Jean Bartoli
"Vós, portanto sereis perfeitos..." (Mt 5, 48) O IDEAL DE PERFEIÇÃO APRESENTADO AOS EXECUTIVOS NA REVISTA EXAME: UM DISCURSO RELIGIOSO SOB A LINGUAGEM TÉCNICA DO MANAGEMENT?
Dissertação apresentada ao mestrado em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para a obtenção do grau de mestre sob a orientação do Professor Doutor José J. Queiroz.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO 2001
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Banca Examinadora ________________________ ________________________ ________________________
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Para Heloisa, com todo meu amor, em agradecimento pelo apoio, pela ajuda tĂŁo preciosa nesta empreitada e... pela paciĂŞncia!
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AGRADECIMENTOS
Ao Prof. J. J. Queiroz, além de orientador, foi grande amigo, com sua paciência e dedicação. Ao Prof. Marcio Fabri dos Anjos, com o qual iniciei essa reflexão. Ao Prof. Ênio José da Costa Brito que encorajou muito esse projeto. Ao Prof. Jung Mo Sung que me ajudou muito com suas críticas. Ao Prof. Eduardo Rodrigues da Cruz pelas sugestões de leitura. A todos os professores do Programa de Ciências da Religião. A Heloisa, minha mulher, que teve a paciência de ler e revisar todo este trabalho.
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RESUMO Nosso trabalho partiu da seguinte indagação: o ideal de perfeição apregoado aos executivos pela revista Exame é apenas técnico ou apresentaria características religiosas fetichistas e alienantes? A hipótese central de nossa pesquisa é: a revista Exame veicula uma visão do mundo e da atividade empresarial, bem como um ideal de perfeição do executivo que exigem uma adesão de cunho religioso. No primeiro capítulo, mostramos que a revista Exame, veículo da pregação desse ideal de perfeição, é a principal revista de negócios do país e pertence ao maior grupo editorial do Brasil e um dos maiores do mundo. Descrevemos este grupo editorial, sua história e o contexto histórico em que se desenvolveu. No segundo capítulo, construímos o ideal de perfeição empresarial a partir da análise de uma seleção de matérias da revista Exame. Identificamos os temas recorrentes: dedicação à empresa, competitividade, competência, adesão ao modelo de economia globalizada, poder, status, ilusão de ser imprescindível e alinhamento do projeto individual sobre o projeto da organização. No terceiro capítulo, analisamos os ideais de perfeição propostos pela Cultura Grega, pelo Evangelho e pela Modernidade como termos de comparação com o ideal proposto aos executivos. Essa comparação ajuda-nos a visualizar o quadro teórico em que se desenha o modelo proposto pela revista. No quarto capítulo, respondemos afirmativamente à pergunta que originou nossa dissertação: sim, o ideal de perfeição proposto tem conotações religiosas. Analisamos sua dimensão mítica com a ajuda de Mircea Eliade e Ernst Cassirer; Danièle Hervieu-Léger fornece os conceitos de sociologia da religião que apóiam a análise; Franz Hinkelammert, Erich Fromm e Paul Tillich alicerçam nossa afirmação de que o modelo proposto é fetichista e alienante.
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ABSTRACT Our essay has arisen from the following inquire: the ideal of perfection proclaimed to the executives by the Exame magazine is merely technical or would it present fetish and alienation oriented religious characteristics? The core hypothesis of our research is: the Exame magazine spreads a vision of the world and of the management activity, as well as an ideal of perfection of the executive, which demands an adhesion of religious nature.
In the first chapter, we show that the Exame magazine, vehicle of the preaching of this ideal of perfection, is the main business magazine of the country and belongs to the biggest publishing group of Brazil and one of the largest in the world. We describe this publishing group, its history and the historical context where it has developed.
In the second chapter, we build the ideal of executive perfection based on the analysis of selected articles published by Exame magazine. We identify the recurrent subjects: dedication to the company, competition, competence, adoption of the global economy standard, power, status, illusion of being essential and alignment of the individual project in relation to the company’s project. In the third chapter, we analyze the ideals of perfection proposed by Greek Culture, by the Gospels and by the Modernity, in order to compare them with the ideal proposed to the executives. This comparison helps us to visualize the theoretical scenery where the proposed standard by the magazine is designed.
In the fourth chapter, we affirmatively answer to the question that originated our research: yes, the proposed ideal of perfection has religious connotations. We analyze its mythical dimension with the aid of Mircea Eliade and Ernst Cassirer; Danièle Hervieu-Léger supplies the sociological concepts of the religion which support our analysis; Franz Hinkelammert, Erich Fromm and Paul Tillich support our affirmation that the proposed model is fetish and alienation.
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ÍNDICE INTRODUÇÃO ............................................................................................. 10 CAPÍTULO 1: O GRUPO ABRIL E A REVISTA EXAME: APRESENTAÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO 1. O GRUPO ABRIL .................................................................................14 1.1.
Um pouco de história ..................................................................14
2. A REVISTA EXAME .............................................................................18 2.1. Contexto em que aparece a revista EXAME .................................18 2.2. A evolução da revista EXAME neste contexto ..............................21 2.3. O que o leitor encontra na revista? ..............................................25 2.4. Posição da revista.........................................................................29 3. CONCLUINDO .....................................................................................29 CAPÍTULO 2: O EXECUTIVO GLOBAL E PERFEITO NA REVISTA EXAME 1. O EXECUTIVO NO MUNDO COMPETITIVO ..........................................32 2. QUALIDADES EXIGIDAS DO EXECUTIVO ............................................36 2.1. Liberdade e necessidade ..................................................................36 2.2. Jogar o jogo .......................................................................................37 2.3. A conversão para a empregabilidade ................................................41 2.4. Enfrentar o dilema ético e ser humilde! .............................................46 2.5. O talento ........................................................................................... 50 2.6. Ser indispensável ............................................................................. 52 2.7. Auto-conhecimento, capacidade, comprometimento .........................53 2.8. A entrega total ....................................................................................55
8 2.9. A família envolvida na competição ...................................................58 2.10. Relacionamento e liderança .............................................................61 2.11. A lealdade e seus limites................................................................. 63 3. "HYBRIS", PRECARIEDADE E... MORTE: O DRAMA EXISTENCIAL DO EXECUTIVO ..................................................................................................66 4. SINTETIZANDO... .....................................................................................68 CAPÍTULO 3: PERFEIÇÃO OU EXCELÊNCIA: O CAMINHO DO EXECUTIVO 1. O CONCEITO DE PERFEIÇÃO. .............................................................. 72 1.1. O que significa a palavra perfeição .................................................. 72 1.2. Interpretações do conceito de perfeição ........................................... 74 2. OS GREGOS OU A PERFEIÇÃO NA VIRTUDE, NO DEBATE E NAS IDÉIAS .......................................................................................................... 76 2.1. Os heróis e os deuses .......................................................................78 2.2. Debate, democracia e filosofia ......................................................... 82 3. O IDEAL EVANGÉLICO: A COMPAIXÃO E O PERDÃO ......................... 85 4. OS TEMPOS MODERNOS E O PROGRESSO ........................................91 4.1. O renascimento e a reforma ..............................................................92 4.2. As revoluções científica e filosófica ...................................................94 4.3. A perfeição do homem moderno: o burguês devoto do progresso.....95 5. A PERFEIÇÃO DO EXECUTIVO OU A BUSCA DA EXCELÊNCIA ........ 99 5.1. A perfeição como excelência e luta pelo reconhecimento ...............100 5.2. O executivo como homem da visão e do conhecimento ..................105 5.3. Excelência e motivação ...................................................................112 6. CONCLUSÃO ..........................................................................................118
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CAPÍTULO 4: DO LOGOS TÉCNICO AO LOGOS RELIGIOSO: CATEGORIAS RELIGIOSAS NO DISCURSO DA EXCELÊNCIA 1. A EXCELÊNCIA: O REINO DE DEUS NA EMPRESA.............................120 1.1. Logos técnico ou mito? ....................................................................121 1.2. Horizonte empresarial: existem dimensões religiosas? ...................127 1.3. O sagrado e o profano .....................................................................131 2. UM LOGOS RELIGIOSO FETICHISTA E ALIENANTE? ........................139 2.1. Fetichismo .......................................................................................139 2.2. Alienação ou realização? .................................................................145 3. CONCLUINDO .........................................................................................152 CONCLUSÃO ............................................................................................. 154 BIBLIOGRAFIA .......................................................................................... 158
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INTRODUÇÃO Minha vivência e minha atuação como professor e consultor no meio empresarial, aliada a minha formação religiosa e teológica dominicana, levaram-me a refletir sobre alguns comportamentos empresariais, a partir da percepção da dificuldade enfrentada pelos executivos de grandes organizações para resistir às pressões às quais são submetidos, para entender seu papel e, não raras vezes, a si mesmos. A revista Exame é a mais lida no meio empresarial onde constitui importante formadora de opinião nesse ambiente: sua leitura mostra porém que, mais de que informar, ela aconselha e comunica o que as empresas esperam dos seus executivos, usando um tom exortativo que não deixa muito espaço para reflexão ou debate sobre os temas abordados. O exame dos paradigmas e dos valores apresentados como inquestionáveis aos executivos pareceu-me via propícia para entender os princípios éticos que norteiam o comportamento dos executivos. Quiçá, a partir destas matérias, seria possível vislumbrar um ideal de perfeição proposto. O estilo exortativo e, às vezes, incantatório das matérias, acabou levantando outra pergunta: teriam os valores propostos aos executivos, de alguma maneira, uma dimensão religiosa? A busca de resposta a esta pergunta constitui uma tarefa importante em ciências da religião. O objeto vai ser construído a partir da descrição e do detalhamento da visão e dos valores apresentados como ideais para os executivos profissionais considerados como público alvo pela revista Exame nos anos 1994, 1995, 1996, 1997, 1998, 1999 e 2000, período em que o Diretor Geral do Grupo Exame, José Roberto Guzzo resolveu criar uma seção para aumentar o espaço dado à temática da vida executiva e carreira na Exame1. São pontos constitutivos dessa visão: a empresa apresentada como a comunidade humana mais perfeita, competitiva e desafiadora e o executivo, como construtor e líder desse novo processo de construção social. São considerados como valores essenciais para que o executivo possa atingir os objetivos fixados pelas empresas: a dedicação absoluta até o sacrifício, a competição, a busca
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BERNARDI, Maria Amália, Ao mestre, com carinho, Você S.A., 3 (25): 7, Julho 2000.
do
11 conhecimento
para
o
aperfeiçoamento
da
eficácia
e
a obtenção do
sucesso. À luz das Ciências da Religião, a pesquisa analisará os conceitos de perfeição, ideal e alienação e estabelecerá uma reflexão crítica sobre o mundo empresarial, que se tenta construir. Portanto, a pergunta fundamental à qual nossa dissertação tenta responder é: o ideal de perfeição apregoado pela revista Exame é apenas técnico ou apresentaria dimensões existenciais e religiosas? Conseguindo responder afirmativamente, poderemos analisar se o modelo religioso proposto é fetichista e alienante. A hipótese central de nossa pesquisa desdobra-se em dois pontos fundamentais, que explicitamos a seguir: os executivos das empresas são submetidos à ação dos meios de comunicação, mormente mediante a revista Exame. Esta veicula um ideal de perfeição, para obter uma adesão de cunho religioso a determinada visão do mundo e da atividade empresarial. Segundo a Exame, a auto-realização pessoal e profissional do executivo só pode acontecer somente num mundo empresarial apresentado como portador de uma mística, a criação do futuro, e como única alternativa de busca de harmonia social e progresso, num universo globalizado e movido pela competição. Esse ideal leva a um impasse: nega a gratuidade e propõe uma religião fetichista, alienante e excludente, na qual a felicidade de alguns eleitos consiste na posse de algumas compensações, tangíveis ou intangíveis, e se faz à custa da exclusão da maioria dos que participam da construção desse pretenso paraíso. A análise do conceito de perfeição empresarial surgirá a partir da leitura da revista Exame. Certos temas são recorrentes: dedicação à empresa, competitividade, competência, adesão ao modelo de economia globalizada, poder, status, ilusão de ser imprescindível e alinhamento do projeto individual sobre o projeto da organização. Por trás dessas matérias, poderemos perceber a influência de determinados modelos desenvolvidos de modo mais teórico e mais elaborado por alguns autores, citados ou não pela revista, que contribuem para a formação de um quadro teórico para esses conceitos. Antes de estudar mais conceitualmente o modelo proposto e os autores que o influenciaram, analisaremos outros ideais de perfeição propostos no decorrer da história para permitir uma visão comparativa. Os modelos
12 escolhidos são os propostos pela Cultura Grega, pelo Evangelho e pela Modernidade. O critério de escolha não foi gratuito: parece-nos que cada um desses ideais teve pretensão de universalidade e deixaram-nos uma herança, às vezes até presente, embora escondida em determinadas características do espelho oferecido pela Exame aos executivos. Entre os autores que influenciaram os redatores das matérias analisadas,
devemos
reconhecer
que
Peter
Drucker
tem
um
papel
preponderante. Ele possibilita entender por que se passa de uma atividade, a administração de uma organização empresarial, e da descrição das competências necessárias para tanto, para uma visão mais abrangente do papel da organização empresarial como paradigma de uma nova sociedade, que ele denomina sociedade das organizações e do conhecimento. Nessa visão, o executivo da organização empresarial assume um papel de liderança, que o coloca como um dos principais protagonistas da definição dos rumos da sociedade como um todo. Do plano operacional passa-se para um plano estratégico, que acaba tendo conotações religiosas. A pregação do progresso por meio do conhecimento como lei natural corresponde a uma pregação já antiga na história do pensamento ocidental. Um documento revelador e excepcional, que dá a essa pregação uma dimensão mística e religiosa é a Esquisse d'um tableau historique des progrès de l'esprit humain de Condorcet (1793). Além de propagar as crenças, que a posterior ideologia do progresso deveria retomar e atualizar, formula uma interpretação rígida da história, que bloqueia toda reflexão crítica sobre a civilização em que vivemos. Mostra, antes de Drucker e Fukuyama, que mais o conhecimento desenvolve-se sob a pressão da economia, mais a indústria torna-se eficaz, o que santifica e legitima todas as atividades que gerariam a sociedade de consumo. Hoje, o progresso toma uma dimensão intangível porque a economia se desmaterializa pela preponderância da economia financeira sobre a economia real e pela possibilidade de os negócios da economia virtual alcançar valores inimagináveis. A contrapartida é o desprezo demonstrado por Condorcet por tudo que se opõe a essa visão. Este desprezo é uma outra forma de anátema para quem não compartilha da fé no progresso e no tipo de utopia que se tenta construir. Esta forma de proclamação e de
13 desprezo, que anatematiza os que não aceitam os novos tempos, é encontrada nas matérias analisadas da revista Exame. Weber, em sua análise sobre o Espírito do Capitalismo, mostra como o homem é dominado pela produção do dinheiro e por sua aquisição, encarada como finalidade última de sua vida. Isso expressa um sentimento inteiramente ligado a certas idéias religiosas: ganhar dinheiro é o resultado e a expressão da virtude e da eficiência de uma vocação. Mircea Eliade, Ernst Cassirer e Danièle Hervieu-Léger fornecerão os elementos que nos possibilitarão investigar dimensões religiosas no discurso de perfeição proposto pela Exame. Quando tentaremos perceber qual o tipo de religião apregoado, a análise da dominação do ser humano pela produção da mercadoria e do dinheiro, e sua dimensão idolátrica e fetichista proposta por Franz Hinkelammert será esclarecedora. Com Paul Tillich, passaremos para um plano mais existencial: ele considera que o conceito de alienação (estrangement), embora não bíblico, está presente em muitas descrições das dificuldades e difíceis escolhas do ser humano. Esta análise completa a de Hinkelammert, acrescentando uma abrangência e uma profundidade maiores. O critério para a seleção dos artigos é sua ligação com o tema tratado pela nossa dissertação: a perfeição do executivo. O método aplicado para a análise dos artigos será o da análise de conteúdos: seleção dos textos, organização a partir de palavras-chaves e análise do conteúdo. Os referenciais teóricos servirão para fundamentar a reflexão crítica sobre o discurso de perfeição da revista Exame, sendo importantes também para esclarecer os conceitos de mito, de sagrado,
de fetcihismo e de alienação e sua
aplicabilidade ao modelo de perfeição proposto pela Exame. O trabalho divide-se em quatro capítulos. 1.
O Grupo Abril e a revista Exame: apresentação e
contextualização. 2.
O executivo global e perfeito na revista Exame.
3.
Perfeição ou excelência: o caminho do executivo.
4.
Do logos técnico ao logos religioso: categorias religiosas no
discurso da excelência.
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CAPÍTULO 1 O GRUPO ABRIL E A REVISTA EXAME: APRESENTAÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO Este capítulo introdutório pretende apresentar a revista Exame e sua importância como pano de fundo à nossa pesquisa. Antes, porém, faz-se necessário conhecer seu proprietário, o grupo Abril. 1. O GRUPO ABRIL2 É um dos maiores conglomerados de empresas de comunicação e a maior editora da América Latina. Fundado em 1950, sua receita líquida foi de US$ 1,5 bilhão em 1998. Pioneiro e líder de mercado em diversos setores, atua nas áreas de publicações, TV por assinatura, TV aberta segmentada, vídeos, livros e coleções, CDs, CD-ROMs, listas telefônicas, marketing direto e serviços online. Suas operações se estendem até Argentina e Portugal. Emprega atualmente 10,7 mil funcionários. A sede do Grupo Abril está localizada em São Paulo, no Novo Edifício Abril, no bairro de Pinheiros, onde trabalham 3 mil pessoas. Tem ainda escritórios em Nova York, Paris, e nas principais capitais brasileiras. Investiu US$ 1 Bilhão nos últimos cinco anos e paga mais de R$ 200 Milhões em tributos e contribuições a cada ano. R$ 40,1 Milhões foram investidos em benefícios para os funcionários em 1998. Vende, anualmente, 185 Milhões de Revistas, com 247 títulos diferentes. Totaliza 30 milhões de leitores e 4,4 milhões de assinaturas, representando mais de 2/3 de toda a base de assinaturas do país. 1.1.
UM POUCO DE HISTÓRIA
Em 1950, Victor Civita funda a Abril com a publicação de sua primeira revista, O PATO DONALD. Dois anos depois, em 1952, nasce CAPRICHO, uma revista para adolescentes, que foi a publicação mais vendida na América Latina nos anos 50. Em 1959, surge MANEQUIM, uma revista inovadora com moldes prontos, informações sobre costura e trabalhos manuais. Em 1960, com QUATRO RODAS, o Brasil - que ganha nessa época suas primeiras grandes 2
As informações que seguem têm como fonte o site www.abril.com.br.
15 estradas - ganha também a primeira revista sobre automóveis e viagens. Em 1961, CLAUDIA pretende ser a primeira revista de atualidades para a mulher brasileira moderna - e a primeira a tratar de temas polêmicos como pílula e aborto. Em 1963, é a vez de CONTIGO, recheada de fotonovelas. Com o tempo, a revista passou a tratar também dos bastidores e novidades da TV. Nestes primeiros quinze anos de história, o Grupo Abril dirige sua atenção às crianças, às donas de casa e... aos motoristas! Trata de temas da vida privada. A partir de 1965, começa uma nova fase. Em 1965 chegam ao Brasil, por iniciativa da Abril, revolucionárias coleções de fascículos a preços populares. É a primeira grande iniciativa desse gênero na cultura no país. Em 1966, chega às bancas REALIDADE, uma publicação que mudou o jornalismo de revistas no Brasil com reportagens históricas. No mesmo ano, sai a primeira publicação do GUIA QUATRO RODAS BRASIL, com roteiros, mapas, atrações turísticas, hotéis e restaurantes de todo o país - que acabou gerando uma série de outros títulos. A partir do ano 1968, a publicação da revista VEJA é o acontecimento talvez mais importante para a editora: é hoje a maior e mais influente publicação brasileira e quarta maior revista semanal de informação do mundo. Em 1970, com o Brasil tricampeão na Copa de 70, surge PLACAR, revista pioneira na cobertura de esportes. Segue, em 1971, a revista EXAME, a primeira revista de negócios no Brasil. Nesse período de seis anos (1965-1971), a Editora Abril adquire sua feição definitiva. Não que deixe de publicar outros títulos, como veremos a seguir, mas já fincou sua estaca no mapa editorial brasileiro e os lançamentos seguintes serão prolongamentos e conseqüências das trilhas abertas nos seus primeiros vinte anos de existência. Passou a ser um grupo de informação e comunicação, que pretende, além de informar, envolver-se nas grandes questões de atualidade. Títulos novos continuam a surgir. Em 1973, a revista NOVA nasce para tratar de assuntos relacionados ao comportamento da mulher. Em 1974, a primeira edição de MELHORES E MAIORES, publicação anual que faz a análise do desempenho das 500 empresas brasileiras, é um marco editorial importante no mundo dos negócios do país. Em 1975, nascem o ALMANAQUE ABRIL e a edição em português da revista PLAYBOY, primeira revista voltada para o público masculino, a maior editada fora dos EUA. A partir de 1977, a
16 revista CASA CLAUDIA oferece informações práticas para quem quer decorar a própria casa e entender mais sobre esse universo. Em 1980 tem início a expansão internacional. O primeiro país alcançado é Portugal. Hoje, a Abril Control Jornal é a maior editora de Portugal. Em 1983, a VEJA SÃO PAULO, suplemento regional gratuito da revista VEJA para a capital paulista, ganha vida própria e torna-se uma revista independente. O mesmo ano de 1983 marca o início de atividade do Grupo Abril fora da área editorial. Nasce a Abril Vídeo, hoje líder na produção e distribuição de home vídeos no Brasil. Em 1985, o Grupo Abril continua o processo de expansão de suas atividades e passa a atuar no mercado de listas telefônicas, com a criação da LISTEL. Contudo, não deixa de editar novas revistas. Em 1987, SUPERINTERESSANTE, revista voltada à ciência, tecnologia e interesse geral, é lançada para os adolescentes e o público adulto. Para o público feminino, em 1988, em versão nacional, chega ao Brasil a revista ELLE, mundialmente reconhecida como reveladora de tendências de moda, beleza e estilo de vida. Em 1990, o Grupo Abril chega à era da mídia eletrônica com a MTV, primeiro canal de TV segmentada do país e o único a transmitir 24 horas por dia. É um outro momento importante no processo de diversificação do Grupo. Em 1991, para acompanhar a evolução do mercado de informática, nasce INFO EXAME. No mesmo ano, o Brasil entra na era da TV por assinatura com a TVA, primeira rede de TV a cabo no país. Cada vez mais, o Grupo Abril deixa de ser uma editora para tornar-se um grupo de comunicação multimídia. Todavia, as novidades editoriais continuam: também em 1991 chega às bancas a edição de VEJA RIO, suplemento gratuito de VEJA, um roteiro com os restaurantes, bares e dicas sobre lazer no Rio de Janeiro. Em 1993, o estilo de vida dos ricos e famosos chega ao grande público com a edição de CARAS em língua portuguesa. Em 1994, outro momento importante na história do Grupo Abril: suas publicações chegam à mídia eletrônica. O ALMANAQUE ABRIL é o primeiro a ganhar uma edição especial em CD-ROM. No mesmo ano, VIP EXAME, que surgiu como um encarte da revista EXAME, ganha vida própria. Voltada para um público executivo, a revista traz informações sobre os prazeres de viver bem. Em 1996, com a DirecTV, o Grupo Abril inaugura um novo sistema de transmissão de TV direta por satélite (banda KU) na América Latina, com 142
17 canais de áudio e vídeo disponíveis. A experiência será, porém, encerrada em 1999 por falta de capital: o Grupo Abril vende sua participação acionária no negócio. No mesmo ano, em associação com o Grupo Folha, surge o Universo Online, maior provedor de informações e serviços on-line em língua nãoinglesa. É a entrada do Grupo Abril na era da Internet. Sempre em 1996, é formada a DataListas, operação responsável pelo mais amplo mailing do Brasil, para apoio a ações de marketing direto tanto da Abril como de parceiros. É um instrumento fundamental para a expansão comercial do grupo. Não se afastando de sua vocação fundamental, o Grupo publica também um novo título, ANAMARIA, revista popular que se propõe de abordar o dia-a-dia da mulher. Em 1997, nasce o MusiClub, primeiro serviço brasileiro de vendas de CDs por catálogo no formato de clube. No mesmo ano, o Grupo Abril concentra várias de suas operações em um único endereço: o Novo Edifício Abril. Em 1998, o Grupo Abril entra no mercado fonográfico com a criação da gravadora Abril Music e incorpora integralmente a Editora Azul, segunda maior editora do país. Surge também VOCÊ S.A., revista do grupo EXAME voltada para o crescimento profissional do leitor: o público alvo da revista é o jovem executivo em início de carreira. Enfim, meninos e meninas ganham a sua própria revista mensal, VEJA KID+, publicação conectada com o universo dos futuros leitores de VEJA. Em 1998 também, FAÇA E VENDA é uma revista que se propõe de dar dicas de como ganhar dinheiro em casa. No fim desta breve incursão na história do Grupo Abril, não podemos deixar de reconhecer que se trata de um empreendimento marcante e bem sucedido que tem um lugar de destaque na história empresarial e na história da imprensa brasileira. Apesar da expansão das atividades do Grupo fora do ramo editorial, a vocação do grupo continua alicerçada na publicação de revistas seja de modo tradicional seja mediante novos meios eletrônicos. O encerramento da experiência da DirecTV e as tentativas de venda da TVA parecem confirmar esta afirmação. A partir deste momento, vamos analisar o objeto imediato de nossa pesquisa que é a revista EXAME.
18 2. A REVISTA EXAME Em julho 1967, surge o caderno EXAME encartado nas revistas técnicas da Abril. Em janeiro de 1970, começa uma nova fase da revista editada com papel couchê e quatro cores, circulando ainda encartada nas revistas técnicas: passa ser uma "revistinha" encartada. Em março 1971, EXAME torna-se uma publicação independente separada das revistas técnicas e passa a circular mensalmente com o nome "EXAME – A REVISTA DO EXECUTIVO". Em março 1972, ganha um nome novo: "NEGÓCIOS EM EXAME" e, a partir do dia 28 abril 1976, começa a circular quinzenalmente. No dia primeiro de junho de 1983, ganha seu nome definitivo: "EXAME". 2.1.
CONTEXTO EM QUE APARECE A REVISTA EXAME A revista EXAME dá seus primeiros passos no período do regime militar.
É, portanto, interessante lembrar brevemente o contexto histórico do país, principalmente nos seus aspectos econômicos para entender algumas das razões que levaram a EXAME a ocupar um lugar de destaque na mídia empresarial. Quais eram a situação, a percepção e as preocupações que os empresários e os executivos tinham neste momento vivido pelo país? Segundo Thomas Skidmore3, a equipe econômica do governo Castelo Branco, formada por Octavio Gouveia de Bulhões e Roberto de Oliveira Campos,
pensava
que,
até
então,
o
capitalismo
nunca
tinha
sido
experimentado no Brasil: os ministros só viam obstáculos ao desenvolvimento econômico brasileiro4. Os empresários queixavam-se das leis trabalhistas e da falta de capital de investimento, de tecnologia e de infra-estrutura educacional e científica. Contudo, o governo Castelo Branco queria fortalecer uma característica crucial do capitalismo: a mentalidade empresarial. Toda uma geração de homens de negócios do Brasil fora protegida da concorrência estrangeira pela proibição de importações competitivas. Segundo Roberto Campos, esses empresários precisavam de 3
Consultamos FAUSTO, Boris, História do Brasil, São Paulo, Edusp, Editora da Universidade de São Paulo, 2000; DE MENDONÇA, Sonia Regina e FONTES, Virginia Maria, História do Brasil recente, 1964-1992, São Paulo, Editora Ática, 4ª edição revista e atualizada, 1996; SKIDMORE, Thomas, Brasil: de Castelo a Tancredo 1964-1985, São Paulo, Editora Paz e Terra, 1988. Acompanharemos a análise deste último autor por ser mais precisa e mais detalhada.
19
"uma profunda mudança em sua maneira de pensar. Precisavam parar de pensar em termos de pouca quantidade e preços altos, de contar com empréstimos excessivos através de crédito subsidiado pelo governo, e precisavam também perder o medo mórbido da concorrência."5 Numa carta publicada em julho 1967 e enviada aos leitores da Veja, o editor, diretor, presidente e fundador da Editora Abril, Victor Civita, escrevia: "nosso intuito, editando Exame, é fornecer-lhe subsídios práticos para solucionar os problemas econômicos, financeiros, fiscais, trabalhistas e gerenciais da sua empresa." 6 No governo Costa e Silva, a partir de 1968, a nova equipe econômica é conduzida por Antônio Delfim Neto. Ultrapassando a estabilização conseguida durante o governo Castelo Branco, o Brasil queria iniciar uma nova estratégia de desenvolvimento econômico. Segundo Delfim esse governo não devia ter "nenhum compromisso com classes sociais ou grupos econômicos, e sem o mínimo interesse na defesa ou preservação de instituições sociais nocivas à atividade econômica."7 Como observado por Skidmore8, esta é a fala de um tecnocrata que descarta qualquer envolvimento nas questões sociais e morais inerentes à formulação de políticas econômicas. Enquanto o país mergulha mais profundamente num regime autoritário, fica mais fácil para a equipe econômica escamotear o debate público sobre prioridades fundamentais econômicas e financeiras. No governo Médici, a política econômica continua sendo conduzida por Delfim e sua equipe. Sendo o regime autoritário, nenhum grupo de interesse ou
4
SKIDMORE, Thomas, Brasil: de Castelo a Tancredo 1964-1985, São Paulo, Editora Paz e Terra, 1988. p. 127ss 5 Op.cit. p130. Campos falava para um grupo de empresários do Rio em dezembro 1964. 6 Estas informações e estes documentos estão disponíveis no DEDOC (Departamento de Documentação/Memória) do GRUPO ABRIL. Em alguns casos, as matérias selecionadas, provenientes de várias revistas ou comunicados de imprensa, foram fotocopiadas, sendo as referências de fontes manuscritas e abreviadas. Devido à rotatividade da mão de obra, os atuais funcionários do DEDOC não sabem informar com absoluta precisão o número da página de onde foi tirado o recorte. A carta referida foi publicada em fac-símile na revista Propaganda. de março de 1973. 7 Op.cit. p. 147. As citações, segundo Skidmore, são de um discurso proferido por Delfim Neto na Universidade de São Paulo e reproduzido na Revista de Finanças Públicas, XXVIII, n º 275 (setembro de 1968). 8 Ibid. p. 147.
20 setor social ganharia algo pressionando de público o governo. Os dez por cento anuais de crescimento criaram novos empregos e muitos trabalhadores receberam promoções enquanto outros conseguiram recolocar-se. O boom econômico era o maior trunfo do regime na opinião internacional, incomodada pelos aspectos repressivos do regime. Nos anos 1970-73, com o uso continuado de minidesvalorizações e com o ingresso de capital estrangeiro, a maior parte em empréstimos, o Brasil melhorou sua balança de pagamentos, o que o dispensava de pedir ajuda ao Fundo Monetário Internacional. O comércio exterior cresceu rapidamente: as exportações aumentaram 126 por cento devido à diversificação da pauta das exportações que passaram a incluir mais produtos industrializados. A política básica era estimular o crescimento a partir da estrutura existente de produção e renda, o que significava estímulo ao setor de bens duráveis que tinha capacidade e experiência para produzir com eficiência e ampliar efetivamente sua produção. As fábricas de automóveis estavam em franca prosperidade enquanto a indústria de vestuário sofria dificuldades porque a renda estava concentrada nas camadas superiores. O rápido desenvolvimento econômico favoreceu os profissionais liberais, os tecnocratas e os administradores de empresa, situados no vértice da pirâmide social. Os salários dessas categorias ultrapassaram os de seus colegas de igual categoria dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. O governo Médici aumentou o orçamento para a educação superior, o que resultou em maior número de vagas e contratação de mais professores. Para quem se conformasse em viver numa ditadura e pertencesse aos setores médios e superiores, as recompensas podiam ser grandes. A percepção, claramente encorajada pelo regime, era de que, quaisquer que fossem suas imperfeições políticas, o Brasil estava em franca ascensão e aproximava-se dos padrões econômicos de primeiro mundo em ritmo mais rápido do que muitos esperavam. Quando acusado de negligenciar o bem-estar dos menos privilegiados, o governo Médici, pelo seu estrategista econômico e porta-voz, Delfim Neto, defendia suas políticas com o conhecido argumento de que, a curto prazo, a aceleração do crescimento era mais importante do que a melhoria da distribuição de renda. Existia, porém, uma ambigüidade: embora conscientes dos seus ganhos materiais, alguns, que pertenciam aos setores médios, revoltavam-se contra a
21 repressão, que atingia seus parentes. Um outro fator, mais ideológico, apontado por Skidmore ajuda a entender porque a classe empresarial tolerou mas não aderiu totalmente ao regime autoritário9: talvez os próprios militares não tivessem confiança em sua capacidade de proclamar e dirigir um regime plenamente autoritário por serem profundamente influenciados pelos seus contatos com os militares americanos e por temerem a condenação da opinião internacional. A América era, ao mesmo tempo, o bastião do anticomunismo e o arauto da doutrina da democracia liberal. A dependência dos militares em relação aos Estados Unidos parecia inserir-se numa luta travada pelos próprios Estados Unidos contra o comunismo. Todavia, ao mesmo tempo, os mesmos militares e setores dirigentes buscavam o apoio da opinião pública americana, que preferia governos democráticos e garantias para as liberdades civis. A partir do governo Geisel, os homens de negócios vão juntar-se a outras vozes da sociedade civil para exigir maior democracia. É que, mesmo beneficiados pelo boom econômico, ficaram irritados com a quantidade de incentivos e controles criados pelo governo e temiam que o setor público em rápido crescimento se aliasse com as empresas estrangeiras para ameaçar sua atividade produtiva. Começaram a defender a descentralização para enfatizar a redução do papel do Estado na economia. O apoio, que passaram a dar à democratização, tinha duas explicações: a crença na conveniência do governo representativo e do império da lei e a esperança de que o empresariado tivesse mais chance de influenciar a política contra os burocratas e os interesses das empresas estrangeiras que o autoritarismo tinha favorecido. 2.2.
A EVOLUÇÃO DA REVISTA EXAME NESTE CONTEXTO Seis anos depois da carta enviada pelo presidente da Abril aos leitores
da Veja em 1967, o caderno EXAME transforma-se numa revista com uma meta audaciosa: assumir no Brasil a imagem das revistas empresariais de destaque, como FORTUNE nos Estados Unidos, de EXPANSION na França e de SUCCESSO na Itália. A partir de abril de 1973, quando circula o primeiro número inteiramente reformulado, a revista conquista sua definitiva maioridade, segundo o seu então diretor de redação, Paulo Henrique Amorim. O objetivo da revista é dar ao leitor uma informação tratada analiticamente e sempre atual: 9
Op.cit. p. 312ss..
