse indivíduo se encontra inserido, sendo, por isso, um fenômeno sociocognitivo (ou cognitivossocial). Logo em seguida, trataremos do fantástico fenômeno da aquisição da linguagem. Vamos analisar alguns aspectos da árdua tarefa das crianças, que, de maneira inconsciente e compulsória, devem criar em suas mentes uma versão do sistema linguístico que a elas se revela indiretamente na fala das pessoas que as circundam. Também teremos, neste capítulo, uma seção dedicada às diferenças entre as formas e as funções linguísticas. Estudaremos para que serve a linguagem humana e como ela dá conta de seus diversos ofícios. Por fim, apresentaremos os principais fatos imbricados no uso da linguagem pelos indivíduos adultos que, em tempo real, precisam produzir e compreender frases e textos, codificando e decodificando mentalmente informações nas diversas formas de comunicação e expressão que se tornam possíveis pela língua. Esperamos que você tenha apreciado esse roteiro, pois nossa viagem pelo mundo da linguagem está apenas começando!
Linguagem e língua Ferdinand de Saussure foi um importante linguista franco-suíço que ainda hoje é considerado o pai das modernas ciências da linguagem. Foi Saussure quem formulou, explicitamente e com grande clareza, uma importante distinção entre aquilo que compreendemos por linguagem e por língua. Vamos entender do que se trata. De acordo com Saussure, “a língua não se confunde com a linguagem, pois é somente uma parte determinada e essencial dela” (1916: p.17). O que o mestre genebrino nos ensina nessa passagem é que a linguagem é um fenômeno muito mais geral e abrangente do que uma língua. Comparada com a linguagem, diz-nos Saussure, uma língua possui um caráter muito mais específico. Na verdade, alguns animais chegam a possuir sistemas de linguagem impressionantemente complexos, como é o caso das abelhas. As abelhas possuem um complicado sistema de dança em ziguezagueado que permite a indicação da direção e da distância em que se encontra uma fonte de néctar que tenha sido descoberta por
alguma delas. As abelhas que, durante alguns minutos, observam a abelhinha que localizou o néctar dançar para lá e para cá, chacoalhando o seu corpo de maneira frenética, são capazes de “entender” a informação que está sendo transmitida e, logo ao fim da dança, rumam para a fonte do néctar com bastante precisão. Ora, esse exemplo ilustra, claramente, a existência de uma “linguagem dos animais”, ou, mais precisamente, a linguagem específica de cada espécie animal em particular. Você já deve ter entendido que a linguagem é um conceito bastante abrangente, que se refere a todo e qualquer sistema de comunicação e expressão. É por isso que podemos falar em “linguagem dos animais”, “linguagem das cores”, “linguagem dos cheiros”, “linguagem corporal”, “linguagem da arte” (incluindo a “linguagem da dança”, “linguagem da moda”) etc. Pois bem, se linguagem é qualquer sistema de comunicação e expressão, então o que é uma língua? Com efeito, língua é um tipo específico de linguagem, como o próprio Saussure já havia dito. Afinal, uma língua também é um sistema de comunicação e expressão e, assim, é uma forma de linguagem. Acontece que a língua é uma forma singular de linguagem, com características próprias que a distinguem de todas as demais linguagens animais ou humanas não verbais. Você deve estar se perguntando que características são essas. Trata-se de dois fatores sociocognitivos muito importantes. Vejamos cada um deles a seguir. O primeiro fator que distingue uma língua humana qualquer – como o português, o inglês ou o xavante – dos demais sistemas de linguagem é a existência de um léxico. No léxico, encontramos uma coleção de formas (significantes) que são associadas, sistematicamente, a certos conteúdos (significados). Assim, por exemplo, em português, possuímos o significante [kaza] (representado na escrita pela grafia “casa”) que será sempre associado ao significado [tipo de moradia] todas as vezes que usarmos essa palavra. Também temos no léxico de nossa língua o significante [a], sufixo presente ao fim da forma [menina], ao qual está associado o significado [pessoa do sexo feminino]. Da mesma maneira, temos o significante da expressão [dar uma mãozinha] que se associa, em língua portuguesa, ao significado [oferecer ajuda]. O número total de palavras e expressões existentes em um léxico é bastante variável de língua para língua. Pois bem, nos sistemas gerais de linguagem, não existe nada parecido com o léxico das línguas humanas. Afinal, quantos tipos de latido, miado ou canto podem ser discriminados pelos cães, pelos gatos ou pelos pássaros? Quantas “palavras” poderíamos transmitir com a linguagem corporal, com a linguagem dos cheiros ou pela dança? Ainda que consigamos catalogar um grande número delas, não encontraríamos algo tão organizado, sistemático e vasto como o léxico de uma língua.
CONCEITO Léxico: O léxico pode ser compreendido como o conjunto de palavras e expressões que são socialmente compartilhadas pelos falantes de uma dada língua.
CURIOSIDADE Número: A título de ilustração, saiba que um falante escolarizado do português do Brasil domina, pelo menos, 50.000 itens, sem contar as formas flexionadas das palavras (como as diversas expressões do verbo “estudar”: estudo, estuda, estudamos, estudava, estudarei, estudaria etc.), mas os dicionários da língua portuguesa chegam a registrar de 200.000 a 400.000 palavras. Trata-se de números bem impressionantes, não?
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CONCEITO Sistema combinatório: Esse sistema é capaz de combinar entre si, de maneira ordenada e controlada por regras, as unidades do léxico, de modo a construir expressões, como as frases e os textos. Por exemplo, o léxico do português possui unidades como “casa”, “bonita”, “comprar”, “você”, “mais”, porém, é a gramática dessa língua que permitirá a criação de expressões complexas como “que casa mais bonita você comprou!”.
CONCEITO Recursividade: A recursividade é justamente a capacidade de criar um número infinito de frases e textos com base no número finito de palavras existentes no léxico. A recursividade emerge, portanto, da combinação entre os dois componentes fundamentais de uma língua: o léxico e o sistema combinatório (gramática).
O segundo fator que distingue uma língua dos demais tipos de linguagem é o mais importante: as línguas humanas possuem um sistema combinatório, que chamamos gramática. O interessante é que, se o número de itens existentes em um léxico qualquer já é consideravelmente grande, ele não é quase nada quando pensamos no número de expressões que o sistema combinatório Quando falamos de uma língua pode gerar utiliuma língua, somos zando suas regras computaciocapazes de produzir nais. De fato, o número de frases e textos que podemos construir e compreender um em uma língua ao combinarmos número infinito de léxico e gramática é ilimitado. frases e textos. Se compararmos as línguas humanas com os sistemas mais gerais de linguagem (humanos ou animais), poderemos deduzir que a principal diferença entre eles é a recursividade – também denominada infinitude, criatividade ou produtividade –, que existe somente nas línguas. Neste momento, você talvez tenha curiosidade de saber se existe algum tipo animal não humano que possua língua (e não apenas linguagem). Muito bem, os cientistas ainda não conseguiram registrar nenhuma espécie de vida, além dos humanos, que use algum sistema de comunicação remotamente parecido com uma língua natural. Por tudo o que até hoje sabemos, somente nós, humanos, conseguimos usar um sistema de linguagem com recursividade.
RESUMO É por isso que as línguas parecem ser um verdadeiro patrimônio da humanidade, algo que nos distingue, claramente, de todas as formas de vida conhecidas pela ciência. A posse da linguagem, na forma de uma língua, é de fato uma das características mais distintivas e mais importantes do homo sapiens.
Não obstante, existem muitos cientistas que vêm tentando ensinar uma língua humana a animais inteligentes, como os chimpanzés e algumas espécies de papagaios e de golfinhos. No entanto, alegar que macacos ou papagaios são realmente capazes de aprender e usar uma língua humana é um flagrante e descomunal exagero, o qual se motiva muito mais por questões ideológicas (por exemplo, conferir maior importância ao aprendizado sociocultural em oposição à natureza biológica humana na aquisição de conhecimento) do que linguísticas.
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MULTIMÍDIA
CURIOSIDADE
No link abaixo, você verá um exemplo que registra as tentativas de ensino de línguas entre espécies. Alex Papagaio cinza africano que conseguia comunicar-se usando várias palavras do inglês.
Capacidade linguística: Você provavelmente ficará encantado com as proezas linguísticas desse animal raríssimo e genial. Mas acreditamos que não ficará convencido de que ele, de fato, “aprendeu” a usar uma língua e que demonstra domínio de um léxico e de um sistema combinatório. O máximo que podemos dizer é que esse adorável bichinho é capaz de aprender, após intensos anos de treinamento, um sistema de linguagem
Essa capacidade permanecerá na mente da criança no curso de sua vida saudável e será modificada, na adolescência e na vida adulta, de acordo com suas experiências particulares.
bastante complexo e avançado, inspirado no léxico das línguas humanas – algo fantástico que, por si só, já é merecedor de destaque científico.
Até o momento, com efeito, a linguagem, na forma de um sistema combinatório que opera recursivamente sobre um léxico, é um fenômeno identificado somente na espécie humana e ainda irreproduzível nos sistemas de inteligência artificial desta segunda década do século xxi. Muito bem, agora que você já sabe distinguir linguagem e língua, fique atento às expressões “linguagem” ou “linguagem humana”. Muitas vezes, essas expressões querem dizer “língua” (léxico e gramática) e não apenas “linguagem” (qualquer sistema de comunicação). É bem verdade que podemos usar esses termos de maneira um tanto livre e mais ou menos metafórica, no dia a dia ou mesmo ao longo de um livro mais especializado – como, de fato, já o fizemos e tornaremos a fazer aqui –, mas, sempre que necessário, devemos distinguir tais conceitos.
Língua = fenômeno cognitivo e sociocultural As línguas humanas são uma autêntica maravilha do mundo natural e sociocultural. Talvez você já se tenha dado conta de que, desde que estejam inseridos em um ambiente de interação social, todos os indivíduos saudáveis, de todos os tempos da história e de todas as culturas humanas, desenvolvem, de maneira natural e espontânea, a habilidade de produzir e compreender oralmente palavras, frases e textos na língua de seu ambiente. Por exemplo, uma criança que nasça no Brasil desenvolverá, já nos primeiros anos de vida, a capacidade linguística de produção e
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CONCEITO Línguas humanas: Sempre que ocorre o fenômeno linguagem humana, temos, de um lado, o indivíduo particular que possui a capacidade mental de produzir e compreender expressões linguísticas e, do outro, a sociedade em que esse indivíduo se insere, a qual lhe forneceu não só os contextos de uso da linguagem em interação com outros humanos mas também os sons e as palavras necessários à expressão verbal.
AUTOR Noam Chomsky: Avram Noam Chomsky (1928) é um linguista americano, considerado uma das figuras acadêmicas mais proeminentes (durante 12 anos, foi o cientista vivo mais citado em trabalhos científicos no mundo). É conhecido como o pai da Linguística Moderna, especialmente por sua Teoria da Gramática Universal.
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compreensão de enunciados em português, em uma de suas modalidades socioculturais – se não o português, então, uma das línguas minoritárias do país (por exemplo, uma língua indígena) –, que será, assim, a língua ambiente dessa criança. Como maravilha do mundo natural e sociocultural, o fenômeno das línguas humanas comporta necessariamente duas dimensões: uma dimensão individual e mental e uma dimensão coletiva e sociocultural. O influente linguista norte-americano Noam Chomsky formulou dois importantes conceitos para dar conta da diferença entre a dimensão individual e psicológica das línguas e a sua dimensão social e cultural. Chomsky propôs que a dimensão mental e cognitiva do fenômeno da linguagem seja sintetizada pelo conceito de Língua-i, em que “i” significa interna, individual. Já a dimensão sociocultural das línguas é denominada por Chomsky como Língua-e, em que “e” quer dizer externa, extensional. Vejamos melhor esses conceitos. A noção de Língua-e corresponde, grosso modo, ao que comumente se interpreta como língua ou idioma no senso comum. Por exemplo, o português é uma Língua-e no sentido de que é esse fenômeno sociocultural, histórico e político que compreende um conjunto de sons, palavras, regras gramaticais e um sistema de escrita que, juntamente, permitem a comunicação e a interação entre os seus falantes. Trata-se de um fenômeno supraindividual, na verdade, exterior ao indivíduo. A noção de Língua-i, por sua vez, corresponde ao conjunto de habilidades mentais que permitem ao indivíduo a produção e a compreensão de um número potencialmente infinito de expressões na sua língua ambiente. Uma Língua-i diz respeito, portanto, àquilo existente no interior da mente das pessoas, que lhes faculta a aquisição e o uso cotidiano de uma língua natural. Nesse sentido, entende-se que uma língua seja parte do sistema cognitivo humano. Uma Língua-i é uma faculdade psicológica ou, por assim dizer, um órgão mental. Todo indivíduo humano sem deficiências neuropsicológicas graves é capaz de manipular, em sua língua, diversos recursos gramaticais e textuais que veiculam significados do indivíduo para o mundo exterior e desse para a consciência do indivíduo. Essa competência cognitiva para a manipulação das estruturas e dos significados da linguagem é individual e inconsciente. É a ela que nos referimos com o conceito de Língua-i. Às vezes, quando pensamos sobre a linguagem humana, precisamos ter clareza se estamos discutindo aspectos cognitivos ou aspectos socioculturais da língua – ou mesmo se estamos considerando ambos os aspectos em interação. Fique, portanto, sempre atento a esse particular.
CURIOSIDADE
RESUMO É muito importante que você compreenda que uma língua é, ao mesmo tempo, um
Idioma:
fenômeno cognitivo e individual (uma Língua-i) e um fenômeno coletivo e sociocul-
Quando dizemos que o russo é a língua da Rússia ou que o chinês é a língua da China, entendemos língua como esse fenômeno desincorporado dos falantes, a Língua-e. Da mesma forma, essa língua se refere a um fenômeno cuja existência é externa às pessoas e, nesse caso, do qual elas devem se apropriar: as línguas do ambiente.
tural (uma Língua-e). Embora nem sempre usemos os termos chomskianos, essa dualidade está lá inevitavelmente todas as vezes em que falamos sobre as línguas.
Aquisição da linguagem Para que você compreenda a dramática situação sociocognitiva em que se encontra um bebê na fase de aquisição da linguagem, vamos liberar a imaginação com a seguinte história fantástica:
EXEMPLO Suponha que você seja abduzido por alienígenas. Você acordaria em uma galáxia
criaturas possuem uma espécie de orifício em sua extremidade superior (algo
Uma criança nascida no Paraguai provavelmente aprenderá a falar espanhol e guarani, ou seja, as línguas do ambiente.
como uma boca), de onde certos sons são regularmente emitidos.
distante, cercado de criaturas diferentes, cujos comportamentos você não compreende. Apesar de toda a estranheza inicial, não lhe seria difícil notar que tais
Com um pouco de observação, você consegue perceber que esses estra-
CURIOSIDADE
nhos seres parecem se comportar de alguma maneira relacionada aos sons que trocam entre si. Por exemplo, você vê um ser alto emitindo sequências de sons enquanto um baixinho o observa. Ao final da produção de sons, o baixinho se
Bebês:
desloca no espaço, toma um objeto para si e o leva até o altão, como se tivesse
Já ao nascer, os bebês parecem ser muito espertos e, para eles, não é difícil deduzir que os sons emitidos pelas criaturas que o circundam constituem, na verdade, um sistema de comunicação.
cumprido um pedido ou uma ordem. Para você, parecerá coerente concluir que os sons compartilhados entre esses alienígenas sejam uma espécie de sistema de comunicação e, para conseguir descobrir o que aconteceu consigo, onde está, quem são essas criaturas etc., você terá de aprender a usar esse sistema. Tal tarefa não será nada fácil, pois você não
contará com nenhum professor de “alienígena para terráqueos”, nenhum livro ou curso preparatório e, além disso, o aparente sistema de comunicação usado por aquelas criaturas não é semelhante a nenhum outro que você já tenha visto antes...
Se você conseguiu compreender o quão dramática seria essa situação, está apto a entender que a aquisição da linguagem pelos bebês e pelas crianças é um autêntico milagre do mundo biocultural. Note bem: os bebês chegam a um mundo completamente desconhecido, retirados que foram do aconchegante útero materno. Esse mundo é povoado por seres estranhos ao bebê (os seres humanos) cujo comportamento parece estar estreitamente relacionado aos sons que todos trocam entre si. Tais sons mais parecem ao bebê uma grande confusão, um continuum de ruídos quase indecifráveis. Afinal, como um bebê poderia identificar, no fluxo da fala humana, onde um som termina e o outro começa?
capítulo 1
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AUTOR Steven Pinker: Steven Arthur Pinker nasceu em Montreal (1954), é linguista e psicólogo da Universidade de Harvard. Escreve sobre linguagem e ciências cognitivas e foi nomeado uma das 100 pessoas mais influentes pela revista Times.
Talvez tenha sido em razão disso que o famoso psicólogo de Harvard, o canadense Steven Pinker, denominou tal fenômeno como instinto para a linguagem: um bebê humano rapidamente “compreende” que precisa dominar esse sistema para descobrir o que os seres ao seu redor dizem e também para que ele próprio possa dizer alguma coisa e comunicar-se com as outras pessoas. Mas bebês e crianças estão, em grande parte, quase sozinhos no interior de suas mentes durante a odisseia pela descoberta e pelo domínio da língua do seu ambiente. Eles não possuem um professor particular de “língua humana para bebês recém-nascidos” e, o que é mais grave, o seu cérebro é ainda um protocérebro, ou seja, apenas um rascunho do potente processador de informações que é o cérebro de um indivíduo maduro. Usamos a palavra “milagre” para descrever a aquisição da linguagem pelos bebês e pelas crianças porque, apesar de todas as dificuldades que descrevemos, os pequenos humanos conseguem dominar a língua de seu ambiente, para a compreensão e a produção da linguagem, com extrema eficiência e em um intervalo de tempo incrivelmente pequeno, que não ultrapassa três ou quatros anos. As crianças pequenas sequer parecem fazer esforço cognitivo para adquirir a sua língua materna. De fato, a aquisição da linguagem é muito mais algo, que simplesmente, acontece com os bebês e com as crianças – e não algo que elas façam deliberadamente com o seu pequeno cérebro em formação.
RESUMO A par de ser um fenômeno sociocognitivo extraordinário, a aquisição da língua do ambiente (ou das línguas do ambiente, no caso das comunidades bilíngues ou multilíngues) é um dos eventos mais importantes na vida de um ser humano. Esse fenômeno é, ao mesmo tempo, a porta de entrada para as relações sociais humanas, que são quase sempre mediadas pela linguagem, e a janela para o aperfeiçoamento cognitivo individual, uma vez que grande parte da cognição humana se utiliza da linguagem como instrumento de desenvolvimento e de complexificação.
Na verdade, o que chamamos de aquisição da linguagem é um fenômeno duplo que envolve a aquisição de dois diferentes tipos de habilidades sociocognitivas. Vejamos isso com mais detalhes. Um tipo particular de aquisição da linguagem é aquele que denominamos aquisição em sentido amplo ou aquisição da linguagem lato sensu. Em seu sentido amplo, adquirir linguagem significa apropriar-se das habilidades de comunicação, expressão e interação social. Esse tipo de aquisição demanda dos bebês e das crianças a absorção dos aspectos mais gerais da linguagem, tais como a interação sociocomunicativa, a organização de conceitos e de pensamentos, e envolve, também, o desenvolvimento das noções de autoconsciência e de individualidade nas relações humanas.
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O outro tipo de aquisição da linguagem é muito mais específico e, por isso mesmo, denomina-se aquisição em sentido restrito ou aquisição da linguagem stricto sensu. Em seu sentido restrito, adquirir linguagem significa apropriar-se do léxico e do sistema combinatório existentes na língua do ambiente. Esse tipo de aquisição demanda dos bebês e das crianças a habilidade de discriminação perceptual e de articulação intencional de toda a maquinaria gramatical necessária ao funcionamento da língua. Na aquisição stricto sensu, a criança adquire, de fato, o aparato linguístico formal que estará a serviço das interações sociais e da organização cognitiva do indivíduo em desenvolvimento. Se você já entendeu a diferença entre aquisição da linguagem lato sensu e stricto sensu, podemos, agora, falar um pouco mais sobre a aquisição em sentido restrito. Um dos fatos mais intrigantes a respeito do processo de aquisição do léxico e do sistema combinatório da língua do ambiente é que ele parece ser universal. As fases pelas quais passam os bebês e as crianças durante a aquisição stricto sensu são muito semelhantes em todas as culturas do mundo, seja qual for a língua do ambiente e o nível de inteligência geral da criança. Isso quer dizer que todas as crianças parecem atravessar as mesmas etapas nos mesmos estágios de desenvolvimento biológico, desde o nascimento até o domínio completo da língua, estejam onde estiverem, em qualquer classe social e sob qualquer tipo de cultura. Não obstante, o grande salto qualitativo na produção linguística dos bebês ocorre aos 12 meses, quando eles já são capazes de produzir suas primeiras palavras reconhecíveis como tais. Essas são, na verdade, mais do que simplesmente “palavras”, pois sempre assumem o valor de uma frase completa inserida em um contexto discursivo. Independente da língua do ambiente, as primeiras palavras produzidas por uma criança são sempre monossilábicas e seguem uma estrutura [consoante + vogal]. Em pouco tempo, essa estrutura vai tornando-se cada vez mais complexa e caminha em direção à complexidade existente na fala adulta.
CURIOSIDADE Universal: Na aquisição da linguagem lato sensu, a criança adquire, na verdade, os fundamentos da interação entre os humanos: os valores e as ações imbricados nos usos da linguagem, a própria noção de si, a percepção do(s) outro(s), os modos de interagir socialmente e assim por diante.
Já ao nascer, todas as crianças normais balbuciam no ritmo da sua língua ambiente. Na verdade, algumas pesquisas recentes descobriram que o choro de bebês recém-nascidos transcorre conforme o ritmo e a melodia da língua que a circunda (Wermke et al., 2011). Esses fatos parecem indicar que a aquisição da linguagem tem início ainda no útero materno, quando aspectos sonoros da língua do ambiente (como o ritmo, a entoação e o acento) já parecem ser discriminados pelo feto.
MULTIMÍDIA
EXEMPLO Por exemplo, uma criança brasileira pode dizer algo como “bó” para significar uma frase inteira, como “olhe, a bola”, conforme o contexto permita compreender. Pouvencional de “bola”. O mesmo fenômeno pode ser observado com as centenas
Seu bebê chora em que língua?
de outras palavras que as crianças adquirem durante essa fase, que os linguistas
Roberto Lent – ufrj
cos meses depois, “bó” ganhará complexidade fonológica e tomará a forma con-
nomeiam de fase holofrástica.
Com pouco menos de 24 meses, as crianças já atingem a fase de duas palavras (também chamada de fase sintagmática). Nessa etapa de
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CURIOSIDADE Conteúdo referencial: As partículas gramaticais (como a preposição, por exemplo), que possuem conteúdo puramente formal, só emergem na fala das crianças, de modo consistente, a partir dos 36 meses de vida – embora haja intensas variações individuais sem causa aparente registradas pelos cientistas.
seu desenvolvimento linguístico, frases com estruturas do tipo sujeito e predicado semelhantes às dos adultos começam a ser produzidas pelos bebês. São frases como “qué papá”, “mais colinho”, “meia papai” e “banho não”. O interessante é que os enunciados produzidos pelos bebês durante a fase sintagmática não são apenas uma combinação entre duas palavras soltas. Pelo contrário, tal como ocorre na fase holofrástica, essas palavras também assumem o valor de um ato comunicativo completo, cuja interpretação é dependente do contexto interacional e comunicativo. Por volta dos 30 meses de vida, as crianças já conseguem criar frases com extensão ilimitada, compostas por três, quatro, seis, nove, dez palavras... Interessantemente, ao longo dessa fase, chamada de fase telegráfica, artigos, preposições, conjunções e pronomes estão ainda ausentes na fala infantil. Com efeito, até o terceiro ano de vida, as palavras que as crianças inserem em frases e textos são sempre itens de conteúdo referencial, como substantivos, adjetivos e verbos. É possível dizer que, por volta dos 4 anos de vida, a língua que uma criança domina para a produção e para a compreensão da linguagem é indistinguível da língua de um adulto. As únicas diferenças, é claro, dizem respeito aos aspectos linguísticos que envolvem letramento, escolarização e certas regras de comportamento social que se desenvolvem posteriormente, na adolescência e na vida adulta.
AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM
PRIMEIROS MESES 1) Fase inicial – a criança se comunica pelo choro (dor, fome, frio etc.); 2) 6 semanas – choros diferenciados e sons guturais/primitivos. É quando aparecem as primeiras vogais; 3) 18 semanas – aparecem as primeiras consoantes (p, b, k, g) e o balbucio; 4) Até os 8 meses – o balbucio se caracteriza pelo dobramento de sílabas (“mama”, p. ex.) e pela imitação de sons produzidos por adultos.
DE 12 A 24 MESES 1) Utilização das primeiras palavras, ainda sem o mesmo formato das pronunciadas por adultos (“papá”, p. ex.); 2) Reconhecimento de nomes de alguns objetos, compreensão de ordens simples; 3) Vocabulário passa de 50 palavras e a aquisição de novos vocábulos é diária; 4) Produção de frases curtas (“qué papá”, p. ex.); 5) Adaptação das palavras aos sons que conhece (como “tapéu” para “chapéu”, p. ex.).
DE 24 A 36 MESES 1) Uso constante de linguagem telegráfica; 2) Utilização de partículas gramaticais (artigo, preposição etc.); 3) Forte expansão do vocabulário; 4) Distinção de singular/plural, masculino/feminino; 5) Produção de todos os fonemas; 6) Tomada de consciência quanto ao ritmo de fala, à entonação (frases interrogativas, p. ex.).
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Infelizmente, parece exis- O conceito de tir um fim para o período da aquisição opõe-se aquisição da linguagem. Isto é, os humanos não podem ad- ao de aprendizado quirir a língua do ambiente porque a aquisição da tão rapidamente e sem esfor- linguagem ocorre na ço em qualquer momento de infância de maneira sua vida, da infância à velhice. O neurocientista alemão espontânea, natural e mesmo involuntária, Eric Lenneberg denominou período crítico (ou idade críti- enquanto o aprendizado ca) a fase de desenvolvimento de línguas estrangeiras físico e cognitivo humano no limite da qual a aquisição da demanda do adolescente e do adulto esforço linguagem deve acontecer. Há muitas discussões consciente e instrução sobre qual seria o fim desmais ou menos formal. sa fase, mas, como existem muitas variações individuais no desenvolvimento humano, não é possível defini-lo com precisão. A maioria dos estudiosos aponta a puberdade, por volta dos 12 ou 13 anos, como o momento em que “a janela automática” para a aquisição da linguagem se fecha. A partir de então, a aquisição da linguagem não é mais possível, e tudo o que podemos fazer para dominar uma (nova) língua é aprendê-la por meio de estudos formais em escolas ou cursos de idioma. A linha divisora entre aquisição e aprendizado é justamente a idade crítica.
Formas e funções linguísticas Muito bem, já sabemos diferenciar linguagem e língua, compreendemos as dimensões cognitiva e sociocultural de uma língua natural e temos noção da pequena epopeia que cada ser humano atravessa, em tenra infância, ao longo da aquisição da(s) língua(s) de seu ambiente. Mas e se perguntassem a você para que serve uma língua (como o português), qual seria a sua resposta? Muito provavelmente, você diria algo como "para permitir a comunicação entre as pessoas". Em essência, tal resposta está correta. Contudo, a pergunta é mais complexa do que parece, de tal modo que é preciso esmiuçá-la um pouco mais. Façamos isso. A questão para que serve uma língua pressupõe dois conceitos fundamentais: (1º) as línguas possuem um conjunto de formas e (2º) cada uma dessas formas “serve” para algum fim, isto é, cada forma linguística possui uma dada função ou um conjunto de funções. As formas existentes em uma língua podem ser também denominadas estrutura. Quando estudamos linguística e falamos dos aspectos formais de uma língua, estamos fazendo referência exatamente a essa aparato
AUTOR Eric Lenneberg: Eric Heinz Lenneberg (1921-1975), alemão, foi um linguista e neurocientista pioneiro nos estudos de aquisição da linguagem e psicologia cognitiva, em especial do inatismo. Curiosamente, residiu no Brasil durante sua adolescência, quando sua família fugia do nazismo.
CONCEITO F SN Det
SV N
V
o automóvel derrapou Estrutura: Trata-se da superfície ou do meio concreto, material, pelo qual uma língua se realiza nos atos de fala humanos. Por exemplo, uma palavra (como “casa”) e uma estrutura sintática (como “esta é minha casa”) são ilustrações de formas que usamos quando produzimos e compreendemos enunciados em uma língua.
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CURIOSIDADE Função: O escritor Graciliano Ramos (1892-1953) compreendeu isso perfeitamente ao afirmar que “A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”. No caso, “o dizer da palavra” é justamente a sua função. Em outras palavras, uma forma linguística não existe senão para provocar algum efeito de significado ou de sentido, isto é, uma forma não existe senão pela sua função.
estrutural que precisamos utilizar para que a língua tome vida em um ato linguístico qualquer. Por outro lado, sabemos que as formas de uma língua não existem por si mesmas. Com efeito, a razão de ser de cada forma linguística é desempenhar determinada função. Para que você entenda melhor a dualidade entre forma e função, veja o quadro a seguir:
OCORRÊNCIA FONÉTICA
FORMA a) Ex.: forma [s] b) Ex.: forma [f] c) Ex.: forma [m]
FUNÇÃO Contraste na significação a) [sorte] b) [forte] c) [morte]
a) Formular pergunta
PROSÓDIA
a) Ascendente b) Descendente
“João saiu?” b) Formular declaração “João saiu!”
FORMAÇÃO DE PALAVRAS
Acréscimo de sufixo diminutivo Ex.: [casa], [casinha]
a) Voz ativa
VOZ VERBAL
Ex.: “João cometeu erros” b) Voz passiva Ex.: “Erros foram cometidos”
a) Demonstrar afeto b) Demonstrar desprezo
a) Destacar o responsável b) Esconder o responsável
Uma forma linguística (um som, uma entonação, um sufixo, uma voz verbal etc.) é a maneira pela qual uma dada função se realiza materialmente na língua.
Se você compreendeu o que são formas e funções linguísticas, talvez possa, agora, repensar a sua resposta à questão para que serve uma língua (como o português)? Na verdade, as formas existentes em uma língua se prestam a inúmeras funções. Não é possível descrever todas elas neste capítulo, mas podemos dizer a você que, em sua maioria, as funções a que se destinam as formas linguísticas são eminentemente comunicativas. É por isso que importantes estudiosos, como o já citado Steven Pinker, acreditam que as línguas “servem” para a comunicação humana. Não obstante, cientistas não menos ilustres, como o também já mencionado Noam Chomsky, um dos linguistas mais influentes de todos os tempos, destacam outras funções linguísticas que são tão importantes
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ou ainda mais vitais do que a comunicação, tais como a organização do pensamento e a criação do conhecimento individual. Isso quer dizer que, ainda que a comunicação possa ser a primeira e mais fundamental função das línguas, não pode- De fato, muitas vezes, mos desprezar as outras nós, humanos, usamos a funções, tais como a metalíngua internamente, em cognitiva, isto é, a função voz alta ou em silêncio, de organização do pensamento, e a instrumental, como se falássemos com ou seja, a função de ad- o nosso próprio eu – e quirir e organizar outros isso, é claro, não pode ser tipos de cognição, como o considerado literalmente conhecimento matemático, o conhecimento sobre comunicação. a História, o conhecimento sobre as relações sociais etc. Atento à natureza comunicativa das línguas, Karl Bühler foi um dos primeiros a tentar sintetizar, de maneira esquemática, as correlações entre linguagem e comunicação. Foi ele que destacou que os usos da linguagem pressupõem (1) um emissor, (2) uma mensagem e (3) um destinatário. Esse modelo tripartido de comunicação se tornou mais complexo na análise do linguista russo Roman Jakobson, que introduziu as noções de (4) referente, de (5) canal comunicativo e de (6) código linguístico. É desse modelo de Bühler e Jakobson que se derivam as famosas funções da linguagem, que são amplamente estudadas no ensino escolar: (1) a “função emotiva”, em que o emissor da mensagem se destaca; (2) a “função poética”, em que a própria mensagem transmitida é destacada; (3) a “função conativa”, na qual o destinatário da mensagem assume a função central; (4) a “função referencial”, em que o referente é o foco da comunicação; (5) a “função fática”, em que o canal comunicativo é meramente testado e (6) a “função metalinguística”, em que se estabelece quando é o próprio código linguístico (a língua) o fator de destaque na comunicação.
AUTOR Karl Bühler: Karl Bühler (18791963), linguista e psicólogo alemão, sistematizou as funções da linguagem tomando como ponto de partida a representação – característica, por excelência, da língua.
