Ética e relacionamento na empresa

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ÉTICA E RELACIONAMENTO NA EMPRESA


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Ética e relacionamento na empresa. Jean Bartoli Publicado na Revista Marketing Industrial, edição 27, Ano 10, 2004, p. 28-32

Toda reflexão ética empenha-se em encontrar respostas! Ter respostas rápidas diminui, aparentemente, a angústia mas pode aumentar o dogmatismo e dificultar o diálogo com quem está num caminho de busca no mundo complexo, contraditório e ambíguo que é o nosso. Toda resposta depende de perguntas e de boas perguntas! Dependendo da qualidade dessas, podem-se encontrar soluções superficiais e transitórias ou respostas mais profundas e permanentes. Algumas indagações são recorrentes: existem porém momentos privilegiados quando, de vários cantos do mundo, convergem paradoxos propostos para a reflexão de toda a humanidade. Assim aconteceu entre o sexto e quinto século antes de Cristo quando três figuras apontam três problemas que provocam todo ser humano:

— O mundo corresponde às aparências? Será que precisamos ter a coragem de questionar nossa percepção e nossas opiniões para tentar um esforço de reflexão verdadeira? Depois de Sócrates, é difícil escapar dessas perguntas. — O que fazer diante da experiência da velhice, da doença e da morte? A tomada de consciência, que faz o Buda iniciar seu caminho, desafia qualquer pessoa e qualquer comunidade. — É possível acreditar que as relações humanas são justas quando se percebe que os injustos são premiados e que os inocentes são esmagados? O grito de protesto de Jó, figura do povo de Israel que amargava a experiência da deportação e do exílio, continua a ecoar até hoje.

Civilizações, comunidades políticas e religiosas foram também confrontadas a esses questionamentos. Paul Valéry iniciou um ensaio, publicado entre as duas guerras mundiais, com uma afirmação peremptória: "Nós, civilizações, sabemos que somos mortais." Talvez ele quisesse significar que qualquer sociedade que


2 busque a perenidade deve ter a humildade de reconhecer determinados limites. O mesmo vale para as empresas. Por isso gostaríamos de tentar traduzir essas perguntas de quase vinte cinco décadas atrás. — Sócrates, talvez, perguntasse para os atuais tomadores de decisão: como anda sua capacidade de questionar evidências e enfrentar os dogmatismos? Muitas opiniões induzidas pelo barulho estridente de algum "formador de opinião" e compartilhadas pela maioria revelaram-se falsas e criaram situações irreversíveis e, às vezes, mortais para as organizações. Onde estava o pensamento crítico? Não esqueçamos que a palavra "crítica" vem de um verbo grego cujo primeiro significado é julgar. Hannah Arendt, analisando o processo de Eichman, um dos responsáveis pelo Holocausto, frisou que esse homem não pensava porque era incapaz de julgar as próprias ações fora da perspectiva da eficácia e das ordens que recebia.

— Apesar de o budismo ser uma fonte de inspiração para muitos, nem sempre a tomada de consciência inicial do Buda acerca dos grandes limites humanos está inspirando os tomadores de decisão. O que significaria para uma empresa que busca a perenidade confrontar-se com o envelhecimento, a doença e a morte? É preciso reconhecer que existe uma diferença fundamental entre o indivíduo e a empresa quando se tenta responder a este tipo de pergunta. Sendo a empresa um organismo social, ela está menos submetida a leis biológicas e sua perenidade depende muito de decisões tomadas por seres humanos livres. Mesmo considerando que um projeto empresarial é condicionado por vários fatores ambientais, é preciso reconhecer que as decisões econômicas e políticas têm um peso preponderante, inclusive em relação à manutenção do próprio meioambiente. Portanto, refletir sobre a vida e a morte das empresas, assim como Paul Valéry refletia sobre a vida e a morte das civilizações, sugere a seguinte pergunta: é humano agir sem avaliar as conseqüências previstas e previsíveis das nossas ações? Muitos afirmam que é difícil pensar em conseqüências de médio ou longo prazo quando falta tempo para tudo e a


3 velocidade dos acontecimentos parece tirar toda possibilidade de uma reflexão mais criteriosa (aliás outra palavra formada a partir do verbo grego acima citado!). Infelizmente para os apressados e felizmente para os prudentes, o fato de que qualquer ato humano tem conseqüências é um dado da experiência: por isso uma das palavras chaves da reflexão ética é a palavra responsabilidade, ou seja, o dever de responder pelas conseqüências dos seus atos. Aliás, impressiona observar a ânsia de buscar sempre um culpado quando algo acontece. Muitas vezes, a busca de soluções foi substituída pela caça ao bode expiatório.