22 ele conhecerá o outro lado da notícia, será informado sobre as implicações de determinado fato para sua vida profissional. EXAME procurará abranger o universo da liderança empresarial brasileira, discutindo alternativas e oferecendo opções. Será essencialmente uma revista de negócios, oferecendo um caderno de quatro páginas sobre pioneiros nas várias áreas de atuação empresarial e reportagens de capa sobre as maiores empresas do país. Isto será possível devido à posição de líder do mercado editorial brasileiro ocupada pela Editora Abril10. Os objetivos mercadológicos da revista são bem definidos: chegar aos diretores de cúpula das quatro mil maiores sociedades anônimas e limitadas brasileiras, aos executivos que compõem os quadros de segundo escalão de todas essas empresas, a todos os membros de governos, que traçam a política econômica do país, desde a Presidência da República e os ministros de Estado, até os componentes das assessorias econômicas e todos os responsáveis por decisões nos governos de nível estadual e municipal, assim como aos diretores e assessores de instituições da classe empresarial. Não se pretende limitar o público da EXAME aos presidentes de empresa, pois eles nunca decidem sozinhos. Preparada para a nova sociedade brasileira, EXAME quer corresponder às necessidades de uma economia mais sólida e madura. De 1976 até 1987, passou de uma distribuição gratuita a um mailing selecionado de 50.000 diretores e gerentes de empresa, veiculando cerca de 400 páginas de publicidade por ano, para um universo de 80.000 assinantes pagos, depois de ter levado a cabo a operação de conversão de uma revista de circulação controlada em circulação paga. Nessa época, a tiragem total, incluindo os exemplares vendidos em banca, é superior a 100.000 exemplares. Com os anuários MELHORES E MAIORES e BRASIL EM EXAME e com os suplementos VIP e INFORMÁTICA, são 53 publicações por ano que veicularam em 1986 mais de 1800 páginas de publicidade de quase 350 diferentes anunciantes11. Outro momento significativo: no início de março 1988, uma nova equipe assume o comando da revista. Para o lugar de Guilherme Velloso, redatorchefe desde 1973 e diretor desde 1977, vai o diretor da Veja, José Roberto 10 11
Revista Propaganda. Março 73. VELLOSO, Guilherme, Carta do Editor, Exame, 20 (384): 2 de setembro 1987, p. 3.
23 Guzzo. Com ele, seguiu o editor de economia da revista, Antônio Machado de Barros, que substituiu Rui Falcão na direção da redação. Não houve demissões: os dois substituídos foram promovidos. Segundo a revista IMPRENSA12, Guilherme Velloso e Rui Falcão dirigiram a revista por mais de dez anos. Embora o fato fosse negado pela direção do Grupo, surgiram suspeitas de que a motivação mais profunda para a mudança teria sido de caráter político. Foi, por exemplo, a única redação da Abril que parou integralmente na greve de dezembro 86. Seu ativismo sindical gerou nada menos que dois presidentes do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo (David de Moraes e Robson Moreira) e metade dos jornalistas da época, entre os quais o próprio Rui Falcão, eram militantes ou simpatizantes do Partido dos Trabalhadores. A nova direção queria uma revista no estilo da americana FORTUNE, desvendando os meandros de grandes transações com a emoção de uma novela. Quando as pautas tocassem em temas políticos, a revista deveria tomar posições claras e críticas, não fugir da polêmica e vestir a camisa dos empresários contra as dificuldades da burocracia estatal. EXAME, que tinha ficado mais voltada para a média gerência das empresas, devia atingir de novo os altos executivos e empresários. Seis meses depois, o departamento comercial da revista mudou de direção com o ingresso de Ian Clement Levy Filho (ex-Folha). As alterações são contadas pelo próprio Levy13. Conforme vimos, já se fala de uma família EXAME
composta
pela
revista-mãe
quinzenal,
EXAME
VIP,
EXAME
INFORMÁTICA, BRASIL EM EXAME, EXAME BEST SELLER e EXAME MELHORES E MAIORES. No segundo semestre 89, a revista-mãe abandonou a linha editorial de análises profundas direcionadas para um público formado principalmente por seus assinantes. Ganhou uma nova diagramação e adotou uma linha de muito mais informação com quadros estatísticos e gráficos. A Editora Abril, por seu departamento comercial, fez promoções com os jornaleiros, produziu cartazes, numa campanha que durou seis meses. A tiragem para venda em bancas passou de 4.000 para 25.000 exemplares.
12
Revista Imprensa número 7, de março 1988. Estamos usando a matéria que foi fornecida pelo DEDOC (cf. nota 5). 13 Folha da Tarde , 07 de agosto 1989, Caderno Propaganda & Marketing (cf. nota 5).
24 Empregando o marketing direto através de um mailing com mais de 800.000 nomes, a Exame aumentou em 10.000 seu número de assinantes. Publicada desde 1971, EXAME MAIORES E MELHORES, que retrata quais são as 500 empresas que mais se destacam no cenário brasileiro e quais são as maiores e melhores em cada setor de negócios, passou a ter 400 páginas, sendo 200 de publicidade. Cinco jornalistas e cinco analistas trabalharam o ano inteiro sobre os dados fornecidos pelas empresas. O resultado final é um número especial editado anualmente, consagrado no ambiente empresarial e que serve como obra de consulta. Sempre segundo Levy14, com sua nova receita editorial, EXAME tornouse uma revista mais prestativa para o leitor. O mesmo pode se dizer dos seus suplementos, VIP e INFORMÁTICA (que se tornariam duas revistas independentes, embora pertencendo à família EXAME). O primeiro, voltado ao lazer do executivo, traz mais informações com fotos exclusivas e diagramação mais limpa15. E o segundo, abordando a informática não sob o ponto de vista dos componentes, das máquinas, mas da sua utilização: consequentemente, tornou-se um produto de melhor comercialização do que as revistas especializadas que atingem um público menor. Sempre nessa orientação, em 1990, segundo a FOLHA DA TARDE16, o Instituto Quali Pesquisa & Consutoria realizou uma pesquisa de definição de perfil de público e imagem da EXAME, a primeira em quatro anos. O público definiu-a como importante fonte de informação sobre o mercado de economia e negócios, além de referência para a tomada de decisões profissionais. Antonio Machado de Barros, diretor de redação da revista, tirou a seguinte conclusão: "Esses resultados mostram ao mercado que existe uma opção forte e objetiva para a divulgação de bens e serviços de alto valor, que Exame pode vender e não apenas veicular mensagens institucionais. Bens e serviços de maior são consumidos exatamente pelo nosso leitor."17
14
Da revista Meio e Mensagem, 370: 14 de agosto 1989 (cf. nota 5). Ultimamente, depois de ter virado uma revista independente, está apelando mais para o erotismo produzindo ensaios fotográficos e serve de antecâmara para as pessoas que posarão para a Playboy.... 16 Folha da Tarde, edição de 10 setembro 1990 (cf. nota 5). 17 ibid. 15
25 2.3.
O QUE O LEITOR ENCONTRA NA REVISTA? Exame é hoje uma revista quinzenal. Apresenta matérias dispostas em
centros de interesse. Tomaremos como exemplo a edição 710, ano XXXIV, de 22 de março 2000. Temos as seguintes divisões18: 2.3.1. capa O futuro já chegou, o maior guru do mundo dos negócios mostra como o comércio eletrônico e a Internet estão transformando as empresas, o trabalho e a economia. Por Peter Drucker, p. 112. 2.3.2. Brasil A situação vai ficar preta? Em pouco mais de um ano, o petróleo passou de 10 para 30 dólares o barril no mercado internacional. Veja como esse aumento afeta a vida do país. Fome de imposto: o governo leva a riqueza das empresas, p. 28 Porta fechada: o país não ganha nada dificultando a entrada de talentos, p. 30 2.3.3. Mercado Empresa verde: cresce a consultoria ambiental no país, p. 42
Concha lascada: a Shell perdeu dinheiro no Brasil, p. 48 Bola cheia: a Advent investe no Flamengo e quer mais, p. 52 Vôo-solo: Chieko Aoki investe no turismo de negócios, p. 56 Ave rara: um terço da receita da Perdigão vem das exportações, p. 60 Perfil radical: a ginástica da Athletic Way para liberar seu mercado, p. 68 Meu biscoito: como a carioca Piraquê bate as multinacionais e mantém a liderança no Rio, p. 74.
2.3.4. Entrevista Hábito eficaz: o Brasil precisa investir em pessoas, diz Stephen Covey, p. 82 2.3.5. livros Era global: três visões argutas sobre um tema explosivo, p. 95 2.3.6. Administração O joio e o trigo: para a maioria dos executivos, quanto menor o custo, melhor. Mas conceitos antigos como este não servem mais para a moderna
18
O título da matéria está em negrito seguido do sumário.
26 administração financeira. Há bons e maus custos. Distingui-los pode fazer um negócio prosperar, p. 104. 2.3.7. em primeiro lugar Campo de provas: o que esperar da aliança Fiat-GM no Brasil, p. 16 Tecno-forró: o ritmo da Somzoom Sem calote: o risco do crédito, p. 20 e-Doideira: festança no deserto, p. 21 Serviço: alugam-se maridos, p. 22 Tirando o pó: patrimônio resgatado, p. 23 Bancos: um gigante digital, p. 23 Moralismo: outdoor amordaçado, p. 24 Samba no pé: Hogan cai na folia, p. 24 2.3.8. exame digital O futuro está aqui (reportagem de capa): o pensador Peter Drucker vai às raízes da Nova Economia e explica por que o comércio eletrônico provocará uma transformação comparável à causada pela ferrovia, p. 112 Devore-se: o varejo compete consigo mesmo na Web, p. 132 Sem e-mail: conheça o criador da Computer Associates, p. 140 Nova conta: software alugado, p. 148 Boca a boca: marketing na Web, p. 154 2.3.9. seu dinheiro Petrobrás na carteira: vale a pena usar seu FGTS para comprar ações? p. 170 2.3.10.
sua excelência
A fábrica: o exemplo da Springer, p. 180 Competição: o cliente ensina, p. 184 MBA: talentos polivalentes, p. 186 Carreira: viva a diferença! p. 190
27 Estas são as grandes divisões encontradas em praticamente todas as edições da revista, às quais somam-se algumas seções e colunas também publicadas em praticamente todos os números: Carta do Editor Cartas Bolívar Lamounier Carta de Washington Comédia Corporativa PontoCom Tecnologia e Você Zeros e Uns Monitor Louis Frankenberg Índice das Empresas Opinião Sendo o objeto de nossa dissertação o ideal de perfeição do executivo brasileiro proposto pelo discurso da EXAME, é útil detalhar as matérias que esta edição publica mais diretamente sobre a vida executiva. Editadas na seção SUA EXCELÊNCIA, têm por finalidade propor "idéias e soluções para você brilhar na gestão dos negócios e na carreira19". 2.3.11.
o futuro da fábrica
Discute como serão as fábricas do futuro a partir do exemplo da Springer mostrando algumas soluções engenhosas e simples (leia-se com custo baixo): ar puro, graças a uma máquina inventada pela própria Springer; iluminação natural; tapetes com sensores, desligando a máquina se alguém se aproximar demais; recolhimento da água de chuva para posterior aproveitamento, e uso da energia solar. A idéia a ser comunicada é que uma empresa segura para seus funcionários é uma fábrica mais produtiva.
19
Exame, 24 (710), 22 de março 2000, p.180.
28 2.3.12.
reinventando a competitividade
O cliente deve ser o seu melhor vendedor. A partir de um exemplo concreto, o autor da matéria escreve: "essa situação evidencia a necessidade de as empresas brasileiras praticarem mais a clientividade (sic) do que se preocuparem apenas com sua competitividade. De centrarem o foco das atenções mais nos seus clientes do que desperdiçarem energia bisbilhotando a vida de seus competidores.20" 2.3.13.
hora da lição de casa
O autor da matéria, John Quelch, reitor da London Business School, mostra como ser líder ficou complexo na virada do milênio: deve partir de uma perspectiva ampla e estar disposto a zelar pelos detalhes, ser empreendedor, mas trabalhar em equipe. Daí a pergunta: as escolas de MBA formam talentos polivalentes21? 2.3.14.
viva a diferença
A coluna "Carreira & Você", publicada em todas as edições, consiste em uma carta de um executivo respondida pelo headhunter Simon Franco. Neste caso, o tema é: pedir demissão pode ser um bom negócio? O teor da argumentação é : "a idéia de uma longa carreira dentro de uma única empresa é coisa do passado". Seguem dicas para recolocar-se no mercado. Esta coluna é principalmente dirigida aos jovens executivos. A seção SUA EXCELÊNCIA é mais reduzida hoje por causa do surgimento em 1998 da revista VOCÊ S.A., que surgiu especificamente para desenvolver todos os assuntos relacionados a carreiras. 2.4.
POSIÇÃO DA REVISTA Praticamente todas as matérias que analisamos são assinadas. Será
fácil perceber que todas seguem uma linha de pensamento homogênea embora cada jornalista tenha seu modo de apresentar e desenvolver os assuntos. Não existe uma declaração da direção da revista a respeito de como deveria ser o executivo modelo para as empresas brasileiras. Os editores da revista, porém, se manifestam na Carta do Editor usando sistematicamente o recurso de elogiar os jornalistas que escreveram as matérias mais importantes 20 21
ibid. p. 184. ibid. p. 186.
29 de cada edição. Assim, por exemplo, na edição que descrevemos acima, a carta do editor elogia Peter Drucker como “o maior guru do mundos dos negócios”; é o modo escolhido para mostrar que a revista concorda com o que está escrito. Outro exemplo: “Assinar uma reportagem de capa é um dos momentos de consagração para os jornalistas de EXAME. Afinal, a capa costuma ser o prato principal, uma espécie de âncora ao redor da qual se organizam as diferentes atrações oferecidas pela revista. De quebra, tem como missão fisgar o leitor de banca. Por sua importância, costumamos confiá-la aos jornalistas mais experientes, capazes de apurar com esmero o tema escolhido e entregá-lo na forma de um texto preciso e elegante.”22 Teremos
oportunidade
de
mencionar
outros
exemplos
deste
procedimento. Assim a revista acaba se pronunciando sobre o que pensa das matérias publicadas e assinadas pelos seus jornalistas. 3. CONCLUINDO Ao encerrarmos este capítulo, é importante frisar os motivos que justificam a escolha da EXAME para pesquisar o conceito de perfeição do executivo. Essa revista ocupa um lugar de destaque na transmissão dos paradigmas e dos valores que as empresas gostariam de ver incorporados por seus executivos. As origens e os objetivos da revista mostram que ela existe para esta finalidade. Ela procurará abranger o universo da liderança empresarial brasileira, discutindo alternativas e oferecendo opções para essa liderança. Será essencialmente uma revista de negócios que poderá influenciar devido à posição de empresa líder do mercado editorial brasileiro ocupada pela Editora Abril. Não pretende limitar seu público-alvo aos presidentes de empresa, pois eles nunca decidem sozinhos. O objetivo da revista é influenciar o processo decisório na vida econômica do país para que ela possa desenvolver-se segundo os critérios definidos pelo empresariado nacional decidido a competir numa economia globalizada.
22
NETZ, Clayton, Carta do editor, Exame, edição 34 (729), 13 de dezembro 2000, p. 7.
30 Os responsáveis pela revista percebem que, em determinados temas políticos, a revista deve tomar posições claras, fazer críticas e vestir a camisa dos empresários contra as dificuldades da burocracia estatal. Por último, relatamos um importante testemunho do jornalista Mino Carta, que trabalhou na ABRIL nos anos 70. Comentando uma reportagem sobre as dez melhores cidades do Brasil, em que se vive melhor, publicada pela EXAME na sua edição 625, de 18 de dezembro 1996, indaga se a revista não exagera ao incluir São Paulo e Rio de Janeiro nessa lista. Ao responder, o jornalista afirma que talvez a EXAME esteja realizando o sonho de Victor Civita, praticando um jornalismo que esbanja otimismo não sobre o futuro mas sobre o presente, inclusive sobre a vida em cidades como São Paulo e Rio. Segundo Mino Carta, Victor Civita, então presidente da editora, dava o seguinte conselho a quem reclamava do momento político e econômico vivido pelo país então sob regime autoritário: "ainda espero publicar um jornal cuja manchete de primeira página anunciará diariamente: HOJE, TUDO BEM!" (...) "As pessoas querem boas notícias". Eu argumentava: "E se não houver boas notícias?" "Não tem importância", retrucava ele, "você dá um jeito, um retoquezinho aqui, outro lá, e acaba achando graça em qualquer coisa". Um dia perguntei para ele, abruptamente: "então o negócio é enganar os leitores?" E ele, impassível: "Mas eles não querem ser enganados?" 23 E Mino Carta conclui: "Diga-se que o ideal civitiano não difere de outros de comprovado êxito. E a receita se ampara solidamente na certeza da credulidade, da ignorância do distinto público. Enfim o engodo está nas ruas. Mas perguntaria Civita, não é isso que a turma quer?"24 Estamos prontos para começar nossa análise de um modo mais sistemático.
23
Este testemunho do jornalista Mino Carta é tirado da matéria "Civita, o pioneiro: de como uma reportagem atual me levou a lembrar o fundador da Abril e a sua formula de sucesso" publicada no Correio Braziliense edição do dia 29 dezembro 1996, na seção Opinião, página 20. 24 ibid. p. 20.
31
CAPÍTULO 2 O EXECUTIVO GLOBAL E PERFEITO NA REVISTA EXAME Desde o ano 1994, por decisão do Diretor Geral do Grupo Exame, José Roberto Guzzo, a revista EXAME convida seus leitores a uma reflexão sobre vida executiva e carreira25. As matérias, que no início tratavam de assuntos do dia a dia dos executivos26, progressivamente passam a Ter um cunho fortemente exortativo e visam fornecer um ideal de executivo no qual os leitores da revista possam se espelhar. Nosso propósito é se, a partir da leitura da revista, é possível descobrir este ideal e desenhar o retrato de um executivo modelo? O ideal proposto corresponde a um perfil puramente profissional e técnico ou tem implicações mais antropológicas? 1.
O EXECUTIVO NO MUNDO COMPETITIVO É necessário definir primeiro o que entendemos por executivo. A
primeira idéia que ocorre é que executivos são os supervisores, gerentes ou diretores que gerenciam e dirigem pessoas e equipes. Não podemos, porém, reduzir a definição de executivos a esta categoria de profissionais. Na presente conjuntura econômica e na estrutura atual das empresas, precisamos considerar alguns aspectos relevantes sem os quais não poderemos entender qual é o público alvo da revista Exame. Uma descrição do atual momento vivido pelas empresas americanas pode nos ajudar a ampliar nossa visão. Discorrendo sobre os novos desafios da economia americana, Robert Reich descreve três categorias de trabalho que estão surgindo e refletem as reais posições competitivas dentro da economia global e essas categorias, segundo ele, estão tomando forma em outros países27. São chamadas de serviços rotineiros de produção, de serviços pessoais e de serviços simbólicos analíticos. Os que estamos acostumados a chamar de executivos atuam na
25
BERNARDI, Maria Amália, Ao mestre, com carinho, Você S.A., 3 (25): 7, Julho 2000. Por exemplo: BERNARDI, Maria Amália, Eles & Elas, meu chefe de batom e salto alto, Exame, 26 (554): 72-74, 30 abril 1994, que trata do relacionamento de executivos homens com suas chefes mulheres. 27 REICH, Robert B., O trabalho das nações, São Paulo, Educator-Editora, 1993, terceira parte, p. 161ss. 26
32 terceira categoria de prestação de serviços, que vamos analisar mais detalhadamente com a ajuda de Robert Reich. Os serviços simbólicos analíticos incluem todas as atividades de identificação e de solução de problemas que podem ser comercializadas mundialmente como manipulações de símbolos – dados, palavras, representações orais e visuais. Colocam-se na categoria de analistas simbólicos os que chamam a si mesmo de pesquisadores, engenheiros de projeto, de software, biotecnólogos, consultores, profissionais de relações públicas, financistas, advogados, especialistas em informações gerenciais, em desenvolvimento organizacional e em planejamento estratégico e analistas de sistemas. Esses profissionais solucionam e identificam problemas e promovem a venda de soluções por meio da manipulação de símbolos. As manipulações são realizadas com ferramentas analíticas ou qualquer outro conjunto de técnicas para resolver quebra-cabeças conceituais. Da mesma forma que os trabalhadores rotineiros de produção, raramente os analistas simbólicos entram em contato com o usuário final do seu trabalho. Quase sempre trabalham sozinhos ou em pequenas equipes que podem estar ligadas a grandes organizações, incluindo-se teias mundiais. Quando não estão conversando com seus colegas de equipe, sentam-se diante de terminais de computador, examinam palavras e números, movem, alteram, tentam novas configurações, formulam e testam hipóteses, projetam ou desenvolvem estratégias. Periodicamente emitem relatórios, planos, projetos ou recomendações, participam e provocam reuniões de assessoramento que levam a novos relatórios, que levam a novas reuniões.... O grosso do tempo e do custo despendidos resulta de conceituar o problema, desenvolver uma solução e planejar sua execução. Portanto, a capacidade mais valiosa que se espera desses profissionais é de usar o conhecimento de forma efetiva e criativa. O que Robert Reich comenta sobre a economia americana pode ser aplicado às empresas e aos profissionais brasileiros mais envolvidos no ingresso da economia brasileira no processo de globalização. Portanto, falando em executivos, estaremos nos referindo ao tipo de profissionais descrito acima. O que se espera fundamentalmente de um executivo hoje? Deve estar totalmente atento ao mercado porque as empresas estão atreladas ao mercado: “Concorrência acirrada, competitividade, consumidores exigentes: as empresas precisam ser coladas ao mercado.”28
28
CASTANHEIRA, Joaquim, Procuram-se executivos loucamente, Exame, 26 (571): 90, 23 de novembro 1994.
33 A revista Exame pretende espelhar as exigências das empresas que impõem o modelo como sendo o exigido pelo mercado hoje, insistindo neste ponto e desenvolvendo este tema em muitas matérias. As competências e as outras atitudes que são exigidas dos executivos são conseqüências desta necessidade. "Cada vez mais os executivos são incentivados pelas empresas, e pelo próprio mercado, a ser pessoas competitivas individualmente.(...) Acontece que competir de verdade nem sempre é uma dessas coisas que se possa fazer suavemente, com muitas cautelas e sem incomodar ninguém. Ao contrário. Competir a sério pressupõe atitudes que demandam das pessoas doses altas de energia. Agressividade, ambição, ocupação de espaço, articulação, disposição para incomodar, capacidade de executar tarefas que outros não estejam executando e - por que não? certas doses de egoísmo, ou, pelo menos, de uma opção preferencial por si próprio."29
As
qualidades
do
executivo
competitivo
são
enumeradas:
agressividade, ambição, capacidade de executar tarefas que outros não executam, egoísmo e opção preferencial por si próprio. Assim uma pesquisa conduzida pela própria Exame aponta as seguintes habilidades como imprescindíveis: “Os resultados do estudo mostram claramente quais são as habilidades que devem Ter, hoje, os profissionais que almejam uma carreira bemsucedida, em qualquer área que seja. Vamos a elas: capacidade para realizar e assumir riscos; ser ético e íntegro; Ter visão de futuro e capacidade de planejamento; estar orientado para processos, pessoas e resultados; Ter habilidade em negociação e flexibilidade para mudança; Ter espírito inovador e criativo; Ter boa liderança e exercê-la através do exemplo; Ter energia e dinamismo; Ter habilidade em solucionar problemas; ser bom comunicador, articulador e assertivo.”30 Teremos a oportunidade de perceber no decorrer da nossa leitura da Exame que a referência a esses atributos é recorrente. O que interessa agora é notar que as características mais importantes do executivo pedidas pela empresa encorajam seu individualismo e sua capacidade de se sobrepor aos outros, não importando as conseqüências que isso possa acarretar no seu 29
BERNARDI, Maria Amália, Competir não é pecado, não? É bom que o executivo seja competitivo e ambicioso. Desde que respeite limites, Exame, 31 (629): 82, 12 de fevereiro 1997.
34 relacionamento com as pessoas dentro da empresa. Em caso de escolha, a opção é para si próprio. As competências e as virtudes a serem desenvolvidas destinam-se a favorecer no executivo essa capacidade de competir, mesmo que isso possa levar a incomodar. Aliás, nesta mesma matéria, problemas começam a aparecer: "Pronto, está formado o problema. Todas essas atitudes, normalmente, têm uma conotação ambígua. Tomadas ao pé da letra, por exemplo, podem ser a descrição negativa de alguém. Podem significar uma pessoa perigosa, não confiável, sem escrúpulos, que passa por cima dos outros para conseguir o que quer, talvez até desonesta. Esse traço de desconfiança em relação à competitividade faz parte da cultura latina e católica, apegada a pontos tradicionais de moral e de costumes, norteada por conceitos radicais a respeito do que é - e sobretudo do que não é aceitável no comportamento social. Mais que regras escritas, impera aí um determinado conjunto de valores pelo qual fica estabelecido, implicitamente, que isso "se faz" e aquilo "não se faz". Lutar abertamente pelos próprios interesses, admitir ambições, deixar explícita a vontade de obter benefícios materiais, prestígio ou poder, tudo isso cai, por exemplo, no capítulo daquilo que "não se faz". Ou melhor: não é errado desejar essas coisas, o errado é mostrar que você as deseja."31 Os problemas levantados por essa atitude competitiva têm a ver com a cultura latina e católica. Se a reação à competitividade for um traço cultural e religioso, as conotações negativas ou ambíguas seriam dadas por pessoas apegadas a pontos tradicionais de moral e de costumes como, por exemplo, a necessidade de Ter escrúpulos quanto ao fato de passar por cima dos outros para conseguir o que se quer. Querer Ter prestígio, bens materiais e poder representam, portanto, um outro modo de ser, diferente do tradicional e que, segundo a revista, não é errado, desde que não se mostre explicitamente. Todas as dificuldades encontradas pelos executivos e profissionais para poderem desenvolver-se e demonstrarem sua competitividade serão causadas por esse ambiente tradicional ainda marcado pela cultura latina e católica que já não combina com a sociedade globalizada, produtiva e eficaz que está sendo construída.
30
.BERNARDI, Maria Amália, Você vai dar certo ?, Exame, 29 (618): 70, 11 de setembro 1996. BERNARDI, Maria Amália, Competir não é pecado, não? É bom que o executivo seja competitivo e ambicioso. Desde que respeite limites, Exame, 31 (629): 82, 12 de fevereiro 1997. 31
35 Qual a razão determinante pela qual o executivo deve ser competitivo? Para poder trabalhar num ambiente de competição, porque a sociedade capitalista é uma sociedade competitiva. "A idéia de competição é fundamental para o capitalismo. Como disse Adam Smith, é da soma dos egoísmos individuais que nasce o bem-estar coletivo. Seu raciocínio se baseia na lógica de que, quando cada pessoa trabalha pelo seu próprio interesse, produz mais e com mais qualidade. O ponto de discussão é como competir."32 Esse é o postulado que fundamenta toda a reflexão sobre o comportamento humano na sociedade e na organização empresarial. A idéia de competição é tirada da interpretação dominante de Adam Smith: competir significa produzir mais e com mais qualidade em função do próprio interesse, único resultado procurado por quem é movido pelo egoísmo33. Neste caso, o enfoque dado à idéia de competição não está ligado à busca do bem comum a ser definido e negociado: o máximo que se pode esperar é o nascimento de um bem-estar coletivo que não chega a ser definido nem descrito. Nenhum juízo de valor é emitido sobre o fato de que a sociedade atual é uma sociedade competitiva no sentido acima exposto: este ponto não é submetido à discussão e nem deve ser. É um princípio indemonstrável e indiscutível. 4.
QUALIDADES EXIGIDAS DO EXECUTIVO Daqui para a frente, o problema é como competir e como o executivo
poderá ser um agente eficaz nesse processo competitivo em que estão engajadas as empresas e com o qual, como profissional, ele deve estar comprometido. 2.1. LIBERDADE E NECESSIDADE Pode se perguntar: qual é a margem de manobra real do executivo no processo de competição econômica conduzido pela mão invisível do mercado? Qual é o espaço de liberdade que existe para que alguém possa influenciar 32
ibid. p. 84. Interpretação matizada por autores que convidam a interpretar as afirmações de Smith no contexto em que foram emitidas. Ver, por exemplo, KORTEN, David C.: Quando as corporações regem o mundo, São Paulo, Editora Futura 1996. Mais adiante discutiremos este ponto. 33
36 este processo? O paradoxo é que existem duas mãos, a invisível e a visível: a invisível precisa da visível para poder competir. "No estudo dos negócios, há sempre um ponto a partir do qual o mercado e suas forças deixam de ser suficientes para explicar o sucesso ou o fracasso dessa ou daquela companhia, desse ou daquele país. Condições históricas, políticas e econômicas exercem, é claro, papel preponderante nos rumos de uma empreitada. São a mão invisível do mercado, pedra fundamental da ideologia liberal. Mas há também enorme fatia de responsabilidade repousando na definição das estratégias, na tomada de decisões, na condução das ações. Isto é, na mão visível do mercado: o gerenciamento."34 Sendo a mão invisível a pedra fundamental, o alicerce da ideologia liberal, sua existência não pode ser questionada, sob pena de ruir, no entender dos seus seguidores, todo o sistema de mercado. O campo de ação possível para o ser humano e o executivo é ser a mão visível do mercado através de ações administrativas e de gerenciamento das organizações empresariais e políticas. Portanto, todo o esforço empreendido pela organizações de formação dos seus quadros está destinado a fazer funcionar a mão visível para que ela não atrapalhe e favoreça a ação da mão invisível. Serão as empresas e os executivos que as conduzem preparados para enfrentar esse mundo empresarial competitivo e globalizado? 2.2. JOGAR O JOGO Como as empresas brasileiras estão engajadas nesse processo de competição global e como os executivos brasileiros dele participam? Para responder a esta pergunta, é preciso escolher um marco comparativo, os Estados Unidos, por causa da sua liderança no mundo capitalista e da sua estabilidade macroeconômica. "Nos Estados Unidos, onde os fatores macro são estáveis e sólidos há décadas, o management assumiu há pelo menos meio século um papel fundamental no que toca ao destino das companhias e, de modo mais amplo, do próprio país. Os gerentes, e em especial a alta gerência, são os senhores da guerra. Se não souberem jogar, são eles as primeiras baixas: estão na linha de frente, como os bons generais. Se forem jogadores 34
SILVA, Adriano, Faça a guerra, não o amor. Em vez de se queixarem dos competidores estrangeiros, os empresários brasileiros precisam reagir - e ganhar mercados, Exame 30 (633):41, 9 de abril 1997.
37 exímios, são pagos regiamente e podem virar sócios das companhias em poucos anos. Um jogo de regras simples e claras, bem ao estilo americano de eficiência. As condições estão dadas da mesma forma para todos os jogadores e o que define o sucesso de uma companhia ou o fracasso de outra são os movimentos que cada uma decide fazer e a maneira como os fazem, ou seja, o tipo de gerenciamento que implementam."35
Não é objeto da nossa reflexão questionar se essa visão do jogo empresarial americano não é um tanto idílica. O que nos interessa aqui é ver o desenho do conceito de gerenciamento e as finalidades que lhe são atribuídas. O ponto fundamental é que os executivos estão engajados num jogo aberto, embora jogo de guerra, em que as chances são iguais, as regras são simples e claras e onde o melhor vence e será regiamente recompensado. Nessa guerra não há lugar para os medíocres, mas somente para senhores da guerra e exímios jogadores: quem não se enquadra nestas categorias e não sabe jogar merece ser excluído. O sucesso e o fracasso de uma companhia são definidos pelos movimentos que cada um, movido pelo seu "egoísmo individual", faz e pelo tipo de gerenciamento implementado. Parece então que a mão invisível, ao se manifestar e agir mediante a mão visível, vai perdendo o seu pudor e mistério! Enfim, este é o jogo. No Brasil, a realidade é outra, porque o contexto histórico foi diferente, não permitindo que se possa jogar o mesmo jogo. "No Brasil, o quadro tem sido outro. Primeiro, é difícil falar em mão invisível do mercado numa economia historicamente dividida em feudos, que com o tempo conseguiu a façanha de traduzir-se pelo lado ruim do capitalismo e do livre mercado somado ao que havia de pior nas economias planejadas e de estado grande. É uma proeza nacional termos podido montar ao longo deste século um sistema de um lado rapinesco, no qual poucas leis fazem tanto sentido quanto a lei do mais forte, e de outro lado caracterizado por um centralismo estatal que é ineficiente à raiz."36
35
ibid. p. 41. ibid. p. 41. Ver também a matéria não assinada: Há um abismo entre intenção e gesto, Exame 25 (532): 78, 26 de maio 1993 : “Inciativa, criatividade, capacidade de negociação, trabalho em equipe, visão de conjunto e comprometimento com o cliente. Fundamentais para a sobrevivência num ambiente competitivo, essas características dos executivos fazem parte dos
36
38 Embora isto não faça parte do objeto estudado, não podemos deixar de notar a veemência da condenação; o autor da matéria pratica com maestria o maniqueísmo e afirma com tranqüilidade e sem muito esforço que o Brasil reuniu o que havia de pior nos dois mundos, o capitalista e o socialista! Na oportunidade, cunha até um neologismo, "rapinesco", para poder melhor expressar sua fúria vingadora bem acomodada no casulo oferecido pela ideologia dominante. Tirando o ardor da condenação, o que é dito é que a economia brasileira sempre foi o palco de uma luta de interesses, onde os mais fortes prevaleceram econômica e politicamente. Nesse contexto, qual foi o papel dos executivos brasileiros? “Nesse contexto, o gerente no Brasil sempre foi um funcionário burocrático, pago para administrar os entraves do dia-a-dia. A ele não era requerida nem dada a busca de novas oportunidades, o aperfeiçoamento dos processos, o desenvolvimento de estratégias. Afinal, a exemplo das grandes propriedades rurais, boa parte dos mercados no Brasil chegaram às empresas como lotes cercados de arame. A alta gerência decidia quanto daquele lote usaria e o tamanho da margem de lucro que queria Ter. Os consumidores, à guisa de vassalos, não tinham muita alternativa senão pagar o que lhes era exigido e resignar-se com o que recebiam em troca."37 Esta matéria é representativa de como o executivo médio brasileiro é visto pelos seus pares mais engajados no processo de globalização. A característica principal sublinhada neste artigo é o imobilismo que o impede de Ter qualquer criatividade frente às novas oportunidades. A ligação entre um sistema econômico feudal e a tendência burocrática do gerente brasileiro é claramente exposta. Portanto, mais o mercado torna-se competitivo, mais o executivo terá oportunidade para desenvolver-se e adquirir novas qualidades e virtudes, desde que saiba perceber o novo modelo que está sendo implantado. Daí a necessidade dele mudar. A partir de quando a mudança começa a operar-se no Brasil? "Todo esse cenário começou a mudar na década de 90, especialmente com o Plano Real e a nova economia brasileira. A competição está lentamente se tornando um ingrediente efetivo do mundo dos negócios no Brasil. (...) Um discurso tem sido comum aos industriais brasileiros sonhos dos empresários e dos discursos dos gurus da administração. Só que não estão presentes no perfil da maior parte dos diretores e dos gerentes brasileiros.” p. 78 37 ibid. p. 41.