AUTOR Roman Jakobson: Roman Osipovich Jakobson (1896-1982) foi um pensador russo que se tornou um dos mais renomados linguistas de todos os tempos, cujos conceitos ainda são usados e pesquisados. Jakobson esteve no Brasil nos anos 1970.
RESUMO Na realidade, as funções linguísticas, entendidas como as funções que determinadas formas podem desempenhar nos usos da língua, são muito mais numerosas do que essas seis. Todavia, tal modelo parece ser um bom caminho para começarmos a entender as funções comunicativas e expressivas que as formas da linguagem humana podem desempenhar.
Se você for uma pessoa curiosa, talvez tenha pensado: será que existe alguma relação natural entre determinada forma e sua respectiva função? Ou será que formas e funções linguísticas são associadas de
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uma maneira um tanto imprevisível que precisam ser memorizadas pelos falantes de determinada comunidade? Boa pergunta.
IMAGEM A Escola de Atenas é uma das mais famosas pinturas do renascentista italiano Rafael e representa a Academia de Platão. Foi pintada entre 1509 e 1510 sob encomenda do Vaticano.
Na verdade, esse é um questionamento milenar que remonta à antiga Grécia clássica. Os filósofos gregos que se dedicavam ao estudo da linguagem dividiam-se, basicamente, entre os analogistas e os anomalistas. Em termos muito simples, os analogistas afirmavam que as formas da linguagem eram análogas às suas funções e era somente em razão da passagem do tempo que, para as novas gerações de falantes, a analogia entre forma e função deixava de ser percebida. Por seu turno, os anomalistas sustentavam que as relações entre forma e função sempre foram totalmente acidentais e improvisadas, um verdadeiro acordo social tacitamente estabelecido entre os falantes de uma língua humana. Contemporaneamente, a controvérsia entre analogistas e anomalistas é reanalisada na oposição iconicidade versus arbitrariedade. Vejamos o que é isso.
Arbitrariedade Dizer que uma forma está arbitrariamente associada a uma função significa assumir que não é possível deduzir espontaneamente a que função determinada forma se presta. Sendo assim, torna-se preciso aprender e memorizar, caso a caso, a correspondência entre cada forma e sua respectiva função em uma dada língua, tal como apregoavam os anomalistas.
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Um bom exemplo disso é a relação existente entre o significante (forma) e o significado (conteúdo) de cada uma das palavras do léxico do português. Só sabemos que a forma [kaza] (que escrevemos “casa”) deve ser associada ao conteúdo [tipo de moradia] porque aprendemos isso durante a aquisição da linguagem. Mas a relação entre forma e conteúdo nessa palavra é totalmente arbitrária, isto é, não é natural ou motivada por algum princípio lógico. Isso tanto é verdade que, em outras línguas, o mesmo significado (conteúdo) pode ser codificado por outro significante (forma), tal como o termo “house”, que em inglês é a forma correspondente do conteúdo [tipo de moradia]. Em outras palavras, Por exemplo, a aparência física de uma “casa” não se assemelha ao afirmarmos em nada à forma [kaza], em portu- que uma forma guês, ou à forma [hauz], em inglês. é arbitrária em Com efeito, a língua portuguesa, relação à sua no curso de sua história, poderia ter escolhido arbitrariamente qual- função, estamos quer outra forma para expressar o dizendo que conceito [tipo de moradia]. A esconão existem lha por [kaza] foi arbitrária. semelhanças Vejamos outros exemplos de arbitrariedade entre forma e função. entre o feitio de Em língua portuguesa, a forma determinada forma de entonação ascendente ao fim e o seu respectivo da frase desempenha a função de conteúdo. formular perguntas. Dizemos que a relação entre essa forma e essa função é arbitrária porque não há nada natural entre uma subida melódica e a “expressão de perguntas”. Trata-se de uma associação arbitrária que todos os falantes do português precisam aprender e memorizar. Também a sequência “sujeito > verbo > objeto” (svo) é uma forma arbitrária de codificar, em uma dada frase, a relação entre um agente, uma ação e um paciente. Embora a nós, falantes de português, pareça razoável pensar em codificar os participantes de uma ação na ordem “quem fez o que a quem”, não existe nada que torne essa ordem “mais natural” do que outra: trata-se, novamente, de uma arbitrariedade.
CURIOSIDADE Sequência: De fato, a maioria das línguas do mundo apresenta a ordenação “sujeito > objeto > verbo” (sov) e, assim, codifica na frase os participantes de uma ação na sequência “quem fez a quem o quê”, em outro tipo de seleção arbitrária. A título de curiosidade, o japonês é uma língua sov; o mandarim, svo.
Iconicidade Pelo que expusemos, você talvez já possa deduzir que a iconicidade é o justo oposto da arbitrariedade. Sendo assim, uma forma é icônica quando reflete, com clareza, a função a que se destina, conforme pensavam os analogistas. Um rápido exemplo pode bem ilustrar o conceito.
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CURIOSIDADE Onomatopeias: A forma “tique-taque” possui uma expressão fonética parecida com o som das batidas de um relógio. Da mesma maneira, “miar” é um verbo inspirado na forma acústica do miado dos gatos.
“Tim-tim” é um substantivo que, iconicamente, representa o som produzido pelo rápido toque entre taças quando se faz um brinde.
Imagine que uma pessoa lhe tenha apresentado desculpas por determinado incômodo. Essa pessoa teria discursado por um longo tempo, mas, ao fim e ao cabo, não teria dito nada que, de fato, reparasse o problema. Você poderia descrever a tediosa conversa com essa pessoa dizendo algo como “Fulano falou, falou, falou e não disse nada”. Ora, nessa frase a repetição do verbo “falar” é praticamente um ícone, isto é, um representação evidente do fato de a pessoa ter falado repetidamente. Trata-se, portanto, de uma forma (um verbo repetido) que, com clareza, reflete a sua função (indicar a repetição de um ato). Outro exemplo de iconicidade é o alongamento de vogais que podemos usar em determinada palavra quando queremos enfatizar o tamanho ou a duração de algo. Se você quer dizer que alguma coisa é exageradamente grande, pode dizer algo como “Era muito graaaaaaaaaaande”. Mais uma vez, a forma (alongamento da vogal) reflete, claramente, sua função. Também no plano do léxico, na relação entre significante e significado, existem casos de iconicidade. Trata-se das famosas onomatopeias: palavras cuja forma se assemelha ao conteúdo representado. As relações icônicas entre forma e função são bastante regulares, tanto que há muitos estudiosos, não por acaso denominados funcionalistas, que defendem a ideia segundo a qual as formas existentes nas línguas, em grande medida, refletem as funções a que se destinam. A motivação funcional para a existência de certas formas pode ser, de fato, encontrada em todos os domínios de uma língua, tal como vemos nos seguintes exemplos do português:
EXEMPLO Fonologia
Morfologia
Semântica
Sintaxe
Pense na palavra “sussurrar” que se parece com os sons emitidos quando alguém su... ssu... rra.
Pense, por exemplo, nas palavras compostas, como “saca-rolha”, “guarda-roupa”, cujas funções são rapidamente dedutíveis pela análise de suas formas constituintes.
Lembre-se de expressões como “pé-da-mesa” ou “braço da cadeira”, que transferem para objetos a estrutura do corpo humano e, assim, iconicamente, permitem a codificação formal de suas funções.
Tal como se vê na famosa sequência atribuída ao romano Júlio César, “Vim, vi e venci”, que reflete, de forma icônica, a sequência temporal com que os atos se deram: o general primeiro veio, depois, viu para, enfim, vencer.
Se você está curioso para saber quem vence a batalha entre analogistas e anomalistas, saiba que temos, aqui, um empate técnico. As línguas humanas estão repletas de casos claros de arbitrariedade e casos evidentes de iconicidade. Ambos os fenômenos são encontrados em todas as línguas quando cotejamos formas e funções.
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Com efeito, a análise mais interessante que os cientistas da linguagem vêm apresentando ao longo dos últimos anos é interpretar a relação entre arbitrariedade e iconicidade em uma espécie de continuum, isto é, como uma sequência gradual de várias etapas que separam um extremo de arbitrariedade, de um lado, e um extremo de iconicidade de outro – mais ou menos como representamos a seguir:
[+ icônico] → [+/- icônico] → [+/- arbitrário] → [+ arbitrário] Sendo assim, não devemos pensar que as relações entre forma e função em uma língua sejam sempre uma questão de tudo ou nada; ou temos arbitrariedade ou temos iconicidade. A escalaridade parece ser uma boa chave para entendermos a dualidade forma e função. Pense, por exemplo, que, no uso de uma língua como o português, podemos deslizar rapidamente da forma dos substantivos para a forma dos adjetivos, dependendo da função de um item no interior de um contexto sintático. Em suma, você deve ter em mente que a gradiência no mapeamento entre formas e funções linguísticas ocorre de maneira generalizada tanto no léxico quanto na gramática de uma língua.
EXEMPLO Contexto sintático: Vemos isso acontecer na célebre citação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis: em [um autor defunto], “autor” é substantivo e “defunto” é adjetivo, mas, em [um defunto autor], “defunto” é substantivo e “autor” é adjetivo. Do mesmo modo, formas como “furado” podem ser analisadas como adjetivos ou como verbos (na forma de particípio), dependendo de sua função na frase, tal como vemos acontecer em “isso é papo furado” versus “a roupa foi furada pelo alfinete”, respectivamente. Na verdade, mesmo certas formas verbais, dependendo de sua função na frase, podem ser reanalisadas como substantivos, tal como acontece na expressão “sala de jantar”.
A linguagem humana em ação Para finalizarmos este capítulo, passemos a descrever e analisar alguns fenômenos sociocognitivos que ganham vida todas as vezes em que colocamos a língua em ação nas inúmeras tarefas comunicativas e interacionais de nossa vida cotidiana. Antes de iniciarmos essa análise, devemos explicitar que existem duas modalidades fundamentais no uso da linguagem humana: a produção e a compreensão. Além disso, não podemos nos esquecer de que, em sociedades letradas, como é o caso da maior parte das comunidades brasileiras, a língua pode se realizar pelo canal oral ou pelo canal escrito. Sendo assim, as quatro habilidades sociocognitivas envolvidas no uso de uma língua natural são a produção oral, a compreensão oral, a produção escrita e a compreensão escrita. Comecemos pela produção linguística. Essa habilidade demanda do falante (ou do escritor) uma série de tarefas cognitivas que se articulam dinamicamente ao contexto social da interação linguística. Por exemplo, para produzir a fala (ou a escrita), uma pessoa deve, primeiramente, selecionar de sua memória de longo prazo os itens lexicais que expressarão os conceitos que deseja veicular no ato de linguagem. Essa seleção de palavras na mente é o que os psicolinguistas chamam de planejamento de fala ou planejamento conceitual. Vejamos como isso ocorre.
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Esquematicamente, podemos representar a produção linguística oral pela sequência ilustrada a seguir:
Plano Conceitual → Seleção Lexical → Combinação Sintática → Expressão Fonética Você deve ter notado que acabamos de descrever a produção da fala fazendo com que ela parecesse semelhante à produção da escrita. Pelo que sugerimos, a diferença entre essas duas modalidades residiria no simples fato de que, na escrita, usaríamos grafemas para representar a expressão fonética do texto. No entanto, essa descrição é, na verdade, uma supersimplificação. De fato, a produção oral é muito diferente da produção escrita. De uma maneira bem resumida, podemos dizer que as pessoas, quando escrevem, estão muito mais conscientes do uso que fazem da linguagem, sendo, por isso mesmo, bem mais atentas e vigilantes tanto em relação ao que dizem quanto em relação a como dizem.
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A tomada de consciência e a vigilância, comuns na produção escrita, estão em flagrante contraste com o caráter mais espontâneo e automático da fala natural. Não é por outra razão que a escrita fluente, típica das pessoas bem escolarizadas e treinadas nessa arte, demanda muitos anos de aprendizado formal, desde a alfabetização até o letramento profundo na vida adulta. Por sua vez, a produção fluente da fala emerge já em crianças bem pequenas e se torna visível em qualquer conversa oral entre humanos, independente da escolarização ou do letramento dos sujeitos falantes.
LEITURA Os neurônios da leitura:
RESUMO Portanto, atente para essa ressalva: apesar de os mecanismos básicos envolvidos na produção oral e escrita serem semelhantes, falar e escrever são fenômenos sociocognitivos dramaticamente diferentes.
No eixo da compreensão linguística, o ouvinte (ou leitor) deve perceber as formas manifestadas no sinal da fala (ou da escrita) de seu interlocutor para, então, acessar, em sua memória de longo prazo, os conteúdos por elas evocados. Podemos dizer que a compreensão é o espelho invertido da produção. Vejamos por quê. Na produção linguística, começamos com um plano conceitual. Esse plano nos leva a dizer certas coisas por meio de dadas palavras, as quais são inseridas nas frases que Na realidade, conduzem os textos. Já na compreensão da linguagem, tudo começa pela porém, a detecção, nos textos, dos elementos compreensão do ato linguístico, tais como frases e linguística pela palavras. É com base na identificação leitura é muito desses elementos que se torna possível compreender o plano conceitual e mais complexa os valores comunicativos que move- do que a ram a produção do interlocutor. “decodificação Mais uma vez, as semelhanças enortográfica” tre oralidade e escrita estão aqui exageradas. No caso, a especificidade da sugere. compreensão da escrita diria respeito, de maneira muito simplificada, apenas à decodificação ortográfica (leitura) que faria a função da percepção fonética. Infelizmente, não podemos tratar de tantos detalhes no espaço limitado deste capítulo, mas, se você estiver interessado em compreender as minúcias que diferenciam oralidade e escrita, sugerimos a leitura do excelente livro Os neurônios da leitura (2012), do neurocientista francês Stanislas Dehaene. Para sintetizar o que acabamos de dizer sobre a produção e a compreensão linguística, a figura a seguir parece ser um bom recurso didático.
Segundo o autor, as pesquisas realizadas pela psicologia cognitiva experimental comprovaram o centro de reconhecimento da palavra escrita no cérebro. Tal descoberta afeta profundamente as metodologias empregadas nas escolas, que deverão rever suas abordagens.
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EXEMPLO
AUTOR Émile Benveniste: Émile Benveniste (1902-1976) foi um linguista francês, cuja principal obra, Problèmes de linguistique générale, ressalta a ideia de ocorrência de dois planos de enunciação – o da história e o do discurso –, através dos quais demonstra a oposição entre a “não pessoa” (terceira) e as “pessoas” (eu-tu).
A
B
Note que as setas que correm da esquerda para a direita indicam que o “plano conceitual” presente na mente de A é transformado na informação linguística veiculada para B. Por sua vez, B recebe essa informação linguística e, rapidamente, consegue interpretar os conceitos ali representados. A figura é interessante, também, porque, nela, podemos perceber que a produção e a compreensão da linguagem são automaticamente intercambiáveis no fluxo da fala normal. Pelas setas que correm da direita para a esquerda, notamos que, agora, é B quem produz a informação linguística que será veiculada para A.
A enunciação Na dinâmica da produção e da comA enunciação deve preensão da linguagem, o intercâmser compreendida bio de posições entre aquele que fala como o ato e aquele que ouve dá origem ao fenômeno conhecido como enunciação. de criação de Na enunciação, a pessoa que proum enunciado duz a fala (ou a escrita) é o enunciador linguístico. – a primeira pessoa do discurso. Já a pessoa que compreende a fala (ou a escrita) é o enunciatário – a segunda pessoa do discurso, a quem a fala (ou a escrita) se destina. Chamamos de terceira pessoa, ou de não pessoa – em um termo interessante formulado pelo linguista francês Émile Benveniste –, os objetos e as pessoas sobre os quais falamos (ou escrevemos) durante a enunciação. Em termos linguísticos e comunicativos, é interessante notar que, na enunciação explícita na produção da linguagem, as chamadas pessoas do discurso (os pronomes pessoais que você, certamente, conhece das aulas de português) são, justamente, categorias linguísticas que indicam a figura da primeira pessoa (eu, nós), da segunda pessoa (você, vocês) e da terceira pessoa (ele, ela, eles, elas e todas as expressões referenciais, como os substantivos).
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ATENÇÃO É com base na existência do enunciador, do enunciatário e dos referentes do
CURIOSIDADE Tempo futuro:
discurso que diversas expressões linguísticas são colocadas sob perspectiva durante a enunciação.
Por exemplo, pronomes como [meu/minha/nosso/nossa] indicam a posse de algo em relação à primeira pessoa do discurso, enquanto pronomes como [seu/seus/sua/suas] indicam a posse relativa à segunda pessoa, e expressões como [dele/deles/dela/delas] denotam a posse da terceira pessoa. Na verdade, mesmo o espaço ocupado pelas pessoas do discurso é posto em perspectiva durante a enunciação. Assim, termos como [aqui/este] indicam o espaço da primeira pessoa, enquanto [aí/esse] denotam o espaço da segunda pessoa, e [lá/aquele] apontam o espaço do referente, o lugar da terceira pessoa. De maneira muito interessante, o próprio tempo que utilizamos quando produzimos e compreendemos a linguagem só assume alguma interpretação coerente quando é colocado sob perspectiva durante a enunciação. Desse modo, sabemos que [ontem] é um termo que denota um momento anterior ao tempo da enunciação, ao passo que [hoje] indica o momento que coincide com a criação do enunciado, enquanto [amanhã] marca um tempo futuro que acontecerá depois de a enunciação ter sido concluída.
Por que a frase “Fiado, só amanhã” é engraçada? Pela perspectiva da enunciação, esse dizer, na prática, torna a venda a crédito impossível: o “amanhã”, seja quando for lido, sempre desloca para o dia posterior – e assim por diante, ad infinitum.
EXEMPLO Para que você tenha uma boa noção de como pessoa, espaço e tempo são categorias linguísticas cujas referência e interpretação dependem, crucialmente, da enunciação, imagine que você esteja andando pelo centro de sua cidade, quando, de repente, encontra um bilhete que flutua em sua direção. Como pessoa curiosa, você abre o bilhete e encontra a seguinte mensagem: “Eu estive aqui hoje.” Ora, você será capaz de compreender o significado básico dessas expressões (afinal, é possível depreender do bilhete que “alguém esteve em algum lugar, em algum dia”), mas não será possível identificar o sentido do enunciado, justamente porque você não participou da enunciação – e, portanto, não conseguirá encontrar o referente da primeira pessoa (eu) nem poderá deduzir o lugar (aqui) que ela ocupava ao produzir o bilhete, tampouco descobrirá qual foi o tempo presente (hoje) naquela enunciação. Algo totalmente diferente aconteceria se o bilhete contivesse uma frase como “A presidente Dilma esteve na Prefeitura do Rio de Janeiro em 04 de maio”. Nesse caso, a identificação referencial da pessoa, do espaço e do tempo do enunciado não são totalmente dependentes do contexto estabelecido na enunciação. Sabemos apenas que a produção dessa frase ocorreu depois da visita da Presidente à Prefeitura – e deduzimos isso em função do tempo verbal passado expresso em “esteve”.
capítulo 1
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CONCEITO Referente discursivo: O já citado linguista Roman Jackobson havia destacado a existência da não pessoa ao batizar com o termo “referencial” a função da linguagem que privilegia a terceira pessoa como o referente do discurso.
Das pessoas do discurso que são acionadas sempre que usamos a linguagem para a produção e a compreensão, a mais curiosa, em termos científicos, é a terceira. Como dissemos, a terceira pessoa é, na verdade, a não pessoa, isto é, é a ausência da primeira e da segunda pessoas. Trata-se do referente discursivo de um dado uso da língua. A função referencial é, muitas vezes, considerada a mais proeminente dentre as funções da linguagem, já que os humanos tipicamente usam a língua para falar do mundo, seus objetos, suas ações e pessoas. Todavia, a proeminência da “função referencial” pode nos passar a falsa ideia de que a linguagem humana, quando colocada em ação, seja essencialmente referencial. É bem verdade que muitos usos linguísticos são objetivos, isto é, focam-se no objeto (terceira pessoa) de maneira puramente referencial. Entretanto, grande parte da experiência linguística humana é metafórica. Vejamos o que isso quer dizer.
Função referencial x metáfora Nossa tradição escolar se esforça para nos fazer crer que o uso cotidiano e comum da linguagem seja referencial, isto é, somos ensinados que, quando produzimos e compreendemos a fala e a escrita, fazemos referências a coisas e pessoas de maneira mais ou menos objetiva. A linguagem metafórica seria, então, característica dos usos linguísticos mais elaborados e artísticos, como a poesia e os romances. Essa ideia é reforçada quando, na escola, estudamos as “figuras de linguagem” e ficamos com a impressão de que elas só acontecem nos textos literários. Na verdade, o uso metafórico da linguagem não é exclusividade da arte. Com efeito, todos os seres humanos comuns, no dia a dia, também utilizam metáforas ao produzir enunciados linguísticos. Por exemplo, quando dizemos alguma coisa como No exemplo, estamos “Decidirei se vou ca- transferindo propriedades sar ou não só mais do espaço para fazer à frente ao longo da referência à noção de minha vida” estamos fazendo referência a tempo. Precisamente é uma realidade tem- esse o princípio de toda a poral (a passagem linguagem metafórica: a da vida) por meio de transferência de domínios de uma categoria espasignificados. cial (a localização no espaço — “à frente”). Quando produzimos frases assim, estamos, na verdade, cruzando domínios de sentidos para fazer referência àquilo que queremos dizer.
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A linguagem metafórica é, na verdade, generalizada nos usos linguísticos. Podemos dizer que ela é a regra, e não a exceção, quando produzimos e compreendemos a linguagem humana. Um uso de linguagem estritamente objetivo e referencial é raro. Só o encontramos em abundância no discurso científico das áreas da natureza, como a Física, a Química e a Biologia. Mesmo em outras áreas da ciência, como a Economia, encontramos fartos exemplos de linguagem metafórica em frases como “O mercado está aquecido”, “Os preços estão nas alturas”, “Esperamos uma queda brusca na taxa de juros” etc. Para os cidadãos comuns, em seu cotidiano linguístico, a metáfora é muito mais do que uma mera figura de estilo: ela é um produtivo recurso natural de pensamento e de linguagem.
Para concluir Neste primeiro capítulo, começamos nossa pequena incursão pelo fantástico e complexo mundo da linguagem humana. Aprendemos, aqui, diversos conceitos importantes, como a diferença entre linguagem e língua, a distinção entre Língua-i e Língua-e, as noções e as fases da aquisição da linguagem, a oposição entre formas e funções linguísticas e os fundamentos da linguagem em ação. Nosso objetivo, ao longo do capítulo, foi apresentar a você uma visão panorâmica dos principais temas e figuras do estudo científico da linguagem, o qual tem em conta a interação dinâmica entre sociedade e cognição. Você terá boas oportunidades de ampliar seus conhecimentos sobre o assunto ao consultar os vídeos e os livros que indicamos. Bons estudos!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHOMSKY, N. O conhecimento da língua. Sua natureza, origem e uso. Lisboa: Caminho, 1986. DEHAENE, S. Os neurônios da leitura. Pará: Pense, 2012. PINKER, S. O instinto da linguagem: como a mente cria a linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2003. SAUSSURE, F. [1916]. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2004. WERMKE, K. et al. Cry Melody in 2 Month Old Infants With and Without Clefts. The Cleft Palate-Craniofacial Journal, v. 48, n. 3, p. 321–330, 2011.
IMAGENS DO CAPÍTULO p. 11 Cloud Tainara Oliveira · Estácio
p. 19 Bebês Paulo Vitor Bastos · Estácio
p. 23 Roman Jakobson Autor desconhecido · Wikimedia · cc
p. 12 Ferdinand de Saussure Autor desconhecido · Wikimedia . cc
p. 20 Pequeno Paulo Vitor Bastos · Estácio
p. 24 A Escola de Atenas Rafael Sanzio · Wikimedia · cc
p. 12 Nice dog Michael Sagmüller · stock.xchng
p. 20 Médio Paulo Vitor Bastos · Estácio
p. 26 Champagne Chin Chin Roger Kirby · stock.xchng
p. 15 Quatro Paulo Vitor Bastos · Estácio
p. 20 Grande Paulo Vitor Bastos · Estácio
p. 29 Os neurônios da leitura Stanislas Dehaene
p. 16 Noam Chomsky Duncan Rawlinson · Wikimedia . cc
p. 21 Eric Lenneberg Autor desconhecido
p. 30 Émile Benveniste Autor desconhecido · Jacket Magazine
p. 17 Bandeira do Paraguai Domínio público
p. 22 Graciliano Ramos Autor desconhecido · Wikimedia . cc
p. 31 Fiado Tainara Oliveira . Estácio
p. 18 Steven Pinker Charles Gauthier · charlesgauthier.com
p. 23 Karl Bühler Autor desconhecido · cmu
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Língua e variação linguística
ivo da costa do rosário
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Língua e variação linguística
AUTOR Antônio Gonçalves da Silva: Patativa de Assaré (Assaré, ce, 19092002) alfabetizou-se aos 12 anos e, a partir de então, começou a fazer repentes e poemas. O nome “Patativa” faz referência a uma ave amazônica de canto triste e melódico. Antônio Gonçalves da Silva escreveu diversos livros, também foi nomeado cinco vezes Doutor Honoris Causa em universidades brasileiras.
Neste capítulo, vamos discutir as relações entre língua e usuários da língua. Para iniciar a abordagem desse assunto, leia o texto a seguir: Não tenho sabença, pois nunca estudei, apenas eu sei o meu nome assiná. Meu pai, coitadinho, vivia sem cobre e o fio do pobre não pode estudá. Você já conhecia esse texto? Consegue reconhecer o estilo de escrita desse poeta? Quem escreveu esses versos foi Antônio Gonçalves da Silva, mais conhecido como Patativa do Assaré, um dos mais aplaudidos poetas e compositores brasileiros, reconhecido inclusive internacionalmente.
À primeira vista, você deve ter estranhado a linguagem empregada pelo poeta. Afinal, há várias palavras e construções que não estão em conformidade com a ortografia oficial da língua portuguesa, ou seja, com a linguagem exigida, por exemplo, pelas gramáticas normativas. Você acha que, por conta disso, Patativa do Assaré falava errado? Existe uma maneira certa de falar e escrever? São essas questões, entre outras, que vamos discutir neste capítulo.
Papel e status dos interlocutores na comunidade linguística A língua é, sem dúvi- O uso da língua é elemento da, o meio mais efifundamental para a caz de comunicação construção da sociedade. entre as pessoas. Por meio da língua, os seres humanos, de todos os tempos e lugares, estabeleceram e estabelecem relações sociais de diferentes maneiras. Sendo assim, podemos afirmar que o uso da língua reflete, em parte, a estruturação de uma dada sociedade.
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RESUMO
CURIOSIDADE
Em outras palavras, só existem as línguas porque existem seres humanos que as falam em sociedade, com propósitos diversos. E, ao estabelecer relações sociais – no trabalho, na escola, na igreja, no sindicato, na conversa informal e em várias outras instâncias –, a língua vai se moldando às necessidades comunicativas dos falantes e ao contexto da fala.
De fato, as mudanças na sociedade costumam provocar mudanças também nos sistemas linguísticos, pois todas as línguas naturalmente existem no seio de uma sociedade, que a (re)processa e a (re)elabora continuamente.
Propósitos da língua: exemplificando pela modalização Até o momento estamos falando de aspectos relacionados à língua e à sociedade. Para começar a aprofundar o tema, traremos uma breve noção sobre modalidade, que o ajudará a entender como o falante utiliza a língua para se relacionar com o contexto que o cerca.
Sistemas linguísticos: Com o advento da tecnologia, por exemplo, muitas pessoas inseriram em seus vocabulários palavras até então inexistentes ou de pouca frequência de uso. Assim, caminhando pela rua ou conversando, é comum ouvirmos que “Fulano acessou a web”, “torpedos foram trocados”, “novos tablets foram lançados”, “dá um google para ver” etc.
RESUMO Entende-se por modalidade os recursos da língua utilizados para expressar a atitude do locutor, nos conteúdos, em relação ao interlocutor. Há dois tipos principais de modalidades: a epistêmica e a deôntica.
Na modalidade epistêmica, com base no grau de conhecimento que possui, um falante expressa sua atitude em relação à verdade ou à falsidade do conteúdo de seu enunciado. Os valores epistêmicos podem ser de certeza, probabilidade ou possibilidade. Vamos a um exemplo?
EXEMPLO O estudante foi aprovado na disciplina. CERTEZA o locutor se compromete com a veracidade da informação
O estudante deve ter sido aprovado na disciplina. PROBABILIDADE o uso de “deve” condiciona a verdade, o locutor infere que tenha ocorrido
O estudante pode ter sido aprovado na disciplina. POSSIBILIDADE o locutor não assume compromisso em relação à verdade
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CURIOSIDADE Mudança: A expressão vossa mercê, como sabemos, não é mais utilizada no português atual. Atualmente utilizamos o pronome você para substituir essa expressão. Portanto, houve um processo de mudança, transformando, ao longo do tempo, a expressão vossa mercê em você.
Na modalidade deôntica, um locutor exprime juízos, procurando agir sobre o seu interlocutor, impondo, proibindo ou autorizando a realização de algo em um tempo necessariamente posterior ao discurso. Estabelece-se uma relação hierárquica entre locutor e interlocutor. Tradicionalmente, a modalidade deôntica divide-se em valores de obrigação e valores de permissão. Veja:
EXEMPLO “Saia daqui, agora!” “Agora, você não vai sair.” O valor modal de obrigação ocorre quando o locutor impõe ou proíbe a realização de uma ação ao interlocutor.
“Só sai, se terminar antes.” “Se terminar, você pode sair.” O valor modal de permissão ocorre quando o locutor define e/ou oferece escolhas ao interlocutor para realizar uma ação. A modalidade, tanto epistêmica quanto deôntica, serve para atender, como vimos, a necessidades comunicativas. Afinal, informar, descrever, contar, ordenar, permitir, proibir, impor etc. são ações típicas veiculadas pelas línguas humanas. Elas dependem da situação comunicativa e, muitas vezes, da intencionalidade do falante.
RESUMO Usamos a língua não só para nos comunicarmos e articularmos informações mas também para agirmos sobre nossos interlocutores e até mesmo para controlar o nível de comprometimento ou de verdade usado nas declarações que fazemos cotidianamente.
Transformações na trajetória da língua: mudança e variação Esse processo de adap- Por mudança, devemos tação da língua aos entender as transformações propósitos do falante, sofridas pelas línguas ao que não está restrito somente à modalida- longo do tempo. de, provoca dois fenômenos naturais atestados em todos os lugares e em todos os tempos. Trata-se da mudança e da variação linguística (iremos enfatizar a variação ao longo deste capítulo).
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CURIOSIDADE
Pesquisadores vêm estudando já há muito tempo essas transformações na trajetória da língua, gerando um número bastante expressivo de publicações acerca desse assunto. Esses estudos, que têm como objetivo analisar as mudanças da língua ao longo do tempo, são chamados estudos diacrônicos. Veja o exemplo a seguir:
EXEMPLO “Este rrey Leyr nõ ouue filho, mas ouue tres filhas muy fermosas e amaua-as
Português do Brasil:
mujto. E huu dia ouuve sas rrazõoes com ellas e disse-lhes que lhe dissessem
Nossas favelas são conhecidas como bairros de lata em Portugal. Em Angola, que também tem a língua portuguesa como oficial, utilizase o termo musseque. Para saber mais sobre diferenças entre o português brasileiro e o português europeu, recomendamos uma visita ao site do Instituto Camões.
uerdade quall dellas o amaua mais”.
Você conseguiu ler o texto anterior? Qual foi a sua sensação? Se você imagina que se trata de um texto antigo, acertou! Esse texto, cujo título é Lenda do Rei Lear, é datado do século XIII ou XIV. Ele serve para ilustrar como a língua muda ao longo do tempo, basta verificar como era a escrita séculos atrás…
Variação linguística Voltando ao exemplo dado No uso da língua em no início deste capítulo, no sociedade, muitas vezes poema de Patativa do Assahá várias formas de se ré vimos palavras como sabença, assiná e estudá. dizer a mesma coisa. Você deve ter percebido que, no português formal, gramatical, essas palavras equivalem a sabedoria, assinar e estudar. Aí está a ideia de variação, que pode ser compreendida como a face heterogênea da língua. Assim, da mesma forma como Patativa do Assaré utiliza a forma sabença para se referir a sabedoria, há outras formas que variam, e não somente em termos de ortografia, mas inclusive em termos vocabulares. Cariocas, por exemplo, falam chuva fina enquanto paulistas falam garoa. O português do Brasil utiliza o termo ônibus, enquanto em Portugal falam autocarro. O tópico da variação, devido à sua relevância, chegou a ser poetizado pelos modernistas brasileiros. Manuel Bandeira, por exemplo, foi um crítico do modo artificial como alguns brasileiros tentavam imitar os estilos lusitanos, nas primeiras décadas do século xx: A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros Vinha da boca do povo na língua errada do povo Língua certa do povo Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil Ao passo que nós O que fazemos É macaquear A sintaxe lusíada...