— Como sempre, hoje ainda, o grito de Jó perturba nosso mundo e o impede de resignar-se com a paz dos cemitérios! Para as empresas, ele poderia ressoar assim: como criar vínculos duradouros sem a prática da justiça? Sem estar atento a essa variável, que determina tanto o clima social como o ambiente de negócios e a convivência dentro da organização, fica difícil exigir que pessoas estejam comprometidas com a sua empresa num projeto comum. Esta constatação adquire uma premência particularmente relevante hoje porque a relação empresa / colaborador ficou mais precária em função de novas circunstâncias de mercado. O vínculo, na maioria das organizações, não pode mais ser construído sobre o binômio: dedicação presente em troca de uma recompensa futura. No tempo em que as companhias podiam assumir compromissos de longo prazo com seus integrantes, esta proposta, muito parecida com a oferecida por qualquer igreja a seus crentes (sofra agora que o paraíso está a sua espera!), podia ter credibilidade. Hoje, não mais. Isto significaria o fim da lealdade entre as duas partes? Claro que não! O desafio é construir uma relação mais voltada para o presente onde o binômio contribuição / retribuição seja mais imediatamente equilibrado e a negociação seja mais transparente. É o único caminho para re-fundar uma relação de confiança. O mesmo tipo de raciocínio não pode ser feito a propósito da relação de uma empresa com seus clientes?


4 Tudo que dissemos até agora pressupõe a disposição de todos de tentar entender o que está acontecendo, assumir responsabilidades e criar vínculos. Não podemos porém evitar uma pergunta mais radical: vale a pena criar vínculos e assumir responsabilidades? Tocamos aqui em outro tema fundamental da reflexão ética: os valores. Dito em outras palavras mais familiares para o mundo dos negócios: qual é o preço que estamos dispostos a pagar para criar vínculos e assumir responsabilidades? A resposta é dada por cada um no recôndito da própria consciência no momento da escolha e da decisão pessoal. Isto enobrece e fragiliza todo o processo de construção de uma comunidade humana:

— enobrece porque o ser humano, em qualquer circunstância, pode escolher. Esta afirmação parece forte e irrealista? Vale a pena lembrar um dos momentos mais fortes do filme "Olga", em que a personagem exorta as companheiras de campo a cuidar bem do miserável galpão onde estão confinadas. O argumento, em substância, é este: se não honrarmos nossa condição humana limpando este lugar, quem nos identificará e reconhecerá como seres humanos? Em todas as grandes decisões que tomamos está em jogo uma escolha fundamental em relação à nossa identidade humana.

— fragiliza porque percebemos o quanto imprevisíveis somos. Para nós mesmos, porque oscilamos nas nossas decisões, e para os outros, porque ninguém consegue ter acesso à decisão de outra pessoa a não ser através do diálogo que só acontece quando existe um vínculo de confiança. Enquanto queremos permanecer na lógica do controle das pessoas, não existe meio de saber e entender o que leva alguém a fazer suas escolhas e tomar suas decisões; certas portas só podem ser abertas pelo lado de dentro!

A construção de vínculos de confiança parece, portanto, ser o grande desafio para poder continuar a construir uma comunidade empresarial sustentável. É preciso reconhecer, por mais angustiante que possa ser, que a pergunta "vale a pena criar vínculos?" pode ter uma resposta negativa. O ser humano ganhou, junto com a liberdade, a possibilidade do suicídio individual ou coletivo: a freqüentação de qualquer noticiário nacional ou internacional mostra o quanto se pratica a


5 autodestruição individual ou coletiva! Não é tão diferente no ambiente corporativo! Portanto nada é definitivamente seguro e a reflexão ética é um desafio diário porque o esforço de construir vínculos verdadeiros também é diário. Seduzidos pelo brilho do embate competitivo, é bom não esquecer que os outros nomes do progresso e do crescimento individual e coletivo são cooperação e solidariedade. Aliás esta seria, segundo o ensinamento do Budismo lembrado pelo Dalai Lama, o sentimento humano básico!


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