39 ultimamente: é impossível para as empresas nacionais disputar a corrida global por mercados e clientes - especialmente quando ela ocorre dentro do Brasil. Ou seja, chineses, tailandeses, argentinos e toda sorte de cores nacionais estariam entrando incólumes com seus produtos no mercado brasileiro e realizando estragos entre os competidores nacionais. A reação generalizada do empresariado reflete precisamente o passado que nos trouxe à presente situação de vulnerabilidade do país: vão bater às portas do Palácio do Planalto, em sobressalto."38 Percebe-se que, segundo este jornalista, as empresas e os executivos brasileiros entram nesse mercado competitivo com dificuldades e resistências. Permanece a tentação de continuar nos feudos e de recorrer à ajuda do governo cada vez que a competição se faz mais exigente. E se essa atitude fosse coerente com o interesse pessoal que cada empresário procura realizar, movido pelo "egoísmo individual"? No mundo liberal e globalizado, porém, é impossível cuidar do próprio interesse sem declarar a guerra. As regras do jogo são aquelas determinadas pelo capitalismo americano e suas empresas. "Poucos realizam o movimento na direção oposta, o que se esperaria de empreendedores, que é analisar a concorrência, reorganizar a produção, reduzir os custos, repensar o marketing e declarar guerra.(...) Nenhuma economia que não seja genuína e agressivamente liberal terá condições de sobreviver. O mesmo se dará ao nível das empresas. Quem não tiver condições de caminhar pelas próprias pernas - e continuar atrelando seu passo ao protecionismo, seja ele fruto de uma estrutura feudal como a nossa ou de um sistema centralizador como o de alguns países europeus e asiáticos - simplesmente não caminhará. Assistirá às próximas décadas desde uma posição retardatária."39 Aí está o grande medo: ficar no atraso. Em nenhum momento se pode questionar se a corrida está no rumo certo. O problema é participar dela independentemente do destino. O elemento competitivo chave para reverter a situação é a qualidade do gerenciamento. "Chegaremos à relevância internacional basicamente através do gerenciamento. Do talento de executivos em tomar as melhores decisões, criar e ocupar espaços, competir.(...) A expansão brasileira no âmbito da economia mundial virá como resultado de ações da iniciativa privada, embasadas no gerenciamento. Um dos grandes obstáculos que 38 39
ibid. pp. 41-42 ibid. p. 42.
40 precisamos vencer para chegar lá é o sentimento de inferioridade que o brasileiro, como latino-americano e terceiro-mundista, costuma Ter em relação a outros povos e países.(...) O brasileiro costuma pensar que não pode competir com americanos porque não é tão esperto e tão prático quanto eles, nem com alemães ou japoneses porque não é tão organizado e não trabalha tão duro, nem com chineses ou malaios porque não lhes alcança os preços."40 Algumas empresas brasileiras já estão conseguindo isto: “Na AmBev, os números ainda são o melhor argumento em favor da hipercompetição entre os talentos. Fruto da fusão de Brahma e Antarctica, ela é hoje a Quinta maior companhia de bebidas e a Quarta maior cervejaria do mundo. No terceiro trimestre deste ano, apenas nove meses após a fusão, atingiu um lucro líquido de 387,8 milhões de reais. A hipercompetição entre os funcionários tem a ver com isso? Muito provavelmente, sim. O mesmo método funcionaria em outra empresa? Em um bom número delas, poderia significar o suicídio. A AmBev só vem tendo resultados positivos ao levar seus funcionários ao limite porque isso combina com sua cultura corporativa, com a forma de remuneração adotada e com o perfil das mulheres e dos homens caçados por Magim Rodrigues e seus sócios. A pressão por resultados é enorme. Os horários de trabalho, insanos. Os benefícios oferecidos, pífios. Mesmo assim, a rotatividade entre os executivos é de 5% ao ano. Eles ficam porque apreciam desafios e porque adoram o dinheiro que a vitória sobre eles geralmente traz.”41 A hiper-competição existe no nosso meio e quem participa desse jogo parece gostar e não querer sair e é dito claramente que é por causa do dinheiro que recebem. Para eles, isso vale qualquer sacrifício. Comentários foram feitos quando esta matéria foi publicada, muitos deles negativos sobre o ambiente que tal competição exacerbada cria na organização. Isto pode levantar uma pergunta: será que a Ambev não está simplesmente levando até as últimas conseqüências os princípios assumidos pelo sistema? 2.3. A CONVERSÃO PARA A EMPREGABILIDADE O fator auto-estima é fundamental para competir. O gerente brasileiro precisa modificar a visão que tem do mundo e de si mesmo. Precisa mudar atitudes para poder, inclusive, Ter mais auto-estima. Pode parecer um pouco difícil depois de tudo o que foi dito sobre as características da sociedade brasileira e de sua economia. Contudo, o apelo à conversão foi lançado! E se esse apelo 40 41
ibid. p. 44. CORREA, Cristiane, Ambev, no limite, Exame 34 (729): 66, 13 de dezembro 2000.
41 não for ouvido? E se o executivo não se converter? Dito em termos mais técnicos: qual é a empregabilidade do executivo brasileiro? Para responder a essa pergunta, precisamos entender melhor o termo "empregabilidade", que recebe a seguinte conotação: mais do que avaliar se um candidato a determinado emprego tem as competências necessárias, tratase de descobrir se ele está realmente motivado para entrar e dedicar-se integralmente a essa guerra através de serviços prestados ao sistema representado pela empresa. E toda empresa capitalista globalizada é regida por três conceitos: produtividade, relacionamento e qualidade. "Empregabilidade é a maneira mais clara de enxergar as três áreas de êxito de uma organização: produtividade, relações e qualidade. Também é uma palavra nova. A empregabilidade pode ser comparada a outras formas de "ade", "ança" ou "ia" Da mesma forma que a palavra cidadania define aquilo que é preciso para ser um bom cidadão e liderança o que é preciso para ser um bom líder, a empregabilidade define o que é preciso para ser um bom funcionário. Quando o indivíduo faz um esforço sincero e orientado às metas para fazer o melhor possível dentro das três áreas de êxito da organização demonstra um tipo especial de engajamento pessoal. Esse tipo de engajamento é o que eu chamo de empregabilidade." 42
O que é preciso para ser um bom funcionário? O engajamento pessoal nas três áreas de êxito que vai ser medido pelo cumprimento ou não de metas estabelecidas pela direção da organização: dificilmente hoje, essas metas são discutidas com quem deve fazer o esforço sincero de alcançá-las; elas são expressas em termos de quantidade de produto e cada vez mais em termos de resultados financeiros, tanto em faturamento quanto, principalmente, em rentabilidade ou lucratividade. Qualidade e relacionamento são meios e sempre avaliados em função da rentabilidade a ser alcançada. Na nova economia, os conceitos de produtividade e qualidade têm sua importância redimensionada em relação ao conceito de alto risco compensado por alta rentabilidade quase imediata, independentemente de a empresa Ter vida longa ou não.
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MÖLLER, Claus, A santíssima trindade que leva ao sucesso, Responsabilidade, lealdade e iniciativa. Eis os elementos fundamentais que formam o conceito de empregabilidade. Sua carreira depende disso, Exame, 30 (623): 102,.20 de novembro 1996. O consultor dinamarquês Claus Möller é dono da Time Manager International, uma das maiores empresas de administração e treinamento de pessoal do mundo.
42 "Um ponto fundamental da Nova Economia, que ajuda a explicar o sucesso americano, é o mercado de capitais. (...) No caso da Epinions.com, o dinheiro saiu apesar de a idéia Ter tido nota 6,5 nas discussões internas da Benchmark Capital, a empresa que financiou metade do total. Como uma idéia considerada apenas mediana foi aprovada? Bem, a competência do grupo levou nota 9,5. Na média, idéia e grupo passaram no teste. E os donos do dinheiro resolveram arriscar. O risco, aliás, é parte inerente do capitalismo."43
A competência aqui mencionada é uma competência no manejo das expectativas. O que importa é a capacidade de alguém vender idéias que possam Ter um retorno imediato quando do lançamento em bolsa da empresa, que ainda não demonstrou nada em termos de competência operacional. A competição exerce-se em cima das expectativas dos possíveis investidores. A velha economia ainda repousa sobre um ciclo de produção onde qualidade e produtividade podem ser aferidos e analisados permitindo decisões de investimento mais racionais. Enfim, a empregabilidade parece ser o novo nome da cidadania empresarial. "Qual a importância de se Ter claro esse conceito em mente? Quem pensa que as hierarquias das empresas não podem se achatar ainda mais do que já se achataram será forçado a rever suas idéias. No futuro haverá muito poucas camadas de direção e não haverá espaço para processos ou pessoas que não ajudem a criar um valor adicionado mensurável em relação à lógica da organização."44 A mensagem é clara: o espaço está ficando cada vez menor nas empresas por causa do achatamento dos níveis hierárquicos e da diminuição dos postos de trabalho. Quem não conseguir criar um valor adicionado mensurável em relação à lógica da organização não conseguirá espaço profissional. Pode-se dizer mais claramente que quem não ajuda a organização a ganhar dinheiro não tem lugar nela. Em outras palavras, a lógica da organização é ditada pelo som que todo empresário quer ouvir na sua organização: o do dinheiro que entra em caixa. Quais são as características fundamentais deste cidadão da empresa, bom funcionário e bom membro da equipe? Existem três virtudes: responsabilidade, lealdade e iniciativa. 43
LAHÓZ, André, Nova Economia, Exame 33 (695): 130, 25 de agosto 1999.
43 "O conceito de empregabilidade expressa o que é preciso para a pessoa ser um bom funcionário ou um bom membro de uma equipe. (...) A meu ver, a empregabilidade é composta por três elementos básicos: responsabilidade, lealdade e iniciativa. Esses três conceitos globais são característicos da atitude e do comportamento das pessoas que são boas funcionárias."45 Não estamos mais falando em capacidades intelectuais mas em comportamentos. O autor vai detalhar cada uma dessas virtudes. Segundo ele, a responsabilidade tem a ver com a consciência de possuir uma influência real, o que constitui uma experiência pessoal muito importante e fortalece a autoestima. Para ele, só pessoas que tenham auto-estima e um sentimento de poder próprio são capazes de assumir responsabilidade, porque elas sentem e criam um sentido na vida. Concretamente, essa responsabilidade se verifica alcançando metas sobre as quais concordaram previamente com seus chefes e pelas quais assumiram responsabilidade real, de maneira consciente. A lealdade, a Segunda das três virtudes apontadas pelo autor como fundamentais para a empregabilidade, significa a capacidade de se alegrar quando a organização ou o departamento são bem-sucedidos, de defender a organização, tomando medidas concretas quando ela é ameaçada, Ter orgulho de fazer parte da organização, falar positivamente sobre ela e a defender contra críticas; isto não quer dizer necessariamente fazer tudo o que a pessoa ou organização quer; ser fiel não é sinônimo de obediência cega. Lealdade pode significar fazer críticas construtivas desde que mantidas dentro do âmbito da organização, agir com a convicção de que seu comportamento vai promover os legítimos interesses da organização. Continuando, o autor chega a afirmar que, em algumas situações, lealdade pode significar a recusa em fazer algo que o executivo acha que poderá prejudicar a organização, a equipe ou os funcionários. Segundo ele, contudo, não parece que pode existir um conflito entre a lealdade à empresa e a lealdade do executivo a alguns princípios pessoais ou sociais que o levaria a discutir decisões da empresa, confrontando-as a interesses mais amplos. A empresa parece absolutamente infalível e incapaz de querer coisas más. 44 45
MÖLLER, Claus, ibid. p. 102. MÖLLER, Claus, ibid. p. 102.
44 Quanto à terceira virtude "teologal", a iniciativa, o autor indica que tomar a iniciativa de fazer algo no interesse da organização significa, ao mesmo tempo,
demonstrar
lealdade
pela
organização.
Em
um
contexto
de
empregabilidade, tomar iniciativas não quer dizer apenas iniciar um projeto no interesse da organização ou da equipe, mas também assumir responsabilidade por sua complementação e implementação. Ele reconhece porém que para que o executivo possa usar todo seu espírito de iniciativa, ele precisa de um certo grau de liberdade. Para isto, segundo ele, a cultura empresarial deve ser uma cultura que acolhe o espírito de iniciativa e não o vê como ingerência excessiva. Entre os requisitos prévios importantes para que as iniciativas de todos dêem em bons resultados, considera que tanto a direção quanto aqueles que tomam iniciativas devem estar dispostos a assumir riscos calculados, que todos na organização devem aceitar os erros criativos, que ocorrem quando se fazem experiências e se testam coisas novas e que força de vontade e coragem devem fazer com que todos na organização ajudem uns aos outros a quererem e a ousarem usar sua iniciativa de maneira inteligente e alinhada. As empresas enfrentam uma luta gigantesca para ajudar o executivo a passar por esse processo de transformação: longe de ser fácil obter um ser humano tão perfeito, é preciso que seja educado, mais exatamente, reeducado: “Alterar o comportamento do ser humano não é tão simples nem rápido quanto lhe ensinar uma nova tecnologia. Ao contrário, é tão complicado e demorado quanto reeducá-lo depois de adulto. A saída está na palavra reeducação.”46
Esta palavra não traz boas lembranças! É interessante notar que todo sistema que quer formar o homem, o cidadão ou o executivo ideais acaba recorrendo a ela! Realmente, não é fácil perseverar no ideal acima delineado. O executivo não será reeducado em um desses ambientes fechados que despertam lembranças sinistras! Ele mesmo precisará reeducar-se para poder sobreviver e garantir seu lugar no jogo de guerra em que está envolvido. A recompensa é um novo batismo que o faz entrar num mundo novo:
46
BERNARDI, Maria Amália, Você vai dar certo ?, Exame, 29 (618): 70, 11 de setembro 1996.
45 “Não é raro o executivo acabar confundindo o título do cargo que ocupa com o seu sobrenome de batismo. E, consequentemente, incorporar à sua vida pessoal os benefícios e o poder que o cargo lhe confere. Todo mundo já viu esse filme: o executivo viaja para lá e para cá, no jatinho da empresa; tem acesso a pessoas importantes porque representa a empresa; conversa com ministros em nome da empresa; toma decisões que envolvem milhões de reais que pertencem à empresa. "De repente ele passa a acreditar que é a pessoa dele que tem acesso a tudo isso", diz o headhunter Simon Franco, da Simon Franco Recursos Humanos. "Até o dia em que lhe tiram o cavalo e a sela onde estava montado sem aviso prévio."47
Este mundo novo é o mundo do poder que traz os benefícios conferidos pelo cargo ocupado: é o status, o contato com os poderosos e com o dinheiro e a sensação de tomar decisões importantes. Estas recompensas são precárias: tudo pode acabar sem aviso prévio! Cabe a cada executivo manter a vigilância para não ser pego desprevenido. A ajuda que alguns poderiam esperar da empresa faz parte de um mundo que passou: as empresas não têm tempo, nem os chefes têm condição na velocidade das mudanças de prestar muita atenção à carreira dos seus executivos que é, aliás, um bem precioso demais para ser entregue a terceiros: “De agora em diante, você é o dono de sua própria carreira. "O executivo é o próprio negócio", diz William Morin, um dos fundadores da DBM, a maior empresa de outplacement do mundo. "A carreira é um bem precioso demais para ser entregue a terceiros." É a era da empregabilidade, o conjunto de competências e habilidades necessário para manter sua colocação dentro ou fora de sua empresa.(...) O principal mandamento dessa era é a capacidade de gerar constantemente trabalho e remuneração -- e não emprego e salário, como antigamente. Nesse novo mundo, as estruturas emagrecem dia após dia. Assim, os chefes não podem dar atenção especial à carreira de seu time. As empresas também abandonaram a postura paternalista de décadas e décadas de garantia de emprego eterno. A posse da carreira foi devolvida ao executivo. O americano William Bridges, autor do livro Job Shift, cunhou uma expressão divertida para exprimir esse estado de coisas: segundo ele, o executivo deve rebatizar-se de Você & Co.”48 Castanheira conclui esta matéria apontando que o desafio da empregabilidade é uma passagem entre o velho e novo modelo que pode 47 48
ASSEF, Andréa, O seu cartão já diz tudo?, Exame, 30 (628): 108, 29 de janeiro 1997. CASTANHEIRA, Joaquim, A era da empregabilidade, Exame, 29 (610): 36, 22 de maio 1996.
46 sacrificar uma virtude importante apontada na outra matéria como pilar dessa mesma empregabilidade: “O grande desafio para os executivos está na travessia entre o velho e o novo modelo. Abandonar os laços de lealdade e adotar o profissionalismo. Deixar de pensar como funcionário e colocar-se como fornecedor. "Eles sabem que os antigos mandamentos já não são válidos, mas ainda não aceitam os novos", diz Vic, da DBM. "Estão no ar antes de mergulhar."49
Fica difícil entender como a lealdade pode ser substituída pelo profissionalismo, que parece poder ser definido como a lealdade a Você & Co. Anteriormente, porém, tínhamos visto que a lealdade, uma das virtudes básicas da empregabilidade, podia inclusive levar à recusa de fazer coisas que pudessem prejudicar a organização. E se a organização pedir determinadas atitudes que prejudicam Você & Co.? Os jovens executivos, ouvidos por uma pesquisa realizada pela Exame, têm a resposta: "A lealdade à empresa está morta. Em compensação, ele trabalha como ninguém pelo sucesso da companhia, porque identifica este como o melhor caminho para o seu próprio sucesso.”50 2.4. ENFRENTAR O DILEMA ÉTICO E SER HUMILDE! Tudo isso pode levar o executivo a enfrentar um dilema: assumir o desejo de ser competitivo sem mostrar e aceitar pagar o preço que pode ser um certo isolamento. De fato, como vai reagir frente aos seus pares que são seus competidores diretos? Neste momento, não se trata mais de ser um servidor da competitividade da empresa, mas de enfrentar uma competição pessoal que pode tornar-se predatória. "De que maneira evitar os problemas que o espírito competitivo traz para as pessoas? A resposta está em Ter padrões de comportamento ético, e de moral, rigorosamente definidos - e não ultrapassar seus limites. (...) O problema é que há sempre controvérsias quando se fala em limites. Suas linhas são diferentes para uns e outros porque educação, formação e princípios recebidos na infância variam não apenas de cultura para cultura, mas de família para família. Se somos obrigados a conviver com pessoas que não pensam e agem da mesma forma que pensamos e 49 50
CASTANHEIRA, Joaquim, ibid. p. 36. COHEN, David, As empresas vão ser deles, Exame, 31 (661): 107, 06 de maio 1998.
47 agimos, o conselho primordial é tentar não se perder, não deixar de ser quem você é. "51
Evitar os problemas causados pelo espírito competitivo implica Ter padrões de comportamento ético rigorosamente definidos... por quem? Quando existe uma grande diversidade, o conselho primordial é ser si mesmo. Continuamos com o mesmo problema! Se a idéia de competição é fundamental para o capitalismo, a maior dificuldade é fixar limites porque, afinal, o executivo é sempre instado a escolher a si mesmo em qualquer conflito que possa ocorrer, menos o que pode enfrentar com os próprios valores do capitalismo cultuados e praticados pela sua empresa, para quem vai a dedicação total do seu ser e da sua competência. Como se apresenta o problema ético nesse contexto? Existe primeiro uma questão de sobrevivência: “A inquietante pergunta que emerge disso é se é possível para uma empresa, ou para um profissional, sobreviver no mercado sendo ético, agindo correto, jogando pelas regras, enquanto seus competidores jogam areia no olho, agem sem nenhum parâmetro moral e perseguem objetivos na base do não-importa-como.”52 O autor da matéria define o que entende por ética: um conjunto de valores que orientam o comportamento de um indivíduo ou Ter ética significa, basicamente, Ter respeito pelo outro — ou pelos outros. É um conceito que não admite gradações e que pode levar as empresas a repensarem o próprio conceito de competitividade: “Motomura pergunta o que aconteceria se dois competidores, em vez de brigarem até a morte para morder a participação de mercado do outro, se dedicassem a expandir juntos o mercado em que atuam (...). Esse modo de ver as coisas questiona o próprio conceito de competitividade — que tem servido de desculpa para muita gente boa bater abaixo da linha de cintura. “Não há necessariamente uma realidade eu-ou-você. Mas nós nos comportamos como se houvesse”, diz Motomura. “A competitividade de que ouvimos falar hoje pode ser uma dificuldade de pensar diferente. E se construíssemos relações ganha-ganha entre concorrentes? E se forjássemos algum tipo de cooperação que pudesse resolver problemas 51
BERNARDI, Maria Amália, Competir não é pecado, não? É bom que o executivo seja competitivo e ambicioso. Desde que respeite limites, Exame, 31 (629): 84, 12 de fevereiro 1997. 52 SILVA, Adriano, Agressivo ou predador, Exame, 34 (715): 34, 31 de maio 2000.
48 comuns a várias empresas e a seus respectivos públicos, e que, portanto, beneficiasse a todos?”53
Isto deve levar a discutir o próprio conceito de resultados: não se pode considerar somente os resultados quantitativos, mas também devem-se aferir qualidade do produto e satisfação do cliente. Em relação aos funcionários, algumas modificações devem ser feitas no próprio conceito de remuneração e de premiação: “Eis a importância das empresas no processo de consolidação da ética no país. Afinal, ninguém duvida que o ambiente corporativo constitui, cada vez mais, uma arena privilegiada das relações sociais e das definições nacionais. Num primeiro momento, as empresas estimulavam seus funcionários apenas com salário e promoções, de um lado, e com a ameaça de demissão, de outro. Depois, passaram a premiar os resultados financeiros — o grosso das empresas brasileiras está nesse estágio. O próximo passo será premiar o comportamento dos funcionários. “Há cada vez mais empresas olhando para as competências e não só para os resultados”, diz Nelson Savioli, diretor de recursos humanos da Gessy Lever.”54 O autor prossegue ressaltando a importância do processo educativo para fechar as brechas que levam as pessoas a atitudes pouco éticas e mostrando
que
num
ambiente
marcado
pela
preocupação
com
o
aprimoramento das competências dos funcionários, a comunhão de valores pode ser um outro fator fundamental para a manutenção da ética. Isto, porém, não basta: é preciso cobrar e dar o exemplo, porque a conduta do presidente e do primeiro escalão indica mais caminhos do que mil palavras. “Eis o motor do processo de consolidação da ética em uma determinada comunidade: os indivíduos. Em mercados sofisticados — e alguns setores da economia brasileira já estão a ponto de integrar esse clube — instalase o que o americano Philip Kotler, uma das maiores autoridades mundiais da área de marketing, chama de consumerismo: um estágio da competição no qual os produtos e os preços se eqüivalem, e os consumidores acabam decidindo comprar por identificação com as empresas que estão por trás das marcas.”55
53
ibid. p. 36. ibid. p.36. 55 ibid. p. 37. 54
49 O autor conclui que o processo de resgate da ética acaba sendo conduzido pelos indivíduos agrupados em dois grupos: sem ética, as empresas não vão conseguir atrair os melhores talentos e vão ser cobradas pelos consumidores: através destes, afinal, é o mercado que vai decidir se as empresas são éticas ou não. Ponto de vista semelhante é desenvolvido numa outra matéria. “Empresas existem para gerar valor. Essa é a missão primordial, a razão de ser de qualquer negócio. É para isso que seus líderes armam estratégias, seus funcionários dão duro, seus acionistas investem. É para gerar valor, e se perpetuar por meio dele, que companhias de todo o mundo se reinventam quase que diariamente, a fim de se adaptar a um mercado cada vez mais exigente, global e mutante. É exatamente ele — o mercado — que nos últimos anos vem cobrando de maneira obsessiva uma transformação no modo como as empresas fazem negócios e se relacionam com o mundo que as rodeia. A mão invisível, como diria Adam Smith, está transformando o conceito de boa cidadania corporativa — ou de responsabilidade social — numa questão estratégica e de sobrevivência a longo prazo no mundo dos negócios. Nesse novo ambiente, os interesses dos acionistas dividem espaço com as demandas da comunidade e dos clientes, funcionários e fornecedores. É para esse grupo, os chamados stakeholders, que a empresa do futuro terá de gerar valor. Estamos, na verdade, diante de um novo modelo estratégico — um modelo que tende a se fortificar nas próximas décadas. Durante muito tempo, as empresas foram pressionadas a se preocupar com a qualidade de seus processos. Um excelente produto, com preço competitivo e bom serviço agregado, deixou de ser uma vantagem para se tornar uma obrigação”, diz Waldemar de Oliveira Neto, superintendente do Instituto Ethos, entidade que tem como objetivo a disseminação do conceito de responsabilidade social entre as empresas brasileiras. “Hoje há uma enorme pressão pela qualidade nas relações. Atingi-la ou não será um fator determinante para o sucesso nos negócios.”56 Construir a ética virou uma exigência de mercado: a mão invisível cobra mais responsabilidade social das empresas. O que isso significa em termos de comportamento e de opções na conduta dos negócios? “Uma empresa ética, em última análise, deve ser a que coloca sua responsabilidade social e transparência acima de tudo, mesmo que isso a leve a diminuir os lucros num determinado momento”, diz o sociólogo Ciro Torres, coordenador do projeto de balanço social das empresas do Ibase, Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas. Isso quer dizer que 56
VASSALO, Claudia, Por que a responsabilidade social deixou de ser uma opção e virou motivo de sobrevivência para as empresas, Guia Exame de Boa Cidadania Corporativa, parte integrante da Exame, 34 (728): 9, 29 de novembro 2000.
50 empresários e executivos vão sair por aí travestidos de Madre Teresa de Calcutá ou de Dalai Lama? Não. Não há nada, absolutamente nada, que impeça, por exemplo, uma empresa, considerada responsável, de fazer demissões. Muitas vezes elas são inevitáveis. A questão é o modo como essa medida será conduzida.”57 Mais adiante, aparece porém a finalidade de todo esse movimento: “No Brasil corporativo opções como essas estão se tornando cada vez mais freqüentes. Não por simples benemerência. Mas principalmente pela necessidade de perpetuar marcas, de atrair os melhores talentos, de conquistar um consumidor mais e mais seletivo e, sobretudo, de colocar em prática certos valores.”58 Parece que, nesse mundo de tanta competitividade, as coisas não podem ser feitas porque fica bem. Sempre é preciso insistir que a finalidade última é o próprio desenvolvimento das empresas que acaba sendo o único horizonte possível para motivar as pessoas a fazerem o bem. O mundo parece não oferecer outras dimensões. 2.5. O TALENTO O recado é dado. Não entrando neste ritmo de transformação corre-se o risco de ficar obsoleto: não se trata de analisar a finalidade e as conseqüências das mudanças que estão ocorrendo, mas sim de saber se as pessoas vão comprometer-se a mudar. Todavia, a questão mais vital para as empresas é que as pessoas comprometidas tenham talento. Queremos entender melhor o que significa Ter talento para, num segundo momento, entender melhor o que é comprometimento. "Qual a questão mais vital para as empresas hoje? Capital? Estratégia? Produtos inovadores? Tecnologia de ponta? São, todos eles, itens poderosos. Mas subitamente perdem a intensidade e a força quando confrontados com outro tópico: o talento. Nada é tão vital na agenda das empresas, hoje, como o talento. Porque sem talento o resto - capital, estratégia, produtos inovadores e o que mais se queira - simplesmente não se consegue. Ou se consegue apenas em doses insuficientes para estes ásperos e perigosos tempos de competição exacerbada."59
57
ibid. p. 10. ibid. p. 11. 59 BLECHER, Nelson, O fator humano, as empresas precisam desesperadamente de gente de primeira para sobreviver e prosperar. Mas onde encontrar essa gente? Bem-vindo à Guerra do 58
51
Talento tem a ver principalmente com a capacidade de solucionar problemas que possam sustar as transformações necessárias. Para isto, talvez duas habilidades são fundamentais: Ter visão e Ter capacidade de tomar decisões, mesmo que sejam dolorosas. "Decisões grandes e dolorosas: são elas, na verdade, as únicas capazes de trazer aquelas transformações efetivamente vitais para as empresas empenhadas em melhorar sempre. É por aí, na capacidade de fazer as mudanças acontecer, que começam a se diferenciar os profissionais com desempenho excepcional daqueles que são simplesmente bons. Quantos executivos têm a competência e a visão para identificar corretamente as modificações -- de estratégia, de objetivos, de processos, de mentalidade - que precisam ser feitas dentro da empresa? E quantos são realmente capazes de tomar as decisões necessárias para colocar, com sucesso, tais mudanças em prática? Poucos. São esses poucos, justamente, os profissionais que se pode descrever como imprescindíveis."60
O profissional que faz as mudanças acontecerem diferencia-se por algumas características: a capacidade de tomar decisões grandes e dolorosas e a visão para identificar corretamente as modificações que precisam ser feitas para que as empresas possam inserir-se na competição global. Essas modificações devem ser feitas numa determinada ordem: primeiro as estratégias que devem adequar-se ao novo momento de competição. Segundo, os objetivos que permitirão concretizar as estratégias adotadas. Terceiro, os processos operacionais e gerenciais que permitirão atingir os objetivos fixados. Finalmente, as mentalidades: as pessoas terão que moldar-se ou ser moldadas para poderem desempenhar o papel a elas atribuído nesta dinâmica empresarial. Decisões dolorosas terão que ser tomadas: quem é capaz de sentir dor? Obviamente, as pessoas. 2.6. SER INDISPENSÁVEL "Tornar-se indispensável - e essa é possivelmente a questão profissional mais importante que um executivo tem diante de si hoje em dia - exige bem mais do que circunstâncias favoráveis. O essencial, mesmo, é um Talento, que deverá selar o sucesso ou o fiasco das corporações, Exame, 32 (668): 105, 12 de agosto 1998. 60 BERNARDI, Maria Amália, Você tem que fazer chover, para resumir a questão: ou você é um executivo que faz diferença ou você está frito, Exame, 31 (656): 35, 25 de fevereiro 1998.
52 conjunto de qualidades e talentos específicos que podem ser sintetizados em algo muito preciso: a capacidade de fazer o que outros não sabem, não querem ou não podem fazer. Não se trata apenas de fazer o que deve ser feito pelo manual de boas práticas. Mais precisamente, o primeiro item daquele rol de qualidades e talentos mostra que tende a ser indispensável, hoje, quem é capaz de executar as decisões-chave de mudança. "A qualidade mais importante num executivo para os próximos 10 anos, pelo menos, não será o seu gênio para o marketing, ou seu talento tecnológico, ou qualquer outro tipo de conhecimento funcional", dizem os consultores Adrian Slywotzky e David Morrison, da Management Decisions, de Boston. "O essencial será sua disposição para tomar decisões grandes e dolorosas."61 Tornar-se indispensável é a questão profissional mais importante que o executivo enfrenta porque se não for indispensável, pode ser dispensado? Sem dúvida, este é um ponto de reflexão que qualquer leitor assíduo da revista vai considerar. O conjunto de qualidades e de talentos necessário para tornar-se indispensável é muito preciso: a capacidade de fazer o que os outros não sabem, não querem ou não podem fazer, e tomar as decisões chaves da mudança que são grandes e dolorosas. "Hoje em dia, de fato, executivos vêm se transformando cada vez mais em commodities, como uma matéria-prima que pode ser adquirida a qualquer momento, em qualquer lugar, eventualmente a preço mais baixo. Mas aqueles poucos profissionais com real talento para tomar as decisões certas e difíceis estão numa categoria à parte - são indispensáveis, sim, pelo menos em empresas de primeira classe."62
A diferença entre o executivo-commodity e o executivo de primeira classe está na capacidade do segundo de tomar decisões certas e difíceis. Aqui é criada a distinção entre os perfeitos e os não perfeitos: os que são descartáveis e os imprescindíveis. Não são critérios de integridade ou de talento pessoais, psicológicos do executivo que vão decidir de sua inclusão numa ou noutra classe: é sua capacidade de fazer entrar o dinheiro na empresa: "Mas como chegar lá? O passo inicial é, em geral, mudar de atitude -- e eis, desde sempre, uma das maiores dificuldades com que o ser humano se defronta. "Mudança de hábito é sempre difícil, no escritório ou fora 61 62
ibid. p. 34. ibid. p. 35.
53 dele", diz Motomura. Mas agora simplesmente não existe alternativa. É mudar de atitude -- e buscar ser um executivo que faça acontecer, como diz Motomura -- ou se autocondenar ao limbo corporativo. Para o executivo Clemente Nóbrega, autor de Em Busca da Empresa Quântica, o executivo que faz diferença tem uma virtude audível. Ele produz aquele "plim-plim" que é o som do dinheiro que entra na empresa."63
As decisões dolorosas seriam aquelas que removeriam todos os obstáculos à entrada do dinheiro na empresa? Pelo que podemos entender, a virtude que faz diferença no executivo é a virtude audível: fazer ressoar o som do dinheiro. O preço a pagar para quem se torna indispensável e consegue chegar ao topo da organização é a sensação de solidão no exercício do poder. "Apesar das mudanças culturais, da humanização da administração, do empowerment e da reengenharia, o olimpo das empresas continua um lugar frio e solitário."64
O talento e a competição deixam no olimpo frio e solitário os executivos que aceitam o jogo. O importante é continuar comprometido com o processo. 2.7. AUTO-CONHECIMENTO, CAPACIDADE, COMPROMETIMENTO Um dos primeiros compromissos do executivo é com o autoconhecimento para rever constantemente seu desempenho, fugir da repetição e acrescentar sempre algo novo e atualizar-se. A capacidade intelectual do indivíduo faz parte das competências que a empresa espera dele. Embora a empresa possa contribuir ao aprimoramento dos seus executivos, espera que eles assumam a maior parte da tarefa sem que isso prejudique sua atividade e suas responsabilidades. "É extremamente importante que o executivo faça, de tempos em tempos, uma auto-avaliação realista do seu desempenho profissional para permanecer na rota certa", diz Neszlinger, da Microsoft. Mas essa autoavaliação tem que ser realmente honesta, sobretudo para quem desconfia que pode estar deixando a desejar. (...) "A obsolescência do conhecimento é muito rápida hoje em dia", diz Mauro, da Booz-Allen. Ou seja, se a função do executivo o obriga a repetir-se no trabalho, é bom 63
ibid. p. 36. GOMES, Maria Tereza, Eu, eu e eu, o poder é solitário? É. Mas como preencher esse vazio? Exame, 31 (648) : 125, 6 de novembro 1997. 64
54 que ele trate de aprender outras coisas, pois a qualquer momento aquilo que faz pode cair em desuso. Da mesma forma, o cargo exercido pelo executivo pode tornar-se obsoleto. Por isso é tão importante adquirir novos conhecimentos. "Hoje o que o empregado tem para vender é a sua capacidade intelectual", diz Mauro."65 O importante é permanecer na rota certa: a que é fixada pela empresa. A auto-avaliação deve ser realista e honesta, principalmente quando algo deixa a desejar. Em nenhum momento a auto-avaliação está sendo mostrada como de mão dupla. O executivo deve se auto-avaliar mas não consta que possa avaliar a empresa. O que se deve evitar a todo custo é a obsolescência. Deve-se notar que o executivo repete-se no trabalho por causa da função que ele ocupa, que lhe foi atribuída pela empresa e que deve desempenhar com excelência para poder manter-se no cargo. Contudo, a empresa em determinado momento pode extinguir o cargo, a função e, portanto, o emprego e quem não fez nada para aprender outra coisa só poderá culpar a si mesmo. Não vale a desculpa de que não teve tempo porque estava absorvido pela dedicação à empresa bem além das oito horas previstas por lei...A dedicação não é uma mercadoria vendável. O que se vende é a capacidade intelectual que se torna um bem de consumo para as empresas. A capacidade intelectual é vista como a capacidade de adquirir novos conhecimentos que sejam úteis para as empresas. Não consta que faça parte desta capacidade intelectual o discernimento que levaria o executivo a uma visão crítica dos rumos que a sociedade está tomando a partir de uma exacerbação da competição econômica global. Para as empresas, então, o executivo deve transformar-se num ser iluminado que tem idéias originais e brilhantes, luz própria, vida própria e pensamento próprio: “Conclusão: o executivo que tem luz própria para pensar, por si só, diante dessa ou daquela situação, tende a levar vantagem sobre o colega que (...) sabe apenas aplicar regras.(...) "Só quem é capaz de pensar com clareza e originalidade consegue olhar as tendências de mudanças e Ter
65
BERNARDI, Maria Amália, seu emprego está seguro? Bem-vindos, senhores executivos, ao império da incerteza, Exame, 30 (610): 27, 22 de maio 96.