AUTOR Manuel Bandeira: Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (1886-1968) nasceu em Recife (pe). Juntamente com Oswald de Andrade e Mário de Andrade, formou o grupo de escritores mais importantes da Primeira Fase Modernista de nossa literatura.
BANDEIRA, Manuel Estrela da vida inteira. 2 ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1970.
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CURIOSIDADE Escolarização formal: Somente após 300 anos, com a chegada da família real, que a educação superior começou a fazer parte da nossa realidade: em 1808, surge o Colégio Médico-Cirúrgico da Bahia. A elite brasileira (membros da Corte, membros da Igreja e filhos de grandes latifundiários), até então, só tinha por opção estudar na Europa. A primeira universidade brasileira surgiu em 1920, e foi chamada de Universidade do Rio de Janeiro (hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro).
CURIOSIDADE Mudanças: Um bom exemplo para vermos as mudanças é a inserção de palavras estrangeiras, como shopping. O uso da forma original (em inglês) dessa palavra é tão disseminado entre nós que praticamente não se utiliza uma forma correspondente em português (como “centro comercial”, por exemplo). Em outros casos, uma palavra estrangeira acaba sendo incorporada à língua. É o famoso “aportuguesamento”, como na forma ballet (francês) para balé.
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Em busca de uma língua essencialmente marcada por traços da cultura brasileira, os modernistas costumeiramente defendiam, de forma ávida, usos linguísticos característicos do Brasil, mesmo que não estivessem de acordo com o “português correto”. É por isso que Manuel Bandeira afirma que a “a língua errada do povo” era a “língua certa do povo”. Parece paradoxal, mas não é.
RESUMO O português vivo falado pelos brasileiros é, na opinião do modernista, a verdadeira língua do Brasil, que traduz um falar “gostoso”, segundo suas palavras. Enfim, mesmo que sem os termos técnicos que utilizamos, defendia-se a legitimidade da variação linguística.
Voltando ao nosso tema, os estudos de variação linguística são sempre feitos dentro de um recorte temporal específico, ou estudos sincrônicos. Sincronia, portanto, designa um estado específico da língua.
EXEMPLO Se um pesquisador se ocupar do estudo do pronome você no português do Brasil atual (ou até mesmo em todos os lugares da comunidade lusófona onde esse item é utilizado), dizemos que esse é um estudo sincrônico. Por outro lado, se analisa um determinado uso linguístico ao longo de décadas ou séculos, com o objetivo de descrever transformações do item ao passar do tempo, então estamos diante de um estudo diacrônico.
Por que a mesma língua é, também, diferente? A língua portuguesa era a língua falada/escrita pelas classes escolarizadas de Portugal. Aqui encontrou as línguas indígenas que, na fase inicial da colonização, formaram uma “língua de intercurso”: mistura de português e línguas indígenas, que promovia a comunicação entre o colonizador europeu e os nativos indígenas. Em seguida, o povo que aqui se encontrava – índios, negros escravizados e mestiços, praticamente todos sem acesso à escolarização formal – ia adquirindo o idioma de Portugal. Esse idioma, aqui no Brasil, tornou-se também “mestiço”, sendo passado de pai para filho, com gerações aprendendo e ensinando, de forma empírica, a língua portuguesa. Como se pode perceber, por falta de um ensino sistematizado para todos, grande parcela da população utilizava a língua oficial conforme suas próprias “regras”, de acordo com suas necessidades, e foi, pouco a pouco, promovendo variações na língua portuguesa. Surgia, assim, uma variante daquele português das elites escolarizadas: a língua falada pelo povo. Após mais de 500 anos de uso do português no Brasil, nada mais natural que a língua tenha passado por mudanças e apresente variações
conforme a região, a classe social e, até mesmo, conforme a idade dos falantes. Nesse contexto de mudanças e variações, há palavras e construções linguísticas que, embora ainda em uso, são cada vez mais escassas ou restritas a uma situação de alta formalidade. Mesmo assim, tais usos são ensinados nas escolas, estão presentes em todas as gramáticas, são cobrados em exames, concursos etc. Vamos a um exemplo:
EXEMPLO 1: “O ônibus já passara quando chegamos ao ponto” Caso em questão
Regra gramatical
Uso mais comum
Emprego do pretérito
Emprega-se o pretérito
A forma composta, com uso de
mais-que-perfeito
mais-que-perfeito para assinalar
verbo auxiliar:
um fato passado em relação a
“O ônibus já tinha passado
outro, também no passado
quando chegamos ao ponto”
EXEMPLO 2: “Amanhã, pegá-lo-emos no horário” Caso em questão Colocação pronominal
Regra gramatical
Uso mais comum
Emprega-se a mesóclise quando
O uso de próclise em vez de
o verbo estiver no futuro do
mesóclise ou uso de pronome
presente ou no futuro do
reto em vez de oblíquo:
pretérito do indicativo, desde que
“Amanhã, o pegaremos
não se justifique a próclise.
no horário”. “Amanhã, pegaremos ele no horário”.
Por outro lado, há momentos em que estamos com nossos amigos, nossos familiares, nossos grupos sociais. Nessas situações, é comum haver um uso menos formal da língua, que comumente é acompanhado por gírias, expressões populares etc. Esse uso, ao contrário do que muitos pensam, não é errado. Trata-se apenas de um uso diversificado do idioma. Portanto, esses usos são naturais, seguem uma lógica própria e precisam ser respeitados, já que são igualmente úteis à comunicação. Assim como as culturas são diversas, as línguas (que são parte da cultura) também o são: os diversos domínios sociais atestam e influenciam o modo de fala e de escrita dos cidadãos. Assim, podemos afirmar que, em geral, os eventos de uma sala de aula ou de uma reunião de trabalho costumam ser mais monitorados do que as conversas espontâneas no seio familiar, por exemplo. Nessas situações práticas do dia a dia, invariavelmente se atesta o fenômeno da variação. Pense em como você se comunica com o professor na universidade e como você conversa com seus amigos ou com seus familiares. Não é diferente?
EXEMPLO Imagine um cartão de apresentação profissional com erros gramaticais. Inconcebível, não é? Pois então, em contextos “monitorados”, o uso que um falante faz da língua oral ou escrita é “analisado” pelo ouvinte/leitor, como parte de um processo de legitimidade, de adequação e de pertinência do conteúdo ao sujeito que fala/escreve.
capítulo 2
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CONCEITO Dialetos: Dialeto é a forma como uma língua é falada em uma região específica. Podemos considerar, por exemplo, que o português brasileiro e o português europeu são variedades dialetais. O mesmo pensamento vale dentro do Brasil, onde temos subvariedades: o grupo dialetal carioca, gaúcho, baiano etc.
Explorando mais o tema: variações dialetais Para nos aprofundarPara o estudo científico da mos no conceito de linguagem, a variação é um variação, falaremos fenômeno normal, natural, agora das variações dialetais. Dentre os inerente a todas as línguas. dialetos que mais chamam a atenção dos estudiosos da língua, estão os usos que se dão conforme a região (diatópicos) e conforme o estrato sociocultural (diastráticos).
Variação diatópica (dialetal) No Rio de Janeiro, chama a atenção o Pessoas que residem em “chiado” caracterís- localidades diferentes, tico da população ao distantes, tendem a ter pronunciar o “s” em pronúncia e vocabulário determinadas posições na palavra, como também diferentes. em “misto” ou “mais” (com som de x). Por outro lado, é próprio do falar nordestino a abertura das vogais “e” e “o” antes da sílaba tônica, em palavras como “receita” e “morena”. Em São Paulo, o uso da palavra “guia” corresponde ao uso de “meio-fio” no Rio de Janeiro. Todos esses são exemplos de variação diatópica.
Variação diastrática (sociocultural) A língua também varia conforme o grau de escolaridade do falante, pela cultura familiar, pela situação financeira, por grupos profissionais e sociais específicos e, até mesmo, por idade ou gênero, entre outros. Além do uso de gírias pelos mais jovens ou por pessoas em situação de grande informalidade e da falta de concordância de número (singular-plural) entre os menos escolarizados, os jargões profissionais são também exemplos clássicos de variação diastrática. No universo do futebol, por exemplo, “ir para o chuveiro mais cedo” significa que o jogador foi expulso de campo ou substituído. No discurso de advogados, há grande uso de expressões latinas, como data venia, que corresponde a “com o devido respeito” em português.
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ATIVIDADE Vamos fazer um teste? Veja as frases e as associe a um determinado perfil:
1
Mamãe, eu quero um au-au!
Pessoa com baixa escolaridade
2
A coroa lá em casa tá bolada...
Pessoa com alta escolaridade
3
A moçoila está uma teteia.
Uma criança
4
Que gracinha! Amei isso, é lindo!
Um idoso
5
É mister ampliarmos o repertório vocabular do corpo discente.
Pessoa em conversa online
6
Os poliça pegou os bagulho lá do pessoal!
Pessoa do sexo feminino
7
Vc ker tc comigo?
Um jovem
Você provavelmente respondeu a seguinte sequência: 6, 5, 1, 3, 7, 4, 2. Repare que há, inclusive, certo determinismo na resposta, pois nem toda mulher fala usando diminutivo ou exageros e não há pessoa de alta escolaridade que não use gírias eventualmente. Mas podemos considerar que todas essas frases são bem características de alguns perfis de usuários da língua. Alguns usos são muito estigmatizados, como o exemplo 6, outros são considerados mais “neutros”, outros despertam ternura, despojamento, informalidade etc. Todos esses usos linguísticos são continuamente praticados e avaliados pela sociedade.
De forma consciente ou não, nós reconhecemos essas variantes. Afinal, sempre que queremos nos dirigir a alguém, refletimos acerca da situação (se é apropriado ou não falar naquele momento), do interlocutor (não falamos com nossos amigos da mesma maneira como falamos com nosso chefe) e do ambiente (há lugares mais apropriados para piadas, para conversa espontânea, para ensinamentos morais etc.). Em outras palavras, utilizamos variantes distintas dependendo dos nossos propósitos e objetivos, em cada situação particular.
Teria o mesmo sentido se usasse as regras gramaticais e a ortografia oficial na letra da música? ASA BRANCA Luiz Gonzaga Quando oiei a terra ardendo
Inté mesmo a asa branca
Quando o verde dos teus óio
Qual fogueira de São João
Bateu asas do sertão
Se espalhar na prantação
Eu perguntei a Deus do céu, ai
Intonce eu disse: adeus, Rosinha
Eu te asseguro, não chore não, viu
Por que tamanha judiação
Guarda contigo meu coração
Que eu voltarei, viu
Que braseiro, que fornaia
Hoje longe, muitas léguas
Nem um pé de prantação
Em uma triste solidão
Por farta d’água perdi meu gado
Espero a chuva cair de novo
Morreu de sede meu alazão
Pra mim vortá pro meu sertão
Meu coração
Asa Branca foi composta por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira em 1947.
capítulo 2
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AUTOR Luiz Gonzaga: Luiz Gonzaga do Nascimento (1912-1989) nasceu no interior de Pernambuco. É considerado um dos grandes divulgadores da música e cultura nordestinas.
Em Asa Branca, temos um claro exemplo de como a língua varia. Poeticamente, Luiz Gonzaga canta as características de sua terra, embaladas pelo linguajar local. O uso da língua padrão, no caso dessa música, continuaria comunicando a mesma emoção que ela nos traz quando cantada em seu estilo original? Certamente, não! Um fato curioso sobre a variação é que os usos fortemente defendidos como corretos, no passado, muitas vezes invertem-se e passam a ser condenados. Por exemplo: nos século xvi e xvii, era comum registrar, em obras escritas na língua padrão, os vocábulos frauta, frecha, molher, entre outros. As variantes flauta, flecha, mulher, que hoje designam o padrão formal dessas palavras, eram fortemente estigmatizadas.
Língua padrão e língua culta Como você já deve ter Há uma diferença entre saber percebido, um usuáfalar uma língua, “dominar” rio do português pode as regras gramaticais e usáser altamente escolarizado, expressar-se la de forma erudita. bem, com correção, sem, necessariamente, empregar, a cada vez que fala ou escreve, as regras prescritas pela gramática tradicional. É possível ainda que, por sua baixa escolaridade, um falante não conheça as normas gramaticais e deixe de fazer concordâncias ou pronuncie determinadas palavras em desacordo com a ortografia, por exemplo. Ainda assim, todos falam língua portuguesa.
ATENÇÃO A variação linguística nos faz pensar em algumas questões: as regras gramaticais são frequentemente usadas pelos falantes do português contemporâneo? São mais comuns na fala ou na escrita? São empregadas apenas por pessoas escolarizadas? Qual seria a forma usada por aqueles com pouca escolaridade?
Se pensarmos em termos puramente científicos, não há erro no uso da língua. Ao utilizar a língua portuguesa, por exemplo, nas suas variantes, os falantes não a utilizam de forma errada, mas de forma diferente. Entretanto, existe, de fato, a necessidade de uma língua padrão para que haja unidade, no uso do idioma, em contextos mais monitorados, como nas situações escolares de ensino-aprendizagem, nos textos formais (científicos, acadêmicos, legislativos etc.), no ambiente de trabalho...
44 • capítulo 2
ATENÇÃO
CURIOSIDADE
A gramática tradicional – aquela usada em instituições de ensino – enquadra-se
Gramáticas normativas:
no domínio do normativo, isto é, que define “certo” e “errado”, que prescreve
Gramática é um estudo, não um livro. Existem outras gramáticas além da normativa, como a descritiva (não determina regras, mas procura descrever como a língua se dá para fins de investigação), a histórica (estuda a origem e a evolução de uma língua), a comparada (compara línguas de mesma origem, como as oriundas do latim, por exemplo), entre outras.
como a língua deve ser empregada e proscreve o que não deve ser dito.
A escola e a universidade precisam investir no ensino e aprendizagem da língua padrão, pois é esperado que falantes escolarizados a dominem nas situações em que seu uso for necessário ou valorizado. Quanto a isso, não há discussão nem divergência. Nesse cenário, a gramáA gramática normativa tica normativa se afigura como grande pilar da lín- contempla usos que, por gua padrão, posto que se razões menos linguísticas enquadra no domínio do e mais socioculturais e prescritivo, isto é, define históricas, contam com o que é “certo” e “errado”, determina como a língua maior prestígio social. deve ser empregada e aponta o que não deve ser dito. Entretanto, geralmente as gramáticas normativas apresentam como modelo de “português correto” escritores de séculos passados, pautando-se, na maioria das vezes, em textos literários. Vamos a um exemplo? Observe a construção a seguir, de Eça de Queirós, escritor português do século xix, retirada da Nova Gramática do Português Contemporâneo (CUNHA E CINTRA, 2001:364).
AUTOR Eça de Queirós: José Maria de Eça de Queirós (18451900) foi um dos mais importantes escritores portugueses de todos os tempos, autor de obras como O Crime do padre Amaro (1875) e A relíquia (1887).
AUTOR
EXEMPLO “Ao outro dia, ao almoço, Amélia estava pálida, com as olheiras até ao meio da face” (Eça de Queirós, in CUNHA E CINTRA, 2001:69).
Ao longo dessa gramática, assim como em outras, encontramos trechos retirados de diversos outros escritores de diferentes períodos, incluindo-se brasileiros como Machado de Assis ou Érico Verissimo. Porém, fica claro que todos são cânones de um português elitizado, ou até arcaico, distante do que usamos cotidianamente, mesmo entre os grupos mais escolarizados. Para confirmar essa tendência, vamos a outro exemplo retirado da mesma obra (CUNHA E CINTRA, 2001:231). Dessa vez, a construção linguística analisada é apresentada por meio de texto literário de Machado de Assis, escritor brasileiro do século xix.
Machado de Assis: Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) é o maior nome da literatura brasileira, também considerado por muitos estudiosos como um dos grandes gênios da literatura mundial. Foi autor de obras como Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro (1889). Foi fundador e eleito primeiro presidente, por unanimidade, da Academia Brasileira de Letras.
EXEMPLO “Vi-os felizes a todos quatro” (Machado de Assis, in CUNHA E CINTRA, op.cit., 1126).
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Até mesmo fenômenos linguísticos já consagrados, presentes na fala e escrita de pessoas escolarizadas, são tratados com reservas pela tradição gramatical. O uso do “você” combinado com pronomes de segunda pessoa, por exemplo, ou o emprego do “tu” com pronomes ou verbos de terceira pessoa, são alvos de críticas por parte dos puristas. Porém, no português brasileiro, o pronome “você” é de ampla aceitação, predominando em praticamente todo o território brasileiro e ocupando, cada vez mais, o lugar do “tu”. Entretanto, por causa da sua origem como pronome de tratamento, a norma gramatical prescreve que “você” seja sempre acompanhado por verbos e outros pronomes na terceira pessoa.
EXEMPLO A regra gramatical prescreve que... ...“você” é um pronome de tratamento empregado para representar o interlocutor (2º pessoa); entretanto, deve concordar com a 3º pessoa, assemelhando-se a outros pronomes de tratamento (Vossa Alteza, por exemplo). Sendo assim, o pronome oblíquo tônico correspondente é “lhe” (3º pessoa).
Não sei mais o que fazer com você! Vou lhe dar um castigo exemplar. Mas o uso mais comum é... ...empregar o pronome oblíquo átono de 2º pessoa, concordando com “você”. Neste exemplo, temos duplo erro gramatical: 1) o erro de concordância de pessoa; 2) o emprego de pronome oblíquo átono (“te”) em vez de tônico, haja vista ocorrer preposição, por causa da regência verbal.
Não sei mais o que fazer com você! Vou te dar um castigo exemplar. Partindo desse exemplo, muito do que é falado e ouvido nas ruas, dentro de casa, nas repartições públicas e até mesmo nas escolas e universidades, margeia a gramática normativa, posto que incorpora variantes linguísticas no seu uso. Você sabia que, segundo a visão normativa, um famoso comercial veiculado pela mídia comete erros gramaticais? Vamos explorar?
Vem pra
Você também!
A forma verbal no imperativo (“vem”) é referente ao pronome “tu”, não ao pronome “você”. Logo, deveria ser “venha” para se estabelecer concordância. Mas não é só isso… Você reparou na forma “pra”? Ela é própria da fala, mas não admitida na escrita, de acordo com a tradição gramatical. Assim, se a propaganda respeitasse a norma, ganharia em correção, porém perderia em expressividade, sonoridade e ritmo, não é mesmo?
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Língua culta
AUTOR
Você pode estar se perguntando qual seria a diferença entre língua padrão e língua culta. A língua padrão, como vimos, é aquela preconizada pelas gramáticas normativas. A língua culta, por sua vez, representaria o português utilizado por pessoas letradas, das camadas mais escolarizadas da sociedade. Estes, A língua padrão é um ideal pela lógica, seguiriam as de correção, visto que nem normas gramaticais. Iniciemos, então, esta mesmo falantes cultos seção com um poema bas- seguem irrestritamente os tante conhecido, do escriseus ditames. tor modernista Oswald de Andrade, que, já no início do século xx, trazia, em seu poema Pronominais, questionamentos sobre o português “da gramática” e o usado, de fato, no Brasil:
Oswald de Andrade: José Oswald de Souza Andrade (1890-1954) pertencia a um grupo de intelectuais e artistas envolvidos no Movimento Modernista, cujo objetivo era tentar “eliminar definitivamente da cultura brasileira qualquer vestígio da influência lusitana” (Alambert, 1992:8).
Pronominais Dê-me um cigarro Diz a gramática Do professor e do aluno E do mulato sabido Mas o bom negro e o bom branco Da Nação Brasileira Dizem todos os dias Deixa disso camarada Me dá um cigarro. ANDRADE, Oswald. Poesias Reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.
O primeiro verso do poema – “Dê-me um cigarro” – apresenta o que qualquer gramática normativa recomenda, no capítulo dedicado a tratar da colocação dos pronomes átonos: quando o verbo abrir o período, ou iniciar qualquer das orações que o compõem, a posição dos pronomes átonos é depois do verbo (ênclise). Trata-se, portanto, de um uso que se enquadraria no conceito de língua padrão. Por sua vez, o último verso – “Me dá um cigarro” – reproduz um caso em que o pronome átono está em próclise, isto é, posiciona-se antes do verbo. Mesmo condenado pela tradição gramatical, certamente era o uso que Oswald de Andrade ouvia nas ruas e nas suas rodas de conversa no início do século xx. Mas, se tal uso foi defendido por uma pessoa letrada, com alta escolaridade, o último verso poderia se enquadrar no conceito de língua culta? Aqui cabe outra questão: se a língua culta é o português utilizado por pessoas letradas e, por consequência, pelos grandes escritores,
capítulo 2
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AUTOR Guimarães Rosa: João Guimarães Rosa (1908-1967) foi um dos mais importantes escritores brasileiros de todos os tempos, eleito por unanimidade à Academia Brasileira de Letras (apesar de eleito em 1963, assumiu somente em 1967, pouco antes de morrer). Veja como ele “brinca” com a língua em Grande Sertão: Veredas (1956): “Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães”.
o que dizer de Guimarães Rosa? Há diversos trechos de suas obras que também não estão em acordo com a língua culta. Seria ele um “falante inculto” ou um mau escritor? Não se defende algo dessa natureza… Além dos casos trazidos à discussão, outros usos condenados pela norma padrão são considerados como próprios entre falantes escolarizados. Até mesmo um professor de língua portuguesa, ciente das regras prescritas pela tradição gramatical, dificilmente declararia seu amor com um “Amo-te!”. O muito mais romântico e brasileiríssimo “Te amo!” é a preferência nacional.
RESUMO A essa altura, você já deve estar percebendo que a língua culta é a variedade em uso por aqueles que têm acesso à variedade padrão, por aqueles que provavelmente tiveram detalhadas lições sobre a gramática normativa, nas aulas de língua materna, mas que não apresentam, na sua fala, o mesmo rigor gramatical que têm quando escrevem ou quando falam em contextos formais, monitorados. Ou seja, são usuários que sabem ajustar seu texto/fala à situação comunicativa.
Portanto, língua culta é aquela em que se enquadram os usos linguísticos da parcela letrada da sociedade, inserida nas práticas associadas a diferentes atividades sociais, científicas, religiosas, profissionais; enfim, manifestações culturais que requerem nível alto de escolaridade.
E as outras formas de uso? Até aqui, você conheceu duas varieA ideia de que há dades da língua portuguesa: aquela que é ensinada nas escolas por pessoas que “falam meio da gramática normativa, cujo e escrevem de foco é a escrita – a língua padrão; forma errada” está outra que circula entre as camadas muito disseminada mais escolarizadas e letradas da sociedade, detentoras de prestígio em nosso país. social – a língua culta. Como vimos também, há usos externos à língua padrão que também são igualmente válidos, em termos comunicativos e expressivos, mas que são condenados pela gramática. Em relação a isso, várias causas são alegadas para justificar a ocorrência de variedades não padrão: falta de cuidado com a língua, má qualidade do ensino, déficit cultural, perda da identidade nacional, falta do hábito de leitura etc.
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RESUMO
CURIOSIDADE
Se uma perspectiva prescritivista é adotada, bem ao gosto dos famosos “consul-
Falante idealizado:
tórios gramaticais” a que temos assistido na TV e em outros meios de comunica-
Sirio Possenti aponta divergências no tipo de tratamento gramatical para erros sociais, como se fossem erros estruturais. Segundo o autor, a variação de [l] com [r], como em “flamengo/ framengo”, estruturalmente se situa em um processo histórico que derivou, entre outras, palavras como “praia” e “prata” (se compararmos ao espanhol, por exemplo, teremos “playa” e “plata”). Mesmo explicáveis, tais pronúncias são socialmente estigmatizadas. Para Possenti, “dizer que é um erro (em língua) equivale a dizer que uma saia curta é um erro no campo da moda (ou em moralidade!). É uma avaliação social, não linguística (…). Às vezes, alguém diz que o som [fra] é horrível, mas ninguém o acha horrível em [fraco]. No entanto, trata-se do mesmo som, e no mesmo contexto.” (Coluna Palavreado, Instituto Ciência Hoje/uol, janeiro de 2012)
ção, todos os empregos linguísticos, em desacordo com a norma padrão, passam a ser combatidos, como se fossem um mal à sociedade.
Um fato curioso é que, dentro da própria língua padrão, também há variação, ou melhor, posturas divergentes. Assim, os gramáticos assumem posições distintas quanto ao uso do infinitivo flexionado, da colocação pronominal (próclise, mesóclise e ênclise), dos conceitos de sujeito, da lista de orações adverbiais, da classificação de advérbios, entre tantos outros pontos. Na prática, não existe o falante idealizado pelas gramáticas e pelos puristas, já que ninguém segue 100% as prescrições normativas em todos os momentos de sua vida. Embora a língua padrão seja a variedade linguística ensinada nas escolas, especialmente nas aulas de português, em que se prioriza o ensino das normas gramaticais e da língua escrita, não se deve concebê-la como melhor ou superior às demais variedades. Além disso, se considerarmos que os usuários do português devam falar, ou até mesmo escrever, seguindo somente os modelos da gramática normativa, estaremos diante de uma língua artificial, distante da realidade dos diferentes falares presentes em toda a extensão do Brasil. E o nosso pais é muito grande, comportando muitas variedades linguísticas.
Preconceito e poder no uso da língua De fato, não há nada de errado e feio no uso não padrão. O que ocorre, na verdade, é que esses usos considerados desviantes nada mais são do que diferentes dos usos linguísticos das elites socioculturais.
O preconceito linguístico origina-se das relações sociais estabelecidas.
RESUMO Em síntese, o modo diferente de fala das classes menos escolarizadas e, normalmente, menos abastadas, passa a ser alvo de preconceito por parte das classes mais escolarizadas; portanto, mais influentes na sociedade. Assim, o poder daqueles que gozam de mais prestígio, por conta de fatores políticos, econômicos e culturais, transfere-se para a variedade linguística que utilizam. Essas variedades passam a ser consideradas mais corretas, mais dignas.
capítulo 2
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CURIOSIDADE
Variante indigna: Um erro na grafia da placa causou estranheza aos policiais que pararam o veículo em questão. Resultado: o erro mostrava, na verdade, um crime de estelionato. Mas não podemos esquecer que há bandidos que também dominam a norma padrão…
CURIOSIDADE Relações econômicas, políticas e sociais: No livro Triste fim de Policarpo Quaresma, escrito por Afonso Enriques de Lima Barreto (1881-1922), a questão do nacionalismo é discutida. A personagem principal do livro, Policarpo Quaresma, em um dado momento, propõe à Assembleia Legislativa que a língua nacional deveria ser o tupi, a verdadeira língua nativa do país. Algo parecido ocorreu recentemente, mas na vida real. O então deputado federal Aldo Rebelo propôs um projeto que combatesse o estrangeirismo, para “proteção, promoção, defesa e uso da língua portuguesa” (cf. Faraco, 2001). Essa proposta, por exemplo, revela o quanto as nossas elites estão desinformadas em termos de língua, uso e variação.
Essa associação, se pensarmos bem, é muito perversa. Afinal, a língua é um fator de identidade, um meio de acesso aos bens culturais e o principal modo como nos comunicamos. Se assumirmos que há pessoas que falam errado, que utilizam uma variante indigna, automaticamente podemos estender à ideia de que essas mesmas pessoas não têm direito aos bens culturais produzidos pela sociedade como um todo. Afinal, se elas “não sabem sequer falar corretamente”, Na prática, uma variedade linguística como vão ter acesso à cultura? Assim, a variedade culta é acaba tendo o mesmo mais valiosa porque é falada por valor que as pessoas pessoas também mais prestigiadas. As variedades não padrão, que a adotam. por sua vez, acabam sendo estigmatizadas porque as pessoas que as falam também o são. O uso da língua, portanto, reflete o poder e a autoridade (ou a falta deles) nas relações econômicas, políticas e sociais. O que fica mais claro ao longo dessas constatações é que, de fato, o preconceito linguístico encontra espaço até mesmo em veículos que gozam de prestígio na sociedade. Muitas vezes, o que é ainda pior, não há espaço para opiniões divergentes, o que cria a falsa imagem de um consenso em torno das questões levantadas. Sem dúvida, o espaço na mídia e a grande aceitação dessas questões pelo público em geral dificultam o trabalho de esclarecimento sobre questões da língua, fazendo permanecer o preconceito linguístico. A existência do preconceito linguístico é uma das maiores provas do quanto língua e sociedade são imbricadas. Afinal, esse tipo de preconceito está diretamente relacionado ao status dos interlocutores na comunidade linguística. Nesse contexto, a escola e a universidade devem integrar esforços para que o preconceito linguístico seja paulatinamente combatido.
CONCEITO Preconceito linguístico: Marcos Bagno é, no Brasil, um dos maiores estudiosos do preconceito linguístico. Um dos seus livros mais conhecidos é Preconceito linguístico: o que é, como se faz?, obra que já conta com dezenas de edições. Nele, o autor sintetiza em oito pontos os principais equívocos veiculados quanto ao português do Brasil. A esses pontos, o autor chama mitos, os quais você poderá ver mais detalhadamente no artigo.
Enfim, chegamos ao final de nossa reflexão sobre as relações entre língua e sociedade. Discutimos o papel e status dos interlocutores na comunidade linguística, abordamos os conceitos de modalidade e evidencialidade, como também de variação e mudança. Também discutimos a questão do preconceito linguístico e suas nuances. Bons estudos!
50 • capítulo 2
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAGNO, M. Não é errado falar assim! Em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2009. ______. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999. BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2009. CAGLIARI, L. C. Alfabetização e Linguística. São Paulo: Scipione, 1991. FARACO, C. (Org.) Estrangeirismos: guerras em torno da língua. São Paulo: Parábola, 2001. GONÇALVES, S. C. L. Gramaticalização, modalidade epistêmica e evidencialidade: um estudo de caso no português do Brasil. Campinas (sp), Instituto de Estudos da Linguagem da unicamp, 2003. Tese de Doutorado em Linguística. LYONS, J. Linguagem e Linguística: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1981. MARTINS, A. Evidencialidade no discurso dos media. In: Estudos Linguísticos/Linguistic Studies. Lisboa: Edições Colibri/cluni, 2010. MOLLICA, C. A influência da fala na alfabetização. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1998. OLIVEIRA, M. R. Preconceito linguístico. In: PERES, Deila Conceição; et al. (Org.) 1º seles – Seminário sobre Leitura e Escrita. Avaliação da redação no vestibular da uff. Niterói: EdUFF, 2006. SCHERRE, M. M. P. Doa-se lindos filhotes de poodle: variação linguística, mídia e preconceito. São Paulo: Parábola, 2005. TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática. São Paulo: Cortez, 2003.
IMAGENS DO CAPÍTULO p. 36 Patativa de Assaré Autor desconhecido · O Nordeste.com p. 37 Mensagem Tainara Oliveira · Estácio p. 39 Favela Eduardo Trindade · Estácio p. 39 Manuel Bandeira Autor desconhecido · abl p. 44 Disco Forró do Gonzagão Divulgação · Sony/BMG
p. 45 O escritor Eça de Queirós em 1882 Photographia Contemporanea Domínio Público p. 45 Machado de Assis Autor desconhecido · abl
p. 50 Frorianópolis Paulo Vitor Bastos · Estácio p. 50 Lima Barreto Autor desconhecido · Wikimedia . cc
p. 47 Oswald de Andrade Auto desconhecido · Domínio Público p. 48 Guimarães Rosa Revista Pájaro de Fuego – nº18 – agosto 1979
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Linguagem, unidade e diversidade
ana beatriz arena e mariangela rios
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Linguagem, unidade e diversidade
PERSONALIDADE Lula: Luiz Inácio Lula da Silva (Caetés, pe, 1945) foi o 35º Presidente brasileiro (2003-2011). Além da carreira política, foi metalúrgico, líder sindical, co-fundador do Partido dos Trabalhadores (pt) e, atualmente, presidente de honra do partido. É considerado por muitos o político mais popular da história brasileira. Ainda, foi condecorado com vários títulos de doutor honoris causa, dentre eles o da Fundação Sciences-Po (França, 2011). Foi o primeiro latino-americano a receber tal título.
No capítulo anterior, ao final, abordamos o assunto preconceito linguístico. Iniciamos este capítulo refletindo sobre um dos questionamentos linguísticos mais famosos de que se tem notícia no Brasil: o ex-Presidente Lula sabe ou não “falar” português, estaria ou não em condições de exercer a Presidência da República? Desde que se destacou no cenário político brasileiro como candidato à Presidência da República, em 1989, Luiz Inácio Lula da Silva, ou simplesmente Lula, tem sido submetido a uma série de críticas por causa do seu português falado. Provavelmente, isso se deve ao fato de que, ao longo de seus dois mandatos, Lula sempre gostou de falar de improviso, “cometendo”, por vezes, deslizes gramaticais, especialmente de concordância, e algumas outras "impropriedades", se considerarmos a língua padrão. Seria isso o bastante para acusá-lo de não saber português, ou estaria o Naturalmente, em ex-Presidente sendo alvo de pre- face da importância conceito linguístico, conforme já de seu cargo, ele abordamos no capítulo anterior? As críticas vinham de todos os teve seus discursos lados: dos gramáticos puristas, constantemente dos professores, especialmente monitorados. os de Língua Portuguesa, de jornalistas e também de cidadãos muitas vezes tão ou menos escolarizados do que Lula. Era possível encontrarmos na mídia ironias do tipo: “Lula na coletiva só não convenceu no português”, ou ainda “O nosso Exmo. Presidente, com todo respeito, NÃO sabe falar português”. Os defensores do “português bom é português correto” não se orgulhavam de ter um Presidente, segundo eles, que não sabia falar a própria língua.
RESUMO Afinal, que português é esse que o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva fala? Para refletirmos sobre tal assunto e chegarmos a uma resposta consistente e objetiva, neste capítulo, vamos tratar dessas questões, abordando a variedade mais estigmatizada, popular: a língua vernacular. Abordaremos, também, as diferenças e as correspondências entre fala e escrita, considerando os recursos linguísticos específicos a cada uma dessas modalidades.
54 • capítulo 3
Língua vernacular
CURIOSIDADE
Se você consultar o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, encontrará a seguinte abonação para vernáculo: “a língua própria de um país ou de uma região; língua nacional, idioma vernáculo”. Nos estudos linguísticos, vernáculo é todo uso linguístico considerado popular, incluindo gírias, regionalismos, e também aquilo que a tradição gramatical considera “erro”, como a falta de concordância, por exemplo, ou ainda o emprego de palavras socialmente desprestigiadas. Variações no léxico (vocabulário), na prosódia (forma de pronunciar) e na sintaxe (concordância, emprego dos pronomes oblíquos átonos, por exemplo), são comumente alvos de análise não só por parte de estudiosos da língua como também pela sociedade em geral.
Vernáculo: A palavra vernáculo deriva da forma latina verna, cujo significado é “escravo nascido na casa do senhor, em cativeiro; nativo”. Veja só que interessante! Podemos até fazer uma analogia com a relação existente entre o português brasileiro – que nasceu “escravo” – e o português lusitano – idioma da casa do “senhor”, o colonizador.
EXEMPLO EXEMPLOS DE VARIAÇÕES DESPRESTIGIADAS (não padrão) Variação no léxico
“arribar”, em lugar de “melhorar de saúde”
Variação na prosódia
“tauba”, em lugar de “tábua”
Variação na sintaxe
“nós vai”, em lugar de “nós vamos”
Normalmente, essas variações são mais frequentes entre as camadas mais pobres, menos escolarizadas, não urbanas, e os falantes costumam sofrer forte preconceito linguístico.
As próprias gírias, tão expressivas e recheadas de criatividade, também não são merecedoras dos aplausos de muitos brasileiros. Há quem defenda, inclusive, que elas sejam banidas. Porém, observe que interessante: muitos jornais, propagadores dos usos próprios da língua padrão, na modalidade escrita, apresentam em suas páginas, em letras garrafais, manchetes como as seguintes:
EXEMPLO Filho de Constância manda o funcionário do clube entregar um bilhete para a morena, e rola um clima entre os dois
Marquezine curte show e reclama de ‘excesso’ de namorados: ‘Encalhada?’
Perdeu, Albertinho! Gilda se encanta pelo capoeira Chico
Fani se empolga e dá selinho em Aslan na piscina
Exemplos retirados da página do jornal online Globo.com. Acesso em 19 de janeiro de 2013.
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Os exemplos listados reproduzem usos bastante atuais, em que gírias e coloquialismos, como “perdeu”, “rola”, “curte” e “dá selinho”, ajudam a transmitir a mensagem com bastante propriedade, sem incorrer em inadequação de uso. A proposta do jornal – de enfocar assunTrata-se de uma linguagem tos voltados à programação televisiva e esportiva – pode justificar o emprego des- adequada ao perfil do jornal sas variantes linguísticas. e à situação comunicativa Como se pode ver, até mesmo a imde menor formalidade. prensa escrita usa termos tratados, normalmente, com discriminação. Então, por que não são comuns críticas direcionadas aos jornalistas que escrevem tais matérias? Por que somente a fala dos jovens, dos lavradores ou das domésticas, por exemplo, são consideradas “erradas”? Linguistas têm outra compreensão desses fenômenos. Vejamos o que dois deles afirmam em relação ao uso popular e ao ensino de língua:
Sobre a norma popular
Sobre o ensino de língua materna
Para Dante Lucchesi (2006, p. 88), a norma
Para Roberto Camacho (2013): “A tradição da
popular “emerge do uso da grande maioria da
instituição escolar consiste em não apenas ignorar
população do país, desprovida de educação formal
a legitimidade da variação linguística, mas também
e dos demais direitos da cidadania, com os
submeter as variedades linguísticas ao critério de
previsíveis reflexos na língua da pluralidade étnica
correção, como uma peneira fina. O que passa é
que está na base da sociedade brasileira”.
um conjunto de expressões vinculadas ao registro formal da modalidade escrita, e o que sobra é estigmatizado como realizações incorretas e deficientes em confronto com a matriz de valores eleita como a variedade-padrão”.
Voltando ao preconceito linguístico, é importante lembrar que ele veicula uma ideia desfocada – esta, sim, um erro com tudo de negativo que a palavra pode significar – sobre as variedades linguísticas do Brasil. De Norte a Sul, de Leste a Oeste, em todas as regiões, temos falares diversos. São falares regulares, Concluindo esta primeira seção, podemos considerar respondidas aque- sistemáticos, acatados las perguntas iniciais, suscitadas pela por toda a comunidade menção ao português do ex-Presidente linguística a que o Luiz Inácio Lula da Silva. É muito prováusuário pertença. vel que as críticas feitas à sua expressão verbal estejam diretamente relacionadas à origem humilde de Lula, já que o próprio ex-Presidente nunca escondeu sua difícil história de vida, nem, em consequência, sua baixa escolaridade. É importante deixar claro, também, que normalmente temos contato, por meio da televisão, com a fala de Lula, e a modalidade falada de qualquer usuário de qualquer língua é menos formal do que a escrita. É sobre este assunto que vamos tratar a partir de agora.
56 • capítulo 3
Propriedades do texto falado Na análise das marcas constitutivas do texto falado, vamos partir da transcrição do relato de opinião de uma aluna universitária do Rio de Janeiro, a Valéria. Ela deu seu depoimento ao Grupo de Estudos Discurso & Gramática, no final da década de 1990, tratando da situação política do Brasil, em uma escolha temática a partir das sugestões apresentadas pelo entrevistador. Como se trata de texto falado, o fragmento é transcrito de acordo com critérios específicos e consensuais na área dos estudos linguísticos, assim definidos:
SÍMBOLO
SIGNIFICADO
E: e::... agora eu queria que você me dissesse a sua opinião... ou sobre a situa-
...
qualquer pausa
/
ruptura, truncamento
eh
hesitação
E: não... de uma... uma das três...
?
interrogação
I: eh... só se/ política... eu estou achan-
::
alongamento
maior... né? a gente está... está vendo
trecho inaudível
o que está acontecendo com o país...
(
ção... política... ou econômica... ou da educação... no Brasil... I: das três?
do que agora está tendo uma abertura
)
(palavra)
suposição de audição
[palavra]
sobreposição de fala
((risos))
comentários do transcritor
E
entrevistador
I
informante (a entrevistada)
está/ tudo o que está acontecendo a gente está vendo... não é o que era antigamente... onde... a gente não... sabia de nada... ficava tudo escondido... achava que/ não tinha informação... né? a verdade é isso... a imprensa tem/ eu estou achando que (está num) papel fundamental... na divulgação das coisas... né?
que... pô... fulano roubou... a gente está sabendo... eh:: não sei quem foi preso... a gente está sabendo... está tudo às claras... eu acho que o pessoal também está... com medo disso... aí eu acho que estão andando mais na linha... não é que antigamente não roubava... lógico que roubava... mas hoje em dia a gente está vendo que... quem rouba mesmo... e::... quando rouba a gente sabe... e antigamente não acontecia isso... não podia se falar::... não podia/ tudo... tudo proibi::do... não podia ter uma opinião de na::da... ficava todo mundo mais alienado... hoje em dia eu acho que está melhorando... um dia a gente chega lá... eu tenho esperança ((risos)) E: você... é a primeira otimista [que eu entrevisto] ((risos)) I: [eu tenho... ] eu tenho esperança... sei lá... pode ser uma ilusão mas::... uma utopia mas::... que se eu não acreditar... fica um pouco sem sentido... né? vamos tentar lutar para melhorar isso aí... E: então tá... obrigada Valéria... I: só isso? Disponível em: http://www.discursoegramatica.letras.ufrj.br/
capítulo 3
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Propriedades do texto falado: a fragmentação Um rápido olhar na transcrição do relato falado de Valéria já nos aponta traços constitutivos próprios dessa modalidade. Uma de tais propriedades diz respeito à relativa fragmentação do texto falado. Dizemos “relativa” por comparação ao formato dos textos escritos em geral, com os quais nossos olhos já estão muito acostumados, pelos anos de escolarização envolvendo escrita e leitura que acumulamos até hoje. Observamos na transcrição, por exemplo, uma profusão de frases curtas margeadas por pausa (no caso, cada sinal de reticência representa uma parada ou quebra no fluxo da informação). São sequências como por exemplo: tudo o que está acontecendo a gente está vendo... não é o que era antigamente... onde... a gente não... sabia de nada... ficava tudo escondido..., em que registramos seis dessas frases curtas.
COMENTÁRIO Esse é um traço muito típico de textos falados – via de regra, emitimos pequenos “jatos” de informação, e o conjunto desses fragmentos, proferidos em sequência, é que acaba por compor a totalidade da informação veiculada, tal como no fragmento aqui ilustrado.
Além de frases curtas, outra marca contextual da fala que concorre para a propriedade de fragmentação é a presença explícita da hesitação. Como se trata de modalidade falada, o tempo de planejamento de que dispomos para a elaboração de textos, comparado ao tempo para a produção da modalidade escrita, é bem menor. Alguns especialistas chegam a considerar que, na fala, o planejamento é quase online, no sentido de que temos pouquíssimo tempo, por vezes menos de um segundo, para pensarmos, selecionarmos o conteúdo e nos expressarmos oralmente. Vamos voltar ao texto de Valéria: Ao ser apresentada pelo entrevistador às opções de tema para dar sua opinião (agora eu queria que você me dissesse a sua opinião... ou sobre a situação... política... ou econômica... ou da educação... no Brasil...), a universitária inicia seu relato com alguma hesitação – eh... só se/ política..., parecendo não ter muita certeza, nesse momento inicial, se de fato queria escolher a política para opinar. Valéria está diante do entrevistador e é chamada a elaborar seu depoimento: a hesitação é considerada, em ambientes de fala, como traço constitutivo dessa prática discursiva. Não se trata de erro ou defeito; é simplesmente a manifestação da relativa insegurança e do pouco tempo de planejamento de que todos nós dispomos ao nos expressarmos oralmente.
Concorrem também para a hesitação alguns alongamentos silábicos verificados no texto (marcados na transcrição por quatro pontos), como em não podia se falar:: e tudo proibi::do... Tais alongamentos são considerados marcas de hesitação, na medida em que têm certo efeito suspensivo no fluxo comunicacional, mantendo o que se declara por mais tempo do que o devido.
RESUMO A hesitação pode ser usada como estratégia, entre outras motivações, para que o locutor ganhe algum tempo, enquanto (re)formula seu texto. No caso de Valéria, o tema da falta de liberdade de expressão e da censura pode a ter levado a produzir os alongamentos aqui ilustrados.
58 • capítulo 3
Uma terceira característica da fala que concorre para a impressão geral de fragmentação é o que chamamos de ruptura ou truncamento (marcado na transcrição pela barra inclinada /). Trata-se de uma estratégia que, tal como a hesitação, tem muito a ver com o pouco tempo de planejamento do texto falado. É comum, nesse sentido, mudarmos nossa rota de expressão, trocarmos de as- Ao falar, estamos de certa sunto em meio ao que forma mais “autorizados” já havíamos iniciado. a fazermos correções de As correções de rumo, que são explicitadas rumo dependem de no próprio texto. muitos fatores, desde a mudança de nosso planejamento e das escolhas pessoais, até alterações das condições de recepção do interlocutor, entre muitas outras.
CURIOSIDADE Marcas de fragmentação: Pense nas situações de fala a que você é exposto no dia a dia, no certo grau de tensão, de insegurança e de hesitação que esses contextos motivam. Veja como é “natural” a fragmentação de nossas produções faladas e como tal propriedade é inerente a esse tipo de prática discursiva. Observe o número de frases curtas, hesitações, alongamentos e rupturas que caracterizam nossas produções faladas.
No texto de Valéria, por exemplo, sequências como ficava tudo escondido... achava que/ não tinha informação... né? ou ainda e antigamente não acontecia isso... não podia se falar::... não podia/ tudo... tudo proibi::do... ilustram rupturas. Na primeira sequência, a aluna interrompe a declaração achava que para iniciar outra (não tinha informação); na segunda sequência, Valéria suspende repentinamente a frase não podia para substituí-la por tudo... tudo proibi::do.
Examinadas as marcas de fragmentação do texto de Valéria, que tal tomar agora seus textos falados como ponto de referência e de reflexão?
Propriedades do texto falado: a situacionalidade Uma segunda propriedade geral dos textos falados é sua situacionalidade. Enquanto as produções escritas podem ser lidas, teoricamente, em qualquer tempo e lugar, permitindo inclusive releituras várias, textos falados são altamente contextualizados e dependentes da situação em que foram elaborados. Daí serem considerados mais apoiados no contexto comunicativo em que são elaborados. O trecho inicial do depoimento de Valéria já exemplifica essa vinculação com a situação contextual: eu estou achando que agora está tendo uma abertura maior... né? a gente está... está vendo o que está acontecendo com o país... está/ tudo o que está acontecendo a gente está vendo...
COMENTÁRIO A referência temporal agora diz respeito à época em que a aluna elaborou o texto – o final dos anos 1990, momento em que o Brasil entrava mais efetivamente no regime democrático (relativo ao termo abertura maior), inclusive com o plebiscito sobre o regime de governo (parlamentarista, presidencialista
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CONCEITO
ou monárquico). A menção ao que está acontecendo com o país relaciona-se novamente ao momento de transição rumo à redemocratização no Brasil, que
Marcadores discursivos:
é retomado a seguir com a inversão dos termos (tudo o que está acontecendo
Marcadores discursivos são itens, em geral tomados de empréstimo de outras classes gramaticais do português, que são articulados com o intuito de provocar a adesão e a anuência do interlocutor ao que está sendo dito. Estamos nos referindo a termos como né?, pô e sei lá, ilustrados no texto de Valéria.
a gente está vendo...). Essas referências ao momento presente contrastam
com a declaração não é o que era antigamente, em alusão ao período anterior aos anos 1990 no Brasil.
Outra estratégia muito ancorada na situação contextual é a utilização de pronomes. No caso de textos falados, esses pronomes, muitas vezes, não são aqueles listados nos compêndios gramaticais do português; trata-se de usos meio “marginais”, que surgem e se consagram na fala, conferindo a este tipo de produção um traço de maior informalidade se comparado aos textos escritos. Valéria utiliza muito a gente (tudo o que está acontecendo a gente está vendo; a gente está sabendo), para se referir não só a ela como ao povo brasileiro em geral. A aluna usa ainda termos genéricos, que têm seu sentido preenchido no texto (fulano roubou; não sei quem foi preso; o pessoal também está... com medo disso...; ficava todo mundo mais alienado).
COMENTÁRIO Esses termos, aparentemente imprecisos e vagos, são usados com toda a propriedade em produções faladas, uma vez que a situação comunicativa trata de preencher seu sentido.
Ainda falando em situacionalidade, outra marca dos textos falados é a utilização dos chamados marcadores discursivos. São termos que não cumprem uma função sintática específica, uma vez que não participam da organização interna da frase. Ao contrário, formam uma classe cujo Os marcadores, bem papel é concorrer para a contextua- como os demais lização externa do texto, para a busrecursos atinentes ca de interlocução e concordância à situacionalidade, dos demais participantes. Como outros recursos linguísti- conferem tom mais cos dessas produções, os marcado- informal aos textos res discursivos não são referidos pefalados. los compêndios gramaticais, já que tais fontes se voltam de modo precípuo para a descrição das produções escritas, tendo no chamado “período composto” seu limite de análise.
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Propriedades do texto falado: a reiteração A terceira propriedade que caracteriza a fala é a reiteração. Se, em textos escritos, o que declaramos pode ser lido e relido, o que evita repetições ou paráfrases, na fala; pelo contrário, é mesmo pertinente e necessária a reiteração, o reforço do que dizemos.
RESUMO Tal reforço tem a ver não só com a necessidade de clareza, ênfase e convenci-
CONCEITO Ressonância: Segundo esse postulado, quando falamos utilizamos recursos linguísticos que foram usados pelos interlocutores; assim, nossa fala acaba por “ressoar”, repetindo e reiterando o que foi dito imediatamente por outro.
mento como também com a preocupação em relação ao interlocutor, com sua capacidade de memorização de informações em curto prazo.
Seja por um motivo ou pelo outro, o fato é que a repetição nos textos falados é considerada marca constitutiva dos mesmos. Tal como outras propriedades mencionadas nesta seção, não se trata de problema ou falha de organização das produções faladas, mas sim de traços fundamentais que caracterizam, em menor ou maior grau, essa modalidade em suas distintas manifestações. Voltando ao texto de Valéria, podemos observar a constância com que as declarações são reiteradas, principalmente aquelas cujo sentido é fundamental para a expressão da sua opinião acerca da situação política do Brasil. Assim, a afirmativa inicial de que agora está tendo uma abertura maior é logo retomada na paráfrase (a gente) está vendo o que está acontecendo, na sequência reformulada em tudo o que está acontecendo a gente está vendo. Ao longo do texto, Valéria vai retomando a tese inicial, o que vem reforçar sua opinião e garantindo, por tabela, o convencimento de seu interlocutor.
De outra parte, e até para destacar sua opinião, ao longo do texto a aluna contrasta a situação política atual com o momento anterior. Paralelamente às declarações da boa fase do Brasil, em termos políticos, verifica-se uma série de outras referências contrastivas em relação à época atual, voltadas para comentários avaliativos de períodos passados. A reiteração concorre também para instaurar o contraste referido. Desse modo, a informação não é o que era antigamente encontra-se reiterada em a gente não... sabia de nada,ficava tudo escondido, não tinha informação e não podia se falar, entre outras tantas.
Um recurso de caráter reiterativo e também fortemente apoiado na situação contextual é o que se denomina ressonância, conforme definido em Du Bois (2010). No texto de Valéria, essa estratégia pode ser verificada em alguns momentos, quando a aluna interage com o entrevistador.
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Inicialmente, sua pergunta das três? configura-se como retomada dos três eixos sobre os quais poderia falar e que foram propostos pelo entrevistador: agora eu queria que você me dissesse a sua opinião... ou sobre a situação... política... ou econômica... ou da educação... no Brasil... A resposta do entrevistador, por sua vez, ressoa e retoma também a pergunta da Valéria: não... de uma... das três... Na sequência final do relato, novamente o entrevistador intervém como a declaração você... é a primeira otimista [que eu entrevisto]; logo após, inclusive sobrepondo-se à fala do entrevistador (como marcado pelos colchetes), Valéria reitera essa referência com [eu tenho... ] eu tenho esperança, em uma declaração que posteriormente ainda é retomada em que se eu não acreditar... fica um pouco sem sentido e, por fim, em vamos tentar lutar para melhorar isso aí.
Ficou claro, até agora, como no texto falado as informações são retomadas, seja de forma literal, seja como paráfrase; observa-se também como nos apropriamos de perguntas e declarações de nossos interlocutores a fim de elaborarmos criativamente nossas produções faladas.
RESUMO Somos menos originais do que podemos supor; nossa fala tem mais expressão do que propriamente conteúdo novo... Enfim, falar é retomar, reelaborar e repetir, sejam as próprias declarações, sejam as de outros.
Propriedades do texto escrito Tratados alguns dos traços mais característicos da fala, vamos agora nos voltar para a produção escrita. Para tanto, nos debruçamos sobre o relato de Valéria, redigido pela própria. Destacamos que o texto é apresentado aqui tal como escrito por ela, sem qualquer correção ortográfica ou outros ajustes. A respeito da situação política do país, acho que as pessoas estão se conscientizando deque cada um, é, de algum modo, responsável pela “vida” do País. Os meios de comunicação perceberam a arma que tem nas mãos e com a dita democracia ficou mais fácil deles desempenharem a função de informantes, que informam o que as pessoas estão interessadas em ser informadas e não aquela “incheção de linguiça” que não nego ainda existi, mas que a cada dia que passa vem sendo mais criticada, acho que as pessoas estão mais acordadas, principalmente os jovens, que foram às ruas e tiveram a sensação de tirar um Presidente do governo. Hoje, a sujeira está mais às claras, todos ficam sabendo. Antes quando tudo era mais censurado, as coisas aconteciam, mas ninguém ficava sabendo. Tenho esperança de que um dia as coisas entrem nos eixos, que esta tão falada moralização, definitivamente impere e tenho certeza de que se todos fizessem sua parte seria bem mais fácil, faço a minha, mas sei que posso fazer mais. Acho que é por aí. Disponível em: http://www.discursoegramatica.letras.ufrj.br/
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A primeira leitura do texto escrito já indica que estamos diante de outra prática discursiva. Comparadas as três propriedades básicas da fala (fragmentação, situacionalidade e reiteração), tratadas na subseção anterior, temos aqui marcas distintivas. Levando-se em conta que se trata da mesma pessoa, Valéria, discorrendo sobre o mesmo tema, no mesmo tipo de texto, de caráter dissertativo, as distinções aqui destacadas são entendidas como efetivamente ligadas às condições de produção de modalidade distinta, no caso a escrita. Uma dessas implicações reside no formato mais compactado da escrita, em comparação à fragmentação da fala. Na versão escrita, Valéria utiliza frases mais longas e encadeadas. A disposição do texto, organizado em torno de períodos compostos por coordenação e subordinação, distribuídos em três parágrafos, concorre para que se instaure essa marca de maior condensação da escrita. Já no primeiro período, destaca-se tal característica: A respeito da situação política do país, acho que as pessoas estão se conscientizando de que cada um é, de algum modo, responsável pela “vida” do país. Após anunciar o tema sobre o qual discorre (a respeito da situação política do país), a aluna formula sua opinião valendo-se do encadeamento de três estruturas oracionais, marcadas pelos usos verbais eu acho que, se conscientizando e é responsável.
CURIOSIDADE
Condições de produção: Essa constatação evidencia que todos nós, ao falar e escrever, portamo-nos linguisticamente de modo diferenciado, dadas as características inerentes a cada tipo de produção. Nesse caso, não se trata da nossa escolha ou vontade, mas simplesmente de outro tipo de contextualização que nos impõe comportamento diverso, o que tem fortes implicações do ponto de vista linguístico, entre outros.
Essa estratégia, que confere mais complexidade de forma e sentido à sua expressão, é retomada ao longo de todo o texto, concorrendo para que haja maior vinculação tanto em termos estruturais (no nível formal) quanto em termos semânticos (no nível conceitual).
RESUMO Se, no texto falado, a unidade é obtida por intermédio da continuidade de frases curtas, hesitações e rupturas, no texto escrito o caráter unitário se consegue por meio de outras estratégias, como a maior integração de frases, organizadas em períodos maiores e distribuídos em parágrafos.
Como a produção escrita é aprendida, mediante recursos que devem ser bem treinados, uma das tarefas da escola é justamente capacitar as pessoas a utilizarem com competência as estratégias de compactação escrita, na elaboração de períodos e parágrafos eficientes e capazes de satisfazer as exigências do texto. Portanto, são dois tipos de continuidade distintos.
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CURIOSIDADE Reiteração: Esse menor recurso aos elementos reiterativos tem a ver com as condições da escrita, em que tanto escritores como leitores podem, a qualquer momento, retomar o texto, ler novamente o que está escrito.
CONTINUIDADE NA FALA
CONTINUIDADE NA ESCRITA
Articula-se pela justaposição de frases curtas, entremeadas por hesitações e rupturas.
Maior integração de sentido e forma, organizada em torno de frases e períodos mais longos e parágrafos.
Em termos de situacionalidade, a segunda propriedade abordada na subseção anterior, também as condições de produção apresentam distinções. Enquanto, no texto falado, Valéria confere com o entrevistador o tema sobre o qual vai discorrer, no texto escrito, ela já parte dessa definição anterior (A respeito da situação política do país). Tal característica aponta o maior tempo de planejamento da escrita, a preparação
RESUMO que se dá previamente e que evita, na elaboração das produções escritas, que essas marcas sejam expressas. Se ainda temos referências ao momento em que se dá a produção escrita, como o uso de hoje e antes, por exemplo, por outro lado, estas referências são mais esporádicas do que no texto falado.
Em termos de articulação pronominal, os pronomes usados no texto escrito são mais convencionais, se comparados aos do texto falado. Na comparação entre as duas produções, temos:
USO DE PRONOMES NA FALA
USO DE PRONOMES NA ESCRITA
“a gente” “fulano” “o pessoal” “Não sei quem”
“as pessoas” “todos” “as coisas”
RESUMO Embora não sejam muito formais, as referências pronominais da escrita podem ser consideradas mais convencionais e próximas do que descreve e prescreve a tradição gramatical do português.
Com relação ao uso de elementos de conexão, a situação é outra. Se, na fala, Valéria marca seu texto com elementos como né?, pô e sei lá, agora, na modalidade escrita, a aluna praticamente não utiliza esse tipo de estratégia coesiva. O vínculo entre sentido e forma é atingido pela justaposição de períodos, sem recurso a marcadores ou operadores. No que se refere à propriedade de reiteração, o texto escrito, embora não se afaste do tema, recorre menos a retomadas e paráfrases do que seu correspondente falado. A maior compactação de sentido/forma da escrita concorre para que haja menos recorrências e repetições.
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CONCEITO
Sintetizando o que vimos até agora: podemos dizer que fala e escrita apresentam distinções em termos de:
Centralidade temática:
PRINCIPAIS DISTINÇÕES ENTRE FALA E ESCRITA Distribuição das informações
- Fala é mais fragmentada; - Escrita é mais compactada.
Contextualização
- Fala é mais apoiada nos elementos da situação comunicativa (contexto imediato); - Escrita é baseada na utilização de código específico (ortografia, acentuação, pontuação, paragrafação).
Recursos de reiteração
- Fala é mais repetitiva, com retomadas literais e uso de paráfrases; - Escrita usa menos o recurso de reiteração.
Significa dizer que falamos e escrevemos “sobre” um assunto, um tema geral, ainda que, como no caso da fala, possamos nos desviar da proposta inicial, com hesitações e rupturas em relação ao que começamos a declarar.
MULTIMÍDIA Para fecharmos esta subseção, vamos assistir ao vídeo a seguir, em que os professores e linguistas Angela Dionísio e Luiz Antônio Marcuschi tratam das modalidades falada e escrita como “multimodais”. Que característica é essa? Do que falam esses especialistas? Vamos lá! Vídeo produzido pelo Centro de Estudos em Educação e Linguagem (ceel) da Universidade Federal de Pernambuco (ufpe). Publicado no YouTube pelo canal institucional do ceel em 06/04/2011.
Observadas as propriedades gerais das modalidades falada e escrita, é hora de nos atermos ao que ambas as modalidades têm em comum, aos traços que as caracterizam como faces da mesma moeda.
Propriedades comuns da fala e da escrita Se, a princípio, fala e escrita têm traços próprios, relativos às condições específicas a partir das quais cada modalidade é produzida, há, por outro lado, propriedades comuns a ambas, que as fazem ser vistas como manifestações da mesma língua. Nesta seção, vamos nos dedicar a três dessas marcas constitutivas que textos falados e escritos manifestam. Para ilustrarmos os comentários, vamos nos valer novamente dos textos falado e escrito de Valéria, apresentados nas subseções anteriores. Em termos de sentido, a primeira das propriedades gerais partilhadas por produções faladas e escritas é a centralidade temática. Nesse aspecto, qualquer texto produzido, independentemente da modalidade,
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CONCEITO Organização sintática: Em português, a ordem/organização mais comum e regular é aquela sintaticamente referida como svo (sujeito + verbo + objeto), chamada “ordem padrão”. É essa ordem que a comunidade linguística mais facilmente produz e recebe as manifestações linguísticas.
deve responder a perguntas como: de que trata esse texto? Qual o tema desenvolvido? O que aborda? Se essas respostas não puderem ser dadas, estamos diante de produções com falha ou deficiência, em termos de articulação de sentido. Assim posto, os relatos de Valéria são entendidos como competentes produções, na medida em que manifestam, efetivamente, a opinião da aluna acerca da situação política do Brasil. Ao final de cada relato, é possível ao interlocutor saber a opinião referida.
RESUMO
Dizemos, assim, que se trata de produções com centralidade temática, com foco sobre aquilo que efetivamente se quer desenvolver e se desenvolve.
No plano estrutural, uma segunda propriedade geral a marcar textos falados e escritos é a organização sintática. Mesmo com a maior fragmentação da fala e a maior compactação da escrita, sempre há, para as produções verbais do português, a necessidade de ordenação de constituintes segundo critérios da gramática da nossa língua. Assim, tanto nas muitas frases curtas do texto falado de Valéria (como em fulano roubou... a gente está sabendo... eh:: não sei quem foi preso...), quanto nos períodos maiores e mais complexos de seu texto escrito (como em as coisas entrem nos eixos... se todos fizessem sua parte seria bem mais fácil... faço a minha...), a ordenação svo está presente.
Outro ponto comum a produções faladas e escritas é a conexão textual. Ainda que na fala haja hesitações, rupturas, frases mais curtas e reiterações, é necessária a presença de termos responsáveis pela garantia da vinculação de sentido e forma. Vejamos:
ELEMENTOS DE CONEXÃO ESTRUTURAL NO TEXTO ANALISADO NA FALA
Os elementos de conexão são mais informais, considerados “marginais” na tradição gramatical do português. No relato de Valéria, os elementos de conexão destacados são os marcadores né?, pô e sei lá.
NA ESCRITA
A conexão textual é articulada por intermédio de elementos mais formais, como as conjunções. No relato de Valéria, os elementos de conexão se restringem ao elemento que, iniciando uma série de orações subordinadas (acho que, a arma que tem, que informam, entre outras) e a outros usos conectivos, como mas ou de que.
De um modo ou de outro, o que queremos aqui ressaltar é que cada tipo de produção, consideradas suas condições contextuais específicas, faz uso de recursos linguísticos cuja função é garantir unidade de sentido e de forma ao que é expresso.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALAMBERT, Francisco. A Semana de 22: a aventura modernista no Brasil. Rio de Janeiro: Scipione, 1992. CAMACHO, Roberto G. Norma culta e variedades linguísticas. Disponível em: http://acervodigital.unesp.br/ bitstream/123456789/40354/1/01d17t03.pdf. Acessado em 25 jan. 2013. CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova Gramática do português contemporâneo. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. DU BOIS, John. Discourse and Grammar. In: TOMASELLO, M (ed). The New Psychologie of Language: cognitive and functional approaches to language structure. v.2. London: Lawrence Erlbaum, 2003, p. 47-87. LUCCHESI, Dante. Parâmetros sociolinguísticos do português brasileiro, Revista da ABRALIN, v.V, nº 1 e 2, 2006, p. 83-112. ROCHA LIMA, Carlos Henrique. Gramática normativa da língua portuguesa. 28 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987. TEYSSIER, Paul (Tradução Celso Cunha). História da língua portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
IMAGENS DO CAPÍTULO p. 54 Presidente Lula Ricardo Stuckert · Planalto p. 63 Agendando compromisso Autor desconhecido · Office
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Gênero, tipologia e sentido
bethania mariani e lucília de souza romão
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Gênero, tipologia e sentido
EXEMPLO Sentido:
O presente capítulo tem como tema a palavra em seu uso cotidiano, ou seja, os modos como ela é mobilizada em situações diversas: seja na fala diária, nos relatos jornalísticos, na literatura, nos escritos dispostos em muros das cidades, na comunicação pessoal na rede digital etc. O fato é que toda palavra produz sentido em um contexto dado e específico, e isso faz toda diferença para compreendermos os significados, os sentidos em jogo.
A palavra “fogo” pode, em primeira vista, indicar ao menos dois sentidos: incêndio ou disparo de arma. Esse exemplo aponta a necessidade de escuta dos dados contextuais em que a palavra foi proferida, a situação e/ou a conjuntura em que foi pronunciada; mais ainda, a posição social de quem a proferiu.
O senso comum nos ensina que o sentido da palavra é sempre e apenas um,
como se a língua estivesse em estado de dicionário, congelada e sem movimento.
AUTOR Manoel de Barros: Manoel Wenceslau Leite de Barros, nascido em Cuiabá (1916), é um poeta brasileiro do século xx. Pertence cronologicamente à Geração de 45, mas, formalmente, ao Modernismo brasileiro.