55 uma dessas sacadas que levam a empresa para a frente ou para trás", afirma Oscar Motomura, diretor geral da Amana-Key em São Paulo.”66
Será que o executivo deve abrir mão do comando para se tornar o catalisador do conhecimento? Instado a renunciar ao papel de aplicador e controlador da aplicação de regras e normas, o executivo deveria dedicarse a
analisar os cenários de mudança e a pensar com clareza e
originalidade para achar soluções inéditas aos problemas. Este é o executivo que leva vantagem sobre os colegas. Neste momento, não se considera que o executivo que "sabe apenas aplicar regras" pode ser responsável pelo andamento do maior número de tarefas e ações que permitem à empresa desempenhar suas principais finalidades nem que muitas sacadas, que poderiam levar a empresa para trás, podem colidir com uma outra qualidade que a empresa preza muito e que se chama responsabilidade. 2.8 A ENTREGA TOTAL Esta entrega total começa com a dedicação do tempo: “Um número considerável de executivos se submete regularmente a jornadas de 10, 12, 14 e até 16 horas de trabalho por dia, conseqüência de um ambiente profissional cada vez mais competitivo. Como sobreviver a isso? Ninguém está dizendo que é fácil, mas é possível – sobretudo quando não dá para escolher outro ritmo.(...) Os executivos entrevistados apenas mostram que é necessária uma boa dose de disciplina também para conviver melhor com o fato de trabalhar muito.”67 O executivo precisa saber, aceitar e conviver com o fato de que o dia dele está dedicado à empresa e que, portanto, ele deve adquirir a disciplina e encontrar meios para poder conviver com isso: nunca questionar o modelo. A matéria, citando o exemplo de um executivo, diretor geral de uma empresa, termina assim: “Quanto ao resto, sem fanatismos. Fuma cachimbo (só em casa), toma vinho todas as noites, não se incomoda de quebrar a rotina nas viagens de negócios e, depois de seis horas de um sono bem dormido e que 66
BERNARDI, Maria Amália, Você vai dar certo ?, Exame, 30 (618): 68, 11 de setembro 1996. BERNARDI, Maria Amália, Manter a pilha acesa, eis a questão!, Exame, 26 (568): 104 21 de outubro 1994. 67
56 sempre chega fácil, está pronto para pular da cama às 5h45 da manhã, quando toca o despertador.”68
Este é o ritmo de vida de quem quer ser bem sucedido: não é a exceção. Está claro que é ditado pela necessidade da competição. Algumas empresas chegaram, porém, à conclusão que “felicidade é sinônimo de produtividade”69 e que, com benevolência, podem facilitar as coisas aos seus executivos permitindo uma jornada de trabalho com horários flexíveis. Não se deve porém perder o foco, sob pena de Ter uma vida que nem é vida: “Mas e a carreira? Para um executivo, tão importante quanto tudo o que já se disse até agora nesta reportagem é a possibilidade real de Ter êxito dentro da empresa. Qualidade de vida sem bons salários, oportunidades, promoções nem é qualidade nem é vida. É mera abstração. Aprimoramento profissional, aí, é um ponto chave. (...) De que a preocupação com a qualidade de vida dos funcionários tem vínculos estreitos com a produtividade, há estudos nos Estados Unidos que, como as grandes fotos, valem por mil palavras. (...) O que se esconde por trás de tudo é uma obviedade ululante durante tanto tempo olimpicamente ignorada pela comunidade de negócios: felicidade é eficiência. O funcionário feliz é mais produtivo que o funcionário infeliz.”70 Tudo na vida do executivo deve concorrer para uma atitude que qualquer empresa vai cobrar de quem quer alcançar o sucesso: a disponibilidade total: "Não existe ascensão sem disponibilidade", diz Lobão. "E disponibilidade significa deixar de ser dono do próprio destino." Segundo Lobão, dentro do mercado globalizado, esse dado se tornou importantíssimo. Ele nem titubeou quando soube que seria transferido do Rio de Janeiro para as Filipinas, há três anos. Esta, certamente, é uma das razões pelas quais foi promovido ao posto de presidente da Coca-Cola brasileira há cerca de cinco meses.”71
Não titubear quando surge a oportunidade: esta é a grande virtude do executivo globalizado que renuncia a ser dono do próprio destino para seguir a
68
ibid. p. 106. Título da seguinte matéria: BERNARDI, Maria Amália, Felicidade é sinônimo de produtividade, Exame, 26 (559): 88-95, 8 de junho 1994. 70 BERNARDI, Maria Amália, Felicidade é sinônimo de produtividade, Exame, 26 (559): 95, 8 de junho 1994. 71 BERNARDI, Maria Amália, Você vai dar certo ?, Exame, 30 (618): 72, 11 de setembro 1996 69
57 empresa para onde ela o envia! É a entrega total que pode ser bem recompensada. O estar sempre pronto, inclusive de malas prontas, para ser enviado não é pura passividade. Muito pelo contrário, é a demonstração concreta de uma atitude interior que seria a manifestação da realidade procurada incessantemente pelas empresas: a motivação dos seus executivos. Na EXAME, ser motivado significa trabalhar com paixão: "Trabalhar com paixão -- esta é a frase que melhor resume o algo mais que se procura nos executivos hoje", diz Marcus Baptista, diretor de RH da IBM. "A paixão pelo que se faz leva as pessoas a uma busca contínua pela maneira melhor, mais econômica e mais eficaz de resolver problemas e superar objetivos."72 O executivo deve, primeiro, superar-se para conseguir despertar em si mesmo, de modo voluntarista, a paixão que se traduz pelo desprendimento e pela dedicação aqui e agora. Esta dedicação consiste, de novo, na busca contínua das soluções criativas e inovadoras que permitem à empresa resolver os problemas, mas principalmente superar os objetivos que a própria empresa fixa em função do jogo de guerra implacável da competição global. Essa busca é uma busca de qualidade para achar a solução melhor, de produtividade para achar a solução mais eficaz e, principalmente, de resultados porque, mais uma vez, o que se quer é maximizar a rentabilidade. Como e onde canalizar esta paixão? ´Primeiro mandamento : não pergunte tanto o que a empresa pode fazer por você, e sim o que você pode fazer por ela. Pode parecer piegas, mas não é. Não na vida real, na qual as empresas (e as pessoas, dentro delas, que podem fazer sua carreira avançar ou não) têm cada vez menos paciência com gente que vive perguntando “o que eu ganho com isso”. (...) As promoções passadas, os méritos de outros anos, a folha de serviços prestados, tudo isso é muito bom, mas não cria obrigações da empresa para com o executivo. O que conta mesmo, é o que ele está fazendo agora.”73
72 73
ibid. p. 65. ibid. p. 66.
58
Este texto é extremamente forte. A empresa não tem paciência com quem não consegue ascender à forma de amor mais pura: a dedicação sem nenhum questionamento. Fica para o bom prazer da empresa se e como ela vai reconhecer a dedicação e recompensar: é uma nova versão do amor-agapé. A alegria do executivo consiste em ouvir o já conhecido som do dinheiro caindo no caixa dos acionistas que, por pura liberalidade, decidirão o quinhão que lhe é reservado. Embora o total desprendimento aqui e agora, sem condições prévias nem sempre signifique altas recompensas para o futuro, executivos bem sucedidos são citados para dar ânimo na caminhada: o estilo é meio hagiográfico. E se o executivo, apesar de tudo, reluta em aceitar esse estilo de vida que alguns consideram como a manifestação de propensão a viciar-se no trabalho? Como concretizar essa motivação para que a paixão desinteressada consiga transformar a busca da rentabilidade para o acionista em virtude e que o tempo extra, fora de contrato, que o executivo dedica à organização, seja considerado como fazendo parte da normalidade? “Não é preciso ser um viciado em trabalho para abraçar com prazer todos os extras que surgem, inevitavelmente, em qualquer empresa. Basta encará-los como oportunidades de auto-desenvolvimento”, afirma David Ivy, headhunter e vice-presidente da Korn/Ferry International.”74 Está dada a resposta: faz parte do auto-desenvolvimento do executivo participar dessa obra. É uma questão de percepção e de capacidade de encarar os fatos numa determinada ótica. Os extras que surgem inevitavelmente
pode
ser
encarados
com
prazer
porque
significam
oportunidades de auto-desenvolvimento. O auto-desenvolvimento, neste caso, significa o desenvolvimento das capacidades que a empresa necessita e preza para atingir seus objetivos. Os extras evidentemente significam, num dia que não pode exceder as vinte quatro horas, menos tempo em casa e com a família. Mas, e a família? Qual é seu lugar na vida do executivo? Como pode ela participar do crescimento do profissional e, indiretamente, da empresa?
74
ibid. p. 66.
59 2.9 A FAMÍLIA ENVOLVIDA NA COMPETIÇÃO A família é mobilizada para a guerra: submete-se aos imperativos da competitividade. O lar vira um doce escritório, o que não é difícil com os avanços da informática. Os executivos devem viver sua vida familiar em função de pertença à empresa e do desenvolvimento de sua vida profissional. “O ponto de partida é reconhecer que há uma linha divisória entre trabalho e família. Mas essa linha, hoje, está se mexendo e há melhoras à vista. Para começar, um número crescente de empresas começa a perceber que o equilíbrio da vida familiar é importante, às vezes decisivo, para o desempenho do executivo.(...) A lógica é mais ou menos a seguinte: vida doméstica mais equilibrada, vida profissional mais produtiva.(...)” 75 A vida pessoal e familiar deve ser considerada então em função do desempenho profissional para que o executivo se torne mais produtivo. Na sua clarividência e sabedoria, as empresas vão investir no "equilíbrio familiar" dos seus executivos, tão importante para obter ganhos de produtividade.. As questões familiares são consideradas como estratégicas, desde que se trate da família de um executivo importante para a organização. Essa preocupação estratégica das empresas com a vida familiar dos seus executivos parece consistir em desenhar estratégias que ao invés de proporcionar ao seu executivo o merecido descanso junto à família, permitam, ao invés, trazer o trabalho para o próprio espaço familiar: "Mais cedo ou mais tarde os funcionários têm que cuidar dos filhos pequenos ou dos pais velhos", diz a gerente Carmen Peres. "Colocá-los diante de um dilema que por falta de flexibilidade os fizesse se desligar da empresa não é o que nos interessa." A Dow pretende estender melhorias a todos os funcionários. Em 1996, a título de comemorar seus 40 anos, presenteou com 1 000 reais cada um de seus 1 400 empregados no Brasil. A condição? Que comprassem um computador para suas casas. "Eles ficam mais preparados para o mundo atual e, caso tenham trabalho extra, podem fazê-lo perto da família", diz o diretor de RH Maionchi."76
O executivo recebe então mil reais para comprar um computador e poder trabalhar em casa: nem na época nem hoje esta quantia dava para 75
BERNARDI, Maria Amália, Lar, doce escritório, Exame, 31 (627): 83-84, 15 de janeiro 1997
60 comprar um computador equipado para poder trabalhar em casa. Desse "presente", o executivo ainda paga uma parte para poder dividir a alegria do trabalho em casa com a família. A conclusão de tudo isso é óbvia : "O avanço rumo a medidas que facilitem a harmonia entre trabalho e família parece irreversível. Por uma razão poderosa: ele não se vincula ao bom-mocismo desta ou daquela empresa, mas à busca de maior eficiência. Melhorar a vida familiar dos funcionários não é filantropia. É um instrumento de gestão, uma semente de vantagens competitivas."77
A família como semente de vantagens competitivas: este é seu papel. É claramente assumido que nada disso tem a ver com bom-mocismo. Mais uma vez, estamos no terreno da eficiência e da competitividade. Quem chegou a esse estágio pode olhar o caminho percorrido. Está totalmente dedicado à empresa. É responsável, inovador, toma iniciativas e tem luz própria. Conseguiu inclusive equacionar estrategicamente o problema da família e ajudou a empresa pagando parte do equipamento que lhe permite continuar ao seu serviço em casa. Provavelmente, esse executivo pode sentir-se satisfeito. Mas será possível ser um bom executivo e um bom pai? A Exame não se furta a examinar essa questão e chega à conclusão de que é possível ser bem sucedido nas duas tarefas: ser bom executivo e ser bom pai, embora seja dificílimo!78 A partir das entrevistas e da pesquisa a Exame “...colheu uma série de histórias de pessoas que, de maneira engenhosa e variada, conseguiram encurtar a distância que costuma separar pais ocupados e seus filhos. Em todos os casos colhidos, tal aproximação, e este é um ponto vital, ocorreu sem prejuízo para a carreira.”79
Isto é possível porque não existem pais perfeitos: o que interessa é que o pai esteja atento a não diminuir os filhos, respeite a posição deles e estabeleça uma linha de comunicação. Segundo um psiquiatra citado pela autora da matéria, já está ótimo! Assim, já que é inútil pensar que possa existir 76
ibid. p. 90. ibid. p. 91. 78 BERNARDI, Maria Amália, Executivo nota 10. Mas como pai..., Exame, 26 (572): 107-113, 7 de dezembro 1994. A Carta do Editor da mesma edição, na página 7, endossa a matéria, indicando que a autora, mãe corujíssima, sabe como é difícil conciliar trabalho e casa. 79 ibid. p. 108. 77
61 sucesso profissional com pouco tempo físico de trabalho durante os longos anos de ascensão na carreira, que esse tempo é subtraído da família e que não se pode Ter relacionamento perfeito com os filhos quando se trabalha doze horas por dia, a conclusão da matéria é: “Em vez de buscar fórmulas mágicas ou de encontrar, no trabalho ou em casa, desculpas para justificar um desempenho sofrível como pai ou como profissional, o que vale é fazer sinceramente o possível. Repita-se, para conforto geral, a seguinte frase do psiquiatra Roig: não existem pais perfeitos.(...) Buscar a perfeição pode ser enlouquecedor – tanto para os pais como para os filhos. Mas se pode, com humildade, oferecer combate às imperfeições.”80 Para as mulheres, existe um possível problema adicional: a gravidez! “Depois de sair da maternidade, passada a euforia dos primeiros dias ao lado do bebê, a mãe executiva quase que invariavelmente começa a angustiar-se diante do futuro. A incerteza diante do que poderá acontecer com sua carreira quando voltar ao trabalho é o maior fator de preocupação.”81 Na conclusão, a autora da matéria cita uma executiva que teve que deixar os dois filhos pequenos para viajar uma semana a serviço, não pensou duas vezes e foi embora como faria qualquer executivo: “As pessoas me perguntam como eu tenho coragem de deixar meus filhos aqui e viajar. Eu respondo que isso faz parte do meu trabalho e da minha vida.”82 E os romances que podem acontecer entre funcionários de uma mesma empresa. O que pensar? Não é o caso de julgar aqui se é certo ou errado iniciar e manter romances no escritório. A realidade é que eles acontecem e vão continuar existindo, queira ou não o mundo corporativo. (...) A grande discussão deve ser o poder e o mau uso que dele se pode fazer”, diz Luciano Colella, analista junguiano em São Paulo. Não é preciso ler as peças de Sófocles ou Shakespeare ou os escritos de Freud para saber que sexo e poder, de alguma forma, andam juntos. Isso torna-se especialmente verdadeiro nas empresas marcadas pela relação entre chefe e subordinado. Nelas, o sexo pode se transformar num excepcional 80
ibid. p. 113. SGANZERLA, Valquíria, A cegonha chegou. E agora? Exame, 28 (593): 108, 27 setembro 1995. 82 ibid. p. 110. 81
62 instrumento para a obtenção do poder. O poder aparece como um dos atalhos mais curtos para chegar ao sexo. “Essa confusão realmente existe e é bastante comum”, disse a EXAME a socióloga australiana Judy Wajcman, professora da prestigiada London School of Economics e autora do livro Managing Like a Man: Women and Men in Corporate Management (Gerenciando como um Homem: Mulheres e Homens na Administração Corporativa). “Em muitos casos, relacionar-se no trabalho pode se tornar uma situação bastante perigosa.” Perigosa para quem? Talvez a melhor resposta seja: para todo mundo. Para o clima nas relações de trabalho, para os resultados da empresa, para a carreira dos envolvidos.”83
O tom geral destas matérias que dizem respeito à vida familiar e afetiva dos executivos não parece deixar dúvidas quanto ao caminho a seguir em caso de conflitos entre esta e a vida profissional: deve se privilegiar a vida profissional.
2.10 RELACIONAMENTO E LIDERANÇA Não bastam ao executivo capacidade para realizar e assumir riscos bem como Ter visão de futuro e capacidade de planejamento, ser orientado para processos e resultados, Ter habilidade em solucionar os problemas que impedem a
empresa de ouvir aquela música que mais
lhe agrada. Ele vive no meio de outras pessoas e deve aprender a eficácia também nos relacionamentos. Algumas virtudes, mais voltadas ao relacionamento, deverão ser aprendidas e assimiladas. O executivo de sucesso precisa saber lidar com pessoas! O ser ético e íntegro aparece no texto perto da visão de futuro e da capacidade de planejamento, parecendo Ter sido incluído para constar: nenhum comentário adicional nos permite dizer neste momento o que significaria ser ético e integro. O restante da lista, pelo contrário, parece ameaçar a integridade do executivo, submetendo-o a algumas tensões que, no extremo, podem tornar-se contradições. Por exemplo, ser orientado por pessoas e resultados. Na vida prática, muitas escolhas excludentes devem ser feitas: basta acompanhar os movimentos contraditórios das bolsas de valores em relação às estatísticas de desemprego. Ter habilidade e flexibilidade 83
VASSALO, Claudia, Sexo e poder nas empresas, Exame, 34 (725): 134-135, 18 de outubro 2000.
63 em mudança, ser bom comunicador e articulador pode não conviver harmoniosamente
com
uma
assertividade
muito
desenvolvida.
Finalmente, até onde a integridade pode acomodar-se com a flexibilidade, principalmente quando essa flexibilidade é entendida como a capacidade de seguir as necessidades da empresa que, em determinados momentos, podem ser, elas mesmas, contraditórias? Todavia, se este homem perfeito conseguir emergir e existir, ele corre um outro risco: o da arrogância. "Consultores alertam também que uma postura arrogante costuma tomar conta do chefe de primeira viagem. "Ele começa a achar que está em posição superior e que manda nos outros", diz o consultor Marco Aurélio Ferreira Vianna, também do Instituto MVC. "A partir daí pode cometer erros, pois o líder não é o que simplesmente manda, mas o que negocia desafios."84 O executivo apresenta aqui uma outra virtude: conseguir ser seguido sem aparentar mandar. O segredo é negociar desafios: não se diz sobre quais bases esses desafios serão negociados nem qual é a base de troca. Pelo que precede, pode-se pensar com razoável certeza que quem não conseguir convencer-se da urgência e da importância do desafio não merece Ter lugar na organização empresarial. Aqui aparece bem o que é Ter o poder de comunicação e de articulação citados acima: o executivo deve convencer sem demonstrar a autoridade de um chefe e, portanto, dividindo e diluindo responsabilidades. Esta é a novidade trazida pelo conceito de liderança quando contraposto ao antigo conceito de chefia: “Mas atenção: evite a mesmice e a repetição mecânica de velhos métodos. "O novo chefe tem que tomar cuidado para não ser engolido pela cultura da empresa e acabar repetindo métodos dos antigos chefes que ele próprio discordava", diz o consultor Antonio Andrade. "Quem não procura quebrar paradigmas submerge."85
84
JARDIM, Lauro, Virei chefe e agora? As agruras dos marinheiros de primeira viagem no comando de uma equipe, Exame, 31 (630): 104, 26 de fevereiro 1997. 85 ibid.
64 Parece difícil não ser engolido pela cultura da empresa na medida em que ela dita o projeto, os objetivos e as metas de resultado; na maioria das vezes, os processos operacionais são claramente definidos, assim como a tecnologia a ser usada e o executivo não tem quase espaço nenhum para influir nas políticas de recursos humanos da companhia. Quais são os paradigmas que ele vai poder quebrar para não submergir? 2.11 A LEALDADE E SEUS LIMITES Falta ainda um aspecto a ser indagado: como esse executivo, líder, articulador, competitivo e negociador se relaciona com a organização empresarial? Se ele nunca pode Ter certeza quanto a seu lugar e a seu futuro na empresa, onde encontrará razões para uma relação de fidelidade para com ela? Qual é o tipo de pacto que pode ser negociado para servir de base a uma lealdade recíproca? "No ambiente de trabalho de hoje a velha história da lealdade que o funcionário tinha que Ter com a empresa foi para o espaço. Morto e sepultado está o tempo em que as empresas ofereciam aos seus empregados a garantia de uma carreira até a aposentadoria - e em troca tinham deles fidelidade também até a aposentadoria. Reestruturações, reengenharias, downsizings, rightsizings - todos esses nomes, no fundo, são sinônimos sofisticados de uma única coisa: corte de custos, a começar por gente. Poucas empresas no Brasil e no mundo conseguiram se manter à margem disso nos últimos anos. De acordo com um artigo recente publicado no Wall Street Journal, a maioria das 500 maiores empresas americanas listadas anualmente na revista Fortune está sofrendo os efeitos da chamada "síndrome dos sobreviventes de demissões", na qual a desconfiança e a ansiedade substituem os sentimentos de lealdade e segurança."86
Hoje, as coisas mudaram e a velha história da lealdade foi para o espaço; morto e sepultado está o tempo do emprego seguro até a aposentadoria. O momento é de cortar custos, a começar por gente. Este é o novo ambiente empresarial fruto do novo ambiente econômico competitivo. São afirmações que não precisam ser demonstradas pelo autor porque ele sabe
86
BERNARDI, Maria Amália, O capital humano, reter e atrair talentos tornou-se uma questão de vida ou morte para as empresas, Exame, 31 (647): 123, 22 de outubro 1997.
65 que quem desenvolve uma carreira de executivo conhece as regras do jogo. A guerra é para valer e a lucidez deve ser total. Mais uma vez, não está em discussão a validade ou não do modelo: trata-se simplesmente de uma constatação, amparada numa pesquisa conduzida por ninguém menos do que o Wall Street Journal, onde aparece que as empresas sofrem da síndrome dos sobreviventes de demissão. Parece que estamos num mundo empresarial doente conduzido pela obsessão dos custos a serem cortados. Não importa se, por causa disso, daqui para frente, o clima organizacional será de desconfiança e ansiedade em vez de lealdade e segurança. Não se pode deixar de ficar impressionado com a frieza e a resignação diante de um estado de fato que pode significar a entrada das empresas e dos seus executivos numa patologia aceita voluntariamente e com algumas conseqüências imprevisíveis e outras mais previsíveis. Entre as conseqüências mais previsíveis está a quebra de lealdade do empregado, por mais que ele seja amedrontado pela falta de outras alternativas ou convencido da grandeza do desafio diante do caráter inelutável da competitividade global e dos sacrifícios exigidos de todos, incluindo ele mesmo! "O outro lado dessa moeda é que também a lealdade do empregado em relação à empresa deixou de existir -- ao menos no seu modelo tradicional. "Hoje em dia, todas as organizações dizem que as pessoas são o seu maior ativo, mas poucas praticam o que pregam e um número ainda menor acredita realmente nisso", afirma Peter Drucker, talvez a maior autoridade mundial em administração."87
Com a chancela de Peter Drucker, é impossível negar que estamos diante de um problema que ele mesmo não teme definir como falta de coerência entre o discurso e a prática das empresas. As pessoas, por serem o maior ativo da organização, seriam então seu custo mais alto? Não, não é um problema econômico: é incoerência porque poucas empresas (leia-se os dirigentes dela) acreditam no que elas mesmas estão falando. Quando a maior autoridade mundial em administração afirma isto, em citação feita pela maior revista de negócios do Brasil, é difícil não acreditar! Mais ainda, segundo ele, as pessoas que ouvem o discurso não acreditam nele, o que pode significar a 87
ibid. pp. 123-124
66 aceitação do cinismo e do faz-de-conta. Como um profissional pode permanecer motivado num ambiente tão marcado pela precariedade e insegurança? "Uma pesquisa realizada pelo headhunter Antonio Carlos Cabrera, da PMC Amrop International, pode dar algumas pistas dos novos vínculos que ligam os profissionais às empresas. Cabrera entrevistou 61 executivos e fez a eles a mesma pergunta: por que você trabalha nessa empresa? A oferta de desafios foi a resposta predominante. Não precisa ser desafio de crescimento. Às vezes, é apenas uma meta ambiciosa de participação de mercado, de lucratividade ou o projeto de um novo produto ou serviço. "As pessoas querem ser desafiadas, pois é assim que se julgam importantes, se sentem seguras mesmo que a empresa não ofereça segurança", diz Cabrera."88
A sede dos desafios parece ser o único motivador para a superação, mas numa dimensão sempre narcisista do "pensa em ti mesmo". Já foi superado o estágio em que os profissionais procuravam uma empresa com o propósito de estabelecer um pacto de crescimento mútuo. Hoje, o desafio seria simplesmente trabalhar num projeto que faça a pessoa sentir-se segura. É inevitável indagar se os executivos que responderam à pergunta pensaram nas implicações reais do que estavam dizendo ou se acabaram repetindo conceitos que estão constantemente veiculados na mídia empresarial e nas reuniões gerenciais. Atendo-se ao texto, porém, a consciência racional de um projeto comum que possa trazer benefícios consistentes para as duas partes foi substituído pela fé na própria importância dada pela participação na busca de uma meta ambiciosa que trará maior lucratividade à empresa; em troca sequer se pede que ela se comprometa com a segurança e o futuro de quem trabalha para ela com tanto afinco! Depois desse retrato, surge uma pergunta: quais são as conseqüências existenciais para o executivo que aceita submeter-se a esse processo de transformação para ser agente transformador das empresas?
88
ibid. p. 130.
67
4.
"HYBRIS", PRECARIEDADE E... MORTE: O DRAMA EXISTENCIAL DO EXECUTIVO Essa luta e esse sacrifício podem trazer suas compensações. O
sucesso reconhecido pelos pares, pelos chefes, pelos subordinados e pela mídia, para quem consegue ser citado numa matéria ou, mais ainda, ser entrevistado e fotografado, é o paraíso almejado por quem escolhe esse reconhecimento pela diferença. Ser melhor do que os outros gera uma sensação de invulnerabilidade, outro nome da hybris. "A crença na própria invulnerabilidade - "isso não vai acontecer comigo" leva o executivo a achar que ele está acima dessas coisas pequenas, comuns aos mortais. Afinal, ele é o tal que gera milhões de lucro, negocia empresas, comanda centenas de pessoas. É temido, venerado, invejado. Por isso mesmo, muitas vezes comete o erro - em geral fatal - de demorar a perceber que a morte está rondando, que tem gente querendo ocupar o seu lugar. Quando se dá conta, o estado terminal já se instalou."89
O que pode acontecer de pior para o executivo é demorar a perceber que tem gente querendo ocupar seu lugar. Esta é a morte que está rondando no mundo competitivo. Já tivemos oportunidade de observar que sentimentos humanitários não são aconselháveis neste jogo de guerra. Portanto, não podendo contar com eles, a única defesa contra a morte é a eterna vigilância! É o preço a ser pago por ser temido, venerado e invejado. Contudo, se a eterna vigilância esmorecer, o estado terminal já se instalou e a morte, como sempre implacável, leva a termo sua obra. Por enquanto, trata-se de uma morte não física nem cívica, mas corporativa: a exclusão do sistema. Essa morte nem sempre é definitiva porque alguns voltaram do inferno com muita raiva: esta raiva foi causa da sua ressurreição. "É a raiva, na verdade, o combustível que abastece os executivos que ressuscitaram de uma experiência dessa. (...) Eles se enraivecem com a desconsideração com que foram enterrados, com o esquecimento de antigos amigos e, principalmente, porque agora precisam pagar a conta 89
GOMES, Maria Tereza, Afinal, há vida depois da morte? Se o defunto for a carreira, há, sim. Os sobreviventes estão aí para provar. Ainda que tenham feito um estágio no purgatório, Exame, 30 (623): 144, 20 de novembro 96.
68 do restaurante (o corporate card nunca acompanha os mortos). (...) "Grande parte do sofrimento vem da esperança de ser o eleito", diz o psiquiatra Figueiró. "Isso é narcisismo." Figueiró recomenda um exercício prático para quem deseja tomar pé da realidade. Pegue um papel e escreva o nome das pessoas que vão sentir a sua morte, aquelas que vão chorar, sofrer de verdade. "Você verá que a maioria absoluta da humanidade ignora que você existe", diz Figueiró. Portanto, cuidado. O único a chorar pode ser você mesmo."90 Realmente, é impressionante perceber a força da linguagem e o quanto é trágica a realidade que essa linguagem tenta traduzir. Estamos falando do que se costumava chamar de fins últimos, mesmo que em termos analógicos. A única saída, a única possibilidade de sobrevida é oferecida pela raiva. Parece ser o reconhecimento da impotência total frente à solidão que foi construída dia após dia. É também a reação infantil de quem perdeu a partida e acha que ainda pode voltar a brincar mais solitário do que nunca porque perdeu os que ainda teimava considerar amigos. Essa raiva, porém, pode deixar lugar muito rapidamente para a depressão e o abatimento porque nenhuma esperança de ressurreição é garantida. Cada um por si! É a regra. Mesmo na hora de chorar, é a solidão. Às vezes a descida aos infernos não permanece na metáfora. A viagem pode encontrar seu desfecho na autodestruição total. "Sim, seres humanos bem posicionados profissional e financeiramente também acabam com a própria vida. Mas há uma diferença fundamental entre executivos que se suicidam e homens e mulheres de outras profissões que se suicidam: dois terços das pessoas que se matam sinalizam suas intenções de alguma maneira. Deixam transparecer através de palavras, atitudes ou comportamentos que estão realmente mal. Executivos quase nunca fazem isso. "A maioria dos homens não esconde sua fragilidade nos momentos difíceis e pede ajuda", diz o psiquiatra George Murphy, da Universidade de Washington. "Mas um executivo não mostra fraqueza nunca." 91
A solidão é absoluta: é melhor morrer sozinho do que deixar transparecer a própria fraqueza. A transformação foi tão radical que o executivo já não é mais um profissional comum, talvez nem mesmo um homem comum. 90
ibid. p. 145. BERNARDI, Maria Amália, Uma morte nos EUA levanta a questão: estariam os executivos mais suscetíveis ao suicídio?, Exame 30 (636): 97, 21 de maio 1997. 91
69 "Eis o ponto-chave da questão. Convencionou-se, sabe-se lá quando, que para cumprir seu papel o executivo tem que ser um homem forte. Além de corajoso, ousado, firme, seguro. Sem essas qualidades o sucesso, teoricamente, não pode ser alcançado. "E sucesso é o tipo da coisa que todos nós buscamos", diz, em São Paulo, o psicanalista Luciano Colella. Qual é a característica principal da função do executivo? "A competição", continua Colella. "A sociedade favorece a imagem do sucesso em forma de competição. E cobra isso do executivo." Os problemas realmente começam a acontecer quando o executivo esquece que não é um superhomem."92 Desta vez já não é mais a empresa que cobra do executivo a competição: é a própria sociedade, porque já consagrou, para o executivo, o modelo competitivo como realização do sonho de que todo ser humano tem de ser bem sucedido. Nele as pessoas se reconhecem, mesmo não querendo esse modelo para si. Por ser um herói, não é de se estranhar que o executivo possa até suicidar-se na solidão, vítima da própria grandeza! SINTETIZANDO...
4.
Ao findar este capítulo, podemos frisar as características do executivo perfeito retratado pela revista Exame. Quem trabalha numa empresa que quer participar da economia globalizada entra num jogo a cujas regras deve submeter-se. O executivo que não aceita essas regras é excluído do sistema. Essas regras não são ditadas nacionalmente: o Brasil como um todo deve submeter-se a um jogo que é global, conduzido principalmente pela economia dos Estados Unidos. A finalidade da ação e da vida do executivo é o crescimento da sua organização: todas suas forças devem ser orientadas para este objetivo. O modelo gerencial que deve inspirar o executivo disposto a entrar nesse jogo não é um modelo brasileiro. Vimos que é um modelo que se apresenta como universal, apesar de claramente inspirado pelas empresas americanas. Os valores e os comportamentos devem ser assimilados e, várias vezes, a revista sugere ser preciso aumentar o ritmo de assimilação para não se ficar no caminho. É uma questão de empregabilidade. Além de suas competências técnicas, o executivo deve ser uma pessoa com dedicação absoluta ao trabalho, aceitando jornadas de trabalho estressantes e 92
ibid.
70 renunciando a estabelecer fronteiras entre sua vida pessoal e profissional: a empresa tem direito de invadir seu lar; ele deve ser um profissional perfeito ao passo que deve tentar ser um bom pai, dentro do possível. Quanto ao seu lazer, deve ser escolhido e vivido de modo a permitir-lhe recarregar as energias e estar sempre em plena forma para atender a empresa porque o melhor caminho para a própria realização pessoal que é antes de tudo profissional, é uma dedicação integral e apaixonada à empresa onde trabalha. Deve tornar-se indispensável, não Ter medo de eliminar todos os obstáculos, mesmo que sejam colegas, porque está imerso num jogo cujo nome é competição e competição de vida ou morte. O executivo pode enfrentar um dilema ético despertado por essa hipercompetição: fazer tudo o que é necessário para vencer pode não ser simpático e pode estragar sua imagem. Afinal, agressividade, ambição desmedida e opção preferencial para si próprio podem causar alguns problemas de relacionamento! O profissional deve ir em frente porque o fato de desejar estas coisas não está errado desde que se saiba dissimular este tipo de desejos. Portanto, não se discute se a o egoísmo é saudável humanamente ou eticamente nem os estragos que ele pode causar nos relacionamentos pessoais e profissionais, por exemplo dificultando todo projeto sério de cooperação entre executivos. Só se questiona os danos de imagem e de comunicação. Enquanto os consumidores, as pessoas talentosas e o mercado não tiverem objeções, não existe problema ético. A consciência ética é um fator exógeno como diriam os economistas! Tal atitude causa algumas contradições, principalmente no quesito lealdade: a revista mostra um executivo cuja empregabilidade tem como pilar a lealdade à empresa, mas que, ao mesmo tempo, deve abandonar os laços de lealdade e adotar o profissionalismo para poder efetuar a travessia entre o velho e o novo modelo. Mesma dificuldade em relação à humildade: a opção preferencial para si mesmo abre uma brecha para a prática da humildade em relação ao mercado: voltaremos às conotações religiosas desta atitude. Por ora, interessa frisar a dificuldade de escolher a atitude certa para poder sobreviver no mundo corporativo. Os executivos dividem-se em duas categorias, ou graus de perfeição: os, de primeira classe, que pelo seu talento estão acima do bem e do mal porque são imprescindíveis e devem servir de modelo para todos e os executivos
71 “comodities”, que, para sobreviver, devem submeter-se com uma lealdade canina à empresa que os agracia com o emprego. Os imprescindíveis devem, contudo, manter uma eterna vigilância porque são as organizações que decidem quais são as qualidades indispensáveis: nesses tempos de mudança, não é impossível que o imprescindível de hoje seja descartável amanhã! O autoconhecimento é o caminho para poder sempre avaliar se o caminho seguido é o certo. Não é uma avaliação feita segundo critérios pessoais: a rota é traçada pela empresa e pelo sistema. Após um sério exame de consciência, os executivos deverão aprimorar-se, sempre lembrando que, embora a empresa possa graciosamente contribuir, cabe a eles assumir a maior parte da tarefa sem que isso prejudique suas tarefas e responsabilidades. Nada de arrogância e prepotência: deve-se negociar desafios com os subordinados, evitando a mesmice e a repetição mecânica de antigos hábitos, mesmo que sejam arraigados na cultura da empresa. Surge outra contradição: como fazer isto e continuar leal aos objetivos e aos valores da empresa, justamente os principais alicerces da cultura da empresa? O fim esperado de tudo isto não pode ser diferente: é a frustração, a exclusão ou a morte: não há, porém, como escapar desse jogo! No próximo capítulo, compararemos esse caminho de perfeição, realização e de sucesso com outros caminhos trilhados pela humanidade para entender melhor este ideal proposto aos executivos na revista Exame.