COMENTÁRIO
Para compreender que os sentidos são múltiplos, precisamos perceber os movimentos dos sentidos. Comecemos pelo que Manoel de Barros nos proporciona no livro Memórias inventadas (2008). Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam ali sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto, trancado, a escovar palavras. (Barros, 2008, p. 21)
Pois bem, partindo dos conceitos iniciais e da leitura de Manoel de Barros como inspiração, podemos traçar o objetivo de compreender “alguns clamores antigos”, “muitas oralidades remontadas” e “as significâncias” de certas palavras em dadas situações. Para isso, é preciso “escovar” a palavra, o que para nós significa interpretá-la em seu contexto de uso, buscando compreender como o texto e o discurso funcionam, como se inscrevem de modo singular a cada novo enunciado e como produzem sentido a partir da posição de onde fala o sujeito.
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Três textos servirão de começo para nossos estudos. O primeiro é um poema-música de Carlinhos Brown, Marisa Monte e Arnaldo Antunes, denominada Contato imediato (disco Qualquer, de Arnaldo Antunes, 2007): Peço por favor / Se alguém de longe me escutar / Que venha aqui pra me buscar / Me leve para passear / No seu disco voador / Como um enorme carrossel / Atravessando o azul do céu / Até pousar no meu quintal / Se o pensamento duvidar/ Todos os meus poros vão dizer / Estou pronto para embarcar / Sem me preocupar e sem temer / Vem me levar / Para um lugar / Longe daqui / Livre para navegar / No espaço sideral (...)
O eu poético convoca nosso olhar para perceber a necessidade de encontrar um alguém perto para depois viajar “para além do céu”, um alguém de carne e osso com quem viveria a aventura de uma viagem amorosa, quase ao modo de uma odisseia interplanetária. Vamos analisar alguns fragmentos?
Contato imediato (Título)
Rememoramos as inúmeras narrativas de contatos com seres extraterrestres, contatos imediatos de primeiro e segundo graus, como os filmes que já trataram desse tema.
“Peço por favor / se alguém de longe me escutar / que venha aqui para me buscar” “Estou pronto para embarcar / sem me preocupar e sem temer”
O poema está endereçado a alguém com quem se pretende um contato, mas não qualquer um (“alguém de longe”, que nunca teve contato antes).
Diz estar preparado para mudar sua vida radicalmente, sem medo do novo, aberto para novas experiências.
COMENTÁRIO O poema-música aponta um modo de dizer ao outro, lançar um pedido, fazer um contato, não por um meio tecnológico, mas pela poesia; e o seu contexto nos diz do deslizamento de sentido que a poesia permite, qual seja, da viagem espacial para a viagem amorosa.
O texto a seguir, disposto no muro de uma capital brasileira, também é endereçado a um outro. Não há alongamento na trama do texto: ele é curto, pois será lido, no contexto da urbanidade, com a rapidez de um passar de olhos, da janela de um carro ou ônibus, no flash de um momento. O autor conversa com a Alice, que pode ser uma moradora de São Paulo e/ou a personagem do conto famoso de Lewis Carroll. Ou seja, mais de uma possibilidade de “Alice” estão em funcionamento na poética dessa inscrição.
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AUTOR Lewis Carroll: Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898) sempre foi mais conhecido por seu pseudônimo, Lewis Carroll. Estudou Matemática na Universidade de Oxford e lá se tornou professor. Em suas obras, há presença de enigmas, jogos matemáticos e desafios de lógica, ainda que implícitos. Sua obra mais famosa é Alice no país das maravilhas, publicada em 1865.
CURIOSIDADE
Seriam as maravilhas do fantástico, do sonho e dos delírios mais estranhos que a personagem vive na ficção maravilhosa, ou seriam as maravilhas de uma Alice que tem lá seu cotidiano cheio de graça? A abertura de sentidos, ou seja, a possibilidade de surgirem novos sentidos onde antes só existia um, está aqui fazendo funcionar dados de um contexto: o da cidade imensa (talvez sem tantas maravilhas de inventar) e o da obra literária.
O gênero discursivo Os dois exemplos que vimos colocam-nos diante de um conceito importante para compreender o funcionamento dos textos: o gênero discursivo. Refletindo sobre o termo, notamos que é muito amplo, sendo empregado em vários campos do saber. Vejamos alguns exemplos:
NO CINEMA
NA LITERATURA
NAS CIÊNCIAS SOCIAIS
Gênero discursivo: O genêro discursivo foi teorizado primeiramente na Grécia antiga, por Platão. Ele propôs uma classificação dual, entre gênero sério (epopeia e tragédia) e burlesco (comédia e sátira).
São criados modos de classificar filmes pelo gênero, como drama, suspense, ação.
AUTOR Mikhail Bakhtin: Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975) foi um filósofo e pensador russo, destacando-se por seus estudos nas áreas de crítica literária, filosofia da linguagem e antropologia, entre outras. Atribui-se a ele o pioneirismo nas pesquisas sobre polifonia e gêneros do discurso.
As ciências sociais marcam os estudos de gênero ligados ao campo da sexualidade, assinalando as singularidades do feminino e do masculino.
Neste capítulo, o objeto é o gênero discursivo, e ele tem longa história. Para começarmos a falar de gênero textual, vamos partir de um filósofo russo da linguagem, Mikhail Bakhtin (2003), que fundou alguns conceitos importantes, como:
Dialogismo
Processo de interação entre textos orais e escritos, posto que eles sempre se remetem e continuam em outros textos posteriores.
Polifonia
Termo emprestado da música que significa as várias vozes que percorrem os textos e os discursos.
Carnavalização
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Os gêneros textuais marcam diferentes estruturas, como conto, poesia, romance, entre tantos outros.
Manifestação da cultura popular e, a partir da leitura e análise da obra de François Rabelais, na Idade Média e no Renascimento, define-se tal termo como um processo de desestabilização, subversão e ruptura do mundo oficial e das convenções estabelecidas.
Bakhtin debruçou-se de modo mais alentado sobre o tema e definiu que gênero são formas “relativamente estáveis” de um enunciado, determinadas historicamente, com as quais nos comunicamos, falamos e escrevemos. Não há possibilidade de enunciar e/ou tomar a palavra sem mobilizar as formas infindáveis de gêneros com os quais lidamos desde que aprendemos a falar e escrever.
CURIOSIDADE Formas infindáveis de gêneros:
de atividade contém um repertório inteiro de gêneros discursivos que se diferen-
Você já teve um diário ou ao menos se lembra de um? A maioria já teve diversos desses livros em que se registram ideias, opiniões, sentimentos, utilizando uma linguagem mais informal, tendo o uso do vocativo presente (“querido diário”). Pois então, assim como em qualquer gênero discursivo, o diário possui características linguísticas específicas.
ciam e se ampliam na mesma proporção que cada esfera particular se desenvol-
REFLEXÃO “A riqueza e a diversidade dos gêneros discursivos são ilimitadas, porque as possibilidades de atividade humana são também inesgotáveis e porque cada esfera
ve e se torna cada vez mais complexa” (BAKHTIN, 1986, p. 60).
Assim, o autor define gênero como uma forma típica de enunciado, que sofre mudanças a depender do contexto em que está inserido e que tem uma plasticidade imensa, posto que está em movimento constante. Por isso, a cada situação comunica“O gênero sempre tiva, colocamos em movimento uma é e não é o mesmo, grande heterogeneidade de gêneros. Para o autor russo, o gênero re- sempre é novo e nasce e se renova em cada nova eta- velho ao mesmo pa do desenvolvimento da literatura tempo” Bakhtin. e em cada obra individual de um dado autor. Nisso consiste a sua vida. Para ordenar a complexidade do conceito que funda, ele divide gêneros em dois grupos:
PRIMÁRIOS Referem-se a situações comunicacionais cotidianas, espontâneas, informais que sugerem um contato mais imediato entre os sujeitos.
EXEMPLOS As conversas de elevador, a carta, o bilhete, chat etc.
SECUNDÁRIOS São normalmente mediados pela escrita, indiciam situações comunicacionais mais complexas, elaboradas.
EXEMPLOS Roteiro de uma peça de teatro, uma tese, uma palestra etc.
Temos, segundo o autor, duas esferas de produção de enunciados que se originam na oralidade e transbordam para além dela, que se combinam em inúmeras possibilidades de recriar o mundo e que ganham materialidade em gêneros primários e secundários. O autor propõe ainda que os gêneros secundários são elaborações dos primários, visto que é a partir das discursividades cotidianas
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que se originam muitos dos relatos, nar- No fundo, o que marca rativas e enunciados levados a termo pela a diferenciação entre os literatura, jornalismo etc. Essa teorização nos coloca diante de dois gêneros é o nível de um impasse: como definir o fio que separa complexidade em que os um gênero de outro? Como classificar, enunciados se apresentam. sem dúvidas, algum texto? De que modo teríamos condições de fixar as fronteiras entre gêneros se o próprio Bakhtin observou a porosidade entre eles? Vamos ver um exemplo:
EXEMPLO
Fonte: ROSA, João Guimarães. Ooó do Vovô. São Paulo: Edusp, 2003.
O texto nos coloca diante de uma indagação classificatória: seria o cartão-postal do vovô Guimarães Rosa enviado para sua netinha Vera um gênero primário, pois reproduz uma situação informal, cotidiana e docemente apresenta um tom infantil na demonstração de carinho?
COMENTÁRIO Esse ponto de brincar com a língua da netinha, de desenhar, o jeito de estar com ela a despeito da distância, de adaptar a escrita esbarrando na oralidade, como vimos, traça um modo de funcionamento mais próximo da informalidade, um registro espontâneo e sem preocupação com a complexidade – embora isso seja extremamente trabalhoso, diga-se de passagem.
No cartão há sonoridades, palavras, nomes de pessoas, referências familiares e lembranças apenas compartilhadas entre avô e netinha, que engendram um dado contexto familiar, uma situação e uma estratégia de dizer.
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AUTOR
Porém, as mesmas características estão em passagens de romances e contos de Rosa, como marcas de informalidade e do dizer espontâneo para caracterizar personagens, por exemplo.
RESUMO No entender de Bakhtin, no romance, tais marcas de espontaneidade ganham corpo de gênero secundário, posto que o estatuto de complexidade do discurso é maior e está mediado pela escrita. De certo modo, elas derivam de situações menos formais em que a língua foi posta à prova na cotidianidade e desdobrada em situações menos compromissadas com o rigor de uma formalização.
O importante nesse caso não é apenas identificar o gênero discursivo, mas o seu modo de funcionamento, as marcas que ele traz, inscreve e atualiza em um dado contexto comunicacional. Por conta disso, julgamos que, além do conceito de gênero visto anteriormente, podemos enriquecer nosso olhar com a reflexão de Eni Orlandi, especialmente em relação ao conceito tipologia discursiva.
Do gênero para o funcionamento do discurso Orlandi (1996), tomando como ponto de vista a análise do discurso, propõe observar o funcionamento dos discursos a partir dos lugares ocupados pelos sujeitos ao enunciar, ou seja, a partir do modo como o sujeito se posiciona diante do objeto de que fala, do outro a quem fala e de si mesmo como interlocutor possível a este outro. Além do lugar ocupado pelo sujeito, Orlandi também aponta as condições de produção como objeto de análise, bem como a dinâmica da interlocução que se dá no discurso.
ATENÇÃO Preocupada em discutir a interação entre sujeitos, a autora aposta que “todo falante, quando diz algo a alguém, estabelece uma configuração para seu discurso”. (ORLANDI, 1996, p. 153)
Como exemplo podemos citar, a título apenas de passagem, que dizer "esquerda", em diferentes momentos da vida política nacional, teve implicações muito diferentes. Ou seja, essa palavra (e qualquer outra) colocada em um discurso reclama que olhemos as condições de produção em que foi proferida, o modo como as relações de poder estão estabelecidas na trama social, o lugar que o sujeito ocupa e de onde fala historicamente. Tal pressuposto faz cair por terra a máxima da neutralidade absoluta, isto é, de que haveria uma relação direta, isenta de posicionamento
Eni Orlandi: Pesquisadora, professora universitária e introdutora, no final dos anos 1970, da Análise do Discurso no Brasil. Eni Orlandi é autora de diversas obras relacionadas à teoria do discurso. Em 1993, venceu o prêmio Jabuti em Ciências Humanas, com o livro As Formas do silêncio.
CONCEITO Condições de produção: As condições de produção são entendidas aqui como o contexto linguístico e o contexto da situação, o que envolve o sócio-histórico e a memória. As condições de produção constituem toda e qualquer tomada de palavra.
CURIOSIDADE
Esquerda: Na política, o termo "esquerda" deriva da Revolução Francesa. Durante uma votação na Assembleia Nacional Constituinte, em 28 de agosto de 1789, deputados que se opunham à proposta de “veto do rei” sentaram-se à esquerda do assento do presidente, o que tornou-se um costume na demarcação entre o apoio à República e o apoio à Monarquia. Na imagem você vê um dos símbolos artísticos da Revolução Francesa, o quadro A liberdade guiando o povo (1830), de Eugène Delacroix (1798-1863).
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e correspondente entre palavra-mundo, que o sujeito A palavra é sempre um deveria preservar em sua fala para ser fiel à realidade. ato político no sentido Por exemplo, ao dizer “terra”, não tomamos mais amplo do termo. essa palavra como neutra e dicionarizada, isenta do político; dizer “terra” implica tomar o sujeito que a diz e de onde ele se situa para fazê-lo.
EXEMPLO
Temos um efeito de sentido quando “terra” é falada por um índio lutando pela preservação de sua aldeia.
Para um retirante, o efeito de sentido da palavra “terra” pode ser outro, como “esperança”, por exemplo.
No caso de um astrônomo, “terra” pode ser vista como um corpo planetário, um conceito de pesquisa.
RESUMO Não é de acreditar que uma palavra será dita e significada do mesmo modo por todos igualmente, visto que os sentidos, na trama social, são distribuídos de modo heterogêneo, desigual e contraditório. Por isso, dizer “terra” tem como implicação assumir-se em uma posição e produzir sentidos a partir dela.
Em cada discurso há uma “dinâmica da interlocução”. A dinâmica da interlocução, por sua vez, é o modo como a troca de papéis entre locutor e ouvinte se materializa no discurso.
ATENÇÃO No momento de dizer, os sujeitos atribuem uma imagem do lugar social que ocupam, ou seja, fazem uma representação para si mesmos desse lugar. Também fazem uma imagem, uma representação do lugar ocupado pelo interlocutor. E, finalmente, também atribuem sentidos ao objeto que está em discurso.
Por ora, interessa compreender que essas imagens, ou representações, estão mediando os movimentos de interlocução e isso produzirá maior ou menor abertura à polissemia, à troca de turnos, à poética e ao deslizamento de sentido.
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Tipologia discursiva Entendemos, assim, que o estudo da tipologia discursiva sinaliza a possibilidade de analisarmos o movimento tenso entre a paráfrase – repetição e manutenção dos sentidos legitimados – e a polissemia – possibilidade do novo e emergência do sentido outro. Eni Orlandi define, então, uma tipologia discursiva com três modos de funcionamento: • • •
Discurso lúdico; Discurso polêmico; Discurso autoritário.
COMENTÁRIO Em cada um deles há “uma atividade estruturante de um discurso determinado, para
CONCEITO Paráfrase e polissemia: Paráfrase é, em resumo, dizer o mesmo com outras palavras, conservando as ideias trazidas no enunciado original. Eventualmente, na paráfrase acrescentam-se comentários ou informações novas, mas sempre com o intuito de ratificar o texto original. A polissemia, por sua vez, é o fenômeno natural em que qualquer palavra adquire sentidos múltiplos, múltiplas interpretações, de acordo com as condições de produção e as posições de sujeito assumidas, entre outros.
um interlocutor determinado, por um falante determinado, com finalidade específica”. (ORLANDI, idem, p. 153)
Discurso lúdico No discurso lúdico, a reversibilidade é total, a polissemia é aberta e o objeto do discurso está em jogo sem que nenhum dos interlocutores queira tê-lo apenas para si. Estamos no campo da poética, em que os sentidos correm soltos com possibilidade de tornarem-se outros. Vamos a dois exemplos, nos quais está presente o funcionamento do discurso lúdico, isto é, de um brincar com os sentidos.
EXEMPLO Assum preto Tudo em vorta é só beleza / Sol de abril e a mata em frô / Mas Assum Preto, cego dos óio / Em um vendo a luz, ai, canta de dor (bis) / Tarvez por ignorança / Ou mardade das pió / Furaro os óio do Assum Preto / Pra ele assim, ai, / cantá de mió (bis) / Assum Preto véve sorto / Mas em um pode avuá / Mil vez a sina de uma gaiola / Desde que o céu, ai, pudesse oiá (bis) / Assum Preto, o meu cantar / É tão triste como o teu / Também roubaro o meu amor / Que era a luz, ai, dos óio meus / Também roubaro o meu amor / Que era a luz, ai, dos óios meu Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga (1950)
A analogia entre o sentimento do poeta e o pássaro que teve seus olhos furados está posta aqui de modo a promover um deslizamento poético, do canto do pássaro para o cantar do trovador, um representando o outro.
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AUTOR
José Miguel Wisnik: José Miguel Soares Wisnik (1948) é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo, além de músico e compositor de discos e trilhas sonoras. Publica regularmente textos sobre música e literatura.
No poema, o eu poético e o pássaro não conseguem ver que “em vorta é só beleza”. Nesse discurso, não há interesse em ser dono de uma verdade sobre o pássaro ou sobre os efeitos de vida, prisão e liberdade. Busca-se trazer um sentimento, a partir de uma analogia, que permite a qualquer interlocutor interpretar, aplicar em sua realidade, ser atravessado por aqueles sentidos.
COMENTÁRIO A cantoria brinca com a cegueira dos “óio” que veem sem enxergar o amor, e isso coloca em jogo uma polissemia aberta, produzindo novas significações em virtude do efeito paradoxal ali estabelecido (“ver” e “não ver” ao mesmo tempo).
Continuando nessa concepção, veremos na música a seguir que um diálogo se estabelece pelo nome do pássaro e pela forma como o sujeito se coloca diante dos sentidos de amor e liberdade.
EXEMPLO Assum Branco Quando ouvi o teu cantar / Me lembrei nem sei do quê / Me senti tão só / Tão feliz tão só / Só e junto de você / Pois o só do meu sofrer / Bateu asas e voou / Para um lugar / Onde o teu cantar / Foi levando e me levou / E onde a graça de viver / Como a chuva no sertão / Fez que onde for / Lá se encontre a flor / Que só há no coração / Que só há no bem-querer / E na negra escuridão / Assum preto foi / Asa branca dói / Muito além da solidão José Miguel Wisnik (álbum Pérolas aos poucos, 2010)
O poeta aqui brinca com o título de duas canções de Luiz Gonzaga (Assum preto e Asa branca), promovendo uma retomada para dizer de outro pássaro, agora branco, de outro sentimento, já que o “só” do sofrer do poeta bateu asas e voou. Algo do “bem-querer” se configura como saída para o poeta, que escolhe uma cor de paz e tranquilidade para nomear o pássaro, o coração de “bem-querer”. Aqui é possível estar feliz e só, só e junto com o amor, ou seja, os efeitos de presença/ausência deslocam o que antes estava posto em torno dos sentidos de visão e dos “óios” na prisão.
REFLEXÃO O primeiro texto, de Luiz Gonzaga, possui polissemia tão marcadamente aberta que permite, inclusive, outros efeitos de sentido para outros poetas, como visto no texto de José Miguel Wisnik. Esses dois textos, que consideramos de tipo lúdico, abrem caminho para que sentidos fluam e a dinâmica de interlocução se materialize.
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Discurso polêmico No discurso polêmico, a reversibilidade e a polissemia são controladas. O objeto do discurso está presente em disputa e os interlocutores tentam dar a ele uma direção. A ilustração a seguir nos indica um funcionamento discursivo desse tipo, posto que coloca em cena duas vozes em tensão pelo mesmo objeto.
Inspirado na charge original de Angeli, publicado na coluna do autor no portal uol (http://www2.uol.com.br/angeli/). Acesso em 21/04/2013.
O anúncio de um político, em campanha eleitoral televisiva, marca a posição de suposto desenvolvimento na urbanização da cidade, com a construção de obras grandes para acesso viário.
COMENTÁRIO O que tal voz coloca em cena é a cidade como lugar prioritário para a circulação de carros, ou seja, daqueles que possuem carros e consequentemente outros bens (casa, por exemplo).
A resposta de um dos muitos que estão vivendo nas ruas aponta outra voz e coloca a cidade em disputa tensa pelos sentidos não de circulação, mas de moradia. Obras como viadutos e elevados são discursivizados como locais de ocupação e como promessa do fim dos problemas da casa própria.
ATENÇÃO As vias públicas da cidade são tomadas pelos interlocutores a partir de diferentes posições e, ao modo de uma disputa, cada um responde pela posição que ocupa e pela imagem que traça do espaço que habita.
Discurso autoritário No discurso autoritário, a reversibilidade e a polissemia tendem a zero, o sujeito oculta o objeto do discurso que não deve ser colocado à prova, restando o sentido de ordem e a submissão ao comando de um dos interlocutores.
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“A verdade é imposta”, afirma Orlandi (1996, p. 155), e a paráfrase se estabelece como única via possível. Repetir o mesmo e copiar o estabelecido sem questionamento e sem que o interlocutor possa se posicionar. Outra ilustração aponta para o que estamos explicando. Ele faz falar a assimetria e a voz de comando que sustentam o discurso autoritário.
Apenas o “patrão” tem direito a sentenciar sobre o “fim da folia”, inscrevendo um modo de fazer retornar os papéis aos seus lugares já estabelecidos, que não serão modificados senão no enquanto da festa do carnaval.
ATENÇÃO Embora a fantasia faça parecerem próximas ou iguais as duas pessoas, o dizer de uma delas silencia qualquer possibilidade de semelhança, inscrevendo a voz de autoridade na relação patrão e empregado. No tempo presente, não há caminho aberto para colher a resposta do empregado, pois a reversibilidade é zerada.
Situações de oralidade A tipologia proposta por Orlandi traz a possibilidade de compreensão, em cada texto, seja falado ou escrito, dessa tensão inscrita na língua em uso. Vamos seguir adiante com esse tópico da língua em uso “A palavra é irreversível, pensando, agora, exclusivamente em situatal é a sua fatalidade.” ções de oralidade. Para Barthes, não se pode retomar o que Roland Barthes foi dito, “a não ser que se aumente: corrigir é, nesse caso, estranhamente, acrescentar. Ao falar, não posso usar a borracha, apagar, anular; tudo o que posso fazer é dizer: ‘anulo, apago, retifico’, ou seja, falar mais”. (1988, p.90)
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Que tal exemplificarmos? Acompanhemos, a seguir, uma conversa entre uma avó e seus netinhos:
CONCEITO
EXEMPLO “Vamos, Julinha, vamos Pedrinho, está na hora de ir para a caminha. Hoje temos de dormir com as galinhas. Amanhã vamos bem cedo para a praia”, disse a vovó para os netinhos de 6 e 4 anos, respectivamente. “Dormir com as galinhas? Que esquisito!”, exclamou Pedro. “Por que vamos dormir com as galinhas? Eu não
Homofonia: Homofonia são palavras pronunciadas de maneira semelhante, mas que são escritas de maneiras diferentes e possuem significações distintas.
quero!”, estranhou Júlia fazendo uma careta. A vovó riu muito e explicou para os netos o que a expressão “dormir com as galinhas” queria dizer. Como podemos perceber, na situação de oralidade, quando o que é dito fica truncado ou ambíguo, podemos retomar as palavras já ditas e perguntar, pedir esclarecimentos.
No diálogo entre a avó e os netos, fica claro que, diante de uma palavra ou expressão nova, ainda desconhecida, ou ao ouvir metáforas e provérbios, as crianças não se acanham e logo perguntam sobre o que parece bizarro, sem sentido. Lembremos que, como vimos, as situações de discurso muitas vezes são do tipo autoritário, quase impedindo que nos manifestemos, seja para perguntar, seja para pedir mais exemplos, seja para discordar, seja para propor outras formas de explicação.
Homofonia Avancemos mais um pouco. Um fenômeno linguístico específico da linguagem oral que muitas vezes causa interferência na compreensão do que As homofonias, está sendo dito é a homofonia. assim como Em todas as línguas há palavras hooutras formas de mófonas. Como exemplo, vejamos o seguinte diálogo, que resulta da trans- ambiguidade, estão crição de parte de uma entrevista dada na língua. pela escritora Clarice Lispector: “— Você tem paz, Clarice?” “— Nem pai nem mãe.” “— Eu disse paz.” “— Que estranho, pensei que tivesse dito pais. Estava pensando em minha mãe alguns segundos antes. Pensei – mamãe – e então não ouvi mais nada. Paz? Quem é que tem?” (biografia de Clarice Lispector, por Benjamin Moser, p. 101)
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Homofonicamente semelhantes, sobretudo quando faladas no Rio de Janeiro, “paz” e “pais” produziram uma ambiguidade inicial, um equívoco logo desfeito e justificado por Clarice.
Herbert Paul Grice: Herbert Paul Grice (1913-1988) foi um filósofo britânico e linguista, tendo prestado enorme contribuição aos estudos da filosofia da linguagem, sobretudo às questões de significação e lógica.
Das tramas orais para a análise da conversação Alguns linguistas, diante da língua em uso, se propuseram a analisar a conversação. Há, portanto, um campo de estudos que se interessa justamente pela compreensão do modo de funcionamento da conversa. Por que estudar os processos conversacionais? Como nos lembra o linguista Luiz Antonio Marcuschi (1986, p. 5), a linguagem humana, e, portanto, o ato de conversar, é uma prática social que constitui lugar para construção de identidades. Claro que há diferentes maneiras de a conversação se realizar, depende do contexto. Por exemplo, uma conversa entre patrão e empregados funciona de modo diferente da conversa entre pais e filhos. As situações são inúmeras: conversas entre crianças, entre médico e paciente, entre deficientes auditivos etc. Assim, poderíamos seguir adiante pensando nas diferentes situações.
REFLEXÃO Por outro lado, poderíamos nos perguntar se entre árbitro de futebol e jogadores há prática conversacional. Ou, ainda, em julgamentos, haveria alguma conversa ali entre o juiz e o réu? De um modo geral, o que importa é compreender o que permite que a conversa prossiga ou, por outro lado, o que determina uma interrupção ou mal-entendido.
Haveria princípios que governam uma conversação para que ela seja eficaz? Seria possível depreender princípios para uma maior eficácia na conversa? Para responder a estas questões, vamos estudar o que Herbert Paul Grice, um especialista nas áreas de semântica, pragmática e filosofia da linguagem, propõe sobre a conversação. Imagine o seguinte diálogo entre dois alunos: “Que horas são?” E o outro responde: “Hora de ir embora, já vai tocar o sinal.” Nesse diálogo, a resposta é dada a partir da pressuposição de que ambos partilham um mesmo conhecimento sobre o horário de término da aula. Por isso, um não se preocupa em responder exatamente a partir da indicação do relógio.
COMENTÁRIO Tal diálogo nos remete ao traço polissêmico da linguagem, qual seja a abertura para uma resposta da ordem do inesperado, já que se pode antecipar de uma pergunta como aquela (“Que horas são?”) uma resposta direta e relacionada à pergunta (“São xx horas“).
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Quando analisamos os processos conversacionais, podemos aprender mais sobre o funcionamento geral da linguagem, sobretudo em contextos específicos das situações de interlocução.
RESUMO Grice quer demonstrar aquilo que é efetivamente dito e o que não é dito na constituição de uma conversação, de tal modo que, muitas vezes, uma pergunta ou uma resposta é dada em função de algo que foi implicado, sugerido, significado.
A partir dessa constatação, Grice afirma que algumas implicaturas são conversacionais, ou seja, estão conectadas a certas características gerais da conversação. Nesse sentido, quando falamos não emitimos frases desconexas, mas sim esforços cooperativos para gerarmos aceitação do interlocutor sobre o que e como falamos.
REFLEXÃO “Cada participante reconhece (...) um propósito comum ou um conjunto de propósitos ou, no mínimo, uma direção mutuamente aceita. Este propósito ou direção pode ser fixado desde o início (...) ou pode evoluir durante o diálogo; pode ser claramente definido ou ser bastante indefinido a ponto de deixar aos participantes considerável liberdade (como em uma conversação casual) .” (GRICE, 1982 [1967], p. 86)
Para Grice, como vimos, alguns princípios gerais devem ser observados em uma conversação. Em outras palavras, o autor formula um conjunto de princípios gerais, ou máximas conversacionais, que podem funcionar como elementos para um uso cooperativo e eficaz da linguagem, como se fossem uma espécie de guia para uma conversação bem sucedida.
ATENÇÃO As máximas conversacionais se inserem em um princípio geral: o princípio da cooperação. Sendo assim, podem ser divididas em quatro categorias: 1. máxima da quantidade (seja tão informativo quanto necessário); 2. máxima da qualidade (seja o mais verdadeiro possível); 3. máxima da relevância (ser pertinente em relação ao objetivo da conversa); 4. máxima do modo (seja ordenado, claro e breve).
Para Grice, se uma conversa é uma troca de informações, então é importante seguir a máxima da quantidade, por exemplo. Da mesma forma, é importante que a informação que damos seja verdadeira. Assim, estaremos de acordo com a máxima da qualidade. A cooperação entre os interlocutores na conversa também precisa ser relevante. Por fim, se de fato temos a intenção de cooperar em uma situação de conversa, é importante o modo de dizer. Para que você compreenda melhor as máximas conversacionais de Grice, analise o trecho de letra da música Sinal Fechado, de Paulinho da Viola, lançada no disco Sinal Fechado (1974), de Chico Buarque.
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EXEMPLO – Olá! Como vai? / – Eu vou indo. E você, tudo bem? / – tudo bem! Eu vou indo, correndo pegar meu lugar no futuro... e você? / – Tudo bem! Eu vou indo em busca de um sono tranquilo... Quem sabe? / – Quanto tempo! / – Pois é, quanto tempo! / – Me perdoe a pressa – é a alma dos nossos negócios! /– Qual, não tem de quê! Eu também só ando a cem! / – Quando é que voê telefona? Precisamos nos ver por aí! / – Pra semana, prometo, talvez nos vejamos... Quem sabe?
Com muita argúcia e valendo-se de frases curtas, o compositor escreve um diálogo, fruto do reencontro entre dois amigos que não se veem faz muito tempo. Uma conversa corrida, palavras trocadas no espaço de tempo de um sinal fechado no trânsito de uma cidade, por exemplo.
REFLEXÃO Comecemos pensando na máxima da cooperação. Houve cooperação nesse diálogo? Nesse caso, podemos afirmar que os dois amigos de fato investiram, no curto espaço de tempo que havia, em buscar um princípio cooperativo a fim de estabelecerem algum intercâmbio conversacional.
E as máximas da quantidade e da relevância também foram aplicadas? Nesse caso, vale ponderarmos: como julgar a quantidade de informações necessárias a serem trocada nesse curto espaço de tempo?
COMENTÁRIO Se avaliarmos as repostas dadas à pergunta “Como vai?”, ambos dizem que estão bem. Porém, acrescentam que “Eu vou indo... correndo pegar meu lugar no futuro”, e “Eu vou indo em busca de um sono tranquilo...”. Seriam essas informações necessárias, verdadeiras e relevantes? Teria havido alguma cooperação conversacional aqui? Essas expressões são claras?
Uma conversa é, como nos diz o referido linguista, repleta de implicaturas e de reticências que vão sendo significadas de várias maneiras. Assim, devemos assinalar o quanto o estabelecimento de concatenações na modalidade oral da língua depende do contexto de uso, ou seja, depende da situação de interlocução e das representações que fazemos de nosso interlocutor.
RESUMO Embora a contribuição de Grice seja extremamente relevante para os estudos da conversação, não é possível seguir à risca as exigências das máximas conversacionais.
A compreensão, na modalidade oral, depende também da troca de olhares, dos gestos, bem como da ênfase, da entonação, ou seja, de mecanismos paralinguísticos e supra-segmentais, respectivamente. Nesse sentido, na língua em uso, vamos nos valer de recursos bem diferentes daqueles empregados na modalidade escrita. E isso define a
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relação dos interlocutores entre si e com os objetos aos quais fazem referência, relação esta que se aproxima do que estudamos anteriormente sobre a tipologia e o gênero discursivos.
Linguagem em contextos midiáticos: o caso do blog Partimos dos conceitos já apresentados nesse capítulo para analisar o uso da linguagem em contextos midiáticos; mais especificamente, os blogs. Os blogs são uma forma de textualização que colocam em fronteira os gêneros que estudamos, já que comportam marcas da oralidade e de um tratamento considerado menos sofisticado dos enunciados (gênero primário), e também materializam certo tratamento mais elaborado pela escrita (caracterizando o gênero secundário).