72
CAPÍTULO 3 PERFEIÇÃO OU EXCELÊNCIA: O CAMINHO DO EXECUTIVO Falando de oito princípios básicos de administração, os autores de Vencendo a crise fazem um comentário, que se mostra pertinente com o que nos propomos fazer neste capítulo: “...os oito princípios de administração não funcionam “simplesmente porque funcionam”. Ao contrário, eles funcionam porque têm sentido. O que as empresas de alto padrão fazem é canalizar – ou explorar, se preferirem – as mais profundas necessidades de centenas de milhares de pessoas; seu êxito reflete, às vezes sem que saibam disso, uma sólida base teórica. Por outro lado, estamos convencidos de que os leitores poderão Ter uma surpresa bem agradável ao constatar quão interessante pode ser uma teoria.”93
Nossa percepção da realidade sempre depende das categorias teóricas usadas94. No capítulo anterior, fizemos despontar, a partir dos próprios textos da revista Exame, um ideal de executivo que, se praticado, estaria produzindo uma figura quase paradigmática e universal de perfeição neste segmento porque propõe critérios e valores para a vida profissional, pessoal e familiar do executivo. Cabe-nos de agora em diante, analisar esse paradigma. Para tanto, ocorre, em primeiro lugar, adentrarmos no conceito de perfeição que nos possibilitará apreciar, sob um prisma teórico, o ideal proposto. Na cultura ocidental, três ideais de perfeição foram propostos pela cultura grega, pelo Evangelho e pela época moderna. Cada um deles apresenta um projeto de perfeição global para que o ser humano tenha critérios para conduzir sua existência e realizar-se como homem. A nossa leitura da Exame fez que percebêssemos que os critérios de competência, dedicação, competitividade, empregabilidade e submissão aos objetivos empresariais propostos ao executivo não são vistos apenas como necessários para que ele tenha um bom desempenho no cumprimento de suas tarefas e de suas responsabilidades mas que ele possa realizar-se contribuindo para a construção de uma nova 93
PETERS, Thomas J., WATERMAN JR, Robert H., Vencendo a crise, como o bom senso empresarial pode supera-la, São Paulo, Editora Harbra Ltda, 1986, Prefácio p. xi e xii. O título da obra em inglês é In search of excellence. 94 HINKELAMMERT, Franz J. A, As armas ideológicas da morte, São Paulo, Edições Paulinas, 1983, Prefácio p. 19.
73 sociedade global e produtiva. Comparando a abrangência deste ideal com os ideais grego, evangélico e moderno podemos entender melhor se o ideal de perfeição proposto é simplesmente um ideal técnico ou se comporta dimensões mais existenciais e para qual tipo de realização pessoal ele aponta. 4.
O CONCEITO DE PERFEIÇÃO Iniciando sua reflexão sobre a perfectibilidade do ser humano, John
Passmore pergunta se o conceito de perfeição deve ser usado simplesmente para descrever um alto desempenho numa determinada tarefa ou se ele pode ser usado para descrever alguma característica mais geral aplicável não só a alguma atividade do ser humano mas ao ser humano como tal95. Traduzindo numa linguagem mais empresarial, poderia surgir a pergunta de outro modo: será que devemos falar de perfeição só olhando para a competência das pessoas ou podemos chegar a pensar na perfeição como algo que se aplicaria à pessoa como um todo? É uma pergunta extremamente relevante considerando o objeto de nosso trabalho, pois, como decorrência dela, poderemos indagar se o ideal de perfeição do executivo, que se depara na Exame, vai além do seu desempenho e atinge um patamar de excelência universal, quase metafísica ou mitológica. 4.1 O que significa a palavra perfeição Vamos primeiro aos dicionários! Segundo o Aurélio, a palavra perfeição significa: o conjunto de todas as qualidades e a ausência de quaisquer defeitos; o máximo de excelência a que uma coisa pode chegar; primor, correção; o maior grau de bondade ou virtude a que pode alguém chegar; o mais alto grau de beleza a que pode chegar alguém ou algo; a execução sem falhas de uma tarefa, a precisão; o requinte, a maestria e a perícia96. Esta palavra vem do latim perfectio, perfectus, equivalente ao grego teleios, palavra cujo primeiro sentido é completo acabamento97.
95
PASSMORE, John, The perfectibility of man, London, Gerald Duckworth & Company Limited, 1970, p. 11. 96 BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA, Aurélio, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Rio a a de Janeiro, Editora Nova Fronteira S.A., 1975, 1 edição (12 impressão), p. 1068. 97 Para a etimologia das palavras latinas, consultamos GAFFIOT, Felix, Dictionnaire Latin Français, Paris, Hachette, 1934. Neste caso encontramos as palavras perfectio, perfectus, perficere nas páginas 1146 e 1147.
74 André Lalande98 considera que é perfeito aquilo que corresponde exatamente a um conceito, a um tipo ou a uma norma, do qual não se poderia conceber nenhum progresso. Seria uma palavra sinônima de absoluto. O autor fundamenta esta definição em Aristóteles. Dessa primeira definição deriva uma conotação laudativa e um sentido comparativo. Para concluir, ele cita Descartes, segundo o qual o único ser que pode ser chamado perfeito é Deus, porque não contém qualquer defeito nem limitação. Segundo Abbagnano99, os dois sentidos do adjetivo "perfeito" que foram substantivados na palavra "perfeição" pelos filósofos são os que se referem ao fato de que se diz perfeito aquilo a que não falta nenhuma de suas partes ou além do qual não se pode achar nenhuma parte que lhe pertença ou aquilo que atingiu seu objetivo desde que se trate de um bom objetivo; a referência fundamental é, de novo, Aristóteles comentado pela escolástica medieval ao qual recorrem Descartes, Spinoza e Leibniz. O autor conclui que o conceito de perfeição foi fixado no curso ulterior da filosofia pela seguintes determinações: integridade do todo ou correspondência ao objetivo. Segundo o Dictionnaire d'éthique et de philosophie morale100, que não traz um verbete perfection mas sim um verbete perfectionnisme, na linguagem comum, o perfeccionismo significaria uma busca e um apego aos critérios de avaliação os mais elevados. No sentido filosófico, o perfeccionismo seria uma teoria moral dotada de uma estrutura conseqüencialista e associada a uma teoria objetiva do bem humano: a ação moralmente justa seria caracterizada como aquela que produziria o maior bem possível. E este bem que a ação justa tenta desenvolver não é a felicidade mas algumas perfeições, algumas excelências ou alguns aspectos da realização considerados como dotados de valor por si mesmos. O autor do verbete aponta o perfeccionismo como uma das teorias morais que mais dominam a tradição ocidental e cita em particular Aristóteles, segundo o qual o ideal de realização humana (eudaimonia) teria um componente teórico, a contemplação do saber e um componente prático, o 98
Verbete perfeito, LALANDE, André, Vocabulário técnico e crítico da filosofia, São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora LTDA, 1993, p. 805-807. 99 ABBAGNANO, Nicola, Dicionário de filosofia, São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora LTDA, 1998, p. 757-758. 100 HURKA, Thomas, verbete perfectionnisme em CANTO-SPERBER, Monique (org), Dictionnaire d'éthique et de philosophie morale, Paris, Presses Universitaire de France, 1996 (1a ed.), p. 1114 a 1120.
75 exercício da virtude moral e da sabedoria prática. Continua citando Marx, que identifica o bem humano ao trabalho produtivo e à cooperação social, enquanto Nietzsche atribuiria um valor próprio ao exercício de uma vontade de poder e, particularmente, a algumas formas de criatividade. Segundo nosso autor, o que essas três filosofias teriam em comum seria afirmar que o bem consiste em desenvolver a natureza do indivíduo ou realizar o eu verdadeiro. Certas propriedades constituiriam o fundamento da identidade pessoal e o bem da pessoa consistiria em desenvolver estas propriedades no mais alto grau. Na maioria das versões dessa concepção, a natureza humana analisada seria comum a todos os indivíduos e certas propriedades são julgadas como fundamentais porque exprimem o que faz a especificidade dos seres humanos. Alguns filósofos como Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino e Hegel consideram que o maior bem humano está ligado à teoria e consiste na contemplação do saber. Outros, como Marx e Nietzsche, já dão mais valor a certas excelências práticas que agem sobre o mundo, considerando assim que a melhor vida é uma vida de ação. O autor considera também que essa teoria perfeccionista apresenta duas características interessantes: apresenta um ideal de desenvolvimento da natureza humana que seduz e oferece a possibilidade de unificar o que de outro modo seria uma lista desordenada de bens objetivos. Por outro lado, deveria fornecer uma definição mais precisa da natureza humana o que, segundo a maioria das filosofias contemporâneas, dificilmente seria conseguido, à vista, por exemplo, das descobertas da biologia evolucionista. 1.2. INTERPRETAÇÕES DO CONCEITO DE PERFEIÇÃO Voltemos agora à pergunta feita por Passmore: a perfeição diz respeito à competência das pessoas ou a elas mesmas? Se olharmos para o conceito de perfeição como tendo significado somente para avaliar a competência técnica das pessoas, esbarramos numa primeira constatação: se cada ser humano concreto pode ser treinado para ser perfeito em diferentes habilidades para conseguir um alto desempenho e realizar obras consideradas como perfeitas, isto significa que não existe um único caminho possível de perfectibilidade técnica. Ao mesmo tempo, porém, ser perfectível para desempenhar uma determinada tarefa pode não Ter o mesmo significado do que ser perfectível
76 como um ser humano: com efeito, o que pensar de quem desenvolveu um alto padrão de desempenho na arte de surrupiar eletronicamente dinheiro na conta bancária de incautos internautas? Parece então que ser perfeito em determinadas tarefas ou competências não é a mesma coisa do que ser perfectível como ser humano101. Passmore mostra que Platão, na República, considerava que cada ser humano devia receber uma única tarefa através da qual, usando seus talentos e suas competências, poderia aperfeiçoar-se. Portanto, o homem seria perfectível na medida em que teria talentos e habilidades que o habilitariam a desenvolver as tarefas que lhe fossem atribuídas numa sociedade perfeita e ele atingiria esta perfeição pela obediência à autoridade dos responsáveis. Isso pode não parecer do que é exigido por alguns manuais de gestão por competências! A semelhança e apenas aparente, porque a diferença logo surge quando se trata de definir o que seria uma sociedade perfeita. A sociedade perfeita é tal porque é dirigida por pessoas perfeitas, os reis-filósofos; que conseguem conduzir a cidade porque contemplaram a forma do Bem. Portanto, toda a estrutura da República de Platão repousa sobre a existência de um tipo de perfeição que está além e acima da perfeição técnica e que se fundamenta no relacionamento do ser humano com um ideal. Em muitas religiões, entre as quais, sem dúvida, no judeo-cristianismo, o critério de perfeição técnica não é subordinado à adesão a um projeto de sociedade terrestre ideal, mas ao conceito de obediência à vontade de Deus. Como Deus não obedece a ninguém, a perfeição não está no ato de obedecer mas no fato que, pela obediência, o ser humano adere a um projeto perfeito e consegue refletir a perfeição de Deus. Nos dois casos citados, é forçoso reconhecer que não é suficiente definir a perfeição do ser humano pela realização de uma tarefa ou pelo exercício de uma competência: a perfeição técnica aparece como a consequência de algo maior que poderá ser a submissão a uma ordem imposta por uma sociedade ideal ou a obediência a um princípio superior, divino, que merece essa dedicação total. Continuando sua indagação, o autor mostra que muitos pensaram sobre o conceito de perfeição pelo ponto de vista da teleologia: o ideal a ser proposto ao ser humano seria que ele pudesse atingir seu próprio fim
101
PASSMORE, op. cit., cap.1 Perfection and perfectibility, p. 12.
77 natural102. O grande defensor dessa tese foi Aristóteles, que teve muitos seguidores, por exemplo na filosofia escolástica, ela mesma influenciando profundamente a teologia ocidental. A dificuldade consiste em saber o que significa fim natural. Olhando para o mundo humano, é muito mais fácil perceber o quanto os outros podem Ter muito mais poder de decisão sobre nossas tarefas e nossas funções do que uma Natureza que precisaria ser melhor definida: de fato, os fins naturais pareceriam ser talvez mais propriamente descritos como fins convencionais. Kant aponta um outro caminho: ele diferencia a perfeição técnica na realização de uma dada tarefa da perfeição do gênio, que seria um Dom recebido; o ser humano pode atingir a perfeição técnica com talento e habilidades enquanto atinge a perfeição teleológica, o fim para o qual estão direcionados seus esforços como o resultado de um Dom ou da sorte, bem mais do que dos seus esforços103. Portanto, o nosso autor conclui que existem três modos de perfeição que poderiam ser definidos como possíveis de ser alcançados: a perfeição técnica que consiste em desempenhar com a máxima eficiência uma determinada tarefa, a perfeição da obediência que consiste em obedecer aos comandos de uma autoridade superior, sendo ela Deus ou um representante de uma elite e a perfeição teleológica, que consiste em atingir o fim no qual o ser alcança a maior satisfação. Não faltou também quem tentasse entender a perfeição como total ausência do mal, seja ele considerado como defeito físico ou metafísico, como pecado ou como impureza. E Passmore termina sua primeira tentativa de reflexão sobre a possibilidade de perfectibilidade do ser humano fazendo algumas perguntas: existe alguma tarefa na qual cada homem e todo homem poderia aperfeiçoar-se tecnicamente? Será o homem capaz de subordinar-se totalmente a Deus? Será ele capaz de atingir seu fim natural? Será ele capaz de ser inteiramente livre de qualquer defeito moral? Pode ele mesmo fazer de si um ser metafisicamente perfeito, harmonioso e que consiga
102 103
PASSMORE, op. cit. p. 16. KANT, Emmanuel, Critique of Pratical Reason, Pt. I, Bk. I, ch. I, § 8.
78 Viver segundo um ideal de ser humano perfeito, à semelhança de Deus? Os três modelos que nos propomos a estudar são tentativas de responder a algumas destas perguntas. 4.
OS GREGOS OU A PERFEIÇÃO NA VIRTUDE, NO DEBATE E NAS IDÉIAS Em nossa reflexão introdutória, encontramos várias referências ao
conceito de perfeição na filosofia grega que influenciou profundamente o pensamento ocidental e inspirou um ideal de perfeição. A Grécia não foi um sucesso: não conquistou povos, não deu suas instituições para nenhum outra sociedade, não conseguiu realizar a própria unidade e foi vencida pelos Macedônios e depois pelos Romanos. Todavia, as pessoas cultas de Roma falavam grego, copiaram o teatro grego, inspiraram-se da poesia grega e rebatizaram os deuses e heróis gregos, dando um alcance universal a essa cultura que teve seu apogeu durante um século, o quinto antes de Cristo e que parece Ter pretendido conscientemente oferecer à humanidade um ideal de perfeição que se apresentasse como universal. Por quê?104 A resposta mais comum é que Grécia e Atenas foram impelidas pelo desejo de entender o ser humano e comunicar esta compreensão em termos de razão, instaurando a civilização do Logos, indo ao encontro da curiosidade que é de todos os homens, de todos os lugares e de todos os tempos. Porém, isto não foi feito somente pela reflexão filosófica: todas as obras literárias, arquiteturais, plásticas convergem e distinguem-se por um esforço excepcional de mostrar o humano na sua dimensão universal. Os homens gregos não construíram um conjunto de idéias abstratas mas sim uma história numa forma perene porque foi expressão da altíssima vontade com que talharam o próprio destino à medida que foram tomando consciência da finalidade sempre presente do percurso: em contraste com a exaltação oriental dos homens-deuses acima de toda medida natural, solitários, o início da história grega surge como princípio de uma nova valoração do Homem, a qual não se afasta muito das idéias difundidas pelo Cristianismo sobre o valor infinito de cada pessoa, nem do ideal de autonomia espiritual que desde o Renascimento se reclamou para cada 104
DE ROMILLY, Jacqueline, Pourquoi la Grèce?, Paris, Éditons de Fallois, 1992, Préface, p. 10s.
79 indivíduo. Não é uma descoberta do eu subjetivo, mas sim, a consciência gradual das leis gerais que determinam a essência humana, que não é um abstração vazia: é uma forma viva que se desenvolve no solo de um povo e persiste através das mudanças históricas. Este homem não era isolado, mas sim, vinculado aos seus semelhantes na cidade: por isto, uma de suas características essenciais era ser um animal político. Os que foram reverenciados como os grandes homens da Grécia consideram-se sempre a serviço da comunidade, não como profetas de Deus, mas como mestres independentes do povo e formadores dos seus ideais. Mesmo quando falam aparentemente impelidos por uma inspiração religiosa, esta se assenta no conhecimento e na formação pessoal. A trindade grega do poeta (poiètès), do homem de Estado (políticos) e do sábio (sophos) encarna a mais alta direção da nação105. 2.1. OS HERÓIS E OS DEUSES Existe um consenso que o ponto de partida dessa tentativa de construir uma civilização do Logos começaria por Homero106. Qual visão Homero oferece da perfeição humana e por que esse poeta foi tão importante para a cultura grega e, através dela, para a cultura ocidental? Sua arte exercitou, num sentido puramente literário, uma constante escolha dos traços essenciais quando descrevia algum personagem: ele atribui- lhes somente as emoções mais fundamentais como a cólera e a piedade, a honra e a ternura que se manifestam em reações vivas e francas, normalmente sem o acompanhamento de análises. Por exemplo Andrômaca é simplesmente a esposa e a mãe igual a qualquer outra esposa e mãe: é simplesmente humana, só mostrando seu temor de ver o esposo ir para a guerra. Isto porém não é apresentado de um modo frio e abstrato: muito pelo contrário, a riqueza dos detalhes deixa o texto concreto e vivo: assim, no canto VI, a reação de medo do filho de Heitor por causa do penacho que balançava ameaçadoramente em
105
JAEGER, Werner, Paidéia, a formação do homem grego, São Paulo, Martins Fontes/Editora Universidade de Brasília, 1989, Introdução p.5s. 106 Além de ROMILLY e JAEGER, consultamos VEGETTI, Mario, o homem e os deuses em VERNANT, Jean-Pierre, O homem grego, Lisboa, Editoria Presença, 1993, p. 229-253 e TARNAS, Richard, A epopéia do pensamento ocidental, para compreender as idéias que moldaram nossa visão de mundo, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1999, parte I: A visão de mundo dos gregos, p. 17-86.
80 cima do elmo: todos riem no meio das lágrimas107; pela simplicidade de expressão dos seus sentimentos de medo diante da ida do esposo para a guerra, ela prefigura todas as separações análogas que acontecerão na história da humanidade, com toda sua carga de tragédia. Assim também Heitor expõe com tanta simplicidade seu medo da derrota de Tróia e o medo de que sua esposa seja feita escrava. O despojamento destes textos tem como primeiro efeito de sugerir o que não está expresso de modo que os leitores sintam esses heróis próximos deles em qualquer tempo ou em qualquer lugar. Mas não basta ser simples e próximo para servir de modelo a uma cultura e pretender inspirar universalmente o homem. Os heróis apresentados por Homero são inteligência,
superiores à media dos seres humanos
a coragem
pela beleza, a
ou a maldade108. Contudo, são sempre imagens
humanas porque todos devem sofrer e morrer. Antes de Homero, o termo herói designava personagens que, no momento de sua morte, eram alçados à condição
de
semideuses.
Os
heróis
de
Homero
são
simplesmente
personagens literários que têm virtudes exemplares, porém humanas e que nem desejam a imortalidade: Ulisses recusa a imortalidade e prefere voltar para Itaqui e Aquiles, filho de uma deusa, só dispõe de meios humanos para lutar. É um universo totalmente centrado no homem e a simplificação dos caracteres não existe só para mostrar as reações essenciais ao ser humano em geral, mas também para constantemente relembrar a condição comum aos heróis e aos seres humanos em geral: de serem mortais. Na Ilíada, a presença da morte é constante, dando grande intensidade aos temores e ao sofrimento, realçando o preço do heroísmo. Homero, que gosta de descrever cenas de batalha mostrando a beleza de uma vitória sobre o inimigo e a alegria do vencedor diante da morte do adversário, evoca, cada vez que um homem cai e vai morrer, o que ele perde e o que perdem aqueles que não mais o verão. Ele interrompe as vezes uma narrativa de guerra para relembrar como as coisas
107
“Mas teve medo a criança do aspecto do pai; e, gritando, ao seio da ama acolheu-se, de bela cintura. Estranhara o inusitado fulgor do elmo aêneo de grande cimeira, pelo galhardo e oscilante penacho de crina encimado. O pai e a mãe veneranda, a um só tempo, sorriram, de gozo. O refulgente elmo, então, da cabeça tirou o guerreiro, pondo-o, cuidoso, depois, ao seu lado, na terra fecunda.” HOMERO, Ilíada (em versos), VI, versos 467-474, tradução em versos de Carlos Alberto Nunes, Rio de Janeiro, Ediouro Publicações, 1996. 108 DE ROMILLY, Jacqueline, op. cit. p. 32.
81 eram em tempo de paz109. E essa condição mortal que irmana os adversários inspira a piedade e a compaixão. Assim entre Aquiles e Príamo, pai de Heitor, é o sentido de solidariedade humana no luto que prevalece; Príamo implora a piedade de Aquiles pedindo-lhe que lembre do próprio pai e Aquiles chora e, tomando a mão do velho Príamo, conforta-o: os dois perderam pessoas queridas e essa experiência partilhada faz com que prevaleça a compaixão110. Assim aparece um tipo ideal que pode servir de modelo para a formação do homem: a característica fundamental é a beleza (kalon), no sentido normativo da imagem desejada que deve manifestar-se na conduta e no comportamento exterior bem como na atitude interior; isso não nasce do acaso, mas é o resultado de uma disciplina consciente que permite adquirir a virtude (aretè) no seu sentido mais amplo: a expressão do mais alto ideal cavalheiresco unido a uma conduta cortês e distinta e ao heroísmo guerreiro. O sentido do dever em face desse ideal que o indivíduo deve sempre Ter diante dos olhos é, nos poemas homéricos, uma característica essencial da nobreza e nela reside uma grande força educadora. A aretè é o atributo próprio desta nobreza que estava também ligada à destreza e a uma força incomum e, ao mesmo tempo, ao fato de reger a própria vida por normas certas de conduta alheias ao comum dos homens, tanto na vida privada como na guerra. A raiz da palavra é o superlativo (aristos) da palavra (agathos) que significa nobre, valente, distinto e escolhido. Este conceito evoluiu sempre na direção de querer mostrar uma nova imagem do homem perfeito para o qual, ao lado da ação estava a nobreza do espírito: só na união dos dois aspectos atingia-se o objetivo da perfeição. Honrar os deuses e os homens pela sua aretè é próprio do homem primitivo, segundo Homero. O homem grego dos períodos seguintes, formado pelos filósofos, dispõe-se a prescindir do reconhecimento externo que, contudo, segundo Aristóteles, continua importante porque , para ele, a honra e a nobreza encontram sua plena realização na magnanimidade. Sua elevada apreciação da auto-estima, bem como sua valorização da ânsia de honra e de altivez deriva do aprofundamento filosófico das instituições fundamentais da ética homérica: quem estima a si próprio deve ser infatigável na defesa dos amigos, sacrificar-se pela pátria, abandonar prontamente, bens, 109 110
por exemplo em Ilíada XXII 403 lembra como o rosto de Heitor morto era bonito antes. Ilíada XXIV, 507-518
82 dinheiro e honrarias para "fazer sua a beleza"111, fórmula essa, que expressa o motivo íntimo da perfeição do homem grego onde o impulso natural à autoafirmação encontra na doação de si a mais alta realização. O ideal deve transformar-se em ação concreta pela qual será confirmado e manifestado112. Os deuses, por sua vez, são representados como heróis cuja perfeição (o termo usado é areté) é devida à beleza, à inteligência, à força e à imortalidade que implica uma transcendência que os separa dos heróis e do resto dos homens113. Há porém vínculos constantes. Os deuses parecem todopoderosos, decidindo tudo, estando sempre presentes e embaralhando constantemente os dados da experiência humana: podem assumir formas humanas, proteger um guerreiro com uma nuvem, enviam sonhos ou afastam uma seta; parecem ocupar todos os espaços e deixar pouco lugar para o homem. Porém, o maravilhoso tem limites característicos. A Ilíada evita as metamorfoses mais tradicionais, diferenciando-se da tradição mais arcaica. As duas únicas transformações conservadas por Homero são do homem para o pássaro para evocar a rapidez de uma presença ou de uma fuga repentinas. Constatamos porém que a transformação mais freqüente é de um deus ou de uma deusa em uma forma humana: assim, os deuses conseguem inserir-se na experiência humana sem causar tanto espanto nos que são visitados! Os deuses e os homens ficam próximos, às vezes tão próximos que existe a possibilidade de confusão e de dificuldade no reconhecimento. O mundo de Homero é um mundo tão centrado no homem que os próprios deuses dissimulam seu poder assumindo traços humanos. Até os milagres, situados na vida cotidiana, não entram diretamente em confronto com a experiência humana114. Este recurso ao maravilhoso, que para eles parece ser sinônimo de sagrado, fornece uma outra dimensão às peripécias enfrentadas pelos humanos: não significa fuga, mas engrandecimento da realidade. Mesmo todo-poderosos, os deuses não impedem que o espírito dos homens seja a instância na qual são decididos os acontecimentos que originam o drama e o 111
ARISTOTE, Éthique de Nicomaque, Livro IV, cap. 2, (Tradução francesa J. Vilquin, Paris, Garnier Flammarion, 1965). 112 JAEGER, Werner, op. cit. Livro I p. 19-25. 113 VEGETTI, op. cit. p. 238. 114 Por exemplo Ilíada XIX, 408-417 onde o cavalo de Aquiles fala para avisá-lo da proximidade do dia fatal e é logo interrompido pelas Erenias. Os deuses vão intervir bastante nos cantos XX e XXI mas para lutar entre eles em favor dos seus escolhidos.
83 encadeamento dos fatos: eles só intervêm a favor ou contra um homem porque acompanham com paixão a sorte dos seus fiéis e agem para dar uma ajuda que valoriza a ação humana e não se substitui a ela115. Isto não pode fazer esquecer a crueldade dos deuses que não hesitam em arruinar os adversários dos seus fiéis. Mesmo assim, os heróis descritos por Homero não vivem essas adversidades, como uma experiência de esmagamento: mesmo submetidos ao arbitrário e à crueldade dos deuses, eles conservam seu orgulho, sua dignidade e seu ideal, tendo consciência de ocupar um lugar próprio nessa história116. O politeísmo antropomórfico parece fazer pouco caso da onipotência e da onisciência das divindades: por outro lado ele frisa que o que separa os deuses dos homens é acima de tudo sua força117. Esta relação complexa do homem com os deuses é expressa de um modo diferente nas principais tragédias gregas que surgem no século V, o da democracia ateniense118. trabalham com
Os autores
trágicos, ao contrário de Homero
os extremos: o extremo do crime e o extremo do sofrimento
numa atmosfera sagrada, que permite que a atenção se volte para o relacionamento de alguns homens excepcionais com os deuses e, através da história deles, da humanidade em geral com as forças que dirigem o mundo. Então, o mito, apresentado como uma imagem aumentada pelo poder do imaginário, símbolo que dá sentido ao nosso destino, torna-se o ponto de partida de uma aprendizagem humana justamente porque situado no mundo simbólico; assim a infelicidade de Édipo pode tornar-se o paradigma da condição humana: "Vossa existência, frágeis mortais, é aos meus olhos menos que nada. Felicidade só conheceis imaginada; vossa ilusão logo é seguida pela desdita. Com teu destino por paradigma, desventurado, mísero Édipo, julgo impossível que nesta vida qualquer dos homens seja feliz."119
115
Por exemplo Ilíada XVIII, 204-221 onde Athena coloca-se do lado de Aquiles como se fosse um dublê que aumenta sua força embora se confundindo com ele. 116 Por exemplo Ilíada XXII, 297-303 que conta a traição de Heitor por Athena. Mesmo traído, não desiste porque não pode morrer sem luta nem sem gloria para que isto possa ser contado à futuras gerações. 117 VEGETTI, op. cit., p. 238-239. 118 DE ROMILLY, Jacqueline, op. cit. p. 192s: utilizamos alguns elementos de sua análise sobre a tragédia grega. 119 SÓFOCLES, Édipo Rei em A trilogia tebana, Tradução do grego e apresentação Mario da Gama Kury, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1989, versos 1394-1401, p. 82-83.
84 2.2. DEBATE, DEMOCRACIA E FILOSOFIA Existe na epopéia de Homero um traço não encontrado em outra epopéia e que será marcante na cultura daquele país: no meio das aventuras, das batalhas, as pessoas buscam com todas as forças encontrar soluções sábias pelo debate em comum, que permite a análise dos problemas por várias pessoas: a descoberta da verdade deve ser fruto de uma busca comum e cada vez que um herói hesita, busca a melhor solução, procurando entender e ser ajudado por outros para facilitar esse entendimento120. Porque discutem, procurando argumentos, os oradores descobrem idéias gerais e que valem para todos os tempos. No exercício da democracia que convida milhares de cidadãos para um debate sempre aberto de palavras e de idéias, tudo foi feito para que a palavra fosse necessária e soberana121. O papel da Assembléia não se resumia a votar; o princípio da Assembléia era que cada um pudesse falar e o título mais comum dado ao homem político em Atenas era de orador. A pergunta "Quem quer falar?" parece Ter encantado os atenienses. Quem falava subia à tribuna e cingia uma coroa, sinal de sua inviolabilidade. Um regime desse tipo postulava uma escolha fundamental: a fé na palavra e na análise. Todas as instituições, incluindo a justiça, encontravam seu fundamento nesse postulado e, em função disto, a retórica desenvolveu-se tanto porque era fundamental saber convencer os outros. O ensino da arte de falar, que era o corolário do poder efetivo das assembléias de todos os tipos, mostrava que o essencial era o treinamento da inteligência , a technè, que é o privilégio do saber. Neste contexto, os deuses tradicionais descritos por Homero tinham sido integrados no horizonte da polis como representantes de uma religião cívica e politizada: o templo é aberto ao público e é propriedade de todos e os cultos celebrados cimentam a unidade dos cidadãos, garantida pela sua relação comum com a
120
DE ROMILLY, Jacqueline, op. cit. p. 60s. Ela cita, por exemplo, as discussões sobre a necessidade ou não de continuar a luta em Ilíada II, 339-341 e IX, 488-491. 121 ROMILLY, op. cit. p. 105s. A palavra era necessária na Assembléia, no conselho e nos tribunais. A Assembléia comportava todos os cidadãos de mais de 18 anos. Embora alguns problemas tenham exigido um quorum de 6000 pessoas, o comparecimento normal era de mais ou menos 2000 pessoas e esta Assembléia reunia-se de dez a quarenta vezes por ano. Esta Assembléia que decidia em matéria de política estrangeira, de paz ou guerra assim como as alianças; votava as leis e exercia um direito de alta justiça para os problemas de segurança do estado e ela ratificava as nomeações de magistrados.
85 divindade122. Conforme avançava o século V, Hipócrates na medicina, Heródoto e Tucídides na história e Anaxágoras e Demócrito na ciência ajudavam os homens do seu tempo a compreender o universo a partir de causas naturais racionalmente inteligíveis. Os sofistas introduziram no pensamento grego um elemento de pragmatismo cético: sendo, segundo Protágoras, o homem a medida de todas as coisas, seu julgamento pessoal devia constituir a base de sua conduta e de suas crenças – não o conformismo a uma religião tradicional ou a especulação filosófica muito abstrata. Assim, o verdadeiro objetivo do pensamento humano passava a ser o atendimento das necessidades humanas e a retórica serviria a preparar os jovens a ser mais eficientes no exercício da democracia e na conquista de uma vida de sucesso no mundo123. Sócrates recusa este caminho que ele acha intelectualmente equivocado e moralmente prejudicial: considerava sua tarefa descobrir o caminho para um conhecimento que transcendesse a mera opinião e definir uma moral que fosse além da simples convenção124. Ele fala com qualquer um porque ele usa uma metodologia nova que parte do julgamento de cada um em relação a noções que todos acreditam conhecer para, a partir de perguntas e dúvidas, suscitar a reflexão. Assim as pessoas passam de uma falsa certeza para a inquietude e podem descobrir princípios com os quais nunca tinham sonhado. Ele ensinava a pensar e era o mestre não de alunos escolhidos a dedo mas de todos aqueles que queriam buscar a verdade com obstinação. E o movimento que Sócrates faz executar ao seu ouvinte é sempre uma conversão da diversidade do concreto para a universalidade do conceito e da abstração: este é o movimento fundamental do pensamento grego que é apresentado como método. Além disso, Sócrates exige que a idéia seja vivida até o fim e comande a vida e a morte e que o pensamento seja corroborado pela ação. A filosofia de Platão dá mais um passo no movimento que consistia a passar da diversidade do concreto para a universalidade da idéia: ele subordina o conjunto do mundo físico ao das idéias e todos os prazeres do corpo à contemplação das almas. Nesta transformação, a idéia não é mais um conceito nem a elaboração do 122
VEGETTI, op. cit. p. 242. TARNAS, op. cit., p. 41s. 124 ibid. p. 48. 123
86 espírito: ela adquire uma existência divina que permite a inteligibilidade da realidade. Platão não comenta as razões do processo e da condenação de Sócrates: ele prefere relatar num único diálogo125 a última conversa sobre a imortalidade da alma, mostrando a serenidade de Sócrates, num clima de confiança e de fé que nega a angústia da morte. Todavia, esta condenação manifesta como a polis se sente ameaçada e reage à crítica filosófica porque para os Gregos a experiência religiosa situava-se em dois planos diferentes mas ligados: a ritualidade cotidiana e o nível de sentido e inteligibilidade preenchido pelos relatos míticos. Quando a racionalidade invadiu o espaço da crença com sua crescente capacidade de abstração, a visão antropomórfica do mito revelou sua insuficiência intelectual e deixou que a abstração filosófica conquistasse um espaço cada vez maior. Mas isto punha em perigo uma certa coesão social fruto da observância de determinados ritos. Resumindo, o modelo de perfeição grego fundamenta-se na virtude, na universalidade do conhecimento, na tentativa de responder às perguntas de sempre sobre o relacionamento do ser humano consigo mesmo, com os outros e com os deuses, permitindo a busca de um ideal que dê sentido à existência: ser o melhor pela prática da virtude e pelo serviço à cidade através do exercício da democracia e, se necessário, do sacrifício à própria vida. A cultura grega sai de um pensamento mítico depurado pela poesia de Homero e pela tragédia no sentido da tentativa de uma compreensão mais abstrata ser humano a partir dos relatos tradicionais; com o exercício da democracia e a necessidade do debate, ela evolui na direção de uma reflexão cada vez mais racional e crítica que encontra sua maior expressão na filosofia. 3. O IDEAL EVANGÉLICO: A COMPAIXÃO E O PERDÃO Qual é a originalidade da proposta de Jesus de Nazaré, que não hesita em fazer de modo peremptório um convite à perfeição para todos, dando a essa perfeição uma dimensão divina126.
125
Fédon. Para um estudo mais detalhado da mensagem de Jesus antes do cristianismo, não podemos deixar de citar: BOISMARD, Marie-Émile, A l'aube du christianisme, avant la naissance des dogmes, Paris, Les Éditions du Cerf, 1999 e NOLAN, Albert, Jesus antes do cristianismo, São Paulo, Edições Paulinas, 1988. Gostaria de acrescentar que esta reflexão
126
87 Antes de analisar o mandamento transmitido pelo Evangelho, devemos ver o que significava o conceito de perfeição para os judeus, que foram os primeiros ouvintes das palavras de Jesus127: "Pois fui eu o Senhor que vos fiz subir da terra do Egito, a fim de que, para vós, eu seja Deus; deveis, portanto, ser santos, pois eu sou santo." (Lv. 11, 45) "Fala a toda comunidade dos filhos de Israel; tu lhes dirás: Sede santos, pois eu sou santo, eu, o Senhor, vosso Deus." (Lv. 19, 2) "Serás perfeito na adesão ao Senhor, teu Deus." (Deut. 18, 13) O modelo de perfeição a ser imitado é o próprio Deus128. No Antigo Testamento, em vez de dizer que Deus é perfeito, afirma-se que Ele é Santo, o que significa dizer que é de uma natureza totalmente diferente em relação aos outros seres deste mundo: Ele é grande, poderoso, terrível e, ao mesmo tempo, permite a aproximação do homem porque é bom e fiel, intervindo com justiça na história dos homens, o que é sugerido pela palavra hebraica qâdash expressando a noção de santidade no sentido de consagração-purificação muito mais do que no sentido de separação. Nesse caso, a dupla sagrado-profano corresponde à dupla purezaimpureza. Quando Deus escolhe um povo, esse povo também torna-se santo, o que quer dizer separado do profano e consagrado, o que implica que seja íntegro e sem defeito, tanto fisicamente como moralmente. Essa integridade moral significava servir a Deus com total sinceridade e fidelidade do coração. Os judeus piedosos buscavam a perfeição na observação da lei e nem sempre eram felizes, o que permite entender o problema levantado pelo livro de Jó: por que o Justo não é poupado da infelicidade? Segundo André-Alphonse Viard129, o Novo Testamento valoriza esta perfeição voltada para uma espera. Todavia, se esta prática da lei pretende sobre a perfeição cristã deve muito às discussões que tive em várias oportunidades com os professores Marcio Fabri dos Anjos e Jung Mo Sung. 127 As citações bíblicas são tiradas da Bíblia Tradução Ecumênica TEB, São Paulo, Edições Loyola, 1994. 128 Esta reflexão está embasada em VIARD, André-Alphonse, verbete perfection em LÉONDUFOUR, Xavier (org), Vocabulaire de Théologie Biblique, Paris, Les Éditions du Cerf, 1971 p.971-974. 129 VIARD, op. cit. p. 973.
88 bastar-se a si mesma, é uma falsa perfeição que Jesus vai combater, assim como S. Paulo. O texto evangélico fundamental a partir do qual precisamos começar nossa reflexão sobre a perfeição pedida por Jesus é o seguinte: "Ouvistes que foi dito: amarás o teu próximo e odiarás teu inimigo. Eu porém vos digo: Amai vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem, a fim de serdes verdadeiramente filhos do vosso Pai que está nos céus, pois ele faz nascer o seu sol sobre os justos e os injustos. Pois se amais aqueles que vos amam, que recompensa tereis por isso? Não agem da mesma forma até os coletores de impostos? E se saudais somente vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não fazem os pagãos a mesma coisa? Vós, portanto, sereis perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celeste." (Mt. 5, 43-48) Para Jesus, que revela que o Deus Santo é um Deus de Amor, a perfeição não é uma questão de integridade, mas sim, de dons de Deus a serem recebidos e comunicados. Por isso, não existe afastamento e separação em relação aos pecadores, porque é para estes que Jesus veio. Portanto, quem quiser aproveitar a salvação oferecida deve reconhecer-se pecador e renunciar a qualquer vantagem pessoal para confiar unicamente na graça oferecida. A expectativa de perfeição apresentada pelo texto de Mateus está situada no contexto do mandamento do amor aos inimigos e do tratamento igual dispensado pelo Pai aos bons e aos maus: o discípulo perfeito é aquele que opta em vencer o mal pela força do bem: trata-se de desarmar o inimigo e de quebrar a lógica do ódio e da vingança130. É da experiência da bondade e da incansável paciência de Deus que brota o amor aos inimigos131. Esta generosidade nunca fica satisfeita com o resultado obtido. A idéia de progresso está doravante ligada à da perfeição: os discípulos sempre devem progredir na acolhida e na partilha do conhecimento e do amor até que venha a Parusia132. B. Häring nota que o futuro "sereis" expressa uma antecipação de confiança, uma expectativa divina: diante da Revelação, pode-se esperar que o homem
130
cf. Rm 12, 21; 1 Pd3, 9. Ver também o comentário do trecho evangélico em BENOIT, P. & BOISMARD, M.- E., Synopse des quatre évangiles en français, Tome II, Paris, Les Éditions du Cerf, 1972, p. 150. 131 Ver notas correspondentes a Mt 5, 44s na Bíblia Tradução Ecumênica TEB. 132 cf. Fl 1, 9.
89 opte por seguir este caminho de bondade e de perfeição que se concretiza no amor aos inimigos133. Um detalhe deve chamar nossa atenção: em Lucas, a palavra "perfeito" (teleios)
usada
por
Mateus
é
substituída
pela
palavra
"generoso",
"misericordioso" (oiktirmos). O modelo do amor é Deus na sua grande misericórdia: "Mas amai os vossos inimigos, fazei o bem, emprestai sem nada esperar em compensação. Então a vossa recompensa será grande, e vós sereis os filhos do Altíssimo, pois ele é bom para os ingratos e para os maus. Sede generosos como vosso Pai é generoso." (Lc 6, 35-36). Essa misericórdia contrasta com a percepção judaica, inclusive daqueles que eram considerados como os seguidores mais perfeitos da Tora : os fariseus e os essênios. Mesmo se o essênio não deve pagar ninguém com o mal, deixa a vingança para Deus que a realizará no dia do julgamento134. Os membros da comunidade com defeitos corporais eram excluídos da assembléia dos membros plenos. É fácil perceber como Jesus recusa-se a realizar a comunidade através da separação, já que ele chama os que tinham sido proscritos daquelas que procuravam a perfeição pela separação. Quando convida à sua mesa os pobres, os mutilados e os aleijados, Jesus polemiza diretamente com os essênios135. O que o diferencia mesmo da comunidade do Batista é a incondicionalidade da graça e sua característica de não estabelecer fronteiras: o Batista acolhia as pessoas depois que tivessem manifestado seu arrependimento, Jesus oferece a salvação aos pecadores antes que façam penitência136; a graça é concedida sem limite e sem condição ou, como diz Jon
133
HÄRING, Bernhard, verbete santificação e perfeição em COMPAGNONI, Francesco, PIANA, Giannino, PRIVITERA, Salvatore (org.), Dicionário de Teologia Moral, São Paulo, Paulus, 1997, p. 1115-1122. 134 Nesta análise, seguiremos JEREMIIAS, Joachim, Teologia do Novo Testamento, a pregação de Jesus, São Paulo, Edições Paulinas, 1980, cap. 5, par 17, p.266ss. Na página 268, por exemplo, ele cita o seguinte trecho da maldição dos pecadores que fazia parte da cerimônia de entrada dos novos membros: "Maldito sejas sem misericórdia de acordo com as trevas de tuas ações, e a ira caia sobre ti com as trevas do fogo eterno! Deus não seja dadivoso, quando o invocares, e não te perdoe, para expiares os teus atos maus! Ele erga o rosto da sua ira contra ti, e para ti não haja nenhuma paz nos lábios de todos os anjos intercessores!" I QS 2, 7-9. 135 cf. Lc 14, 13. 21. 136 Lc 19, 1-10.
90 Sobrino137, a graça e a misericórdia aparecem historicizadas na sua prática tanto quanto na sua mensagem. Um outro aspecto merece ser sublinhado: a novidade da perfeição pregada por Jesus não é a elevação e o rigor das exigências a serem atingidas, mas a motivação que leva as pessoas a porem-se a caminho e tornarem-se discípulos138. A ética corrente contemporânea de Jesus é uma ética do mérito e do esforço ao passo que a motivação dos discípulos de Jesus deve ser a gratidão. Não que ele recuse totalmente a linguagem da recompensa, talvez por não destoar completamente da linguagem do seu tempo139, mas fica muito claro que o que deve mover seus seguidores é diferente, o que fica patente, por exemplo, no pedido feito de que, quando se der esmola, a mão esquerda deve ignorar o que faz a direita140. Assim, os que são absolvidos no juízo final ficam surpresos ao serem lembrados das obras de amor praticadas141 porque terão seguido a risca a dica de se considerarem servos inúteis142. Se Jesus fala de recompensa (misthós), não se trata de direito mas da realidade da recompensa, Dom gratuito concedido por Deus, que é misericordioso. Portanto, o motivo para os discípulos agirem é a gratidão pelo Dom de Deus. É por essa razão que, em vez da busca de posição e de poder, deve prevalecer a capacidade para o serviço, porque o Mestre está no meio dos seus discípulos como aquele que serve à mesa143. Resumindo, segundo Jeremias, existe um só motivo para agir no Reino proposto por Jesus: a gratidão pelo perdão recebido. Um bom exemplo disto é a parábola dos dois filhos (mais conhecida como a do Filho pródigo144) que é uma apologia onde Jesus justifica-se por comer com os pecadores145: ele deixa claro que o amor de Deus para os pecadores que voltam para casa não tem limite e sua atitude de sentar-se à mesa com eles corresponde à natureza e à própria vontade de Deus. Comentando a parábola do Bom Samaritano, Sobrino146 reforça esse aspecto 137
SOBRINO, Jon, O Princípio Misericórdia, descer da cruz os povos crucificados, Petrópolis, Editora Vozes LTDA, 1994, p.34s. 138 JEREMIAS, op.cit., cap. 5, par.19, p. 326ss. 139 Por exemplo: Mc 10, 28-30 par; Mt 5,12 par; Lc 14, 12-14 140 Mt 6, 3s. 141 Mt 25, 37-40. 142 Lc 17, 7-10. 143 Lc 22, 27; Jo 13, 1-15. 144 Lc 15, 11-32. 145 Lc 15, 1-2. 146 SOBRINO, Jon, op. cit. p.34-35. A citação da parábola do Bom Samaritano é Lc 10, 29-37.
91 mostrando que Jesus escolhe um ser humano socialmente ou religiosamente marginalizado para servir de paradigma de perfeição aos homens religiosos, incluindo os sacerdotes e os levitas, justamente porque ele age movido pela misericórdia147. O ser humano realiza sua vocação na medida em que é capaz de interiorizar nas suas entranhas o sofrimento alheio de tal modo que este sofrimento torna-se parte dele e se converte em princípio interno, primeiro e último, de sua atuação: esta misericórdia não é uma entre outras qualidades humanas mas é aquela que define essencialmente o ser humano. Ser um homem, filho de Deus, é, para Jesus, reagir com misericórdia como o samaritano. A consequência direta do mandamento da perfeição como vivência da misericórdia é uma nova relação filial com Deus que passa a ser chamado Abbá, e uma nova relação de fraternidade entre os discípulos148. Daí o pedido dos discípulos para que Jesus os ensine a rezar. E depois de Jesus? Embora a igreja primitiva ficasse muito impressionada pelos fenômenos para-normais que, desde a Pentecostes, pareciam acompanhar a difusão do cristianismo, Paulo preferia insistir sobre a nova qualidade de vida que deveria estar associada a esta intensa emoção149. Na sua análise crítica dos dons do Espírito, não dá tanta importância aos fenômenos extraordinários: exalta os dons morais e intelectuais, considerando que o maior de todos é o amor (agapé)150. Cada vez menos preocupado com a vinda e gloriosa do Senhor que já não parece dever ser tão imediata, convida os cristãos a tomar uma consciência cada vez mais clara da grandeza e da plenitude oferecida pela vida espiritual em Cristo praticada no dia a dia. Meditando sobre os acontecimentos salvadores da morte e da ressurreição do Cristo, ele enxerga o amor de Deus como fonte suprema da nova historia na qual os dons do Espírito à comunidade, principalmente o do amor, são a fonte da perfeição moral. O autor do evangelho de João vai ainda mais longe nesta meditação151. A 147
realidade última é
concebida
como
uma ordem
eterna
revelada
“Mas um samaritano que estava de viagem chegou perto do homem: ele o viu e tomou-se de compaixão”. Lc 10, 33. 148 JEREMIIAS, Joachim, Teologia do Novo Testamento, a pregação de Jesus, São Paulo, Edições Paulinas, 1980, cap. 5, par 18, p.274ss. 149 Esta reflexão está baseada em DODD, Charles-Harold, La prédication apostolique et ses développements, Paris, Éditons Universitaires, 1964, p. 62s. 150 1 Cor 12-14.
92 simbolicamente
em
acontecimentos
banais
da
historia.
O
autêntico
conhecimento de Deus é acessível para quem está unido ao Cristo, o Filho que conhece o Pai como é conhecido por ele: neste conhecimento reside a vida eterna desde que exista o compromisso de entregar-se a ele num amor incondicional152. Por isto, a paixão é apresentada como o acontecimento no qual o Cristo é glorificado mais do que em qualquer outra palavra ou qualquer outra ação porque é o momento da mais completa revelação do seu amor para com seus amigos, sendo portanto o meio pelo qual ele salva a humanidade. A ressurreição, no evangelho de João, não é um ato novo do drama da redenção mas simplesmente um sinal que sela para os discípulos a realidade da obra já cumprida e da gloria alcançada na sua vida e na sua morte153. Com os nossos olhos de cristãos do século XXI, ajudados pelo grande desenvolvimento dos estudos exegéticos e da teologia bíblica, algumas discussões teológicas que ocuparam muito os nossos antecessores na fé e que os levaram não só a oposições intelectuais mas, em não poucos casos, a vias de fato... mortais podem deixar nos surpreendidos e indignados. É porém importante perceber que muitos deles também buscavam entender se viver a perfeição evangélica era ou não possível e se o homem podia o não obedecer ao mandamento do Cristo de ser perfeito como o Pai celeste é perfeito. John Passmore resume os grandes momentos dessa discussão mostrando o dilema fundamental: será que os homens podem aperfeiçoar-se a si mesmos ou precisam da graça divina para tanto154? Segundo a visão de Santo Agostinho, que Passmore considera Ter predominado na Igreja católica, é impossível para o ser humano obedecer ao mandamento de perfeição por razões metafísicas, porque mesmo se o ser humano atingisse esta perfeição, seria a perfeição de um ser finito, e por razões morais porque o homem foi tão corrompido pelo pecado de Adão que se tornou incapaz de atingir até mesmo o grau de perfeição que sua natureza limitada permitiria. Essa posição vai despertar imediatamente a oposição de Pelagius: o ser humano é capaz de aperfeiçoamento ou de corrupção pelo exercício de seu livre arbítrio, o que 151
DODD, p. 73s. Jo 10,11-15; 15, 13-17; 14, 23-24; 13, 34-45. 153 DODD, p. 81. 154 PASSMORE, John, The perfectibility of man, London, Gerald Duckworth & Company Limited, 1970. p. 93s. 152
93 pode levar a deduzir que o ser humano merece a danação se não for perfeito. Isto vai levar Santo Agostinho a precisar sua visão do papel da graça na aquisição da perfeição: o ser humano somente pode amar Deus e seu próximo porque Deus escolheu amá-lo primeiro. Portanto o ser humano não pode ser perfeito pelo seu esforço mas somente com a ajuda da graça divina que é um Dom gratuito. Esta visão de Agostinho teve grandíssima influência no pensamento cristão, tanto católico como protestante. Na Igreja Católica, Santo Tomás de Aquino foi sempre considerado como uma grande autoridade quanto à definição de perfeição cristã155. Para ele, está claro que a perfeição cristã consiste essencialmente no exercício do amor, ou segundo sua terminologia, da caridade156. Todas as distinções posteriores destinam-se a tentar explicar como isto é possível na nossa vida limitada: para superar a aparente contradição entre a finitude da nossa condição humana e a infinitude do amor divino, ele vai usar muito a distinção aristotélica entre ato e potência, mostrando que a caridade existe em nós como uma potencialidade. Neste mundo, segundo S. Tomás, podemos ser perfeitos na medida em que nos afastamos voluntariamente de tudo o que pode ir contra a vontade de Deus a nosso respeito157. Gostaríamos de concluir esta rápida reflexão sobre o ideal de perfeição cristão com a tentativa de síntese oferecida por Bernhard Häring sobre as conseqüências que esta visão da perfeição como recebimento e comunicação de um Dom pode trazer para a própria pedagogia da moral cristã:
4.
155
"1. A vida cristã, em sua totalidade, tem suas raízes na experiência eucarística do infinito amor de Jesus e na vivência – também eucarística – de uma comunidade de vida no amor. O primeiro plano desta nova moralidade não açambarca uma longa série de proibições ou advertências ameaçadoras, mas as bem-aventuranças, a alegria expansiva, a pobreza aceita pela atuação do Espírito Santo, os
FONCK, A., Perfection chrétienne (verbete) in Dictionnaire de Théologie Catholique, Tome douzième, première partie, Paris, Librairie Letouzey et Ané, 1933, col. 1219 – 1251. 156 SANCTI THOMAE DE AQUINO, Summa Theologiae, Roma, Editiones Paulinae, 1962, IIa. IIae , q. 184, a. 3: "Per se quidem et essentialiter, consistit perfectio christianae vitae in caritate; principaliter quidem secundum dilectionem Dei, secundário autem secundum dilectionem proximi, de quibus dantur praecepta principalia divinae legis." p. 1803. 157 SANCTI THOMAE DE AQUINO, Summa Theologiae, Roma, Editiones Paulinae, 1962, IIa. IIae , q. 184, a.2.
94 mandamentos ideais de amar como Jesus amou e ser misericordiosos como o Pai o é com toda sua ternura maternal."158 4. OS TEMPOS MODERNOS E O PROGRESSO Se considerarmos nossa visão atual de mundo, principalmente a que influencia os ambientes empresariais, devemos constatar como fomos influenciados pelo que se costuma chamar de tempos modernos159. No decorrer de três séculos, várias revoluções aconteceram que levaram vários pensadores a redimensionarem sua visão da natureza, do ser humano e de Deus e a proporem novos paradigmas para quem acreditasse e buscasse a perfeição e a plena realização de seu destino humano. 4.1
O RENASCIMENTO E A REFORMA Do mesmo modo que o modelo da Grécia clássica foi preparado por
Homero, o modelo que se consolida no século XVIII nasce durante o Renascimento, que foi o período de emergência de uma nova consciência rebelde, criativa e individualista. Esse tempo começou com muitos desastres: peste negra, Guerra dos Cem Anos, lutas internas violentas entre as cidades italianas, hordas turcas, magia negra, medo da invasão dos turcos e grave depressão econômica generalizada. Paradoxalmente, a vida humana pareceu adquirir um valor imediato: o homem não era já tão secundário em relação a Deus, à Igreja ou à Natureza. Por causa da disseminação da palavra impressa, a leitura silenciosa e a reflexão solitária ajudaram as pessoas a libertarem-se do controle que a coletividade exercia sobre seu modo de pensar, o que levou a um desenvolvimento do individualismo. A ênfase era colocada na genialidade pessoal e o ideal era o homem emancipado com múltiplos talentos, podendo ser ele um aventureiro ou um gênio ou um rebelde ou os três ao mesmo tempo. Era mais considerado quem buscava a realização do ego, não mais através do recolhimento mas por meio de uma vida de ação enérgica a serviço do Estado, nos estudos, na arte, no empreendimento comercial e na vida social. Com o desenvolvimento do relógio mecânico apareceu o modelo das máquinas
158
HÄRING, Bernhard, A ética teológica ante o III milênio do cristianismo, em VIDAL, Marciano (org.), Ética Teológica, conceitos fundamentais, Petrópolis, Editora Vozes, 1999, p. 18. 159 TARNAS, Richard, A epopéia do pensamento ocidental, para compreender as idéias que moldaram nossa visão de mundo, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1999, V, A visão de mundo moderna, p. 245-347.
95 modernas que gerou um modelo conceitual que acabou moldando um novo paradigma de explicação da natureza, do ser humano, da sociedade e de Deus. Na Itália, o pequeno tamanho das cidades-estados, sua independência de uma autoridade central, sua vitalidade comercial e cultural proporcionaram o cenário onde podia surgir um individualismo audacioso, criativo e muitas vezes implacável, livre das estruturas de poder e de lei impostas pela tradição ou por autoridades superiores: o pensamento, a ação política deliberada e a capacidade individual tinham maior peso. O Estado era, para eles, uma entidade a ser compreendida e conduzida pela
inteligência e a vontade
humanas. Com a Reforma que Lutero opera com o intuito de purificar o cristianismo e deixá-lo mais conforme à Bíblia, o espírito individualista, rebelde e cada vez mais consciente de sua independência intelectual e espiritual não reluta em sustentar uma postura de grande poder crítico contra a autoridade da Igreja Católica Romana. A Reforma apresenta o paradoxo de ser ao mesmo tempo uma revolução radicalmente libertária, no sentido de que era uma afirmação da consciência individual contra a estrutura organizacional e as determinações sobre crença e rituais estabelecidos pela Igreja, e uma reação religiosa conservadora, no sentido de que pretendia voltar para uma visão do mundo judaico-cristã marcada pelo agostinismo. A volta para uma teologia fundamentalmente bíblica, em oposição à teologia escolástica, tornou mais exposta a distinção entre criatura e Criador; deixou a mente humana limitada ao conhecimento desse mundo que não mais podia ser apreendido e analisado a partir de uma suposta participação em padrões divinos estáticos e perceptíveis por analogia, mas segundo seus próprios processos materiais dinâmicos
e
distintos,
desprovidos
da
referência
direta
à
realidade
transcendente. Isto permitiria que a ciência moderna operasse uma revisão fundamental, não mais se obrigando a discutir com a teologia. Além disto, não sendo mais o mundo uma expressão da vontade de Deus a ser aceita com submissão, tornava-se um campo de atuação para que o homem, cumprindo seu dever religioso, pudesse questionar e mudar todos os aspectos da vida, todas as instituições sociais e culturais, o que ajudou a superar a tradicional
96 ojeriza religiosa a este mundo e à mudança160. Do ponto de vista puramente religioso, com a volta à Palavra de Deus como única fonte da revelação, a Reforma enfatizava a necessidade de descobrir a verdade sem a distorção advinda da obediência aos preconceitos da tradição, apoiando assim o desenvolvimento da mentalidade científica crítica. O preço a pagar é que se criaria uma tensão impossível de superar quando apareceriam as contradições entre os relatos bíblicos e as descobertas da ciência moderna. Ao mesmo tempo, o apelo de Lutero ao primado da resposta religiosa individual ao chamado de Cristo daria mais peso à coerência pessoal com a verdade sentida pelo ego do que aos seus aspectos doutrinários objetivos. Por fim, as guerras religiosas refletiram as violentas disputas quanto à concepção da verdade absoluta que deveria prevalecer levando a perceber a necessidade de uma visão esclarecedora e unificadora que poderia transcender os conflitos religiosos sem solução: isto ajudou a Revolução Científica a triunfar161. 4.2 AS REVOLUÇÕES CIENTÍFICA E FILOSÓFICA Copérnico era um apreciado consultor da Igreja Católica e foi encorajado por um bispo e um cardeal a publicar suas descobertas. A primeira oposição veio dos protestantes que não aceitavam o questionamento de certas passagens da Bíblia pelas novas descobertas. Isto acabou incentivando a oposição da Igreja Católica que queria garantir também uma posição intransigente com respeito à revelação bíblica. Também estava sendo questionado todo o referencial cristão da cosmologia, da teologia e da moral que
se
inscrevia
num
universo
aristotélico
e
geocêntrico.
Com
as
conseqüências culturais das descobertas cumulativas de Kepler e Galileu que privilegiaram a observação dos fenômenos empíricos com o rigor do raciocínio matemático, a revolução copernicana tinha começado a impor-se ao pensamento ocidental. Descartes, em seguida, empreendeu a tarefa de adaptar o atomismo de modo a proporcionar uma explanação física para o universo copernicano e Newton completaria o trabalho estabelecendo a gravidade como força universal, integrando a filosofia mecanicista com a tradição pitagórica. A nova imagem do Criador, nesse contexto, era de um 160 161
TARNAS, Richard, op. cit. p. 260s. Ibid. p. 269.
97 arquiteto divino, mestre matemático e relojoeiro, sendo o Universo visto como um fenômeno impessoal e de regularidade uniforme162. Estamos longe dos deuses “torcedores” dos heróis gregos e do Deus presente, compassivo e salvador da teologia cristã. Nesse contexto, a filosofia começou a estabelecer-se como uma força mais independente na vida intelectual, transferindo sua afinidade e lealdade à Religião para a causa da Ciência. No início do século XVII, enquanto Galileu forjava a nova prática científica na Itália, Francis Bacon proclamava na Inglaterra o nascimento de uma nova era em que as ciências naturais trariam ao homem uma redenção material, usando um novo método de adquirir conhecimento que seria basicamente empírico e permitiria à mente humana obter as leis e generalizações que proporcionariam ao homem uma compreensão suficiente da natureza para controlá-la. Enquanto Sócrates via no conhecimento um caminho para a virtude, para Bacon o conhecimento era equiparado ao poder: o homem foi criado por Deus para interpretar e dominar a Natureza e a pesquisa era uma obrigação quase religiosa. Na mesma época Descartes, confrontado às dúvidas epistemológicas devidas às contradições entre as diferentes perspectivas filosóficas e a redução de importância da revelação religiosa para o conhecimento do mundo empírico, procurava uma base irrefutável para o conhecimento seguro. Ele construiria seu pensamento sobre três bases: o ceticismo, a matemática e a certeza da consciência individual, sendo o conhecimento seguro aquele que pode ser clara e distintamente concebido. Se o Universo não era um organismo vivo movido por um objetivo teleológico, como o concebiam a tradição aristotélica e os escolásticos, a razão analítica do homem perceberia nele uma matéria atomística sem vida que seria melhor compreendida em termos mecânicos, analisada em suas partes mais simples e entendida nos termos dos arranjos e movimentos dessas partes. Assim a razão humana tornava-se a suprema autoridade em questões de conhecimento, estabelecendo até mesmo a própria existência de Deus que aparecia como uma necessidade lógica. A base da certeza que, para Lutero, estava na sua fé na Graça Salvadora revelada na Bíblia, estava, para Descartes, na clareza dos procedimentos do raciocínio
162
Ibid. p. 271-294.
98 matemático aplicado à impossibilidade de duvidar do próprio pensamento: não há verdades objetivas , metafísicas. A verdade é fruto de um processo que parte da dúvida e chega à certeza. Estes são os alicerces para entender qual é o ideal de perfeição da personalidade moderna163. 4.3. A PERFEIÇÃO DO HOMEM MODERNO: O BURGUÊS DEVOTO DO PROGRESSO O homem moderno apresenta-se como um ser plenamente autônomo para quem a consciência pessoal e racional era o princípio elementar e essencial de identidade. Esta consciência, totalmente distinta de um Deus objetivo e de uma natureza exterior, duvida de tudo, menos de si mesma, opondo-se como um ser pensante e observador não apenas às autoridades tradicionais, mas ao mundo, que media e manipulava,. O destino feliz do homem parecia assegurado como resultado do uso da própria racionalidade e de suas realizações concretas. A adequada educação da mente humana num ambiente bem planejado produziria indivíduos racionais, capazes de entender o mundo e a si mesmos. Dois jornais ingleses, o Tatler e o Spectator, ofereceram a este modelo de humanidade feições mais concretas: seria o burguês, sorridente e contente consigo mesmo! Estes dois jornais dirigiam mensagens para uma sociedade que pedia regras de conveniência, de correção e de deveres164. Artigo após artigo, refutavam falsidades, corrigiam abusos e mostravam o que devia ser feito, tentando restabelecer, segundo dizia o Tatler, a honra da natureza humana165. Não dando valores a títulos ou a conceitos ultrapassados de defesa da honra ou de abnegação, o burguês prefere valorizar a afirmação da individualidade e a espontaneidade. Não se preocupa demais com a busca da felicidade: está convencido de que é melhor saber consolar-se e permanecer firme nas adversidades porque o que de mais valioso ele pode esperar neste mundo é o contentamento da alma166. O tipo mais acabado deste novo modelo é o comerciante que não só dá à Inglaterra, e ao resto do mundo que aceita 163
Ibid. p. 294-303. HAZARD, Paul, La crise de conscience européenne, 1680-1715, Paris, Librairie Arthème Fayard, 1961, chapître VII, vers un nouveau modèle d'humanité, p. 303-314 165 Ibid. p. 308 166 Tema desenvolvido para nossos dias em GALBRAITH, John Kenneth, A cultura do contentamento, São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1992. 164
99 este ideal, poder, riqueza e honra, mas contribui para a colaboração entre todos os países e o bem-estar universal: é o amigo do gênero humano. Não busca a fama que basta ao herói antigo; ele precisa de uma reputação ilibada que se transforma em crédito, base da honra e da eficácia mercante. Os autores franceses acrescentam que este homem novo deve ser modelo de independência de espírito conquistada pelo uso da razão: deve ser filósofo. Este filósofo não é mais o profissional que só cita Platão ou Aristóteles. É um cientista que usa a razão e não a memória para estudar a astronomia, falar da pluralidade dos mundos, é um sábio que constrói para si mesmo uma vida confortável e, principalmente, é uma pessoa que julga todas as coisas com total liberdade. Ele preza uma filosofia que renuncia à metafísica e se restringe voluntariamente ao que pode perceber imediatamente na alma humana e na natureza, ela mesma considerada, não boa, mas poderosa, ordenada e afinada à razão humana. Por isto, só podem existir uma religião natural, um direito natural e uma liberdade natural167. O horizonte está aqui, no nosso mundo: inventar máquinas que tornam o trabalho mais fácil, combinar diversos materiais para produzir coisas novas e aumentar nossas riquezas, isto significa fazer da terra o Paraíso, recuar a morte e aumentar o poder de ação do ser humano: é o Progresso! A ciência torna-se um mito que, no fim, substituirá a religião e a filosofia e responderá a todas as perguntas do espírito humano. Condorcet será o grande pedagogo e o grande profeta desta nova era168. Da constatação do progresso científico, ele tira uma interpretação rígida da história que influenciará a cultura ocidental e contribuirá para bloquear toda reflexão crítica sobre a "civilização"169. A idéia principal desse filósofo é que a 167
Segundo LALANDE, verbetes natureza e estado de natureza, op. cit. p 721 e 340 o conceito moderno de natureza refere-se mais a um princípio que produz o desenvolvimento de um ser e realizar nele um determinado tipo. Por conseqüência, pode designar tudo que é inato, instintivo e espontâneo, inclusive a razão considerada como uma espécie de instinto intelectual. Seria um estado em que os homens nascem por oposição à revelação, à graça, à civilização, à reflexão e a tudo que é artificial de dependente da vontade. O estado de natureza, neste sentido, corresponderia a um estado hipotético do homem antes da organização social (Grocius, Hobbes, JJ Rousseau). Não se trata então do mesmo conceito de natureza como essência presente na visão de Aristóteles e da scolástica. 168 CONDORCET, Jean Antoine Nicolas Caritat, Esquisse d'un tableau historique des progrès de l'esprit humain, 1793, Paris, GF Flammarion, 1988. 169 THUILLIER, Pierre, La grande implosion, rapport sur l'effondrement de l'Occident 19992002, Paris, Fayard, 1995, p. 65s. Oferece uma boa síntese do pensamento de Condorcet embora não nos sentimos obrigados de aceitar todas as suas conclusões.
100 humanidade caminha desde suas origens para estados de desenvolvimento cada vez mais perfeitos. No seus discurso de recepção na Academia Francesa, ele tinha dito que "Toda descoberta é um benefício para a humanidade." Portanto, por um estudo científico do homem e da sociedade, seria possível criar uma arte social que permitiria que uma elite esclarecida pudesse conduzir o resto da humanidade em direção à felicidade. Seriam constituídas ciências que teriam como objeto o próprio ser humano e como objetivo sua felicidade: elas poderiam prever os progressos da espécie humana, dirigi-los e acelerálos, teriam o mesmo progresso e ofereceriam a mesma certeza que as ciências físicas desde que a humanidade se libertasse dos antigos preconceitos e do peso da tradição para os quais só pode existir o desprezo. Condorcet apresentava o aperfeiçoamento das leis e das instituições públicas como a conseqüência lógica do progresso destas ciências. Segundo ele, nas sociedades arcaicas existiam dois tipos de pessoas: os impostores e os que eram enganados por eles. Porém, a civilização era o fruto de um processo, que podia passar por períodos de decadência mas era irreversível. Ele, também, insistia sobre o papel importante das atividades comerciais e industriais que ajudavam o desenvolvimento das ciências e das técnicas, que permitiam progressos na produção dos bens de consumo mais comuns, enaltecendo ao mesmo tempo a superioridade do novo conhecimento e as vantagens do desenvolvimento do comércio170. Podemos resumir, com Passmore, as etapas do raciocínio que leva os pensadores do iluminismo a acreditarem que os tempos novos chegaram: até essa época, o homem foi uma criança em termos de conhecimento e, por conseqüência, em termos de virtude; pela ciência, ele tem agora condição de determinar como a natureza humana se desenvolve e o que o ser humano deve fazer; esse novo conhecimento pode ser expresso de modo inteligível para todos os homens; sabendo o que se deve fazer, os homens agirão em conseqüência e, portanto, melhorarão suas condições morais, físicas e políticas. Desde que nada de sinistro prejudique a transmissão do conhecimento, o desenvolvimento da ciência, ilimitado, está destinado a permitir uma constante melhoria da condição humana171. 170 171
CONDORCET, op. cit. Dixième Époque, des progrès futurs de l'esprit humain, p. 265-296. PASSMORE, op. cit. p. 208.
101 Esta posição, todavia, não é unânime. Jean Jacques Rousseau vai usar todo o seu poder de argumentação para mostrar que a civilização tão celebrada podia ser também a origem de grande parte dos males do mundo porque alienava o homem de sua condição natural de simplicidade, sinceridade, igualdade, bondade e verdadeira compreensão. Ele acreditava que o sentimento religioso era intrínseco à condição humana porque estava ligado à natureza real do Homem, feita de sentimentos, impulsos profundos, intuição e fome espiritual que transcendiam todas as fórmulas abstratas. A divindade que Rousseau admitia não era uma primeira causa impessoal, mas um Deus de amor e de beleza que a alma poderia conhecer no seu próprio interior. Resumindo, a propósito da personalidade moderna, Tarnas escreve: “A orientação e a característica dessa personalidade refletia a mudança gradual e, enfim, radical: uma fidelidade psicológica que passava de Deus para o Homem, da dependência para a independência, do outro mundo para este, do transcendental para o empírico, de mito e crença para Razão e fato, das universalidades para as particularidades, de um Cosmo estático determinado pelo sobrenatural para um Cosmo em evolução determinado pela Natureza e de uma Humanidade decadente para uma progressista.”172 5. A PERFEIÇÃO DO EXECUTIVO OU A BUSCA DA EXCELÊNCIA Até agora, os ideais de perfeição propostos ofereciam sistemas de sentido religiosos, políticos ou filosóficos que propunham uma realização pessoal do indivíduo pela sua inserção num conjunto mais amplo. O segundo capítulo mostrou que a revista Exame aponta a organização empresarial como esse lugar de realização e de sucesso que merece do executivo, em contrapartida, uma entrega e um comprometimento totais. Pondo o paradigma de perfeição, que parece despontar das matérias analisadas, em perspectiva com os modelos analisados até agora, ver-se-ia nele uma tentativa de apontar caminhos para uma perfeição da nobreza, do conhecimento crítico e da prática de uma cidadania política voltada ao serviço do bem comum, como o modelo grego? Oferece ele uma visão religiosa onde o foco principal reside na acolhida de um dom divino e na prática da compaixão e do perdão em resposta? Apresenta ele uma visão do progresso humano decorrente do desenvolvimento da ciência e da construção do bem-estar da humanidade a partir do mais amplo intercâmbio comercial dos bens produzidos em maior quantidade e melhor qualidade graças à ajuda do aprimoramento tecnológico permitido pela ciência?