ATENÇÃO
CONCEITO Blogs: Blogs são páginas da internet nas quais são publicados conteúdos de diversos tipos e finalidades, sejam textos, imagens, músicas, vídeos etc. Normalmente apresentam espaço para comentários dos leitores.
CURIOSIDADE Denise Schittine: Denise Schittine, autora do livro Blog - comunicação e escrita íntima na internet (2004), investiga o fenômeno dos blogs, principalmente na forma como eles substituem os velhos diários de papel.
Tal movimento nos coloca diante do desafio de perceber as novas configurações dos gêneros e a fragilidade das classificações engessadas quando tratamos de textos eletrônicos.
Também entendemos o blog como espaço aberto a diferentes tipologias discursivas que podem se dar e funcionar, em geral, permitindo a polissemia e a reversibilidade, posto que a interatividade é um dos pontos necessários à rede digital. Denise Schittine, cujo trabalho sobre blog é um dos pioneiros nos estudos da linguagem, sinaliza que “(...) é importante observar como antigas questões relativas ao diário no papel ganham uma nova perspectiva quando se trata do diário virtual, embora permaneçam as mesmas” (2004, p. 14–15). Vejamos alguns pontos que a autora desenvolve:
Memória
imortalidade e permanência
Segredo
o contar ou não a intimidade a um desconhecido
Tensão entre o espaço público e privado
que aumentará com a passagem para a internet
Relação com o romance
ficção
Relação com o jornalismo
observação dos fatos
Analisaremos o último ponto registrado pela autora, isto é, a relação entre o blog e o jornalismo, cujo discurso inscreve um modo de ordenar e estabilizar efeitos de verdade sobre o mundo.
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CURIOSIDADE Discurso jornalístico: Os manuais de redação e estilo de jornais são exemplo de certa ordem a ser mantida, não apenas no modo de tratar os acontecimentos, ilusoriamente com a certeza de uma narrativa neutra, mas também no modo de dizer e desenhar os enunciados, pasteurizados por regras e convenções de escrita.
Blog e jornalismo Sabemos que os jornais, em sua ampla maioria, dependem dos anunciantes e dos assinantes, ficando, desse modo, subditos aos jogos de relações de poder vigentes, bem como buscam se adequar a um imaginário de liberdade e de práticas/concepções valorizadas pelos leitores/usuários do jornal.
RESUMO Na produção do discurso jornalístico, tais relações funcionam de modo a não
CURIOSIDADE Blogs informativos: Muitos jornalistas, com empregos nas grandes empresas de comunicação, mantêm em funcionamento blogs nos quais postam artigos e notícias que não teriam e não têm espaço fora da rede.
permitir que certos sentidos se inscrevam, circulem ou produzam outros efeitos.
No entanto, no jornalismo online, algumas brechas se abrem para a circulação de outros sentidos, para a emergência de outras posições e para o aparecimento de dizeres que não podem nem devem ser postos em circulação nas páginas impressas, especialmente nos ditos blogs informativos.
RESUMO
Tais blogs (informativos ou jornalísticos) são marcados por uma medida de tempo real, estabilizam dizeres sobre a realidade de modo quase contínuo, são suscetíveis a deslizamentos quase instantâneos, abrem espaço para o discurso do tipo polêmico e contam com a palavra do leitor internauta tão logo uma palavra seja postada.
O jornalista Juca Kfouri, comentarista esportivo vinculado a um grande jornal de circulação nacional, atualiza, mais de uma vez ao dia, o seu blog. Uma de suas postagens produz o seguinte enlace:
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1. Juca parte da premissa de que todos viram a renúncia do Papa Bento XVI (2007-2013), que conhecem o assunto, o que dispensa um relato sobre o sabido. O que se tem aqui é uma suposição, uma torcida, uma anunciação. “Vai que” sinaliza algo que aconteceu e que poderia ser deslocado para as autoridades do futebol e dos esportes nacionais.
2. Ao citar uma estatística de quase cem por cento e sinalizar o papa como exemplo de uma “escola”, Kfouri sugere que as referidas autoridades deixem seus cargos, o que é uma provocação que muitos jornais impressos não sustentam.
Consideramos que o efeito jocoso de duas manchetes colocadas em sequência, sem comentários ou sem maior desdobramento como notícia ou como artigo, não seria possível em um jornal impresso; mas, no blog, isso é possível. Os internautas, por sua vez, replicaram ativamente, ora sustentando os efeitos postos em discurso, ora discordando e abrindo caminho para outros sentidos, ora comentando sobre religião e política...
COMENTÁRIO Tal polissemia é marca da rede digital e dos blogs, e sinaliza um modo de produzir um funcionamento discursivo em que a abertura a novos dizeres é latente.
Ao longo deste capítulo, buscamos sinalizar como é fundamental conhecer os conceitos de gênero discursivo, tipologia discursiva, oralidade e análise da conversação, e tomá-los para o trabalho com diferentes materialidades textuais. Sabemos que analisar e interpretar textos e discursos reclamam a formação de um leitor conhecedor de dispositivos teóricos e analíticos, exigindo o estudo de vários pesquisadores que se debruçaram sobre a linguagem no anseio e na (in)certeza de compreendê-la. Se retomarmos o conceito de paráfrase, conforme Orlandi propõe, temos o processo que faz falar a repetição do sentido legitimado como evidente, garantindo a retomada dele sem rupturas ou mudanças. Nesse pêndulo, entre paráfrase e polissemia, o jogo da linguagem é tecido.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense, 1981. ______. Speech genres & other late essays. Austin: Univ. of Texas, 1986. BARROS, M. Memórias inventadas – as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta do Brasil, 2008. BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988. GRICE, Herbert Paul. Lógica e conversação. In: Dascal, Marcelo (org.) Pragmática: problemas, críticas, perspectivas, bibliografia da linguística. Campinas: Instituo de Estudos da Linguagem da unicamp, 1982. LEVINSON, Stephen C. Grice’s theory of implicature. In: Pragmatics. Cambrigde: University Press, 1983. MARCUSHI, L. A. Análise da conversação. São Paulo: Ática, 1986. MARIANI, B. O pcb e a imprensa. Campinas: unicamp e Revan, 1998. ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento. Campinas: Pontes, 1996. SCHITTINE, D. Blog: comunicação e escrita íntima na internet. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
IMAGENS DO CAPÍTULO
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p. 70 Memórias inventadas Divulgação · Editora Planeta
p. 72 No cinema M.Zacharzewski · stock.xchng · rf
p. 76 Mãos segurando planta Autor desconhecido · Office
p. 71 Alice Paulo Vitor Bastos · Estácio
p. 72 Livro de estudos Autor desconhecido · Office
p. 76 Spying Jasmaine Mathews · stock.xchng · rf
p. 72 Lewis Carroll Autor desconhecido · Wikimedia · dp
p. 72 Gêneros Paulo Vitor Bastos · Estácio
p. 78 Pérolas aos poucos Divulgação · Maianga Discos
p. 72 Busto de Platão A General History for Colleges and High School, Myers, 1894 . Wikimedia · cc
p. 75 As formas do silêncio Divulgação · Editora Unicamp
p. 79 Sem teto Victor Maia · Estácio
p. 75 A Liberdade guiando o povo Eugène Delacroix · Wikipedia · dp
p. 80 Carnaval Eduardo Trindade · Estácio
p. 72 Mikhail Bakhtin Autor desconhecido · Wikimedia · dp
p. 76 Índio Terena Agência Brasil · Wikimedia · cc
p. 82 Herbert Paul Grice Autor desconhecido
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Texto: coesĂŁo e coerĂŞncia
vanise medeiros e silmara dela silva
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Texto: coesão e coerência
CURIOSIDADE Texto: Se buscarmos a etimologia da palavra "texto" no dicionário Houaiss (2001, p. 2713), veremos que, em latim, quer dizer tanto entrelaçar e construir, como também quer dizer narrativa, exposição, em que o que foi narrado ou exposto seguiu determinadas formas de organização.
Neste capítulo, vamos apresentar algumas noções importantes para a conceituação de texto. Também, iremos apresentar os elementos que contribuem na organização textual a fim de proporcionar legibilidade ao que escrevemos.Nosso objetivo é fazer com que você compreenda o modo de organização textual para assim poder escrever seus textos acadêmicos com maior clareza e eficiência.
CONCEITO Um texto, seja oral ou escrito, seja na forma de uma narrativa, de uma descrição ou de uma dissertação, é uma construção linguística que precisa seguir determinadas estratégias a fim de garantir sua organização interna.
Segundo os linguistas Halliday e Hasan (1976, p. 1), “um texto é uma unidade da língua em uso”. Essa definição de texto é bastante ampla e apresenta duas características importantes: a unidade e o uso. Porém, quais são os elementos linguísticos que organizam a unidade textual? Como a unidade de um texto está relacionada a seu uso? Vamos responder a essas questões, inicialmente, com o auxílio de dois renomados autores da área:
Alcir Pécora, em seu clássico livro Problemas de redação (1983), diz que “um texto não é o produto de uma justaposição de elementos linguísticos sem referência entre si: não se trata, por exemplo, de uma soma de orações fechadas ou completas em si mesmas, ocupando um espaço vizinho no papel ou na enunciação oral. Pelo contrário, quando se reconhece uma determinada manifestação verbal como sendo constitutiva de um texto, está implícita a ideia de que existem nexos, nós, ligas (ties) entre seus componentes e que, dessa forma, conferem-lhes uma mútua dependência de significação”. (PÉCORA, 1983, p. 49, grifo nosso) Ampliando a definição de Pécora, ao incorporar os fatores relativos ao uso, Ingedore Koch (1989) afirma: “Poder-se-ia, assim, conceituar o texto como uma manifestação verbal constituída de elementos linguísticos selecionados e ordenados pelos falantes durante a atividade verbal, de modo a permitir aos parceiros, na interação, não apenas a depreensão de conteúdos semânticos, em decorrência da ativação de processos e estratégias de ordem cognitiva, como também a interação (ou atuação) de acordo com práticas socioculturais”. (KOCH, 1989, p. 23, grifo nosso)
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A partir das duas definições vistas anteriormente, pode- Um texto, mos chegar à ideia de textualidade, ou seja, uma qualidade portanto, não que podemos atribuir a qualquer manifestação verbal que é uma simples seja compreensível, legível. Logo, um texto supõe o manuseio de estratégias linguís- superposição ticas e algum compartilhamento social e cultural da parte de frases. de falante/ouvinte ou autor/leitor. Vejamos, abaixo, uma pequena e verídica história. Em uma roda de leitura, a professora anunciou para seus pequenos ouvintes de seis anos que iria contar uma história: “O sítio do Picapau Amarelo”. Com olhares atentos e respiração suspensa, as crianças ouviram as aventuras de Pedrinho, de Narizinho, do Visconde de Sabugosa, de Emília, alguns dos personagens do mundo encantado de Monteiro Lobato. Ao final da narrativa, a professora perguntou se haviam gostado da história. Apesar do “sim” coletivo, uma delas balançou negativamente a cabeça e disse, para espanto da professora: “Não gostei. Você disse que era sobre o sítio do picapau amarelo, mas não apareceu nenhum picapau amarelo na história!”.
Essa inusitada reclamação infantil incide sobre uma importante característica das línguas humanas: as palavras de uma língua, qualquer que seja essa língua, estão voltadas para o mundo exterior e dizem respeito a um objeto desse exterior, ao mesmo tempo em que constituem esses objetos. Vejamos uma análise:
Ao enunciar tal expressão, indicou-se a existência de um lugar (“sítio”) e constituiu-se um ser (“picapau”).
sítio do picapau amarelo
sítio
O item lexical ‘sítio’, tomado isoladamente, constitui uma referência exofórica, ou seja, remete para indicações no mundo, e o referente está situado fora do texto. “Sítio” na história, trata de algum sítio possível.
picapau
• Remete para uma possível existência de algum picapau amarelo no mundo. • Relaciona-se a “sítio” - picapau amarelo que está no sítio. • Determina/nomeia “sítio”.
Como o picapau não aparece na história, a criança aponta o paradoxo da comunicação linguística: como é possível que uma mesma história constitua um objeto e não fale dele? Ou seja, a criança não reconheceu que “picapau amarelo” determina/nomeia “sítio”.
Referência e referenciação Chama-se referência a característica das línguas naturais de necessariamente estabelecer uma orientação, uma indicação para o mundo exterior. Chama-se referente o objeto que, na língua, é nomeado, descrito, indicado, enfim, constituído discursivamente, instituído em palavras.
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COMENTÁRIO Oswald Ducrot afirma: “Desde que haja um ato de fala, um dizer, há uma orientação necessária para aquilo que não é o dizer. É a esta orientação que podemos chamar ‘referência’, chamando ‘referente’ ao mundo ou objeto que ela pretende descrever. (O referente de um discurso não é, assim, como por vezes se diz, a realidade mas sim sua realidade, isto é, o que o discurso escolhe ou institui como realidade)”. (DUCROT, 1984, p. 419, grifo nosso)
Vejamos, agora, esse outro fragmento de texto, no qual se percebe um tecido de remissões entre as duas frases presentes: Suco de laranja faz bem para sua saúde – essa história é velha. A nova é que em breve ele deve se tornar ainda melhor para nosso corpo. (revista Galileu, fevereiro 2013, número 259, p. 20)
“SUCO DE LARANJA”
... foi substituído por...
“HISTÓRIA VELHA”
... foi substituído por...
“FAZ BEM PARA SUA SAÚDE”
... foi substituído por...
“ELE” “NOVA” Com omissão do termo “história”
“TORNAR AINDA MELHOR PARA SEU CORPO” Além de substituir, faz o texto avançar em sua progressão lógica
Esse jogo de remissões internas ao texto constitui um conjunto de referências endofóricas, ou seja, formas de organização dos sentidos a partir do conjunto de remissões referenciais internas ao texto, com outros elementos linguísticos da superfície textual. Como vimos no exemplo, a referência pode ser estabelecida por substantivos, sintagmas nominais, fragmentos de oração ou até mesmo por enunciados completos.
CURIOSIDADE Quando o referente é um substantivo, ou um sintagma nominal, o sistema de remissões endofóricas que vai sendo construído ao longo do texto irá agregar e produzir modificações na significação inicial. “Isto é, o referente é algo que se (re)constrói textualmente”. (KOCH, op. cit., p. 31, grifo nosso)
Vejamos nesse pequeno texto, que tem como título Cidade-desejo, o tecido de remissões endofóricas que agrega sentidos.
Cidade-desejo O Rio de Janeiro não só continua lindo como está mais badalado do que nunca. Sede da final da Copa do Mundo de 2014 e cidade anfitriã das Olimpíadas de 2016, tem recebido muitas atenções e lojas de marcas gringas. (revista Claudia, janeiro de 2013, pg. 120)
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CONCEITO
“CIDADE-DESEJO” ... é um título cujo sentido é construído pelos sintagmas nominais que o substituem:
“Rio de Janeiro”
“Sede da final da Copa do Mundo de 2014”
Diremos que um texto é coeso quando o jogo de referências está bem organizado no nível intratextual.
“Cidade anfitriã das Olimpíadas de 2016”
Em seu conjunto, as substituições referenciais estabelecidas entre os sintagmas que você acabou de ver organizam um tecido textual de dependências internas de significação, tornando o texto coeso.
Da referência para a coesão
Coerência: Os fatores para uma coerência são vários, por exemplo, o conhecimento da situação, os fatores da contextualização, as inferências possíveis, a relevância, entre outros.
A coesão faz com que um texto tenha sentido, seja compreensível. Antes de prosseguir, porém, vamos pensar na diferença entre coesão e coerência. Não se trata de uma distinção simples, mas, de modo geral, conforme Travaglia e Koch (1990), a coerência é global:
RESUMO “[a coerência] está diretamente ligada à possibilidade de se estabelecer um sentido para o texto, ou seja, ela é o que faz com que o texto faça sentido para os usuários, devendo, portanto, ser entendida como um princípio de interpretabilidade, ligada à inteligibilidade do texto em uma situação de comunicação e à capacidade que o receptor tem para calcular o sentido deste texto”. (TRAVAGLIA e KOCH, 1990 p. 21)
Imagine a seguinte cena: você encontra uma lista de nomes em cima de sua mesa de trabalho. Você pega a lista e a guarda na sua pasta. Na véspera, você havia pedido a um funcionário os nomes de alguns candidatos a uma vaga de trabalho para avaliar. O que dá coerência àquela lista é exatamente seu pedido no dia anterior. A lista sozinha com nomes, fora de “contexto”, não significa, ou melhor, não produz sentido. Como você pode perceber, a coerência não é uma característica do texto, mas reside no processos de interação com o texto. Já por coesão, entende-se “as ligações entre os elementos da superfície textual” (TRAVAGLIA, 1994, p. 72). Voltemos, agora, ao estudo dos mecanismos de coesão.
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CONCEITO
ATENÇÃO
Endofóricos:
Há distintas maneiras de estabelecer a coesão de um texto. São dois os princi-
Como já vimos, a referência é situacional (exofórica) e textual (endofórica).
pais procedimentos linguísticos que constroem textualmente essa totalidade se-
(sequenciação)”. (KOCH, op.cit., p. 27)
mântica: “a coesão referencial (referenciação, remissão) e a coesão sequencial
A fim de apreender melhor a coesão referencial, vamos ler, agora, o fragmento do conto intitulado A primeira noite, da autora francesa Marguerite Yourcenar:
A primeira noite Era uma viagem de núpcias. O trem seguia para a Suíça trivial: sentados no compartimento reservado, eles se davam as mãos. Um silêncio pesava entre os dois. (YOURCENAR, 1995, p. 51)
Nesse fragmento, título e primeira frase do texto funcionam como elementos linguísticos que estabelecem uma referência exofórica, ou seja, remetem à situação que está sendo narrrada. Essa situação constitui o contexto.
COMENTÁRIO Observemos que o título e a primeira frase referem-se mutuamente, estabelecendo correferência, ou seja, estabelecem uma identidade de referência e uma proximidade semântica.
Em seguida, o substantivo “trem”, o particípio passado flexionado “sentados”, o pronome pessoal “eles” e o numeral “dois” são elementos referenciais endofóricos já circunscritos a esse contexto, constituído inicialmente pelo título e pela primeira frase. Esses itens lexicais estão concatenados entre si a partir de uma organizada rede de procedimentos linguísticos, produzindo um efeito de totalidade.
ATENÇÃO Quando falamos ou escrevemos, esse jogo referencial precisa ser estabelecido e partilhado com nossos interlocutores a fim de evitar as ambiguidades, as frases truncadas e sem continuidade.
No âmbito da modalidade escrita da língua, portanto, é fundamental saber usar os procedimentos linguísticos que estabelecem a referência, ou seja, é necessário saber manejar os nexos coesivos da produção textual escrita.
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De início, precisamos planejar o que vamos escrever, o que significa que devemos ter em mente o tipo de texto que pretendemos e qual nosso objetivo ao escrevê-lo. Lembremos que nosso interlocutor não estará na nossa frente para fazer perguntas ou tirar dúvidas. Por isso precisamos conectar as ideias que queremos transmitir em um todo coeso e coerente; afinal, um texto não é uma mera sequência de frases.
Coesão referencial endofórica Para haver interpretação semântica, como vimos, é necessário que os elementos do texto sejam remetidos entre si de modo sistemático. Vamos, agora, ampliar nosso conhecimento sobre a construção dos procedimentos linguísticos necessários para a coesão referencial endofórica.
ATENÇÃO Isso pode ser feito de duas formas. Quando ocorre a retomada de um item lexical já colocado no texto, temos uma anáfora; quando, ao contrário, ocorre a antecipação, temos uma catáfora.
Vejamos um texto cujos termos estabelecem entre si dois diferentes procedimentos linguísticos de remissão textual: Cidades históricas e turísticas, Angra dos Reis e Paraty convivem, desde o início do ano, com um problema diário de 270 toneladas. Ambos os municípios estão despejando seus resíduos em locais inapropriados, segundo o Instituto Estadual do Ambiente (inea) . (jornal O Globo, 24/01/2013, pg. 13)
Fragmento 1: “Cidades históricas e turísticas” CATÁFORA
A interpretação semântica depende do que vem a seguir no texto, respectivamente, “Angra dos Reis e Paraty”.
Fragmento 2: “Ambos os municípios” ANÁFORA
O sintagma que inclui o numeral “ambos”, em “ambos os municípios”, retoma itens lexicais que apareceram anteriormente.
A substituição ocorre quando colocamos uma palavra no lugar de outra para evitar uma repetição. De uma maneira geral, a coesão referencial resulta do funcionamento de vários mecanismos linguísticos: a substituição, a elipse e a sequenciação. A substituição pode se realizar de diferentes maneiras. Porém, quando substituímos uma palavra por outra, precisamos ficar atentos ao contexto semântico a fim de garantir sua continuidade. Vejamos o seguinte trecho: O maior poeta vivo brasileiro da atualidade, Manoel de Barros, ou, como seus leitores tocados pela magia de seus versos o definem, “o poeta do pantanal”, “o Guimarães Rosa da poesia”, “o grande poeta das pequenas coisas.” (HENRIQUES, 2012, p. 58)
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Temos, aqui, um conjunto de substituições que estabelecem equivalências semânticas em torno do sintagma nominal “o maior poeta vivo brasileiro da atualidade”.
“O maior poeta vivo brasileiro da atualidade”
“Manoel de Barros” (nome próprio)
“o poeta do pantanal”
EPÍTETOS Substantivo, adjetivo ou expressão que qualifica um nome
“o Guimarães Rosa da poesia”
“o grande poeta das pequenas coisas”
Se você voltar ao texto, verá ainda que o pronome possessivo “seus”, em “seus versos”, também é um elemento substitutivo: “magia dos seus versos [do Manoel de Barros]”.
De acordo com Fávero e Koch (1983, p. 40), a substituição pode ser: a) nominal, feita por meio de pronomes, numerais, indefinidos; b) por nomes genéricos (hiperônimos), como “coisa, gente, pessoa”; c) por substitutos, como “respectivamente, o mesmo, também, sim, não”.
COMENTÁRIO Ponto importante a observar: a substituição referencial deve considerar o gênero e a flexão de número do termo que será substituído.
Coesão por elipse A elipse, por sua vez, marca uma omissão que é recuperável no próprio texto, evitando uma repetição desnecessária. No trecho a seguir, a coesão é realizada de outra maneira: Manoel de Barros nasceu no Beco da Marinha, beira do rio Cuiabá, em 1916. (Ø)Mudouse para Corumbá, onde se fixou de tal forma que chegou a ser considerado corumbaense. Atualmente (Ø)mora em Campo Grande. É advogado, fazendeiro e poeta. (site da Fundação Manoel de Barros – www.fmb.org.br – acesso em 20/01/2013)
Nesse pequeno trecho, o nexo coesivo é instaurado a partir da elipse, ou seja, da ausência (representada pelo símbolo Ø) de repetição do nome próprio “Manoel de Barros”. O verbo “nascer” na 3ª pessoa do singular refere-se a Manoel de Barros, sujeito do verbo. A partir dessa relação (sujeito–verbo), todos os outros verbos (“mudar-se”, “fixarse” e “morar”) também se referem a Manoel de Barros.
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CURIOSIDADE
AUTOR Affonso Romano de Sant'anna:
Para nós, falantes do português, não é necessário que um nome seja repetido, como vimos no exemplo, pois podemos inferir que estão todos relacionados entre si.
Coesão sequencial Mencionamos a importância da continuidade na construção de um texto. Em outras palavras, a continuidade (ou progressão) depende da seleção lexical e, também, do uso dos elementos de sequenciação.
CONCEITO
Affonso Romano de Sant’anna (1937) é escritor e cronista brasileiro. Com sólida formação acadêmica na área de literatura, atuou como docente em diversas universidades brasileiras e estrangeiras, além de criar e dirigir programas de pós-graduação na área. Foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional (1990-1996).
Os elementos de sequenciação são aqueles que estabelecem nexos coesivos entre as orações, entre as orações de um mesmo parágrafo e entre os parágrafos de um texto. (FÁVERO e KOCH, 1983)
Vamos ler, agora, um fragmento do poema A pesca, de Affonso Romano de Sant’anna. O anil / o anzol / o azul o silêncio / o tempo / o peixe a agulha / vertical / mergulha a água / a linha / a espuma o tempo / o peixe / o silêncio a garganta / a âncora / o peixe (...)
O título do poema, associado à seleção lexical que compõe os versos, não deixa dúvidas: trata-se da descrição de uma pescaria. Observemos que, no fragmento transcrito, o poeta se utilizou de vários substantivos e um único verbo.
RESUMO Em seu conjunto e na maneira em que estão organizados, os itens lexicais formam, de modo adequado, coerente e progressivo, a descrição de uma pescaria.
Vejamos agora outras maneiras de construir a sequenciação textual, esse importante mecanismo responsável pelos encadeamentos semânticos. Os elementos linguísticos que estabelecem encadeamentos, ou seja, uma rede de conexões internas em um texto, são chamados nexos ou operadores coesivos. Consideremos a seguinte frase:
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COMENTÁRIO Por causa da atuação de uma frente fria, todo o Estado do Rio en-
Causalidade: A causalidade pode ser expressa por diferentes conjunções: "porque”, “já que”, “visto que” etc. E também podemos expressar causalidade empregando determinados substantivos (“motivo”, “razão”, “pretexto”, “o porquê”) ou verbos, como “causar”, “acarretar”, “motivar”. (cf. GARCIA, 1977, p. 49)
trou em estágio de atenção, ontem. (jornal Metro, 06/02/2013)
Essa frase poderia ser reescrita de várias maneiras. Vejamos algumas possibilidades de substituição:
POSSIBILIDADES DE SUBSTITUIÇÃO “por causa da”
... por...
“em função da”
“atuação de uma frente fria”
... por...
“presença de massa de ar frio”
“todo o Estado do Rio de Janeiro”
... por...
“o Rio de Janeiro inteiro”
“entrou em estágio de atenção”
... por...
“ficou em alerta”
Essas substituições, como se pode observar, ficam circunscritas à manutenção sinonímica de um mesmo campo semântico.
ATENÇÃO Nesse processo de substituição, é fundamental manter o sentido estabelecido pelo operador “por causa da”, que estabelece um nexo coesivo de causalidade entre as duas orações.
Como você pode notar, é possível alterar os nexos coesivos, mas manter a ideia geral de causalidade. Se, no lugar de qualquer um desses operadores, colocassemos outro, de outro sentido, toda a significação seria alterada, você não acha? Volte ao exemplo e substituía “por causa da” por “apesar da” para ver se o sentido de causa permanece. Se quisermos que nosso texto tenha manutenção temática e encadeamento lógico de ideias, é necessário usar adequadamente os operadores coesivos para estabelecermos as relações lógico-semânticas pertinentes. Koch (1989, p. 62–9) distingue oito tipos de encadeamento adequados a textos dissertativos, narrativos e descritivos.
RELAÇÕES LÓGICO-SEMÂNTICAS Relação de causalidade Relação de oposição Relação de condicionalidade
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“porque”, “visto que”, “em virtude de”, “devido a”, “por motivo de” etc. “mas”, “porém”, “apesar de”, “embora”, “contudo” etc. “se”, “caso”, “a não ser que”, “contato que”, “a menos que” etc.
Relação de mediação
“a fim de”, “com o propósito de”, “para”, “com o objetivo de” etc.
Relação de disjunção
“ou” de valor inclusivo – (um ou outro, ambos) “ou” de valor exclusivo – (nunca ambos)
Relação de conformidade Relação de modo Relação de temporalidade
“conforme”, “consoante”, “segundo”, “de acordo com” etc. Modo como se realiza uma ação/evento: “Eles seguiam o bloco pulando animadamente” Pode ser tempo simultâneo, anterior, posterior, contínuo: “assim que”, “antes que”, “depois que”, “enquanto” etc.
Além dos operadores citados, Garcia (1977, p. 265–71) enumera outras possibilidades de sequenciação. Vejamos os encadeadores apresentados por esse outro autor, a partir de exemplos:
EXEMPLO a) relações de adição, continuação (“Tom Jobim, além de maestro, era compositor também.”); b) relações de dúvida (“O avião já aterrisou? Quem sabe? É provável, mas ainda não apareceu qualquer registro no painel.”); c) relações de certeza ou ênfase (“Sem dúvida, o avião já pousou.”); d) relações de surpresa (“Inesperadamente, ouvimos a notícia sobre o atraso do avião.”); e) relações de esclarecimento (“O avião pousou, em outras palavras, ele já se encontra no pátio.”); f) relações de recapitulação ou conclusão (“Em suma, vimos o conjunto de possibilidades de estabelecer relações sequenciais coesivas.”).
ATENÇÃO O que se observa no modo de construir a sequenciação também é válido quando temos a produção de um texto maior.
Organização da estrutura textual Para nossos propósitos, é fundamental que você se lembre de fazer sucessivos encadeamentos de forma a apresentar e organizar progressivamente o tema do texto. Agora, iremos explorar como isso se dá em um plano mais amplo, tomando o texto como unidade. Vamos ler, a seguir, o seguinte parágrafo, transcrito do livro A construção da ordem (1996), de José Murilo de Carvalho: “Elemento poderoso de unificação ideológica da política imperial foi a educação superior. E isso por três razões. Em primeiro lugar, porque quase toda a elite possuía estudos superiores, o que acontecia com pouca gente fora dela: a elite era uma ilha de letrados em um mar de analfabetos. Em segundo lugar,
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porque a educação superior se concentrava na formação jurídica e fornecia, em consequência, um núcleo homogêneo de conhecimentos e habilidades. Em terceiro lugar, porque se concentrava, até a Independência, em quatro capitais provinciais, ou duas, se considerarmos apenas a formação jurídica. A concentração temática e geográfica promovia contatos pessoais entre estudantes das várias capitanias e províncias e incutia neles uma ideologia homogênea dentro do estrito controle a que as escolas superiores eram submetidas pelos governos tanto de Portugal como do Brasil.” (CARVALHO, 1996, p. 55)
Nesse texto de José Murilo de Carvalho, a progressão textual é realizada com a utilização de operadores que ordenam a sequência dos motivos que justificam a afirmativa de que foi a educação superior a responsável pela unificação ideológica durante o período do império. As “três razões” estão justapostas, não há predominância de qualquer uma delas.
ENCADEAMENTO ARGUMENTATIVO DO TEXTO TESE / OPINIÃO A educação superior foi a responsável pela unificação ideológica no período do império no Brasil
argumentos / justificativas apresentados por nexos coesivos
“Em primeiro lugar”
“Em segundo lugar”
“Em terceiro lugar”
Por outro lado, quando queremos escrever um texto em que a progressão se dá por relevância, ou prioridade, devemos nos valer de outros nexos coesivos, como, por exemplo, “antes de mais nada”, “acima de tudo”, “sobretudo”, “primordialmente”(cf. GARCIA, 1977, p. 263). A utilização desses operadores introduz uma hierarquia semântica entre os elementos que compõem o texto. Vamos a outro fragmento extraído de A construção da ordem, de José Murillo de Carvalho. O texto é construído por contraste. Vejamos: “O exame da política de terras permite aprofundar a análise das relações entre governo e proprietários rurais. Como a política abolicionista, a política de terras, sobretudo seu ponto alto, a lei de 1850, atingia de maneira profunda os interesses dos proprietários, ou pelo menos de parcela deles. Mas ela possui valor analítico distinto por ter provocado alinhamento de proprietários diferente daquele provocado pelo abolicionismo e por não ter sofrido interferência direta da coroa. Sua especificidade se manifesta ainda com mais clareza quando se examinam os resultados obtidos. Em contraste com a política de abolição, a política de terras quase não saiu do debate legislativo e dos relatórios dos burocratas dos ministérios do Império e da Agricultura, Comércio e obras Públicas. Ela foi vetada pelos barões.” (CARVALHO, 1996, p. 303)
Observemos que a progressão é realizada a partir da frase inicial, em que se explicita o tema “o exame da política de terras...”. A partir daí, o texto vai sendo encadeado por comparação e contraste. Essa forma de sequenciação aparece logo na segunda frase com a introdução do operador “como” (“como a política abolicionista...”). O contraste (ou contrajunção) se inicia na terceira frase, a partir do uso da conjunção “mas” (“mas ela possui...”), e continua mais adiante no texto, com “em contraste com a política de abolição...”.
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Argumentação e texto argumentativo Normalmente, quando pensamos em argumentação e em textos argumentativos, costumamos associá-los a um tipo específico de texto, o chamado texto dissertativo. É o que fazemos, por exemplo, quando escrevemos uma redação para o vestibular: argumentamos sobre uma dada questão, como sobre o trânsito nas grandes cidades ou a influência da tecnologia na educação, dentre outras, e, se formos bem sucedidos, teremos como resultado um texto coerente e coeso, com boa argumentação e bem aceito pelo leitor que, nesse caso, é um avaliador. Esse tipo de texto dissertativo/ argumentativo é também muito frequente em jornais impressos: logo nas primeiras páginas, costumamos encontrar o editorial, destinado a emitir a opinião do periódico sobre um determinado assunto.