102 Sem dúvida, encontraremos mais analogias com este último modelo. Contudo, hoje, diante das contradições geradas pelos sistemas políticos, sociais, econômicos e religiosos, parece que a única possibilidade de realização é ter sucesso na esfera privada, onde as empresas podem oferecer ao executivo ou ao “homem managerial” segundo a expressão de Aubert e Gaulejac173, projetos que lhe permitam expressar a própria identidade num desafio de superação permanente oferecido por um trabalho absorvente, pelo prazer de ganhar e por uma carreira ascendente. “Nessas três décadas, foram extintos alguns dogmas compartilhados por toda a sociedade, da extrema esquerda à extrema direita, como a atitude nacionalista ou a noção de que o saber universitário garante a ascensão social. "Dogmas compartilhados por todos tornam-se paradigmas da sociedade", afirma Romano. "Quando esses ícones são destruídos, só resta ao indivíduo o trato consigo próprio." Também foi esta geração que herdou de mãos beijadas a revolução sexual, mas teve que aprender a lidar com a Aids. Foi a geração que descobriu que o "milagre brasileiro" era um engodo e formou-se com apreensão durante a década perdida dos anos 80. Foi a geração que viu a aprovação da lei do divórcio, em dezembro de 1977, e cresceu em lares de pais separados ou teve amigos cujos pais se separaram. Foi a geração que se acostumou a ter amigos que se drogam, ou homossexuais assumidos, ou das mais variadas tendências sociais e políticas, às vezes amigos que pintam o cabelo de roxo e levam o notebook para trabalhar na praia: enfim, é uma geração que se acostumou com a diversidade como componente intrínseco à vida. Também é a geração que praticamente nasceu tricampeã de futebol, mas amargou um jejum de 24 anos até ganhar outra Copa, mesmo assim sem se convencer muito. Que não se subestime o futebol. Ele ensinou aos jovens, em 1982, que ser o melhor e fazer bonito não garante nada. E foi dos campos de futebol que veio o primeiro exemplo do fim do profissional de um clube só (que coincidência, não?, o Brasil há muito tempo não tinha tantos craques como nessa época de globalização).”174 5.1 A PERFEIÇÃO COMO EXCELÊNCIA E LUTA PELO RECONHECIMENTO Nos ideais analisados até o momento, o conceito de perfeição parecia aplicar-se mais ao ser e designava uma qualidade intrínseca; no caso do executivo, porém, sofre uma mudança radical em relação ao entendimento tradicional e caracteriza o fazer melhor do que os outros para poder chegar ao 172
TARNAS, op. cit. p.343. AUBERT, Nicole, DE GAULEJAC, Vincent, Le coût de l'excellence, Paris, Éditions du Seuil, 1991, chapitre 3, La quête de l’excellence ou le royaume de Dieu dans l’entreprise e chapitre 4, De l’excellence au chaos, p. 160s. 174 COHEN, David, As empresas vão ser deles, Exame 31 (661): 108, 06 de maio 1998. 173
103 topo. Segundo Nicole Aubert e Vincent de Gaulejac,175, no livro de Tom Peters e Robert Waterman, citado anteriormente176, a perfeição, rebatizada de excelência, vira um valor supremo: trata-se então de uma perfeição técnica como aquela descrita por John Passmore? Não exatamente; porque, segundo nossos autores, existe um paradoxo que perpassa muitas matérias da Exame: mais do que resultado econômico ou material, a excelência é também a expressão de um modo novo de ser na sociedade. Pela sua etimologia, a palavra excellentia significa sobressair, superar, ser superior177 e se refere a um nível excepcional da qualidade ou do valor considerados. Num mundo empresarial marcado pela tecnologia moderna, pela produção em massa e pela velocidade da comunicação, a excelência identifica-se mais com o resultado imediato do que com um valor mais profundo e duradouro: basta ver a velocidade de surgimento e de desaparecimento de novos produtos, principalmente na área de tecnologia, bem como a velocidade da ascensão e da queda dos executivos de sucesso!178 Assim, a excelência passa de um conceito próximo e quase sinônimo de perfeição, qualidade intrínseca do que é bom em si e resiste ao tempo, para o significado de algo que sobressai momentaneamente mas que sempre poderá ser questionado por uma excelência maior, um resultado mais importante e um feito ainda mais prodigioso. Excelência torna-se sinônimo também de efêmero. Exceler é portanto vencer os outros, mas também vencer a si mesmo: é a expressão suprema do individualismo porque fundada sobre a reivindicação de uma autonomia individual absoluta; é um fim em si e o sinônimo da única realização pessoal que possa ser proposta quando as hierarquias sociais tradicionais, sejam elas econômicas, políticas ou religiosas, são questionadas179. E nossos autores enxergam nessas tentativas de superação pessoal e nesta noção de excelência uma busca de preencher o vazio da transcendência antes atribuída a Deus. Este absoluto seria porém um absoluto de si mesmo que condena quem o persegue a olhar e a amar a si mesmo, como Narciso que se mirava no próprio espelho. 175
op. cit., p 70-106. PETERS, Thomas J., WATERMAN JR, Robert H., Vencendo a crise, como o bom senso empresarial pode supera-la, São Paulo, Editora Harbra Ltda, 1986. 177 GAFFIOT, Felix, Dictionnaire Latin Français, Paris, Hachette, 1934, verbete excellentia. 178 Basta conferir quem foi capa da Exame de 1994 para cá: onde estão hoje? 176
104 “É também a mensagem que empregados do mundo todo têm recebido da mídia, dos consultores, dos gurus da administração e das próprias empresas. Uma mensagem que diz claramente "Cuide de você próprio", e exatamente assim é interpretada. O raciocínio de lealdade que permeia as atitudes dos profissionais atualmente é o seguinte: "Vou pensar muito mais em mim e na minha carreira do que na empresa. Vou me preocupar com as minhas habilidades e tratar de fazer com que elas sirvam para qualquer empresa. Vou me valorizar aqui para obter uma colocação melhor em outro lugar."180 Francis Fukuyama, na Quinta parte do seu livro, The end of history and the last man181, parece reforçar este conceito considerando que o liberalismo, o maior fenômeno histórico dos últimos séculos, deve ser entendido na sua essência como mais uma manifestação da luta pelo reconhecimento. Embora as sociedades liberais tenham perseguido o ideal de uma sociedade onde as barreiras contra as desigualdades fossem derrubadas, o liberalismo falha em satisfazer o desejo do ser humano de ser reconhecido igual aos outros (isothymia);
o autor, seguindo o pensamento de Nietzsche, afirma que a
verdadeira liberdade ou criatividade só surgirá da megalothymia, ou seja, do desejo de ser reconhecido como melhor do que os outros. Assim, a grande contradição é que numa democracia liberal, que não pode renunciar ao seu ideal de isothymia, a primeira e mais importante manifestação da megalothymia é a capacidade empreendedora e as outras formas de atividade econômica. Ser perfeito eqüivaleria, então, a ser diferente e reconhecido como tal por causa do sucesso alcançado por meio de empreendimentos, numa atividade econômica. Isto significa ser competitivo e ganhador. De novo a pesquisa da Exame
sobre
o
perfil
dos
jovens
executivos
apresenta
ilustrações
interessantes: “A lealdade à empresa está morta. Em compensação, ele (o jovem executivo) trabalha como ninguém pelo sucesso da companhia, porque identifica este como o melhor caminho para o seu próprio sucesso. Ele não trabalha mais com a velha perspectiva de uma carreira de 35 anos. Seu cálculo é de 10 anos de sacrifício e dedicação, para depois colher os frutos do trabalho. Ele não admite ficar muito tempo fazendo o mesmo trabalho. Mas quer ficar tempo suficiente para imprimir sua marca 179
AUBERT, GAULEJAC ibid. p 73-75. BERNARDI, Maria Amália, O capital humano, reter e atrair talentos tornou-se uma questão de vida ou morte para as empresas, Exame, 31 (647): 125, 22 de outubro 1997. 181 FUKUYAMA, Francis, The end of history and the last man, New York, Avon Books, Inc., 1992, p. 288ss. 180
105 pessoal. Ele se reconhece como o tubarão no mar corporativo e sabe que, como os tubarões, se parar de nadar não consegue respirar. Quer formação contínua, quer aprender e ensinar. Acredita que terá de competir em breve com gente ainda mais preparada, mas incentiva o crescimento dos rivais porque vê neles o sustento para o seu próprio crescimento.”182 Aubert e Gaulejac encontram duas fontes para esse conceito de excelência: a ética do protestantismo exposta por Weber183 e o movimento de busca pela qualidade total, muito forte nas empresas nos anos 80. O espírito capitalista, influenciado
pela ética protestante, combina
um
desejo
de
acumular sempre mais com uma austeridade de comportamento próxima do ascetismo, o que causa uma vontade de produção indefinida. O empreendedor capitalista, longe de querer tirar proveito pessoal da própria riqueza, considerava como ganho o fato de Ter feito bem seu dever e de Ter cumprido a própria vocação, porque no sucesso temporal ele encontrava um sinal da eleição divina e superava a angústia da incerteza da salvação. A importância econômica dessa atitude ética é clara: trabalhar racionalmente em vista do lucro sem gastar este lucro é uma conduta necessária ao desenvolvimento do capitalismo,
porque
permite um
contínuo
re-investimento do lucro não
consumido. Ética pessoal e trabalho dedicado são extremamente ligados, porque sucesso profissional e salvação pessoal pertencem ao mesmo registro: trabalhar e ser o melhor visam a afastar a angústia existencial. A busca pela qualidade total e o defeito zero na fabricação dos produtos, marco dos anos 80 na vida das empresas, corresponde à necessidade, mais estritamente econômica, de enfrentar a concorrência cada vez mais forte184. Essa concorrência é fruto da globalização da economia e da inversão da relação oferta-procura por causa da entrada no mercado das novas economias industrializadas, o que tornou a demanda dos consumidores mais exigente185. Peters e Waterman186 listam os oito atributos que permitirão que as empresas inovadoras e de alto padrão consigam enfrentar a concorrência: uma firme disposição para agir, estar ao lado e junto do cliente, demonstrar autonomia e 182
COHEN, David, As empresas vão ser deles, Exame 31 (661): 106-107, 06 de maio 1998. WEBER, Max, A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 8ª edição, 1994. 184 Lembramos que é uma das três áreas de êxito da organização segundo Claus Möller citado numa matéria da Exame analisada no nosso segundo capítulo. 185 AUBERT, GAULEJAC op. cit. p. 83-84. 183
106 iniciativa, obter a produtividade através das pessoas, trabalhar orientada por valores, trabalhar num negócio conhecido, Ter uma organização interna simples e serem flexíveis e adaptáveis. Quando explicam o que significa estar ao lado e junto do cliente, falam da obsessão pela qualidade que implica uma mobilização total dos indivíduos, não só física e afetiva mas também psíquica187. A empresa torna-se o lugar de canalização das energias que devem ser exploradas pela organização, controladas por uma autoridade e integradas aos sistemas e às competências para que a empresa possa atingir seus objetivos. Assim a busca pessoal da excelência derivada da ética protestante, que concebia o trabalho dedicado e o sucesso temporal como o sinal da salvação pessoal eterna, está agora ligada ao horizonte temporal da existência individual e impregnada dos valores de agressividade e de competição necessários à lógica da sobrevivência nesta disputa econômica e profissional cada vez mais acirrada. “Sim, a vida está ficando dura e, para complicar, parece certo que as situações descritas acima vão continuar no horizonte por tempo indefinido. Dentro dessa panela de pressão, nada mais natural que o executivo se pergunte: até que ponto o meu emprego está seguro? (...)Hoje, a crise vem de fora para dentro do escritório. Feliz ou não com aquilo que está fazendo, o executivo vê que seu emprego, cada vez mais, passa a depender de forças que não estão sob o seu controle, ou mesmo sob o controle dos seus superiores na empresa.188
A busca de uma excelência traduzida em qualidade dos produtos oferecidos ao consumidor não livrou as empresas da ameaça de uma guerra econômica total e obriga-as a enfrentar o caos ou os terremotos da atualidade, para continuarem sendo vencedoras. “Era uma vez um mundo perfeito. Os bens duráveis duravam a vida inteira, os casais ficavam juntos até que a morte os separasse, as grandes empresas sustentavam seus funcionários para sempre, as crianças ficavam quietas na hora do jantar. Talvez não se soubesse direito para onde se ia, mas ia-se com passos firmes, subia-se degrau após degrau após degrau e as palavras-chave eram paciência e segurança. O mundo corporativo era um mundo sólido: carreiras sólidas 186
op.cit. p. 15-17. op.cit. p. 183. 188 BERNARDI, Maria Amália, seu emprego está seguro? Bem-vindos, senhores executivos, ao império da incerteza, Exame, 30 (610): 25-26, 22 de maio 96. 187
107 em empresas sólidas, caminhos asfaltados e obstáculos de concreto. Como qualquer mundo perfeito, este era um mundo chato, aborrecido, mas era um mundo cheio de referências: o tamanho da sala, o nome do cargo, o diploma na parede... Até que um dia veio o terremoto da modernidade, e o mundo corporativo teve que se curvar à veracidade do diagnóstico de (quem diria?) Karl Marx: "Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente forçados a enfrentar com sentidos mais sóbrios as suas reais condições de vida e sua relação com outros homens."189 Por isso, surgiu uma nova necessidade para que as empresas possam sobreviver: a capacidade de adaptar-se à mudança porque, segundo Tom Peters, “a mudança é e deve tornar-se a norma.190”. A lógica da prosperidade no caos pode assim ser resumida: a incerteza e a complexidade estão aumentando
e só
podem
completamente às exigências da mudança
permanente; o paradoxo, segundo ser vencidas pela ação que acaba levando ao fracasso porque não responde Peters, é que quanto mais rápido o fracasso, melhor para a empresa porque força a inovação a uma velocidade supersônica191! Assim a vida empresarial enfrenta vários paradoxos: a mudança produz a mudança e a ação continuada é o melhor antídoto à incerteza
produzida...
pela ação; a
inovação
permanente garante a
sobrevivência, portanto a estabilidade; o fracasso garante o sucesso e o sentimento de urgência permanente é o alicerce da serenidade; o “jeitinho” e o empirismo são conceitos estratégicos chaves e deve-se desconfiar de teorias, de conceitos, de diplomas, de peritos e de muita papelada; a adesão ao projeto empresarial é mediada pela visão inspiradora do líder; finalmente, cultua-se o herói e o campeão que devem possuir a energia, a paixão, o idealismo, o pragmatismo, a flexibilidade, uma impaciência desmedida, a recusa de considerar os obstáculos e a impassibilidade diante dos sentimentos de amoródio que despertam nos seus colaboradores. O livro de Peters é um catálogo de injunções e prescrições: “Tem que...” É o tom e o gênero literário adotado
189
COHEN, David, As empresas vão ser deles, Exame 31 (661): 105-106, 06 de maio 1998. PETERS, Tom, Le chaos management, Manuel pour une nouvelle prospérité de l’entreprise, Paris, Interéditions, 1988 (traduzido em português por Prosperando no caos pela editora Harbra de São Paulo e já esgotado) citado em AUBERT, GAULEJAC, op. cit. p.100. 191 PETERS, Tom, Le chaos management, Manuel pour une nouvelle prospérité de l’entreprise, Paris, Interéditions, 1988, p. 316. Em Vencendo a crise, p.79, o mesmo autor fala do fracasso perfeito, porque toda tentativa, mesmo que fracasse merece ser comemorada porque conduz mais perto da excelência. 190
108 em não poucas matérias analisadas na revista Exame onde encontramos muitos desses heróis profetizados por Peters. 5.2. O EXECUTIVO COMO HOMEM DA VISÃO E DO CONHECIMENTO Se as empresas e os executivos devem sobreviver e Ter sucesso num mundo submetido à mudança permanente, um dos critérios de excelência será o desenvolvimento de uma visão capaz de enxergar para onde está evoluindo a economia dirigida pelo mercado e como tirar partido das oportunidades oferecidas pelo caos aparente. O que se entende por visão? É o que permite entender o cenário competitivo e formular a missão, a estratégia e os objetivos da empresa. Quando a revista Exame busca uma reflexão mais teórica sobre a evolução da sociedade e o papel que nela desempenham as empresas e os executivos, não deixa de ouvir Peter Drucker, a quem chama de “mais importante guru de negócios da nossa época” e de “profeta”: “Peter Drucker (..) é o principal “filósofo” ou “guru de negócios” do século 20 e criou o conceito da administração como uma disciplina prática. Seu rigor intelectual e sua visão separam-no do bando de futuristas de plantão. Sua grande força é a capacidade extraordinária de interpretar o presente e ler as palavras traçadas na areia que vão ao xis do problema. Com mais de 30 livros publicados, Drucker escreveu com lucidez acerca de muitas das principais tendências dos últimos 50 anos, identificando a “sociedade do conhecimento” como a pedra fundamental dos negócios de hoje.“192
Só no ano 2000, a revista publicou quatro matérias que têm relação com Peter Drucker: numa ele é entrevistado, duas são de sua autoria e a Quarta, escrita por uma sobrinha, descreve seu modo de vida e a sua intimidade193. Além disto uma carta do editor apresenta-o brevemente e mostra a importância
192
DALY, James, O mais importante guru de negócios da nossa época diz o que há de errado (e o que está certo) com a Nova Economia, Exame 34 (727): 120, 15 de novembro 2000. 193 DALY, James, O mais importante guru de negócios da nossa época diz o que há de errado (e o que está certo) com a Nova Economia, Exame 34 (727): 120-128, 15 de novembro 2000.; DRUCKER, Peter, Para o maior pensador do mundo dos negócios, a principal revolução trazida pela Internet será o ensino a distância para adultos, Exame, 34 (716): 64-67, 14 de junho 2000; DRUCKER, Peter, Comércio Eletrônico, O futuro já chegou, O maior pensador contemporâneo do mundo dos negócios desvenda a nova economia, Exame, 34 (710): 112-126, 22 março 2000; KOHLMANN, Diana, Uma sobrinha de Peter Drucker conta a intimidade do grande guru da administração, Exame, 34 (707): 66-67, 09 fevereiro 2000.
109 deste pensador para os administradores194; ele reconhecido como mestre por jornalistas que escrevem na revista: "Cláudia representa um novo tipo de jornalista da área de economia e negócios. Antes o jornalista dessa área lia à exaustão Marx antes de escrever uma reportagem de negócios. Cláudia lê Drucker. Pode não ser melhor, mas é mais lógico."195
Segundo Drucker, a economia mundial continuará a ser uma economia de mercado : todavia, mudou substancialmente. Ela ainda é "capitalista", mas é dominada agora pelo "capitalismo da informação". Os "super-ricos" do velho capitalismo eram os barões do aço do século dezenove. Os "super-ricos" do crescimento
econômico
pós-Segunda
Guerra
são
fabricantes
de
computadores, produtores de software, produtores de programas de TV. As grandes fortunas do varejo – Sam Walton da Wal-Mart – foram feitas através da reorganização desse velho ramo em torno da informação, porque é o único caminho para poder participar de uma economia que se tornou global: “Na nova geografia mental criada pela ferrovia, a humanidade dominou a distância. Na geografia mental do comércio eletrônico, a distância foi eliminada. Existe apenas uma economia e um mercado. Uma conseqüência disso é que toda empresa precisa se tornar competitiva em nível global, mesmo que produza ou venda apenas dentro de um mercado local ou regional. A concorrência já deixou de ser local. Na verdade, não conhece fronteiras. Toda empresa precisa tornar-se transnacional na forma de ser administrada.”196 Portanto, os maiores produtores de riqueza passam a ser a informação e o conhecimento, o que modifica os critérios antigos de fazer negócio porque não há evidências de que o aumento de consumo ou de investimento na economia gerem maior produção de conhecimento. Faz-se, portanto, necessária uma teoria econômica que coloque o conhecimento no centro do processo de produção de riqueza para poder explicar por que recém-chegados, em especial indústrias de alta tecnologia, podem varrer o mercado quase da 194
NETZ, Clayton, Carta do Editor, Peter Drucker é Peter Drucke, Exame, 34 (710): 7, 22 de março 2000. 195 NOGUEIRA, Paulo, Carta do Editor, Exame, 29 (610): 7, 22 de maio 1996 196 DRUCKER, Peter, Comércio Eletrônico, O futuro já chegou, O maior pensador contemporâneo do mundo dos negócios desvenda a nova economia, Exame, 34 (710): 118, 22 de março 2000.
110 noite para o dia e expulsar todos os concorrentes. A conseqüência mais imediata é que os executivos devem voltar para a escola não para aprender novas habilidades mas para adquirir uma nova visão de mundo: “Falando em termos mais simples, está aumentando entre as pessoas que já têm alto nível de instrução e ótimo desempenho profissional a percepção de que não estão conseguindo manter-se em dia com as mudanças. No meu curso avançado de administração, na Claremont Graduate School, já leciono para muitos executivos de alto escalão. A maior parte dos alunos é formada por homens e mulheres na casa dos 40 anos, apontados por suas respectivas empresas como pessoas de alto potencial. Eles voltaram a estudar porque querem e precisam encontrar novas maneiras de enxergar o mundo, fora de suas áreas de competência. Querem aprender a Ter uma visão mais global. Muitos estão lá para refletir sobre suas experiências e enxergá-las de uma perspectiva mais ampla. Eles precisam dessa perspectiva para lidar com as mudanças econômicas e tecnológicas atuais, diante das quais estão perplexos. (...) A que se deve essa explosão de demanda? Vivemos numa economia cujos recursos mais importantes não são instalações e máquinas, mas conhecimento, e onde os trabalhadores do conhecimento compõem a maior parte da força de trabalho. (...) Os trabalhadores sempre tiveram a necessidade de desenvolvimento da capacitação, mas conhecimento e habilidades são coisas distintas. As habilidades demoram muito a mudar. Se Sócrates voltasse ao mundo e retomasse seu trabalho de pedreiro, reconheceria todas as ferramentas usadas hoje e saberia como usá-las.”197 Segundo Drucker, existem três novos tipos de conhecimento: aperfeiçoamento, exploração e inovação. Estas três maneiras de se aplicar o conhecimento para a produção de mudanças na economia (e também na sociedade) precisam ser desenvolvidas em conjunto e ao mesmo tempo, embora suas características econômicas – custos e impactos – sejam qualitativamente diferentes. Ao menos, até o momento, não é possível quantificar o conhecimento. Acima de tudo, o montante do conhecimento, isto é, seu aspecto quantitativo, não é tão importante quanto a sua produtividade, isto é, seu impacto qualitativo. “A função das organizações é tornar produtivos os conhecimentos. As organizações tornaram-se fundamentais para a sociedade em todos os
197
DRUCKER, Peter, Para o maior pensador do mundo dos negócios, a principal revolução trazida pela Internet será o ensino a distância para adultos, Exame, edição 34 (716): 64-65, 14 de junho 2000.
111 países desenvolvidos, devido à passagem do conhecimento para conhecimentos198”.
Tornar o conhecimento produtivo é uma responsabilidade gerencial que requer a aplicação sistemática e organizada do conhecimento ao próprio conhecimento! Ele não é impessoal: está sempre incorporado a uma pessoa, criado, ampliado ou aperfeiçoado, aplicado, ensinado e transmitido por ela, sendo por ela usado para o bem ou para o mal. Portanto, o maior desafio para as empresas será saber lidar com esses trabalhadores do conhecimento: “Aquilo que chamamos de Revolução da Informação é, na realidade, uma revolução do conhecimento.(...) Isso significa que a chave para manter a liderança na economia e na tecnologia que estão prestes a emergir provavelmente será a posição social dos trabalhadores do conhecimento e a aceitação social de seus valores.(...) Hoje, porém, estamos tentando ficar em cima do muro: manter a mentalidade tradicional — na qual o recurso-chave é o capital e quem manda é o financista — e, ao mesmo tempo, subornar os trabalhadores do conhecimento, com bônus e opções de compra de ações — para que se contentem em continuar sendo meros empregados. Mas isso vai funcionar, se é que vai, apenas enquanto as indústrias emergentes desfrutarem da explosão no mercado acionário, como vem sendo o caso das empresas ligadas à Internet. (...) Cada vez mais, o desempenho dessas novas indústrias baseadas no conhecimento vai depender de as instituições serem administradas de maneira a atrair, reter e motivar os trabalhadores do conhecimento. Quando satisfazer a cobiça de tais trabalhadores, como hoje estamos tentando fazer, deixar de ser suficiente, será preciso atender seus valores e oferecer-lhes reconhecimento e poder social. Para isso, será preciso transformá-los de subordinados em colegas executivos. De empregados, por mais bem pagos que possam ser, em sócios.”199 A pessoa instruída de amanhã terá de estar preparada para viver em um mundo global, que será ao mesmo tempo "ocidentalizado" e “tribalizado”! Ela deverá se tornar uma "cidadã do mundo" – em visão, horizonte e informação e deverá recorrer a outras culturas , enriquecendo a sua própria. Em sua maioria, as pessoas instruídas irão praticar seus conhecimentos como membros de organizações. Portanto, 198
elas
terão
que
estar
preparadas
para
viver
e
trabalhar
DRUCKER, Peter, Sociedade pós-capitalista, São Paulo, Ed. Pioneira Novos Umbrais, 1994, pág. 28.
112 simultaneamente em duas culturas – a do "intelectual", que focaliza palavras e idéias, e a do "gerente", que focaliza pessoas e trabalho. Sendo a empresa moderna formada por especialistas do conhecimento, ela precisa ser uma organização de iguais e não de chefes e subordinados, organizada como uma equipe de associados prontos para mudanças constantes. Sendo da própria natureza do conhecimento a mutabilidade rápida, ao contrário das aptidões que mudam de forma lenta, a inovação intencional – tanto técnica como social – transformou-se em disciplina organizada, que pode ser ensinada e aprendida, razão pela qual toda empresa precisa embutir em sua própria estrutura a gerência da mudança e a capacidade para criar o novo. “Como a organização moderna é uma organização de especialistas do conhecimento, ela precisa ser uma organização de iguais, de “colegas”, de “associados”. Nenhum conhecimento se “classifica” acima do outro.” 200
Os intelectuais vêem a organização como uma ferramenta que lhes possibilita a prática da techné, de seu conhecimento especializado, ao passo que os gerentes vêem o conhecimento como um meio a serviço da produtividade e do desempenho da organização. O orgulho não está na perfeição de um trabalho bem feito mas na contribuição do trabalho para o resultado da empresa. Como essa teoria do conhecimento empresarial voltado a uma função primordialmente instrumental pode influenciar a prática das empresas? Quais seriam as competências que o executivo deveria desenvolver para atingir a excelência do conhecimento. Ele deve primeiro valorizar a intuição: "Mais e mais corporações passaram a valorizar a intuição como uma ferramenta profissional - como demonstra a preocupação de medir o potencial de seu capital humano. Num recente levantamento feito pelo respeitado IMD (International Institute for Management Development), com sede na Suíça, 80% dos 1 312 executivos entrevistados em nove países avaliam que a intuição se tornou importante para formular a estratégia e o planejamento empresarial. A maioria (53%) diz que recorre à intuição e ao raciocínio lógico em igual proporção em seu dia-a-dia. É 199
DRUCKER, Peter, Comércio Eletrônico, O futuro já chegou, O maior pensador contemporâneo do mundo dos negócios desvenda a nova economia, Exame, 34 (710): 126, 22 de março 2000. 200 DRUCKER, Peter, Sociedade pós-capitalista, São Paulo, Ed. Pioneira Novos Umbrais 1994, pág. 33.
113 importante que haja esse equilíbrio. Sem o apoio de análises baseadas em fatos objetivos e dados quantitativos, a intuição freqüentemente conduz a decisões equivocadas nos negócios."201
O autor do artigo vai evidentemente querer entender o que é intuição. Para ele, é uma forma de captar informações sem recorrer aos métodos do raciocínio e da lógica e sem opor-se à razão. Ela apenas se situa fora de seus domínios. Segundo Blecher, depois de entrevistar dezenas de executivos para um estudo a respeito de liderança, os pesquisadores americanos James Kouzes e Barry Posner concluíram que a intuição resulta da mesclagem do conhecimento com a experiência. Mas vem a pergunta principal: por que valorizar tanto a intuição nos dias atuais? "Por que só agora a intuição está sob os holofotes? Porque, no campo da inovação, as empresas têm de buscar caminhos mais diretos, a exemplo do walkman. "Sem pesquisa alguma, esse pequeno produto mudou literalmente o hábito de ouvir música de milhões de pessoas", diz Morita. As pressões competitivas tendem a reduzir cada vez mais o ciclo de vida dos produtos. (...) Outro motivo para a valorização da intuição: os consumidores também vêm se tornando imprevisíveis."202 A intuição é vista como a faculdade que permitirá às empresas queimar as etapas para atender mais rapidamente o mercado e tomar quase instantaneamente as decisões estratégicas: " Existe outro fator poderoso que explica por que os executivos estão recorrendo cada vez mais à intuição. São as aceleradas mudanças econômicas e tecnológicas, que tornaram as questões demasiadamente complexas. Houve praticamente uma inversão de paradigmas. Considere que, até meados dos anos 80, a maior preocupação das empresas era escolher em que países ou setores deveriam alocar seus investimentos. Tais decisões podiam ser tomadas com base em dados quantitativos previsíveis e nos instrumentos analíticos aperfeiçoados desde o pósguerra.(...) Antes, essas decisões podiam ser maturadas. Agora, devem ser adotadas de forma quase instantânea. (...) Contar com a intuição tornou-se necessário agora não apenas para dirigentes e planejadores, mas para praticamente todos os escalões da empresa."203
201
BLECHER, Nelson, Eurêka, Por que a intuição (e quem sabe lidar com ela) é cada vez mais valorizada no mundo dos negócios, Exame, 31 (646): 23, 8 de agosto 1997. 202 ibid. p. 24-25 203 ibid. p. 25.
114 Quais são as competências que podem levar o executivo a atingir a excelência na intuição? "Ao analisar as transformações no mundo do trabalho nesta fase de pósreengenharia, o consultor americano Michael Hammer detectou a valorização emergente de três novos perfis profissionais. Primeiro: pessoas aptas para identificar tendências sem precedentes e com boa noção intuitiva para extrair tendências coerentes de dados conflitantes. Segundo: funcionários com capacidade para pensar além dos limites convencionais. Terceiro: pessoas eficazes em influenciar opiniões e atitudes e persuadir os colegas a se livrarem do familiar e abraçar o incerto. Antes eram favorecidos nas empresas os funcionários eficazes na execução de planos. Daqui para a frente, diz Hammer, a eficácia consistirá em formular as perguntas certas ou respondê-las."204
Saber identificar tendências sem precedentes: não só é preciso ser visionário mas também vidente; extrair tendências coerentes de dados conflitantes pode sugerir a possibilidade de forçar análises para influir sobre determinados cenários. O mais importante: saber influenciar opiniões e atitudes para que os colegas possam entrar no mundo da fé cega abraçando o incerto. A intuição está sendo posta a serviço do projeto corporativo de inserção da empresa no mundo globalizado. Isto nunca pode ser questionado: a intuição tem simplesmente um papel instrumental para adequar as pessoas a um projeto já desenhado e escolhido, qualquer que seja o custo pessoal para cada um. Comparando com o modelo grego, afigura-se uma busca mais parecida com a dos sofistas com a diferença de que o desenvolvimento da intuição substitui o desenvolvimento de uma razão mais crítica. A intuição não basta. É preciso desenvolver a genialidade. “A genialidade que será relevante para o sucesso estará mais na sua postura pessoal do que em sua capacidade de inventar um produto, fazer uma descoberta científica ou Ter um lampejo de inspiração em um momento mágico. Você será considerado genial se souber criar condições favoráveis para que a genialidade se manifeste nas outras pessoas - não só no seu trabalho, mas também na família e na comunidade onde vive. No mundo corporativo do futuro, ser genial será arquitetar e implantar formas de organização capazes de permitir que produtos sejam inventados, descobertas científicas sejam feitas e repentes criativos sejam
204
ibid. 26.
115 transformados em vantagem competitiva. Em poucas palavras, ser genial será saber estimular a genialidade dos outros.”205
O autor continua mostrando que os executivos enfrentarão um desafio muito importante: a gestão da genialidade. Esse é um termo mais apropriado que "gestão do conhecimento", pois é a criatividade que transforma conhecimento em resultado prático. De novo voltamos ao ponto: a excelência do conhecimento se mede pelos resultados que ele permite alcançar. Quem for capaz de estimular esta qualidade nos outros será bem sucedido. 5.3. EXCELÊNCIA E MOTIVAÇÃO Tivemos oportunidade de ver na revista Exame que não basta trabalhar para atingir a perfeição ou a excelência: é preciso trabalhar com paixão206, o que parecia paradoxal. Não existe porém outra saída no contexto competitivo que estamos analisando: a injunção: “é preciso trabalhar” não basta para obter a qualidade de dedicação necessária à empresa207. É preciso substituí-la pelo desejo de sucesso e transformar a obrigação de trabalhar no prazer de jogar e ganhar. A metáfora do jogo está presente em matéria analisada longamente no capítulo segundo. Assim o trabalho vira objeto de desejo: o executivo nele encontra seu prazer e o divide com aqueles que aceitam entrar nesse jogo, estabelecendo um laço afetivo com a empresa. Isto não é possível para quem trabalha só por dinheiro: “Certamente um grande número de executivos trabalharia muito mais de 12 horas por dia se pudesse, pois suas motivações não se limitam ao conforto financeiro”, diz Antonio Rosa Neto, diretor da Dainet, uma consultoria na área de multimídia e comunicação. “As grandes realizações acabam sendo o objetivo maior e, claro, exigem mais do profissional.”208
Assim, é melhor não fixar objetivos e produzir a motivação, fazendo com que o executivo entre numa espiral que o levará a produzir bem mais do que se tentasse simplesmente cumprir objetivos preestabelecidos. O trabalho passa 205
SOUZA, César, Você é mesmo genial?, Exame 33 (693): 82, 28 de julho 1999. BERNARDI, Maria Amália, Você vai dar certo ?, Exame, 29 (618): 65, 11 de setembro 1996 207 Seguimos a análise de AUBERT, GAULEJAC op. cit., p. 89s. 208 BERNARDI, Maria Amália, Manter a pilha acesa, eis a questão!, Exame, 26 (568): 104, 12 de outubro 1994. 206
116 então a ser organizado muito mais a partir das capacidades e das competências do executivo do que de metas concretas. Reforços positivos são dados em resposta aos esforços consentidos para que o indivíduo persevere; não se trata tanto de ressaltar o sentimento de participação em algo que possa enobrecer a empresa, a sociedade ou os seres humanos envolvidos no projeto, como vimos nas propostas de perfeição analisadas anteriormente, mas sim, os exemplos de executivos bem sucedidos que conquistaram mais poder. “Basicamente, há motivação quando o cenário é muito parecido com o seguinte: a empresa está indo bem, é respeitada no mercado e motivo de orgulho para os funcionários: (...) as pessoas são constantemente desafiadas a fazer mais e melhor e participam ativamente das mudanças; o ambiente (...) propicia espaço para que cada pessoa possa desenvolver todo o seu potencial. (...) A motivação vai muito além do dinheiro.”209 Depois de mostrar que o dinheiro tem sua importância no processo de motivação, a autora da matéria continua: “Um papel fundamental, quando se fala em motivação, é exercido por traços individuais de personalidade e, entre eles, o entusiasmo pessoal é decisivo. Francisco dos Santos, gerente de marketing da Antártica, está na empresa há 24 anos. Seu entusiasmo é o mesmo de quando entrou? Não. É maior, segundo ele. “Sou movido a desafios”, afirma. Sua tática para conseguir que as pessoas dêem o máximo de si é conhecer a fundo a personalidade de cada um e aplicar a técnica que funciona.”210
Esta é a excelência: ser movido a desafios e conseguir achar as táticas adequadas para estimular os subordinados a serem desafiados. Isto significa mais pressão, porque uma parada brusca da estimulação, em caso de perda de rendimento no trabalho, significa menos prazer e um sentimento negativo em relação a si mesmo: para reencontrar o prazer, fruto da recompensa de um bom desempenho, e para escapar a uma baixa da auto-estima, o executivo procurará imediatamente melhorar seu rendimento, porque está condenado a Ter sucesso! O prazer e a afetividade não estão ausentes do processo: assim, segundo uma outra executiva citada na mesma matéria:
209
BERNARDI, Maria Amália, Uma questão que vai além do dinheiro, Exame, 27 (584): 119, 24 de maio 1995. 210 ibid. p. 120.