COMENTÁRIO O que faz o jornal nesse espaço é justamente argumentar, na tentativa de mostrar ao leitor como a questão em pauta pode e deve ser compreendida. Também nos jornais são comuns os artigos assinados, que são textos opinativos nos quais jornalistas e especialistas, em diversas áreas, argumentam sobre uma dada questão.
No discurso jornalístico, a presença desses textos declaradamente argumentativos, em seções específicas, tem um funcionamento particular: marcar lugares diferenciados para a opinião e para a informação, mantendo esta última sob Sob essa perspectiva o rótulo da objetividade, do simples relato dos fatos. teórica, toda linguagem De modo análogo ao que se dirige ao outro e, ocorre no discurso jornalísnesse sentido, todo tico, a classificação dos texato linguístico é tos em tipos diversos também produz os seus efeitos: argumentativo. por ela, somos levados a pensar que somente alguns textos são argumentativos, ou seja, são destinados a “ganhar” a cumplicidade dos leitores. Vejamos algumas afirmações de Koch a respeito da relação entre argumento e discurso:
CONCEITO Texto dissertativo: Diferentemente de outros tipos textuais, como o narrativo ou o descritivo, o texto dissertativo teria como função principal discorrer sobre uma determinada questão a partir de um ponto de vista e, consequentemente, ganhar a adesão do leitor a esse ponto de vista ali expresso, através de argumentos.
COMENTÁRIO Lugares diferenciados: As análises do discurso jornalístico têm discutido muito essa ilusão de objetividade que é construída pela imprensa. Você pode não ter percebido, mas a própria seleção do que será ou não noticiado na imprensa já é uma escolha e diz ao leitor o que deve ser considerado importante em um dado momento histórico. Em outras palavras, entendemos que o discurso jornalístico agenda o que será tema de discussão na cidade e no país. Logo, todo ele é, por natureza, argumentativo.
ATENÇÃO “A simples seleção das opiniões a serem reproduzidas já implica, por si mesma, uma opção. Também nos textos denominados narrativos e descritivos, a
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AUTOR
argumentação se faz presente em maior ou menor grau (...) O uso da linguagem é inerentemente argumentativo.” (KOCH, 1987, p. 19–20, 104)
Oswald Ducrot: Oswald Ducrot (1930) é um linguista francês cujas obras e estudos versam, especialmente, sobre a semântica da enunciação. Em seus estudos semânticos, uma das questões abordadas é justamente a argumentação. Para Ducrot, a argumentação não é uma propriedade de certos tipos de texto e não está meramente condicionada à intenção do sujeito que busca persuadir o outro com o seu dizer.
De um modo geral, a argumentatividade na linguagem está relacionada à persuasão do outro, ao agir sobre o outro em termos linguísticos. Além disso, há textos e enunciados que têm como característica marcante uma formulação construída para levar o leitor a certos tipos de conclusão, ou de eliminação de opiniões divergentes. Esses textos se marcam por lançar mão de diferentes estratégias que orientam a argumentação. Compare, por exemplo, os dois enunciados a seguir:
Meu time está preparado para o jogo. Trata-se de uma afirmação, de limitado poder de argumentação/persuasão, depende de o interlocutor acatar ou não a afirmação como verdade.
Meu time, aliás, está preparado para o jogo. A palavra “aliás” implica uma força argumentativa maior que a vista no primeiro enunciado, pois funciona como uma afirmação que atua sobre o interlocutor de modo a não ser possível negar sua veracidade. Observe agora os exemplos a seguir e veja qual enunciado, na sua opinião, possui maior força argumentativa:
1
Ele leu e fichou tudo para fazer a monografia.
2
Ele não só leu como também fichou tudo para fazer a monografia.
Você já percebeu que o segundo tem maior força argumentativa, não é? E o que está servindo para isso são os elementos “não só” e “como também”, que funcionam como em uma escala argumentativa, de acordo com o semanticista Oswald Ducrot. (In: GUIMARÃES, 1987, p. 19–32) Vamos entender melhor como isso funciona?
RESUMO Para a linha teórica de Ducrot, a argumentação está na própria língua, “especificamente no léxico”, como nos explica Zoppi-Fontana (2006). Assim, os enunciados e as palavras que compõem o léxico de uma língua em particular já trariam consigo valores argumentativos específicos, que conferem certa direção ao que é dito (orientação argumentativa).
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CURIOSIDADE
Alguns elementos linguísticos teriam então maior valor argumentativo que outros, o que permitiria dispô-los em uma escala argumentativa (dos termos com menor valor argumentativo para aqueles com maior “poder” de argumentação).
EXEMPLO Quer outro exemplo de como os próprios termos empregados no dizer funcionam argumentativamente? Você já deve ter ouvido a metáfora do copo, geralmente
Imperativo:
utilizada para diferenciar as pessoas otimistas daquelas consideradas pessimistas:
Você se lembra daquele anúncio em que uma meninha ficava dizendo de forma encantadora “compre Baton?” Pois é, reparou que o verbo encontra-se em uma forma imperativa? É o mesmo funcionamento que vemos em slogans famosos, como “Beba Coca-Cola” e em dizeres correntes em propagandas das mais diversas, como “Compre agora”, “Assine já” ou “Compre um e leve dois”.
“Meio vazio”
“Meio cheio”
Pessimista
Otimista
Diante de uma mesma quantidade de água em um copo, é possível afirmar que ele está “meio cheio” ou “meio vazio”. Dependendo do enunciado emitido, podemos chegar a conclusões diferentes, apesar de a quantidade de água no copo ser a mesma.
COMENTÁRIO Como afirma Zoppi-Fontana (2006), nesse exemplo, “meio cheio” e “meio vazio” possuem valores argumentativos, e nos permitem entender a argumentação como “direcionamento para uma possível continuação” (p. 196); ou, como nos diz Guimarães (2002, p. 78), “argumentar é dar uma diretividade ao dizer”.
O tempo verbal é outro importante operador argumentativo. Formas verbais no imperativo, por exemplo, possuem um valor argumentativo bastante relevante e, por isso, são muito frequentes no discurso publicitário. O modo imperativo é muito recorrente nos discursos da mídia que buscam uma maior proximidade com os seus leitores, posto que seus enunciados interpelam o interlocutor, incitando-o a uma atitude/ ação. Chamadas como “Acompanhe a movimentação do trânsito no Carnaval” e “Tire suas dúvidas de português com nosso dicionário” são apenas alguns exemplos do funcionamento dessa forma verbal. Como podemos observar, todos esses enunciados buscam encaminhar a uma única conclusão: a efetivação da compra. O que nos leva a concluir que a publicidade é um texto argumentativo por excelência; afinal, seu objetivo é levar quem a lê a comprar o produto. Ela age sobre o
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CONCEITO Ironia: Segundo o dicionário Houaiss (2009), ironia é: “1. ret figura por meio da qual se diz o contrário do que se quer dar a entender; uso de palavra ou frase de sentido diverso ou oposto ao que deveria ser empregado, para definir ou denominar algo [A ironia ressalta do contexto.] 1.1 lit esta figura, caracterizada pelo emprego inteligente de contrastes, usada literariamente para criar ou ressaltar certos efeitos humorísticos (...) 3. uso de palavra ou expressão sarcástica; qualquer comentário ou afirmação irônica ou sarcástica 4. fil disposição fingida de aprender com outrem, a quem se interroga habilmente, fazendo-o entrar em contradição e evidenciando o caráter errôneo de suas concepções.
CONCEITO Silogismo: Silogismo é uma forma de raciocínio, desde os gregos, que consiste em apresentar três proposições afirmativas, sendo as duas primeiras funcionando como premissas que se articulam entre si e que levam à conclusão posta na terceira afirmação. Um silogismo famoso, que você deve conhecer, é: “Todo homem é mortal. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal.”
outro de forma a impeli-lo a preferir um produto a outro, a substituir um produto por outro mais moderno. Para isso, a comparação, o verbo e os adjetivos (como “novo” produto) têm força argumentativa.
Argumentação e ironia Até aqui mostramos e destacamos a importância dos elementos coesivos na construção de um texto; e como, dentre eles, alguns têm maior força argumentativa que outros. É hora de pensar em outro mecanismo que também tem força argumentativa: trata-se da ironia. Estudada desde a retórica, a ironia é do interesse do campo literário, do filosófico, e, como veremos, também da linguística. Vamos pensar um pouquinho sobre isso. Leia o fragmento abaixo retirado do romance O amor, de Julian Barnes:
Deus é perfeito; nada no mundo é perfeito; portanto, nada no mundo foi feito por Deus. (BARNES, 2000, p. 33) Podemos ver aí um uso oposto, sarcástico e inteligente do silogismo servindo à argumentação de um discurso não religioso. Nesse fragmento, está em cena um silogismo. O enunciado de Barnes apresenta duas premissas – “Deus é perfeito” e “nada no mundo é perfeito” – e uma conclusão – “portanto, o mundo não foi feito por Deus” – que vai contra um discurso religioso presente e atuante em nossa sociedade: “Deus criou o mundo”. Indo adiante, para Ducrot (1987) a ironia consiste em um fenômeno polifônico, isto é, com a ironia, duas vozes comparecem: uma que enuncia e outra que é trazida nessa enunciação. Essa outra, além de não ser da responsabilidade do locutor – não é ele quem a diz, mas um outro que lhe é anterior –, é posta como absurda ou contraditória.
COMENTÁRIO Se voltarmos ao silogismo de Barnes, nele, outro dizer é trazido à baila – o de que Deus criou o mundo – e é posto em suspeição por uma lógica aristotélica (o silogismo). Daí advém sua força argumentativa: da corrosão do dizer do outro. Corrosão que pode se dar seja pelo riso, seja pelo estranhamento, seja pela desconstrução da lógica de uma determinada forma de pensar.
A ironia desfaz, portanto, a argumentação do outro. É por isto que a ironia é muitas vezes apontada como perigosa, percebeu? E não se trata apenas de um fenômeno verbal mas também não verbal, como ocorre na caricatura e nos quadrinhos, por exemplo.
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CONCEITO
Observe a figura a seguir:
Intertextualidade: Para Ingedore Kock (1990), a intertextualidade é um fator que confere coerência aos textos, uma vez que para ser interpretado, é necessário que ele guarde alguma relação com textos que o antecederam. Mas alguns textos de fato retomam, explicitamente ou não, outro texto, o que permite ao leitor reconhecer esse diálogo entre textos. Segundo Indursky, a intertextualidade consiste na “retomada/releitura que um texto produz sobre outro texto, dele apropriando-se para transformá-lo e/ou assimilá-lo.” (INDURSKY, 2006, p. 70)
No caso da figura, a ironia coloca em confronto a expectativa que é gerada a partir do estereótipo de “surfista”, contrastada pela formalidade que ele emprega no uso da língua.
RESUMO Por fim, é preciso lembrar que a ironia é, sobretudo, relacional, isto é, depende da relação daquele que diz com aquele que a escuta ou a lê. Da conivência ou do repúdio. Sua força corrosiva – e, portanto, argumentativa – está em desdizer um dizer outro, em expô-lo para destruí-lo, em fazer rir do outro.
Intertextualidade Até aqui, tratamos do funcionamento do texto de um modo geral, buscando mostrar os modos como ele se organiza. Para isso, falamos sobre noções importantes, como referência, coesão, textualidade e argumentatividade. Para fecharmos esta nossa conversa sobre texto, vamos abordar apenas mais um de seus aspectos: a intertextualidade. Da mesma maneira que podemos observar, em qualquer texto, os modos como os seus elementos internos se organizam e a maneira como esse objeto linguístico estabelece referências com a exterioridade, também podemos perceber um diálogo constante com outros textos, que geralmente se faz por retomadas, remissões e releituras.
ATENÇÃO Veja o que afirma Bentes (2003, p. 269), ao tratar da intertextualidade: “Em nossas práticas cotidianas de linguagem, não percebemos o quanto os produtores utilizam-se dessa rede de relações entre os textos, ao elaborarem os seus próprios
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textos, e o quanto nós, leitores ou destinatários, não percebemos que, ao processarmos o que lemos ou ouvimos, muitas vezes nos utilizamos de nosso conhecimento sobre outros textos, para atribuir sentido global às diversas formas textuais com as quais temos contato”.
De fato, como afirma Bentes, a intertextualidade é mesmo muito frequente e comparece em textos variados. Um exemplo clássico de intertextualidade está no hino nacional brasileiro: [...] Do que a terra, mais garrida, Teus risonhos, lindos campos têm mais flores; "Nossos bosques têm mais vida", "Nossa vida" no teu seio "mais amores." [...] Joaquim Osório Duque Estrada (1922) Observou como os dois últimos versos comparecem grafados entre aspas? É justamente um indicativo de que se trata de uma citação de dois versos da famosa Canção do Exílio, poema de Gonçalves Dias:
[...] Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores. Gonçalves Dias, em Primeiros cantos (1847) Nesse caso, a letra do hino nacional marca explicitamente o emprego de dois dos versos do poema de Gonçalves Dias, incorporando, assim, parte desse texto.
A citação é um modo de estabelecer relações intertextuais e também é uma prática muito frequente nos textos acadêmicos, como você já percebeu durante a leitura deste capítulo. Porém, nem todas as relações intertextuais são assim tão explícitas como ocorre na citação. Em alguns casos, ela tem um funcionamento diferente, menos marcado. Observe essa frase:
Essa cruzada, a guerra contra o terrorismo, vai demorar algum tempo. Declaração de George W. Bush, então presidente dos EUA, cinco dias após o ataque às Torres Gêmeas (11/09/2011)
COMENTÁRIO Quando o então presidente utilizou a palavra “cruzada”, intencionalmente ou não, provocou ira e protestos. Isso porque a palavra remete a um contexto de perseguição de cristãos contra muçulmanos, na Idade Média, o que resultou em uma jornada de extermínio àquele povo. Muitos interpretaram o discurso de Bush como uma convocação de cristãos para uma guerra santa contra o universo islâmico.
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Outra forma de intertextualidade é a paródia. São vários exemplos, como as do quadro Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, e são também várias as paródias do poema Canção do Exílio, que já mencionamos. Uma delas, analisada por Sant’anna (2007), é o Canto de regresso à Pátria, de Oswald de Andrade: Minha terra tem palmares Onde gorjeia o mar Os passarinhos daqui Não cantam como os de lá [...] Em sua análise, Sant’anna (2007) mostra como a substituição de “palmeiras”, do poema de Gonçalves Dias, por “palmares” traz para o poema de Oswald de Andrade o nome do quilombo liderado por Zumbi dos Palmares, marcando assim um posicionamento crítico em relação à história brasileira.
ATENÇÃO A paródia, nesse caso, também é um modo de argumentar, de dar uma direção aos sentidos, fazendo com que sentidos outros compareçam na relação entre textos.
Também são frequentes as paródias nos textos publicitários. As propagandas da rede Hortifruti, por exemplo, brincam muito com a paródia ao recriar títulos de filmes famosos, tendo como personagens frutas, legumes e verduras. Tal como a ironia, a paródia também apresenta duas vozes, ou, ainda, duas posições distintas em cena. Ambas têm ainda em comum o humor em seus diferentes efeitos de sentido. No capítulo seguinte, vamos retomar a noção de texto, e seguir adiante com uma novidade: a questão dos efeitos de sentidos.
CONCEITO Paródia: Na paródia, geralmente, o que ocorre é a reescritura de uma obra conhecida, de forma bem humorada, seja obra literária, filme, música, pintura etc. As paródias normalmente são reconhecidos pelo leitor, mesmo ao contar com uma nova escrita ou nova linguagem.
CURIOSIDADE Hortifruti: Já circularam em outdoors enunciados como: “Alface americana”, em uma retomada do filme Beleza americana; “Batatas do Caribe”, paródia ao título da saga da Disney Piratas do Caribe; “A hortaliça rebelde”, paródia do título do clássico A noviça rebelde, e “Horta de elite”, em uma clara relação de intertextualidade com o título do filme brasileiro Tropa de elite.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARNES, J. O amor etc. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. BENTES, A.C. Linguística textual. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A.C. (Orgs.). Introdução à linguística: domínios e fronteiras. v.1. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2003. p. 245-287. CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. Rio de Janeiro: Editora da ufrj & Relume dumará, 1996. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, 2009. Versão eletrônica. DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987. GARCIA, Othon Moacir. Comunicação em prosa moderna. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Geúlio Vargas, 1977. GUIMARÃES, E. Os limites do sentido: um estudo histórico e enunciativo da linguagem. 2. ed. Campinas: Pontes, 2002.
. Texto e argumentação: um estudo de conjunções do português. Campinas: Pontes, 1987.
Halliday, M. A. K., and Ruqaiya Hasan. Cohesion in English. London: Longman, 1976. HENRIQUES, Claudio Cezar. Dicionário de apelidos dos escritores da literatura brasileira, Curtiba: Appris, 2012. INDURSKY, F. O texto nos estudos da linguagem: especificidades e limites. In: ORLANDI, E.P.; LAGAZZI-RODRIGUES, S. (Orgs.). Introdução às ciências da linguagem: discurso e textualidade. Campinas: Pontes, 2006. p. 33-80. KATO, Mary. No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística. São Paulo: Ática, 1986. KOCH, I.V. A coesão textual. São Paulo: Contexto, 1989. PÉCORA, Alcir. Problemas de redação. São Paulo: Martins Fontes, 1983. SANT’ANNA, A.R. Paródia, paráfrase & cia. 8 ed. São Paulo: Ática, 2007. TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Contibuições do verbo à coesão e coerência textuais. Caderno de Estudos Linguíticos, 27. Campinas, 1994. YOURCENAR, Marguerite. Conto azul e outros contos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. ZOPPI-FONTANA, M. Retórica e argumentação. In: ORLANDI, E.P.; LAGAZZI-RODRIGUES, S. (Orgs.). Introdução às ciências da linguagem: discurso e textualidade. Campinas: Pontes, 2006. p. 177-210. ROCHA LIMA, Carlos Henrique. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. 28. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987. TEYSSIER, Paul. História da Língua Portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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Texto, discurso e interpretação
silmara dela silva e vanise medeiros
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Texto, discurso e interpretação
AUTOR Ferreira Gullar: José Ribamar Ferreira (1930), mais conhecido como Ferreira Gullar, é um poeta brasileiro, além de crítico literário, ensaísta e tradutor. Participou de diversos movimentos literários, mas sua obra transcende classificações ou rotulações. Foi agraciado com diversos prêmios, dentre eles Molière, Jabuti e Camões, além de ter recebido indicações ao Prêmio Nobel de Literatura.
Neste capítulo, vamos falar de um último aspecto da linguagem e, em especial, do texto. Vamos tratar da sua relação com a significação, ou seja, com a produção de sentidos. Iniciamos com a leitura de duas estrofes do poema Não-coisa, de Ferreira Gullar, que reproduzimos a seguir:
Não-coisa O que o poeta quer dizer/ no discurso não cabe/ e se o diz é pra saber/ o que ainda não sabe./ [...]/A linguagem dispõe/ de conceitos, de nomes / mas o gosto da fruta/ só o sabes se a comes/[...] Ferreira Gullar Fonte: trecho de poema extraído dos Cadernos de Literatura Brasileira, editados pelo Instituto Moreira Salles — São Paulo, nº 6, setembro de 1998, p. 77.
Nesse fragmento do poema, podemos observar que Ferreira Gullar fala sobre a relação do poeta com a sua prática de fazer poesias, que é uma prática de linguagem. Ele nos diz que é impossível para o poeta dizer tudo aquilo que ele quer dizer, ainda que a linguagem disponha de tantos “conceitos” e “nomes”... O que Ferreira Gullar traz nessa sua reflexão, entre outros aspectos, é mais ou menos a mesma questão abordada em uma das músicas gravadas pelo grupo Paralamas do Sucesso que, em seus três primeiros versos, diz assim:
La bella luna Por mais que eu pense/ Que eu sinta, que eu fale/ Tem sempre alguma coisa por dizer Herbert Viana Fonte: Disco 9 luas, do grupo Paralamas do Sucesso, lançado em 1996.
No fragmento do poema Não-coisa e nos versos iniciais da música La bella luna, temos exemplos de uma breve reflexão sobre essa relação que é específica do ser humano: a relação com a linguagem. É por essa relação que, como vimos até aqui, o ser humano
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consegue expressar os seus pensamentos, comunicar-se e interagir socialmente, utilizando-se, para isso, de textos também. Contudo, por mais que a gente diga, sempre fica “alguma coisa por dizer”, como nos lembram os versos de Herbert Viana. Por mais que a gente se aproprie dos “conceitos” e “nomes” oferecidos pela linguagem, Ferreira Gullar nos diz que: “o gosto da fruta/ só o sabes se a comes”. Daí podermos pensar que a relação humana com a linguagem não se esgota, não tem fim.
ATENÇÃO Como sempre resta algo a dizer, podemos entender que um texto, que é uma manifestação de linguagem, nunca está completo em si mesmo: é preciso um sujeito que, diante dele, possa atribuir sentidos, possa interpretar.
CONCEITO Possibilita interpretar: Ao estudar a linguagem, a analista de discurso Eni Orlandi nos lembra que a interpretação é inerente ao ser humano, o que quer dizer que “diante de qualquer fato, de qualquer objeto simbólico, somos instados a interpretar.” (2001, p. 10) Orlandi nos diz ainda: “Não temos como não interpretar” (2001, p. 9), ou seja, não temos como não atribuir sentidos diante de qualquer texto, diante de qualquer prática de linguagem.
Retomando o que vimos no capítulo anterior, quando aprendemos que a linguagem representa o mundo e a nós mesmos, podemos ir além e afirmar então que a linguagem nos possibilita interpretar, atribuir sentidos a tudo o que nos cerca, inclusive significar a nós mesmos. Para entendermos melhor essa relação humana com a interpretação, trazemos como exemplo uma história bem conhecida: a parábola dos sábios cegos e do elefante. Vamos à leitura?
Os cegos e o elefante Seis homens sábios do Industão, uma terra bem distante / Ouviram atentos os boatos sobre um animal gigante / E, apesar de serem cegos, foram ver o elefante. / O primeiro passou as mãos sobre a barriga dura e falha / E explicou bem confiante: / minha análise não falha / Esse tal de elefante mais parece uma muralha. / O segundo tocou as presas e proclamou com confiança: / Esse tal de elefante não é brinquedo pra criança / Tão pontudo e afiado, mais parece uma lança. / O terceiro chegou à tromba, elogiando a bela obra / Tão comprido e gelado, vejam só, ele até dobra. / O flexível elefante mais parece uma cobra. / O quarto sentiu a pata e teve logo a recompensa / Percebendo as semelhanças, anunciou com indiferença: / Esse animal mais parece com uma árvore imensa. / O quinto tocou as orelhas e sugeriu conservador: / Mas que belo utensílio nessas tardes de calor / Esse tal de elefante mais parece um abanador. / O sexto subiu às costas, despencando na outra borda / E pendurado ao rabo disse: Não sei se alguém discorda, / mas para mim esse animal se parece com uma corda. / E então os sábios homens discutiram inconformados / Cada um com seu discurso, sem ouvir os outros lados / Pois estavam certos em partes, mas completamente errados. Fonte: Versão para o português do poema Six blind men and the elephant, de John Godfrey Saxe (1816-1887), traduzido livremente por Josadarck Tomaz Coutinho, a partir de transcrição de vídeo disponível no YouTube.
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COMENTÁRIO Interpretações: Por exemplo, na atitude dos cegos que tentam dizer o que é o elefante, considerando apenas uma parte do animal, podemos interpretar a necessidade de se considerar sempre uma visão geral sobre qualquer fato, antes de tirarmos conclusões precipitadas. Nessa mesma linha, podemos interpretar que os cegos que se apressaram em dizer do que se tratava o elefante não conseguiram chegar a boas conclusões, o que nos faria entender, na parábola, um sentido semelhante àquele que temos no provérbio popular: “o apressado come cru”.
Nesse texto, que é uma parábola, lemos a história dos cegos sábios em suas experiências diante da novidade ali representada pela presença de um elefante. Podemos observar, de imediato, esse desejo humano de atribuir sentidos a tudo o que o cerca: os sábios queriam entender o que era aquele ser tão diferente de tudo o que conheciam e buscaram interpretar o elefante, tocando cada um em uma parte específica do animal. As interpretações e, consequentemente, os sentidos que cada um vai atribuindo ao elefante, são bem diversos: uma lança, uma cobra, um abanador, uma muralha... Os cegos vão conferindo sentidos à medida que reconhecem nas partes do animal características semelhantes a coisas já conhecidas, com as quais já tinham tido um contato.
COMENTÁRIO É assim também que nós, sujeitos da linguagem, reagimos diante de qualquer texto: tentamos interpretá-lo, buscando dar sentido a ele a partir de tudo aquilo que já ouvimos e lemos. E, muitas vezes, o fazemos por partes, sem a visão da totalidade.
Ao ler o texto dos cegos e o elefante, certamente você deve ter entendido que essa história não trata apenas de cegos em seu primeiro contato com um elefante, não é mesmo? Quando lemos a parábola, podemos extrair dela vários sentidos.
ATENÇÃO Isso nos mostra mais um ponto importante quando consideramos o texto a partir dos efeitos de sentido que ele produz: um texto sempre se abre à interpretação, o que quer dizer que o seu sentido pode sempre ser outro, já que o sentido de um texto também se produz, como estamos vendo, na relação com o sujeito que o lê.
Ao mesmo tempo, embora o sentido de um texto possa sempre ser outro, ele não pode ser qualquer um. Isso porque, diante de um texto, não podemos interpretar qualquer São vários os coisa: pela relação com a linguagem e com as condições em que é sentidos possíveis, produzido, o texto também impõe mas isso não faz de limites para a sua interpretação. um texto uma obra Se voltarmos ao nosso exemplo totalmente aberta da parábola, outro sentido que podemos interpretar a partir dela é a toda e qualquer que a verdade pode ser alcançada interpretação. com a observação de um objeto ou de um fato em sua totalidade; mas não podemos afirmar o inverso, ou seja, que um olhar apressado e parcial nos levaria igualmente à verdade.
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Quando passamos a considerar o texto a partir dos efeitos de sentido que ele produz, levando em conta o modo como ele significa para nós, sujeitos de linguagem, estamos pensando na relação entre texto e discurso.
Do texto ao discurso No capítulo anterior, vimos as estratégias necessárias para a construção da coesão textual, as quais asseguram, na superfície linguística, a suposta unidade de um texto, a tessitura das partes de um texto. Agora, passamos Podemos entender o do conceito de texto para o de discurso. Já começamos a perceber que a pro- discurso como os efeitos de dução dos efeitos de sentido está rela- sentido que se produzem a cionada aos sujeitos e às circunstânpartir da leitura de um texto. cias sócio-históricas em que o texto é produzido e interpretado, ou seja, em relação às suas condições de produção. Para entendermos melhor a relação entre o texto, os sujeitos e as circunstâncias na produção dos efeitos de sentido, vamos ler os dois fragmentos textuais a seguir. Eles tratam de uma mesma questão – o casamento –, mas os efeitos de sentido que se produzem em cada um deles aparentemente são bem diversos. Vejamos:
Veja 20 conselhos para um casamento feliz Você está prestes a começar a sua vida de casada e, certamente, o seu maior desejo é que o seu casamento dure. Não existe receita exata para isso, entretanto, alguns conselhos podem te ajudar. 1. Respire fundo e pense no quanto você o ama antes de começar uma discussão. 2. Cumprimente-o todas as manhãs carinhosamente, como se tivessem acabado de se encontrar e despeça-se dele com um beijo toda vez que ele for sair. [...] 5. Seja sensível, compreensiva e otimista. 6. Mantenha sua casa organizada, nada melhor do que a limpeza. [...] 13. Toque-o constantemente. Dê a mão para ele ao andarem na rua. 14. Comemore datas especiais como o aniversário de namoro, o seu próprio aniversário e qualquer outra data que possa ser importante. [...] Fonte: Portal Terra, editoria Mulher-Comportamento. Autor não informado. Acesso em 21/04/2013.
RESUMO DO TEXTO 1 Para quem é o texto? Qual é o gênero textual? Qual é o contexto de produção?
É dirigido à mulher recém-casada, que deseja que seu casamento dure. Trata-se de uma matéria jornalística de comportamento, caracterizada por tratar de relacionamentos interpessoais e por oferecer conselhos especializados. Destinado à circulação em um site de notícias, em um espaço reservado às mulheres leitoras.
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Desabafos de um bom marido Minha esposa e eu temos o segredo pra fazer um casamento durar: duas vezes por semana, vamos a um ótimo restaurante, com uma comida gostosa, uma boa bebida e um bom companheirismo. Ela vai às terças-feiras, e eu às quintas. Nós também dormimos em camas separadas: a dela é em Fortaleza e a minha em São Paulo. Eu levo minha esposa a todos os lugares, mas ela sempre acha o caminho de volta. Perguntei a ela onde ela gostaria de ir no nosso aniversário de casamento. "Em algum lugar que eu não tenha ido há muito tempo!", ela disse. Então eu sugeri a cozinha. Nós sempre andamos de mãos dadas. Se eu soltar, ela vai às compras. [...] Eu me casei com a "Sra. Certa". Só não sabia que o primeiro nome dela era "Sempre". Já faz 18 meses que não falo com minha esposa. É que não gosto de interrompê-la. Mas tenho que admitir: a nossa última briga foi culpa minha. Ela perguntou: "O que tem na TV?" E eu disse "Poeira". [...] Fonte: Desabafos de um bom marido. Crônica atribuída a Luis Fernando Veríssimo, disponível em vários sites na internet, fonte primária desconhecida.
RESUMO DO TEXTO 2 Quem é o sujeito representado no texto?
São dizeres produzidos a partir da imagem do lugar social atribuído aos maridos em geral.
Qual é o gênero textual?
Uma crônica, um gênero que traz traços dos textos literários, normalmente tratando de questões cotidianas.
Qual é o contexto de produção?
Destinado à circulação livre, com o objetivo de provocar humor, quase uma paródia a textos como o primeiro, destinados a aconselhar sobre relacionamentos.
Como vimos, os efeitos de sentido de um texto se produzem na relação entre a materialidade do texto, que é linguística, os sujeitos e as circunstâncias em que ele é produzido e interpretado. Se levarmos em conta essas três condições, vamos observar que os dois textos produzem efeitos de sentidos diversos. O primeiro, por meios dos conselhos que traz, produz um efeito de sentido de verdade para as leitoras a quem se destina. Uma marca no texto, dessa produção do efeito de verdade, é o emprego dos verbos no modo imperativo, no início de cada conselho: RESPIRE
PENSE
CUMPRIMENTE-O
SEJA
MANTENHA
TOQUE-O
Já no texto 2, um efeito de sentido que se produz é o de humor, que se dá pela retomada de um conselho, como o de sair para jantar fora com a esposa, e um desfecho inesperado, surpreendente: eles, de fato, não saem para jantar fora como um casal, juntos, como vemos na menção aos dias da semana. Por outro lado, apesar de tantas aparentes diferenças, os dois textos também permitem algumas interpretações semelhantes. Você concorda? Veja só:
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CURIOSIDADE
PAPEL ATRIBUÍDO À MULHER NO TEXTO 1
Atribuem-se à mulher as tarefas domésticas, como em “mantenha a casa organizada”.
NO TEXTO 2
Acontece o mesmo, ainda que de forma humorística: “O que tem na TV?” E eu disse “Poeira”; ou em “Então eu sugeri a cozinha”.
CARACTERÍSTICAS ATRIBUÍDAS À MULHER NO TEXTO 1
A mulher deve ser “sensível, compreensiva e otimista”, deve ser carinhosa (“Toque-o constantemente”), deve ser atenciosa (“Cumprimente-o todas as manhãs...”) etc.
NO TEXTO 2
A imagem de consumista (“Se eu soltar, ela vai às compras”), de autoritária (“me casei com a ‘Sra. Certa’. Só não sabia que o primeiro nome dela era ‘Sempre’”).
Como podemos observar, os textos 1 e 2 são bem atuais, mas reafirmam sentidos que já ouvimos antes, circulando por aí, não?
COMENTÁRIO
Dizeres já ditos: Também é assim que, tanto na crônica como no fragmento do texto sobre os conselhos para um bom casamento, um dos sentidos que se constitui para o casamento é o de que ele tem de durar, ou seja, ele não pode não dar certo. E aí temos um exemplo de outro dizer em circulação no casamento. É mais um ponto questionável, mas que retorna como se fosse evidente quando falamos sobre o assunto.
É que os sentidos que atribuímos a um texto sempre decorrem da sua relação com outros textos e com outros dizeres que já foram ditos e esquecidos, mas continuam em circulação em um contexto sócio-histórico. E isso nos permite dizer que os sentidos se constituem a partir de uma memória do dizer.
Do mesmo modo, quando falamos sobre casamento e sobre as funções do homem e da mulher, nessa relação, retomamos muitos dizeres já ditos e esquecidos sobre o casamento. Aqui mesmo, com essa nossa afirmação, já retomamos um dizer corrente sobre o casamento que funciona como uma memória a cada vez que falamos sobre esse tipo de união: a de que o casamento pressupõe um homem e uma mulher, princípio que pode ser questionado atualmente. Viu só como funciona a memória na interpretação? Você já deve ter percebido que estamos caminhando para uma noção de texto como não sendo somente um objeto fechado, com princípio, meio e fim, resultado da utilização adequada das regras de coesão. Chegamos a um conceito de texto como um objeto linguístico e histórico (Orlandi, 1996, p. 53), ou seja, como tendo relação com outros textos e dizeres, como tendo história (não somente da situação de sua produção, mas das leituras dele feitas, por exemplo), e como também tendo relação com o sujeito (com suas histórias, o que permite ou impossibilita tal ou tais sentidos).
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CONCEITO
EXEMPLO
Condições de produção:
Para prosseguir, tomemos de imediato um enunciado muito comum em teorias
Compreender discurso como efeito de sentidos significa que “o sentido não está (alocado) em lugar nenhum, mas se produz nas relações: dos sujeitos, dos sentidos...” (Orlandi, 1983, p. 229). Diremos, portanto, que quando tomamos a palavra, o fazemos de “lugares determinados na estrutura de uma formação social” (Pêcheux, 1997, p. 82). A tais lugares atribuem-se imagens. É por isso que tomamos o imaginário como parte integrante do funcionamento da linguagem: as imagens que fazemos dos lugares sociais são atravessados por sentidos – já existentes, em conflito, possíveis ou não – em uma sociedade.
linguísticas: trata-se da exclamação – “Que calor!” – dita em uma sala de reunião
por um diretor e que tem como contrapartida o gesto de um funcionário se levantando e ligando o ventilador do teto. Volte ao enunciado e reflita: será que, se tivesse sido proferido pelo funcionário, o chefe teria se levantado? Ou será que o chefe teria dado ordem para ligar o ventilador?
Pois é esse o ponto ao qual queremos chegar. A produção dos efeitos de sentidos está vinculada à imagem que se faz do lugar social ocupado por aquele que diz “que calor!”. E isso faz toda a diferença: se era o chefe ou o funcionário... É aí que entra em cena uma noção muito importante para entender a produção de efeitos de sentidos: trata-se da noção de condições de produção. Em outras palavras, há representações, imagens sobre o lugar social ocupado (sobre ser chefe ou funcionário, por exemplo). Tais imagens implicam posições de linguagem, visto que são definidas por uma relação com o que pode ou deve ser dito a partir de um lugar socialmente marcado. Estamos sinalizando para algo que faz parte das condições de produção: as formações imaginárias.
CURIOSIDADE “Todo falante e todo ouvinte ocupa um lugar na sociedade, e isso faz parte da significação. Os mecanismos de qualquer formação social têm regras de projeção que estabelecem a relação entre as situações concretas e as representações (posições) dessas situações no interior do discurso: são as formações imaginárias.” (Orlandi, 1988, p. 18).
Dito de outro modo, em relação a qualquer lugar social, inscrevem-se projeções imaginárias sobre os interlocutores (imagens sobre si, sobre o outro e sobre o objeto do discurso) que fazem parte daquilo que se diz.
Retomando o conceito: condições de produção Você já começa a perceber por que a noção de condições de produção é fundamental na produção de sentidos e por que é diferente da noção de contexto, que vimos nos capítulos 4 e 5.
ATENÇÃO Condições de produção é um conceito que agrega os interlocutores e a situação, ambos materializados no jogo imaginário das relações sociais de uma sociedade. A noção de condições de produção abarca ainda outros elementos, como a memória e a historicidade.
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Vejamos, então, outros exemplos, como o fragmento a seguir retirado do livro Amor, etc., de Julian Barnes: O amor em um bairro arborizado e democrático, com uma renda de seis dígitos por ano, é diferente do amor em um campo de concentração stalinista. (Barnes, p. 33).
EXEMPLO Nesse trecho, como podemos ler, o autor está opondo duas condições sociais para significar o amor – “renda de seis dígitos” e “bairro arborizado e democrático” versus “campo de concentração stalinista”. Em outras palavras, os sentidos para amor decorrem do contexto histórico e social.
Vamos observar dois outros exemplos, que dizem respeito à história da língua portuguesa: “E entre nós e os latinos há esta diferença: eles fazem comparativos de todos os seus nomes adjetivos que podem receber maior ou menor significação, e nós temos mais comparativos que estes: maior, que quer dizer mais grande; menor, que quer dizer menos grande; melhor para mais bom; pior, para mais ruim.” (Adaptação nossa do original) “E antre nós e os latinos há ésta diferença: eles afazem comparativos de todolos seus nomes ajetivos que podem receber maior ou menor sinificaçám, e nós nam temos mais comparativos que estes: maior, que quer dizer mais grande; menor, por mais pequeno; millór por mais bom; pior, por mais máo.” (João de Barros, Gramática da língua portuguesa, 1540, apud Quental, 1995)
Cessem do sábio Grego e do Troiano / As navegações grandes que fizeram; / Cale-se de Alexandro e de Trajano / A fama das vitórias que tiveram; / Que eu canto o peito ilustre Lusitano, / A quem Netuno e Marte obedeceram: / Cesse tudo o que a Musa antiga canta, / Que outro valor mais alto se alevanta. (Trecho da obra Os Lusíadas, publicada em 1572, por Luiz Vaz de Camões, 1524-1580)
O primeiro exemplo traz a adaptação de um trecho da segunda gramática de língua portuguesa; já o segundo exemplo é um trecho do famoso poema épico Os Lusíadas, de Camões. A gramática e o poema são contemporâneos entre si, como se pode perceber.
ATENÇÃO Na gramática, está em jogo a língua portuguesa, que, neste momento, é significada como sendo do mesmo quilate que a língua latina e até mais completa que ela (tem mais comparativos que a língua latina). No poema estão em jogo, como já é sabido, os feitos portugueses: feitos marítimos, conquistas, e também a língua portuguesa que, nesse momento, “se alevanta” frente a uma antiga musa: a língua latina.
Você deve estar se perguntando: O que isso tem a ver com condições de produção? Pois bem, pense e responda: será que sempre a língua portuguesa foi posta como superior à língua latina? Não é o caso.
capítulo 6
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COMENTÁRIO Língua portuguesa: No século xix, por exemplo, o que se dizia da língua portuguesa, nas gramáticas, era que ela valia tanto quanto a língua latina. Não se tratava de dizer que tinha mais comparativos ou não, mas de destacar a origem latina da língua portuguesa. Buscavam-se, assim, exemplos nas duas línguas que fizessem a portuguesa valer tanto quanto o latim. Então, no século xv, a língua portuguesa era posta como sendo mais completa que a latina; já no século xix, o português era visto como equivalente à língua latina.
Ora, o que está em jogo é que as condições de produção são outras: no século xvi, das descobertas, os portugueses estavam percorrendo o mundo; e a sua língua – uma língua de uma nação que se mostrava extremamente forte – estava no mesmo patamar que seus feitos: maiores que os latinos... Já no século xix, as condições de produção são outras: a língua portuguesa já possuía literatura expressiva, gramáticas e dicionário; não precisava mais se impor frente ao latim, que também deixa de significar ameaça à portuguesa para poder ser exemplo e motivo para a dignificação da língua pela semelhança.
COMENTÁRIO A partir desse exemplo, já podemos entender a definição de condições de produção como compreendendo “o contexto histórico-social, ideológico, a situação, os interlocutores e o objeto do discurso, de tal forma que aquilo que se diz significa em relação ao que não se diz, ao lugar social, para quem se diz, em relação aos
outros discursos etc.” (Orlandi, 1988, p. 95).
CONCEITO
Quer outro exemplo de como funcionam as condições de produção? Então, veja só a charge a seguir:
Data de circulação: Como podemos ver, conhecer as circunstâncias imediatas em que o texto foi produzido é muito importante para que possamos entender os efeitos de sentido possíveis a partir dela. Contudo, não é somente a circunstância imediata de enunciação, ou seja, a situação em que um texto foi produzido, que conta nos modos como ele irá produzir efeitos de sentidos para os sujeitos leitores. As circunstâncias imediatas dialogam sempre com o contexto sócio-histórico ideológico.
Inspirado em charge original de Miguel Paiva, publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 05/10/1988 (edição histórica, p. 3).
Para pensarmos no funcionamento das condições de produção, no processo de produção de sentidos nessa charge, podemos começar observando a data de circulação da charge original: 05 de outubro de 1988. É justamente nessa data que foi promulgada a Constituição Federal, a lei máxima do país. A menção à Constituição está marcada, na charge, na expressão: “São direitos sociais a educação, a moradia...”, grafada no primeiro balão, que traz justamente a leitura de um dos artigos da lei então recém-aprovada. Na charge, podemos observar a representação das figuras de uma família, e podemos interpretar pela imagem que tal família provavelmente
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não tem uma moradia digna. O cenário e os lugares atribuídos aos sujeitos ali presentes denunciam o sentido de que “moradia”, “comida”, “saúde” e tantos outros direitos básicos do cidadão brasileiro não passam de um sonho para muitos cidadãos que, naquele momento histórico, viviam na pobreza, apesar de a lei já ter sido promulgada. No texto da charge, como vemos, a família ali representada ocupa um lugar social específico na sociedade brasileira: o lugar daqueles que esperam ser amparados pelo Estado, mas que raramente o são, não possuindo, de fato, condições sociais dignas de subsistência.
EXEMPLO
AUTOR Italo Calvino: Italo Calvino (19231985) nasceu em Cuba, filho de pais italianos. Logo após o nascimento, sua família retornou à Itália. Foi um dos escritores contemporâneos mais traduzidos, além de ter sido indicado ao Prêmio Nobel de Literatura.
A crítica ao Estado se marca justamente na fala da mulher, que ao dizer “aquele pedaço bonito que fala de comida, saúde...”, denuncia justamente que as leis, de um modo geral, são mesmo bonitas no papel, mas não se efetivam para todos os brasileiros igualmente. E aí temos mais um exemplo do funcionamento da memória do dizer, um dizer já-dito: as leis são muito boas na teoria, e não necessariamente na prática.
Nesse nosso exemplo, mostramos como funciona, na charge, o contexto histórico-social e ideológico. Agora, vamos nos deter um pouco em ideologia; para isso, leia mais um fragmento textual, esse retirado do conto As cidades invisíveis, de Italo Calvino: “A cidade de Leônia refaz a si própria todos os dias (...) mais do que pelas coisas que todos os dias são fabricadas, vendidas, compradas, a opulência de Leônia se mede pelas coisas que todos os dias são jogadas fora para dar lugar às novas. (...) O resultado é o seguinte: quanto mais Leônia expele, mais coisas acumula (...). A imundície de Leônia pouco a pouco invadiria o mundo se o imenso depósito de lixo não fosse comprimido, do lado de lá de sua cumeeira, por depósitos de lixo de outras cidades que também repelem para longe montanhas de detritos.” (Calvino, As cidades invisíveis, p. 105).
O conto de Calvino fala de uma cidade cuja opulência é marcada pelo que se joga fora, pelo dejeto. Essa cidade não é estranha ao nosso mundo contemporâneo. Ao contrário, vivemos sob a égide do consumo incessante: as propagandas que todos os dias nos dizem que é preciso comprar, que isso ou aquilo já está ultrapassado, que, então, é preciso se livrar do que se torna obsoleto para obter o último e mais avançado modelo de algo... (“quanto mais Leônia expele, mais coisas acumula”).
RESUMO Em outras palavras, a cidade de Leônia, como lembra Bauman (2010), inscreve-se em um estágio do capitalismo em que o acúmulo implica um incessante descartar que joga contra a durabilidade das coisas. Não é mais a durabilidade que vale.
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CONCEITO Ideologia: “É a ideologia que fornece as evidências pelas quais ‘todo mundo sabe’ o que é um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve etc., evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado ‘queiram dizer o que realmente dizem’: e que mascaram, assim, sob a ‘transparência da linguagem’ aquilo que chamaremos de o caráter material do sentido das palavras e do enunciado.” (Pêcheux, 1988, p. 160).
Tais constatações remetem à ideologia, ou seja, é a ideologia que permite o efeito, imaginário, de se supor o mundo como já tendo ou fazendo sentido, como “sendo assim”. Leia agora outro fragmento que exemplifica ainda mais o que estamos tomando como ideologia: “ (...) pegue esses fenômenos migratórios que observamos nas nossas estradas, por ocasião do que chamamos férias. É, de certo modo, espantoso. Para estar seguro de que se trata de férias, é preciso que você faça como todo mundo, sofrer, passar por engarrafamentos, pela dor. A situação que descrevi sem dúvida é paródica, mas todo mundo já pôde observá-la. Quando você ouve o rádio anunciar um ‘domingo infernal’ nas estradas, ele diz que o seu comportamento é perfeitamente inscrito e previsto. Antes mesmo que você aja, sabe-se o que vai fazer. O grande irmão, Big Brother, está lá, nesse discurso benevolente; ele diz: atenção, domingo, vocês vão todos cair na estrada. Você vive sem surpresa, você não vai voltar três dias mais cedo, nem um dia depois.” (Melman, 2003, p. 98).
Pois é, agora que você já compreendeu que os sentidos são produzidos histórica e socialmente, podemos avançar mais um pouquinho na compreensão de que ideologia constitui um mecanismo imaginário que produz, em um dizer já dado, um sentido que para o falante aparece como evidente, ou seja, natural, óbvio para ele enunciar daquele lugar.
COMENTÁRIO É por isso que podemos afirmar que os sentidos são ideologicamente marcados porque eles não são naturais, mas estão relacionados às posições que os sujeitos ocupam em um dado contexto sócio-histórico.
Para vermos mais um exemplo de como os sentidos são ideológicos, ou seja, como eles são construídos pelas práticas ideológicas que nos dizem como as coisas devem ser entendidas, basta observarmos como um mesmo objeto pode ser significado de modos diferentes, dependendo de quem fala sobre ele. Um bom exemplo é o “salário”, aquele pagamento mensal recebido pelo trabalhador:
SALÁRIO Os sentidos da palavra “salário” para um assalariado podem ser...
O sentido da palavra “salário” para um patrão pode ser...
“condição de sobrevivência”
“aumento de custos, ou recursos que saem do caixa da empresa todos os meses para cumprir a folha”
“retorno justo como pagamento por tarefas realizadas”
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São as posições ideológicas de trabalhador e de patrão que, nesse caso, determinam que uma mesma quantia em dinheiro signifique diferentemente.
RESUMO Como viemos mostrando até aqui, os efeitos de sentido se constituem na relação da materialidade textual com as suas condições de produção, que incluem desde as circuntâncias imediatas em que um texto é produzido até o contexto sócio -histórico de disputa e tensão pelo poder, que é sempre ideológico.
No jogo dos sentidos, entram em cena a memória do dizer, que, como vimos, é composta por dizeres já–ditos que permanecem em circulação, e também as imagens dos lugares ocupados pelos sujeitos que, por sua vez, decorrem de práticas ideológicas. Logo, como você já deve estar percebendo, o sentido não depende somente daquilo que é dito, isto é, da materialidade linguística presente em um texto. O que é dito significa sempre na relação com o já-dito, que é a memória do dizer; e significa também na relação com o não-dito, mas que, de diferentes modos, se marca no dizer, participando da produção de efeitos de sentido. Por essa você não esperava, não é mesmo? Você deve estar se perguntando: como aquilo que não é dito pode significar no dizer? De fato, é uma questão bastante intrigante... Mas isso apenas a princípio. Observando mais atentamente, vamos ver que a questão não é tão complicada assim.
CONCEITO Não é dito: Se é verdade que não podemos dizer tudo, também é verdade que nem tudo precisa ser dito para ser significado, para ser compreendido. Um exemplo disso nós já vimos quando falamos sobre o funcionamento de enunciados como “que calor!”, que podem fazer com que alguém ligue o ventilador, ainda que esse pedido não tenha sido expresso textualmente. Pois bem, o pedido não foi dito, mas foi significado em função de questões contextuais, como vimos.
O não-dito e os sentidos O não-dito pode se marcar no dizer de diferentes modos, como nos mostram os trabalhos de vários estudiosos de linguagem. O semanticista francês Oswald Ducrot (1972), por exemplo, dedicou parte de seus estudos à compreensão do funcionamento dos implícitos, que são justamente um modo de manifestação da relação entre o dizer e o não-dizer na linguagem.
RESUMO Na base dessa sua reflexão está o entendimento de que não é somente aquilo que é dito textualmente que pode ser compreendido a partir de um texto. Algumas informações que ficam implícitas participam igualmente do processo de constituição de sentidos.
Para entendermos melhor o que Ducrot chamou de implícitos, vamos partir de um exemplo: o poema Do amoroso esquecimento, de Mario Quintana, que reproduzimos a seguir.
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Do amoroso esquecimento (1945) Eu, agora - que desfecho!/Já nem penso mais em ti.../ Mas será que nunca deixo/De lembrar que te esqueci? (Mário Quintana, em Antologia poética, 2001)
No segundo verso do poema, o poeta afirma o esquecimento daquela pessoa que ele amava. Nesse dizer do poeta, o emprego do advérbio “mais” marca o funcionamento de um implícito. Vamos ver como isso acontece?
Já nem penso mais em ti... Ao afirmar que deixou de fazer alguma coisa, o sujeito que enuncia marca em seu dizer que essa mesma coisa era feita anteriormente, em um tempo passado.
CONCEITO O pressuposto é um tipo de implícito, que está relacionado ao funcionamento da instância da linguagem, ou seja, àquilo que é dito propriamente. Como afirma Orlandi (2001, p. 82): “O posto (o dito) traz consigo um pressuposto (não-dito, mas presente).”
Na continuidade do poema, os dois versos finais denunciam justamente que esse pensar ainda não faz parte do passado, sinalizando a dificuldade do poeta em esquecer esse outro, ao final de um relacionamento amoroso vivido.
Mas será que nunca deixo / De lembrar que te esqueci? Será que o fim do relacionamento foi contra a vontade do poeta? Poderíamos interpretar que ele não consegue deixar de lembrar de um relacionamento que acabou virando um “esquecimento amoroso”. Pensar que o relacionamento acabou contra a vontade do poeta já é uma interpretação a partir do que foi dito, pois o motivo para o poeta ter de esquecer esse amor também fica não-dito no poema.
COMENTÁRIO Nesse caso, temos outro tipo de implícito: o subentendido, que não está diretamente ligado àquilo que é dito, à instância da linguagem, mas que pode ser interpretado em função do contexto em que foi enunciado.
Os implícitos, como vemos, são modos de funcionamento do não-dito naquilo que é dito. Outros modos de funcionamento do não-dito na linguagem estão mais diretamente
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CONCEITO
relacionados à instância do discurso, na relação com o funcionamento da memória do dizer e da ideologia.
Implícitos:
RESUMO Na relação com a memória do dizer e a evidência do sentido, que é um trabalho da ideologia, o não-dito significa justamente pela sua ausência no dizer, pela relação entre o que é dito e aquilo que poderia igualmente ser dito, mas que não o foi.
Vejamos um exemplo de produção de sentidos na imprensa. Ao relatar a ação de movimentos como o dos trabalhadores rurais sem terra (mst), a grande imprensa geralmente designa tal ação de “invasão”, enquanto os membros do movimento costumam falar em “ocupação”, como afirma Indursky (1999), após várias análises dos discursos do/sobre o mst.
Como afirma Eduardo Guimarães (2006, p. 135), ao tratar do implícito: “Há algo que está significado no que se diz que não está diretamente dito, é preciso que um certo tipo de raciocínio (um procedimento de interpretação) seja feito para se retirar da língua, com suas regras de combinação e das condições específicas de funcionamento dos enunciados no acontecimento, o que eles significam.”
A MESMA AÇÃO PODE SER NOMEADA COMO... INVASÃO
OCUPAÇÃO
Quando se opta pela palavra “INVASÃO”, marca-se na língua uma oposição ao termo “OCUPAÇÃO”, adotado pelo MST. Além de se marcar uma oposição, o termo “INVASÃO” constitui sentidos para a memória de quem lê, relacionando o termo aos sentidos de outras “invasões”: atos criminalizados, passíveis de punição.
É justamente essa a relação entre o dito e o não-dito que podemos observar nos enunciados a seguir:
Ministério Público denuncia 72 alunos pela ocupação de reitoria em 2011 Fonte: Jornal online Última Instância, portal uol, publicado em 06/02/2013.
Até alunos contra a invasão da reitoria criticam denúncia Fonte: O Estado de São Paulo (versão online), publicado em 07/02/13.
COMENTÁRIO Os dois enunciados tratam de uma mesma ação: a denúncia feita pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra funcionários e alunos da Universidade de São Paulo (usp), que, em protesto, ocuparam a reitoria da universidade em 2011. Nesse exemplo, dizer “ocupação” é não-dizer “invasão”, e vice-versa, e esse não-dito também irá produzir os seus efeitos no dizer, marcando uma posição ideológica, dentre outras, e fazendo com o que os sentidos sejam filiados a certas memórias do dizer e não a outras.
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CONCEITO Censura: Censura é uma prática adotada por um grupo no poder para impedir ou punir a circulação de informação não autorizada. Atualmente, pode ser entendida como qualquer tentativa de cercear a liberdade de expressão. Durante o período da ditatura militar no Brasil, entre 1964 e 1985, a interdição ao dizer resultou no exílio de muitos artistas e intelectuais brasileiros, que insistiam em dizer aquilo que, segundo o governo militar, não podia ser dito.
Desse modo, podemos observar que o não-dito é mesmo constitutivo do dizer: dizer uma palavra é necessariamente não dizer outra. É justamente entre o dito e o não-dito que os efeitos de sentido se produzem. Ou, como nos diz Orlandi (2001, p. 82): “... ao longo do dizer, há toda uma margem de não-ditos que também significam.”
O não-dito e o silêncio Do mesmo modo que para dizer de um jeito é necessário não dizer de outro, o não-dito também pode funcionar de modo a apagar outros sentidos, ou seja, fazendo com que alguns sentidos não compareçam no que é dito, sejam silenciados, enquanto outros são privilegiados.
CURIOSIDADE Para além desse silêncio que constitui mesmo os sentidos, Orlandi (2002), ao estudar as formas do silêncio, apresenta-nos outros dois modos de seu funcionamento diretamente ligados ao não-dito: o silêncio fundador, que é condição da linguagem, e o silenciamento ou política do silêncio, que se divide em dois tipos: o silêncio constitutivo e o silêncio local.
Em nosso exemplo, com os enunciados sobre a decisão do Ministério Público paulista de denunciar estudantes da usp, temos um caso de silêncio constitutivo. Vejamos novamente:
Até alunos contra a invasão da reitoria criticam denúncia. Dizer “invasão” é impedir que os sentidos de “ocupação” se legitimem, sejam reconhecidos. Nesse caso, é calar o sentido da ação dos estudantes como um movimento legítimo, justamente porque dizer “invasão” significa silenciar esse outro sentido possível (o de “ocupação”).
Ao definir o silêncio constitutivo, Orlandi (2001, p. 83) afirma: “... uma palavra apaga outras palavras (para dizer é preciso não-dizer)”. Já a noção de silêncio local é empregada pela autora para explicar o funcionamento da censura, que consiste justamente na interdição a certos dizeres em uma conjuntura dada. São inúmeras as letras de músicas, por exemplo, que tentam escapar à proibição de dizer imposta pela ditadura militar no Brasil, recorrendo a dizeres outros. Vejamos um exemplo no fragmento da letra da música Meu caro amigo, uma composição de Chico Buarque e Francis Hime:
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Meu caro amigo [...] Aqui na terra tão jogando futebol / Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll / Uns dias chove, noutros dias bate sol / Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui / tá preta [...] Fonte: disco Meus caros amigos, de Chico Buarque, lançado em 1976.
Os autores afirmam a banalidade das ações cotidianas, marcadas em expressões como “jogando futebol”, “muito samba” e no verso “uns dias chove, noutros dias bate sol”. No entanto, não deixam de afirmar que o que “querem dizer”, ainda que não possam, é que a situação não vai bem. A expressão “a coisa aqui tá preta”, que será repetida várias vezes na canção, sinaliza a interdição ao dizer, os sentidos da censura marcados pela cor preta que silencia, impedindo sentidos outros de circular. Outra marca é a expressão “muito choro”, que em meio à menção a “samba” e “rock’n’roll” pode ser significada meramente como um ritmo musical, mas que também pode encaminhar para o sentido de sofrimento provocado pelas prisões, pelos sumiços e pelas mortes impostas àqueles que teimavam em não silenciar.
COMENTÁRIO No caso do silêncio local, a interdição ao dizer leva à busca por possibilidades outras de fazer comparecer o não-dito naquilo que ainda pode ser dito. Conforme nos diz Orlandi (2001, p. 83): o “silêncio local, que é a censura (...) faz com que o sujeito não diga o que poderia dizer: em uma ditadura não se diz a palavra ditadura não porque não se saiba, mas porque não se pode dizê-lo.”
Como vemos, é na relação entre a possibilidade do dizer (o dito e o não-dito) que os efeitos de sentido vão se constituindo, podendo sempre ser outros, o que é possibilitado pelo silêncio e pela natureza mesmo da linguagem, que é incompleta.
O dizer e o já-dito Uma vez que todo dizer traz consigo um já-dito e um não-dito, que, como vimos, são trabalhados via memória do dizer, podemos afirmar que todo dizer retoma em si sentidos já-ditos, ao mesmo tempo em que permitem que sentidos outros se constituam, possibilitando assim novos processos de significação.
ATENÇÃO Uma consequência disso é que todo dizer retoma dizeres ditos previamente e que são atualizados ao serem ditos de novo, em novas condições sócio-históricas e ideológicas, por e para outros sujeitos.
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CONCEITO Funcionamento da paráfrase: Como afirma Orlandi (2001, p. 36), “em todo dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória. A paráfrase representa assim o retorno aos mesmos espaços do dizer. Produzem-se diferentes fomulações do mesmo dizer sedimentado”. Logo, a paráfrase tem como marca a repetição, a reiteração de certos dizeres que fazem parte da memória discursiva e que são mobilizados pelos sujeitos.
AUTOR Lavoisier: Antoine Laurent de Lavoisier (1743-1794) é considerado o pai da Química moderna. Apesar da excepcional contribuição científica que deu à humanidade, especialmente nos estudos da matéria e sua conservação, foi condenado à guilhotina.
Vamos ver um exemplo para entendermos melhor esta relação entre o dizer e o já-dito? Têm circulado muito na internet, de um modo geral, quadrinhos que trazem novas versões de ditados populares bem conhecidos. Vejamos dois deles:
“Amigos, amigos, senhas à parte.” O já-dito é “Amigos, amigos, negócios à parte”, sendo o termo “negócios” substituído por “senhas”, muito requeridas no espaço digital. Mas um dos sentidos do ditado tradicional permanece: as relações de amizade devem ser separadas das negociações, sejam elas no mundo real ou virtual.
“Não adianta chorar sobre o arquivo deletado.” O já-dito é “Não adianta chorar sobre o leite derramado”. No dito, a expressão “leite derramado” é substituída por “arquivo deletado”. O sentido do ditado original, no entanto, permanece: em algumas situações, não há nada que possa ser feito, daí ser inútil chorar.
COMENTÁRIO Em casos como esses, apesar de termos uma formulação original nos ditados, que aparecem repaginados em relação a novas condições de produção do espaço virtual, temos uma retomada de dizeres já-ditos, o que quer dizer que discursivamente temos o funcionamento da paráfrase.
Agora, veja mais um exemplo de ditado popular da era digital:
Na informática nada se perde, nada se cria. Tudo se copia…. e depois se cola. Nesse caso, vemos que o sentido do provérbio tradicional não se mantém; ele é deslocado, a partir da recuperação da famosa frase de Lavoisier. O ditado retoma um dizer já-dito, mas também promove uma ruptura de sentido: “Tudo se copia... e depois se cola”. Na retomada de outro dizer já-dito em outro espaço, “copiar e colar” textos, retomando a facilidade de cópia proporcionada pelos comandos “Ctrl+c” e “Ctrl+v”, a ruptura se evidencia.
RESUMO Nesses dois casos, temos a possibilidade de sentidos outros, um deslocamento de sentido, apesar da aparente retomada de uma frase famosa. Desse modo, temos o funcionamento da polissemia. Segundo afirma Orlandi (2001, p. 36), “na polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação. Ela joga com o equívoco.”
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É na relação entre paráfrase e polissemia que os dizeres se assentam, uma vez que eles sempre retomam dizeres já-ditos, mas também promovem deslocamentos, que fazem com que o sentido possa sempre ser outro.
Sujeito e sentido Até agora, pensamos no funcionamento da linguagem e nos modos como os processos de sentido se constituem, observando a relação entre texto e discurso do lado da interpretação. Mas como será que podemos pensar todas essas características da linguagem do lado da sua produção? Qual a relação do sujeito com a linguagem, com os seus enunciados e textos? Se compreendemos que os sentidos sempre se constituem na relação entre a linguagem e as suas condições de produção, e que assim fatores sócio-históricos e ideológicos determinam o modo como os discursos produzem os seus efeitos de sentido, é preciso também entendermos que, nessa mesma relação de linguagem e de sentidos, está imerso o sujeito da/na linguagem.
ATENÇÃO O sujeito ocupa sempre uma posição discursiva ao abrir a boca para falar, e essa posição traz suas marcas ideológicas, o que equivale a dizer que o sujeito diz sempre de um lugar, produzindo sentidos que para ele aparecem como se fossem evidentes e naturais.
É por isso que, quando pensamos o texto da perspectiva de sua produção, em sua relação com o discurso, pensamos que o sujeito, autor de seu texto, constitui-se por um efeito imaginário, que coloca o sujeito na origem de seu texto, apesar de seu dizer se constituir sempre a partir de uma memória discursiva, a partir do já-dito. O mesmo irá se dar com o sujeito-leitor. Vejamos um episódio verídico: uma criança com quase 7 anos, já alfabetizada, recém-ingressada em uma nova escola, que, no caso, era católica, em um dos exercícios a serem feitos, em que aparecia “Qual é o nome do papa?”, acrescenta um “i” ao nome “papa” e escreve, então, o nome do seu pai.
COMENTÁRIO Ora, de imediato temos aí um exemplo do que dissemos no início: somos instados a dar sentido e o fazemos. Para ela, era evidente que faltava um “i” para papai; o “i” de “papai” inscreve-a como leitora.
Disso resulta que a leitura, então, não é aqui considerada como decodificação de um código; ao contrário, como explica Orlandi (1988, p. 39), “o leitor traz para sua leitura a sua experiência discursiva, que inclui sua relação com todas as formas de linguagem”. Tal como a função-autor, a função-leitor tem condições de produção que produzem certos sentidos e não outros, o que produz, por fim, a evidência de que só pode ser assim... Terminamos, então, essa nossa jornada que foi do texto ao discurso, introduzindo noções teóricas novas que estabelecem relação de continuidade com conceitos já estudados
capítulo 6
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em capítulos anteriores, tais como posição-sujeito, polissemia e tipologia discursiva. É justamente assim que julgamos ser importante proceder aos estudos da linguagem: acrescentando, ao dispositivo de análise, novos desafios e teorizações.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARNES, J. O amor. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. BAUMAN, Z. Capitalismo parasitário. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. CALVINO, I. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. DUCROT, O. (1972). O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987. GUIMARÃES, E. Semântica e pragmática. In: GUIMARÃES, E.; ZOPPI-FONTANA, M. G. (Orgs.). Campinas: Pontes, 2006. p. 113-146. INDURSKY, F. De ocupação à invasão: efeitos de sentido no discurso do/sobre o MST. In: INDURSKY, F.; LEANDROFERREIRA, M. C. (Orgs.). Os múltiplos territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999. p. 173-186. MELMAN, C. O homem sem gravidade. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003. ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 5. ed. Campinas: unicamp, 2002. ______. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 3. ed. Campinas: Pontes, 2001. ______. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996. ______. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas: Pontes, 1983. ______. Discurso e Leitura. Campinas: Cortes, 1988. PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (aad-69). In: GADET, F.; HAK, T. (Org.). Por uma análise automática do discurso. 3. ed. Campinas: unicamp, 1997. ______. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. QUENTAL, V. As gramáticas do século xvi: a questão da norma. In HEYE, J. (Org.) Flores verbais. Rio de Janeiro: 34, 1995. QUINTANA, M. Antologia poética. Porto Alegre: L&PM, 2001.
IMAGENS DO CAPÍTULO p. 110 Resmungos Divulgação · Imprensa Oficial do Estado de São Paulo p. 115 Wedding cake Olah Beata · stock.xchng · rf p. 118 Constituição Victor Maia · Estácio
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p. 119 Italo Calvino Autor desconhecido · Wikimedia p. 126 Antoine Lavoisier Louis Jean Desire Delaistre · Wikimedia · cc