117 “Para Déia, outro forte fator de motivação são as relações de amizade no trabalho: “A Antarctica é uma casa de afetividade e receptividade. Nesse pouco tempo aqui consegui fazer grandes amigos”. Diz ela.”211 Portanto, este jogo, no qual tudo é permitido desde que se aceitem suas regras, oferece a partilha do prazer de ganhar e muito se parece com uma competição esportiva. As sanções são reservadas àqueles que se recusam a jogar, que se situam fora do quadro ou que desviam as regras do jogo para outros objetivos. A recusa de entrar na competição é considerada como dissidência ou heresia e deve ser sancionada imediatamente, sem recurso possível. Do paraíso vai-se para o inferno e entra-se no conflito permanente, pois quem renunciou à luta, ao jogo, ao desejo de ganhar é perdido para a organização, mesmo que ganhe uma sobrevida institucional, sendo transferido para uma área improdutiva até que ele mesmo resolva excluir-se do sistema. Essas regras do jogo devem ser assimiladas para permitir a adesão ao sistema, cuja pressão fará com que o executivo entre no processo dinâmico de mobilização total de suas energias. Como isto é concretamente possível? Existem dispositivos explícitos que a empresa usa para chegar a este fim212. A formação interna, onde são transmitidos os princípios fundadores, os valores principais da organização e os elementos da cultura da empresa e sugeridos os comportamentos esperados. Os sistemas formais de avaliação refletem uma exigência qualitativa, além da aferição quantitativa dos resultados: reforçam, assim, a exigência de superação permanente decorrente do princípio de excelência. As recompensas monetárias ou a participação acionária permitem integrar cada vez mais os objetivos pessoais do executivo com os objetivos da organização: é a teoria do ganha-ganha. A Exame traz um exemplo disto: “Importante também, em termos de motivação, é estabelecer um compromisso entre os funcionários e o futuro da empresa. No Citibank, uma das fórmulas encontradas foi a venda de ações do banco.(...) Isto não quer dizer, apenas, que as pessoas que trabalham acreditam na empresa. Quer dizer também, que elas vão lutar para aumentar a
211 212
ibid. p. 121. GAULEJAC, op. cit., p. 127s.
118 rentabilidade do banco. “É a típica situação em que há só vencedores.” Afirma Herbert Steinberg, diretor corporativo de RH no banco.”213
Os sinais de reconhecimento não financeiros reforçam também essa busca da excelência: segundo Peters, os pesquisadores que estudam o fenômeno da motivação chegaram à conclusão que seu fator principal está no fato de as pessoas perceberem que estão agindo certo, mesmo não tendo o respaldo de um fator objetivo de avaliação214! Existem também dispositivos implícitos: a lógica do “sempre mais” deve fazer com que o executivo consiga entender as exigências implícitas, o não dito. Isso também gera angústia para quem acha que nunca fez o suficiente215. Mas mesmo para quem sempre esteve no jogo, motivado e dedicado, existe o fim: “O problema para os executivos é que as empresas não querem mais saber deles. Nos seus últimos anos de casa os futuros aposentados deixam de ser contemplados com treinamento ou reajustes de salários. E mudar de emprego nessa fase, nem pensar. Primeiro porque o executivo pode estar jogando fora o plano de aposentadoria. Segundo, porque não há muitas vagas para quem chega a essa idade. "A partir dos 50 anos só há colocações para quem disputa altos cargos", diz o headhunter Juraci de Andrade, sócio do escritório de São Paulo da americana Ward Howell. A Du Pont tenta minimizar o problema ao permitir que seus executivos usem parte de seu tempo numa atividade paralela nos anos anteriores à aposentadoria.”216 Um elemento suplementar de análise é oferecido por Richard Sennett217 que, analisando a deriva do sonho americano devido à precariedade das carreiras, ela mesma conseqüência da flexibilidade e da mobilidade das condições de empregabilidade no novo capitalismo onde não existe longo prazo, mostra como os executivos desenvolvem a estranha capacidade de assumir responsabilidades por fatos que transcendem totalmente seu controle: por exemplo, assumir a liderança de processos de mudança, cujas causas e
213
BERNARDI, Maria Amália, Uma questão que vai além do dinheiro, Exame, 27 (584): 121, 24 de maio 1995. 214 PETERS, Tom, Vencendo a crise, p. 67. 215 AUBERT, GAULEJAC, op. cit. p. 128. Esta ansiedade e esta inquietude estão amplamente confirmadas em conversas informais com os meus alunos que cursam o MBA. 216 GOMES, Maria Tereza, A difícil hora de parar, Exame 30 (615): 60, 31 de julho 1996. 217 SENNETT, Richard, A corrosão do caráter, conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo, Rio de Janeiro, Editora Record, São Paulo, 1999.
119 conseqüências estão fora da sua alçada. A essência de sua perfeição ética estaria na sua força de vontade para assumir as conseqüências de fatos que não provocaram, sem nunca reclamar e carregando uma culpa que não existe. É o contrario do mau chefe, assim retratado pela Exame: “Identificar o mau chefe é sempre uma prioridade. No ambiente competitivo que impera atualmente dentro de todas as empresas, aqui e em qualquer lugar do mundo, que organização pode se dar ao luxo de Ter em cargos de chefia pessoas que estão mais preocupadas consigo mesmas? Que nada fazem para incentivar a integração e o trabalho em equipe? Que não são capazes de colocar os interesses da equipe acima dos seus próprios?(...) É urgente, pois, identificar o mau chefe. Neste exato momento ele pode, além de tudo, estar impedindo que ocorram mudanças na sua empresa. Alguém conhece maneira mais eficaz de ficar para trás?”218
A autora da matéria enumera, a seguir, as “qualidades” do mau chefe: centralizador, de difícil acesso, gerador de trabalho, inútil, simulador de atividades, pequeno tirano, desmotivador, não investe no desenvolvimento das pessoas, burocrático, não acompanha mudanças, não cumpre o papel de conselheiro, apresenta defeitos de atitude. Parece o contrário do que se espera numa empresa moderna. Existe, contudo, uma contradição. Segundo Sennett, por causa das superficialidades da sociedade atual, a moderna ética do trabalho concentra-se no trabalho em equipe onde os grupos tendem a manter-se juntos, ficando na superfície das coisas: a ênfase na flexibilidade e na abertura à mudança não privilegia traços de caráter como previsibilidade e confiabilidade. Surge então a ficção de que trabalhadores e chefes não são antagonistas: em vez de chefe, existiria um líder que administraria o trabalho dos seus funcionários. Coordenando o processo de realização das tarefas do grupo, coloca-se numa posição tal que, não poucas vezes, deixa que o ônus das tarefas recaía sobre os ombros dos membros da equipe, evitando assim chamar para si a responsabilidade. Portanto, ele, de fato, exerce um poder mas exime-se de arcar com o ônus da autoridade. Fugindo do figurino autoritário, consegue
218
BERNARDI, Maria Amália, Identifique o mau chefe, Exame 29 (612): 128, 19 de junho 1996.
120 escapar de ser responsabilizado pelos seus atos. O discurso do trabalho em equipe, por seu foco no momento imediato e por sua fuga à resistência e ao confronto torna-se útil no exercício da dominação. Assim, o líder que declara que todos são vítimas da época e das mudanças necessárias dominou a arte de exercer o poder sem ser responsabilizado. E Sennett conclui: "Em lugar do homem motivado, surge o homem irônico. Ricardo Rorty escreve, sobre a ironia, que é um estado de espírito em que as pessoas jamais "são exatamente capazes de se levar a sério, porque sempre sabem que os termos em que se descrevem estão sujeitos a mudança" (...) Uma visão irônica de si mesmo é a conseqüência lógica de viver no tempo flexível, sem padrões de autoridade e responsabilidade. (...) Tampouco a ironia estimula as pessoas a contestar o poder."219 Existe, evidentemente, o outro lado da moeda. Segundo David C. Korten220, muitos executivos enfrentam conflitos crescentes entre seus valores pessoais e aquilo que suas funções na corporação lhes exigem. É uma afirmação extraordinária a de que os profissionais mais privilegiados e mais bem pagos do mundo necessitem de bônus de milhões de dólares para sentirem-se motivados a fazer seu trabalho. Na realidade, segundo ele, devem receber tais somas para se Ter certeza de que colocarão os interesses de curto prazo dos acionistas acima de todos os outros interesses que poderiam sentirse tentados a levar em conta – como os dos funcionários, da comunidade e até da viabilidade da própria corporação a longo prazo. É uma outra visão da mudança permanente para fugir do caos! "Os gerentes que haviam sido treinados para construir agora são pagos para destruir. Eles não contratam; eles demitem. Não gostam de suas novas funções, mas a maioria chegou a compreender que isso não vai mudar. Essa conscientização torna diferente a rotina: o trabalho não mais revigora; ele esgota. Nessas circunstâncias parece até imoral considerar o trabalho prazeroso. Assim eles se tornam mal humorados e cautelosos, temendo ser varridos para longe na próxima onda de demissões. Entretanto, eles trabalham mais arduamente e por mais tempo para compensar a labuta daqueles que partiram. A fadiga e o ressentimento começam a acumular-se.”221
219
SENNETT, op. cit., p. 138. KORTEN, David C.: Quando as corporações regem o mundo, Editora Futura 1996. 221 "Os chefes exaustos", em Fortune 24 julho 1994, citado por Korten. 220
121 Ao contrário dos especuladores financeiros que transferem bilhões de dólares por todo o mundo usando terminais de computadores alheios à realidade humana, os gerentes de companhias que produzem coisas reais lidam diariamente com seres humanos. Cabe a eles responder à exigência de maior "eficiência" dos que gerenciam o dinheiro, impondo a
seus
antigos
amigos e colegas uma experiência quase tão devastadora quanto a perda de um ente querido. O jovem profissional é insistentemente aconselhado a planejar o curso da carreira sem vínculos com
sua empresa, a elaborar seu
currículo e seus contatos externos de forma a estar pronto a mudar-se quando surgir uma nova oportunidade ou quando a empresa o abandonar. Conselho para os jovens em início de carreira: trate cada emprego como se você fosse autônomo. Numa economia que mede o desempenho em termos de criação de dinheiro, as pessoas tornam-se a principal fonte de ineficiência – e a economia está livrando-se delas mais que depressa. Quando as instituições monetárias governam o mundo, talvez seja inevitável que os interesses do dinheiro tenham prioridade sobre os interesses das pessoas. O que estamos experimentando poderia ser descrito satisfatoriamente como um caso do dinheiro colonizando a vida. Aceitar esta distorção absurda das instituições e dos objetivos humanos deveria ser considerado nada menos do que uma ato coletivo e suicida de insanidade. Entretanto, não é um fenômeno inteiramente novo: poderíamos entender melhor sua natureza e suas conseqüências considerando as dimensões religiosas embutidas no modelo. 6. CONCLUSÃO
Poderíamos retomar as perguntas que Passmore fazia depois de Ter analisado numa primeira aproximação o conceito de perfeição222. Existe alguma tarefa na qual cada homem e todo homem poderia aperfeiçoar-se tecnicamente? Existem tarefas pelas quais o ser humano pode aperfeiçoar-se moralmente: os gregos recomendam o exercício da virtude, da nobreza de caráter e da compaixão para com os derrotados. Os cristãos recomendam a compaixão em qualquer circunstância. Os modernos
222
Ver acima p. 75.
122 recomendam a busca do conhecimento que oferece o caminho para produzir e comercializar os bens que ajudarão o ser humano a satisfazer-se e encontrar ao menos o contentamento se não puder atingir a felicidade. Para os executivos, a perfeição, ou excelência, técnica consiste na capacidade de colocar seu conhecimento, principalmente sua intuição e sua criatividade, a serviço dos objetivos de sua organização: nisto repousa sua genialidade. Será o homem capaz de subordinar-se totalmente a Deus? Será ele capaz de atingir seu fim natural? Para os gregos parece difícil subordinar-se a deuses ao mesmo tempo tão caprichosos, tão amigos e tão cruéis! Embora não exista outra possibilidade, porque esses deuses são poderosos
e
vingativos, o ser humano nobre sabe preservar sua individualidade e sua dignidade. Os discípulos do Cristo acreditam que a subordinação total a Deus é a consequência direta da acolhida e da partilha do Dom da misericórdia. E para os modernos, esta questão não existe: Deus existe mas não tem mais nenhuma preocupação com este mundo, que pertence ao ser humano para ser por ele administrado racionalmente. Quanto ao executivo, seu horizonte está restrito a este mundo, e o valor fundamental é o crescimento profissional. Portanto, está submetido a si mesmo e a tudo que pode fazer sua carreira avançar. O resto, vida familiar, participação social, tem grande importância, mas subordinada. Será ele capaz de ser inteiramente livre de qualquer defeito moral? Pode ele mesmo fazer de si um ser metafisicamente perfeito, harmonioso e que consiga viver segundo um ideal de ser humano perfeito, à semelhança de Deus? Para os gregos, a impossibilidade de ser considerado pelos deuses livre de qualquer defeito dá ao mesmo tempo à vida humana sua dimensão nobre e trágica. Os discípulos de Cristo não acreditam na possibilidade de uma total ausência de defeito moral: seria tornar inútil a obra redentora de Cristo. O caminho da perfeição reside na prática do amor que perdoa e se compadece. Para os modernos, esta questão parece irrelevante: o ser humano não precisa ser perfeito. Ele precisa construir um mundo perfeito e a ciência dá-lhe os meios para tanto. O executivo considera defeito ético tudo que pode quebrar as regras do jogo empresarial.
123 Voltando à pergunta que fizemos no início deste capítulo, parece-nos que, pelas qualidades que o discurso da Exame atribui ao executivo: sábio, intuitivo, visionário, vidente, motivado, entusiasta, genial, totalmente mobilizado, competitivo, a Revista lhe outorga uma perfeição para além de um desempenho puramente técnico e o coloca num patamar de excelência universal, metafísico, quase mítico! Cabe, então, uma última pergunta: o discurso da Revista revelaria categorias religiosas por detrás da excelência existencial apregoada neste capítulo? É o que nos propomos indagar no próximo capítulo.
124
CAPÍTULO 4
DO LOGOS TÉCNICO AO LOGOS RELIGIOSO: CATEGORIAS RELIGIOSAS NO DISCURSO DA EXCELÊNCIA Em cada um dos três modelos de perfeição analisados e comparados ao modelo de perfeição do executivo no capítulo anterior, pudemos constatar a existência de interrogações sobre o relacionamento do ser humano com os deuses ou com Deus. No caso dos gregos, é uma relação ambígua, que evolui da sensação de proximidade e de medo, por causa da ação imprevisível e pouco criteriosa das divindades, para uma crítica mais racional, embora o discurso mítico nunca se ausente totalmente da reflexão filosófica. No Evangelho, Deus é proposto por Jesus como modelo da perfeição humana mediante a imitação de sua compaixão, amor e misericórdia. Os modernos preferem voltar toda sua atenção para o ser humano e sua capacidade de fazer progredir este mundo pelo desenvolvimento da ciência, da técnica e do comércio, embora reconhecendo o papel de Deus na sua criação e no seu ordenamento. Olhando para o executivo retratado pela revista Exame, nossa primeira impressão é de que o discurso religioso está ausente, porque as preocupações são com a construção de uma sociedade totalmente voltada para a realização de objetivos terrenos e comerciais. Todavia, a conotação absoluta dada a esse ideal e a intensidade da confiança no projeto de sociedade apresentado e da lealdade exigida à empresa fazem lembrar o fervor de um discurso religioso. A proposta deste capítulo é tentar discernir possíveis dimensões religiosas por trás do discurso técnico proposto ao homem managerial. Em caso afirmativo, cabe analisar a índole dessas categorias religiosas. 1. A EXCELÊNCIA: O REINO DE DEUS NA EMPRESA223 Até agora, percebemos que a dimensão técnica é insuficiente para explicar a abrangência da transformação do conceito de perfeição em conceito de excelência no ambiente empresarial. Dos executivos exige-se muito mais do
223
Este é o título do capítulo terceiro do livro de AUBERT, Nicole, DE GAULEJAC, Vincent, Le coût de l'excellence, Paris, Éditions du Seuil, 1991. Tomamos a liberdade de usá-lo porque é extremamente sugestivo e apropriado para a reflexão que emprendemos.
125 que cumprir bem suas tarefas e suas responsabilidades: espera-se uma nova visão do mundo e atitudes que permeiam toda sua vida pessoal, familiar, além de sua vida profissional. Um ideal existencial proposto com uma tal intensidade e fervor evoca uma pregação religiosa. Em retratando um discurso que tangencia as fronteiras do campo religioso, mesmo que não de modo explícito, cabe, a princípio, indagar a possível existência de mitos por trás do “logos” técnico.
1.1. LOGOS TÉCNICO OU MITO? Nesta altura de nossa reflexão, já sabemos que estamos entrando num novo mundo: o da eficiência, da velocidade com que novos produtos são propostos a consumidores cada vez mais exigentes, mas, sobretudo, mundo da competição exacerbada tanto entre as empresas quanto entre os executivos. Estamos vivendo novos tempos, que representam uma ruptura em relação ao passado: nunca mais as coisas serão iguais: “Tudo isso mudou. A Guerra Fria acabou há dez anos. E com ela, em grande medida, a necessidade do welfare state — pelo menos como um elemento de competição das sociedades de economia livre em sua disputa com a ideologia comunista. Decisões de ordem política tiveram de passar pelo crivo da matemática econômica. Gastos sociais aritmeticamente insustentáveis, que tornavam deficitários os orçamentos nacionais, pressionavam os juros e encrencavam em grande medida a vida das gerações futuras, tiveram de ser revistos. Numa palavra: os antigos privilégios perderam, em larga escala, a razão e a possibilidade de ser. As regras mudaram. O mundo de hoje é rasgadamente distinto daquele forjado 50 anos atrás. O padrão de vida dourado do trabalhador médio americano está perdendo um pouco do brilho que tinha. Em contrapartida, trabalhadores abaixo da linha do Equador e em vários rincões da Ásia têm, como talvez nunca antes na História, a possibilidade de prosperar, de ascender a um nível de vida digno, mais integrado ao resto do planeta. E isso só pode significar uma coisa: os anos 90 e o fenômeno da globalização iniciaram um processo de horizontalização e de racionalização das relações econômicas — entre países e governos, entre empresas e colaboradores, entre ricos e pobres. Só não enxerga isso quem, de um lado, está munido de viseiras dogmáticas, ou quem, de outro, está mordido por Ter de ceder um pouco do muito que tinha”224. Este mundo é novo porque as decisões políticas passam pelo crivo da matemática econômica: é o fim dos antigos privilégios que prejudicavam as
126 gerações futuras e o início de um processo de horizontalização e de racionalização das relações econômicas entre países e governos, entre empresas e colaboradores e entre ricos e pobres. Pelo tom da matéria, essas horizontalização e racionalização parecem algo bom, que propiciará maior acesso à prosperidade e, portanto, igualdade social! Nunca, na História, estivemos em condições tão favoráveis: estamos vivendo um novo começo. Quem não enxerga isso é dogmático ou profundamente egoísta: não tem visão. O que pensar desse discurso? O autor narra: não raciocina nem prova o que afirma. Ele exorta os leitores a enxergarem um novo momento da História que está em gestação conduzida, pela racionalidade econômica. Segundo Mircea Eliade, “...o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser.”225 Percebemos uma primeira analogia com o discurso religioso. A realidade nova que surge é uma sociedade que se torna nova pelo aparecimento de novo equilíbrio de relações, pela reorganização do espaço, globalizado, e do tempo, que é percebido como mais veloz. Essas transformações são revolucionárias porque afetam o modo de fazer negócios e, portanto, exigem transformações das pessoas que conduzem a atividade econômica: "O mundo está passando por transformações revolucionárias que vão mudar para sempre o modo pelo qual muitas empresas operam. Pessoas, produtos e empresas que não estiverem antenados nessas transformações vão ficar obsoletos em pouco tempo. Não podemos falar seriamente sobre transformar organizações sem primeiro falar seriamente sobre transformar a nós mesmos, individualmente.(...) Se você fizer de você mesmo a exceção, esqueça a transformação -- ela não vai acontecer. A transformação tem início no momento em que você se compromete a mudar."226 Por que é tão importante que alguém se decida a mudar para conduzir o processo de mudança da empresa? Eliade fornece uma pista: 224
SILVA, Adriano, Que virtude há em ser pobre? Exame, 34 (709): 105, 8 de março 2000. ELIADE, Mircea, Mito e realidade, São Paulo, Editora Perspectiva, 1989, p.11. 226 COVEY, Stephen R., As dez chaves para uma era de mudanças O.k., sua empresa precisa se mexer. Passo a passo, como envolver as pessoas nesse processo, Exame, 30 (609): 64, 8 de maio 96. 225
127 “Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos “primórdios”. Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a “sobrenaturalidade”) de suas obras.”227 No albor de um novo mundo, precisamos ser introduzidos por pessoas que aceitaram a missão de conduzir o processo de transformação; a mão invisível do mercado precisa ser ajudada pela mão visível do gerenciamento228. Esta mão visível pertence a pessoas de carne e ossos, algumas delas marcantes e citadas como modelos: sua história é contada num estilo que apresenta, talvez, algumas analogias com os heróis presentes nos primórdios de uma nova criação: “O executivo Luís Mário Bilenki tinha uma vida confortável na Fotoptica, maior rede de lojas de cine-foto-som do país, onde era um dos gerentes gerais. Sob seu comando, estavam as setenta lojas da empresa, espalhadas entre São Paulo e Rio de Janeiro. Um dia, o telefone tocou e do outro lado estava um dos consultores da Korn/Ferry. A proposta: instalar e comandar a Blockbuster, maior rede de videolocadoras do mundo, no Brasil. A bandeira está sendo trazida para o país pelo grupo Moreira Salles, leia-se Unibanco. Foram meses e meses de negociação, tensos e delicados. “Perdi muitas noites de sono”, diz Bilenki. Só no dia 1º de setembro assumiu o posto. Seu pacote de remuneração, salários mais benefícios, foi pouca coisa superior ao da Fotoptica. Mas Bilenki levou, de cara, uma pequena participação acionária no negócio: menos de 5%. Mais: de acordo com os resultados da empresa, essa fatia pode crescer, além de levar uma boa participação nos lucros. “Quando isso se concretizar, terei feito um excelente negócio”, diz ele. É uma aposta de longo prazo. O lucro deve aparecer só daqui a três anos. Até lá, Bilenki terá de trabalhar, e muito. O Unibanco quer fincar a bandeira Blockbuster em 250 locais nos próximos sete anos. Uma média de uma loja a cada dez dias. Bilenki partiu do zero. Ele foi o primeiro funcionário da empresa no Brasil. Tudo está em suas mãos, da contratação dos funcionários à escolha do escritório central, da identificação dos locais das primeiras lojas ao desenvolvimento do sistema de franquias. (...) Bilenki parece ser o homem certo para os planos acelerados do Unibanco. Aos 38 anos, agitado, falante, Bilenki tem trabalhado 12 horas por dia, afora os finais de semana. Sua agitação originou até uma piada entre os amigos. Eles 227
ELIADE, Mircea, Mito e realidade, São Paulo, Editora Perspectiva, 1989, p.11. Cf. o texto já citado no capítulo segundo: “Condições históricas, políticas e econômicas exercem, é claro, papel preponderante nos rumos de uma empreitada. São a mão invisível do mercado, pedra fundamental da ideologia liberal. Mas há também enorme fatia de responsabilidade repousando na definição das estratégias, na tomada de decisões, na condução das ações. Isto é, na mão visível do mercado: o gerenciamento." SILVA, Adriano, Faça a guerra, não o amor, Em vez de se queixarem dos competidores estrangeiros, os empresários brasileiros precisam reagir - e ganhar mercados, Exame 30 (633):41, 9 de abril 1997
228
128 dizem que Bilenki nem sequer pode esperar um filho de cada vez. Na primeira gravidez de sua mulher, nasceram trigêmeos. Anos depois, veio o quarto filho. Nos negócios, determinação semelhante à de Bilenki é uma das marcas.”229 Falta dividir o texto em capítulos e versículos! É o relato de uma criação entregue pelo princípio criador, o grupo de investidores, nas mãos de um herói. Este recebe um chamado para deixar uma vida confortável mas com horizonte pequeno para cumprir uma obra que tem as dimensões do mundo. É claro que a resposta a tal vocação é uma luta interior, tensa e delicada: mas afinal, o herói atende nossas expectativas e aceita a missão. É um ato de fé: no curto prazo terá pouco acréscimo de remuneração, não auferindo vantagens imediatas; em compensação, a pequena participação acionária deve crescer e a porcentagem de lucro também: se souber criar o futuro da empresa, terá feito um excelente negócio porque seu futuro está agora estreitamente ligado ao futuro da organização: não será um funcionário, mas um sócio, assim como ensina Peter Drucker230! Até o número de anos previsto pelo Unibanco para a expansão do negócio traz lembranças: sete! Nosso herói é o herói primordial: é o primeiro e tudo está em suas mãos para criar do nada uma empresa vencedora! Mas é o homem certo, predestinado pelas suas qualidades naturais e por circunstâncias familiares: pai de trigêmeos! É uma lenda, viva, de nosso mundo! Este exemplo é particularmente bem adaptado à nossa indagação e está longe de ser o único! É só folhear qualquer número da revista que outras lendas vivas vão cruzar nosso caminho, todas elas devidamente e bem fotografadas231! Não podemos, contudo, esquecer o que diz Eliade a respeito dos seres que povoam os mitos:
229
CASTANHEIRA, Joaquim, Procuram-se executivos loucamente, Exame, 26 (571): 95, 23 de novembro 1994. Os grifos são nossos. 230 Lembramos a matéria já citada no capítulo terceiro: “Para isso, será preciso transformá-los de subordinados em colegas executivos. De empregados, por mais bem pagos que possam ser, em sócios.” DRUCKER, Peter, Comércio Eletrônico, O futuro já chegou, O maior pensador contemporâneo do mundo dos negócios desvenda a nova economia, Exame, 34 (710): 126, 22 de março 2000. 231 Lembremos o exemplo de disponibilidade do herói que virou presidente da Coca Cola: BERNARDI, Maria Amália, Você vai dar certo ?, Exame, 30 (618): 72, 11 de setembro 1996. Temos matérias escritas em estilo semelhante sobre a superintendente da Globo, o presidente do grupo Accor, o presidente do grupo Valeo etc. etc.
129 “Embora os protagonistas dos mitos sejam geralmente Deuses e Entes Sobrenaturais, enquanto os dos contos são heróis ou animais miraculosos, todos esses personagens têm uma característica em comum: eles não pertencem ao mundo quotidiano.”232 Sem dúvida, esse não é o caso dos heróis que povoam as matérias da Revista Exame: são todos devidamente presentes neste mundo e atuando no horizonte finito da economia globalizada. Como entender a carga mítica presente na linguagem da matéria analisada, representativa de tantas outras? Notamos uma semelhança entre o mito e o executivo que participa de atos criadores: estamos vivendo um momento de grande transformação onde pessoas de talento fazem a diferença porque conseguem criar empresas novas e novos negócios a partir de um contexto caótico. Podemos, porém, enriquecer nossa análise. Ao estudar a evolução das idéias religiosas, Ernst Cassirer retoma a teoria desenvolvida na obra Os Nomes Divinos de Hermann Usener233. Segundo essa teoria, na formação do conceito dos deuses, poderiam ser distinguidas três fases principais de desenvolvimento. A primeira seria da criação de “deuses momentâneos”, que não personificam qualquer força da Natureza nem representam nenhum aspecto especial da vida humana e, menos ainda, fixam-se em uma imagem mítico-religiosa estável; trata-se de uma experiência momentânea, com características de excitação instantânea e de um conteúdo mental fugaz. Neste sentido, cada impressão ou cada desejo experimentados, bem como cada esperança ou cada perigo podem afetar o ser humano religiosamente: “Quando à sensação momentânea do objeto colocado à nossa frente, à situação em que nos encontramos, à ação dinâmica que nos surpreende, é outorgado o valor e o acento da deidade, então esse “deus momentâneo” é experenciado e criado. Ele se ergue diante de nós com sua imediata singularidade e particularidade, não como parte de uma força suscetível de se manifestar aqui e acolá, em diferentes lugares do espaço, em diferentes pontos do tempo e em diferentes sujeitos, de maneira multiforme e no entanto homogênea, mas sim, como algo que só existe presentemente aqui e agora, num momento indivisível do vivenciar de um único sujeito, a quem inunda com esta sua presença e induz em encantamento(...) Por causa desta vivacidade e excitabilidade do 232
ELIADE, Mircea, Mito e realidade, São Paulo, Editora Perspectiva, 1989, p.15. CASSIRER, Ernst, Linguagem e Mito, São Paulo, Editora Perspectiva, 1992, capitulo segundo, p. 33s.
233
130 sentimento religioso, qualquer conceito, qualquer objeto que por um instante dominasse todos os pensamentos, podia ser exaltado, independentemente da hierarquia divina: Inteligência, Razão, Riqueza, Casualidade, o Instante Decisivo, Vinho, a Alegria do Festim, o Corpo de um Ser Amado... Tudo o que nos vem repentinamente como envio do céu, tudo o que nos alegra, entristece ou esmaga, parece um ser divino para o sentimento intensificado.”234 Se qualquer objeto que, por um instante, domina o nosso pensamento parece um ser divino para o sentimento intensificado, o que dizer de um objeto que é apresentado continuamente como o único a ser desejado: o crescimento profissional associado ao prazer do jogo competitivo! Cassirer prossegue mostrando que, à medida que avança o desenvolvimento espiritual e cultural, a atitude passiva do homem diante do mundo externo transforma-se em atitude ativa e ele intervém com um querer próprio a fim de moldar esse mundo segundo suas necessidades e desejos. O eu só, pode trazer à consciência seu atuar de agente projetando-o para fora e colocando-o diante de si em firme configuração visível: cada direção particular desta atuação humana gera seu correspondente deus particular que Usener chama de “deus especial”. Esses “deuses especiais” representariam um ponto de passagem necessário para a consciência religiosa chegar a seu objetivo último e supremo: os “deuses pessoais”. Segundo Cassirer, Usener chegou a essa teoria pela investigação das formas lingüísticas nas quais se sedimentam as diversas representações religiosas, tentando retroceder até o ponto em que ambos – o deus e o seu nome – brotaram primeiramente na consciência. Isto pode servir de encorajamento para examinar com mais atenção a linguagem usada pela Revista e perceber que não é por mero acaso que os jornalistas acabam usando determinadas expressões sem Ter obrigatoriamente consciência do alcance de suas palavras. Se quisermos tentar uma analogia com alguma das etapas da evolução das idéias religiosas propostas por Hermann Usener, a impressão dominante é que a imagem religiosa, que aflora nas matérias da revista, aproxima-se mais do primeiro estágio, dos “deuses momentâneos”, pelo aspecto da sacralização de determinados conceitos como, por exemplo, da competitividade ou os citados numa matéria mencionada no capítulo segundo que vale a pena ler de novo: 234
CASSIRER, op. cit. p. 34.
131 "Empregabilidade é a maneira mais clara de enxergar as três áreas de êxito de uma organização: produtividade, relações e qualidade. Também é uma palavra nova. A empregabilidade pode ser comparada a outras formas de "ade", "ança" ou "ia" Da mesma forma que a palavra cidadania define aquilo que é preciso para ser um bom cidadão e liderança o que é preciso para ser um bom líder, a empregabilidade define o que é preciso para ser um bom funcionário.”235 Estas palavras que, no início, representam caminhos de melhoria da eficiência organizacional, em determinados momentos passam a dominar o pensamento da organização de tal modo que adquirem vida própria. São momentâneos, porque as modas se sucedem, dependendo basicamente das prioridades estabelecidas pela direção das empresas: clientes ou acionistas. Hoje, os acionistas impõem a prioridade da necessidade de agregar valor: esta necessidade vira um chavão, que acaba por Ter vida própria e obceca os discursos empresariais em todos os níveis. Continuando a releitura da matéria citada, talvez possa se fazer uma analogia com a Segunda etapa da evolução das idéias religiosas apresentada por Usener. "O conceito de empregabilidade expressa o que é preciso para a pessoa ser um bom funcionário ou um bom membro de uma equipe. (...) A meu ver, a empregabilidade é composta por três elementos básicos: responsabilidade, lealdade e iniciativa. Esses três conceitos globais são característicos da atitude e do comportamento das pessoas que são boas funcionárias."236 Os três elementos básicos sugeridos pelo autor, que apresentam uma correspondência com as três áreas de êxito citadas antes, são atitudes concretas sugeridas para que a organização consiga alcançar determinados objetivos. Com o passar do tempo, porém, acabam adquirindo vida própria e se transformando
em
fórmulas
encantatórias
que
povoam
os
discursos
empresariais. Permanecem destinadas a causar efeitos limitados e concretos no desempenho das organizações mas não deixam de adquirir uma certa personalização, sendo apregoadas e celebradas como se tivessem uma certa
235
MÖLLER, Claus, A santíssima trindade que leva ao sucesso, Responsabilidade, lealdade e iniciativa. Eis os elementos fundamentais que formam o conceito de empregabilidade. Sua carreira depende disso, Exame, 30 (623): 102,.20 de novembro 1996. O consultor dinamarquês Claus Möller é dono da Time Manager International, uma das maiores empresas de administração e treinamento de pessoal do mundo. 236 MÖLLER, Claus, op. cit, p. 102.
132 universalidade, lembrando assim analogicamente a definição dos “deuses especiais” sugerida por Usener. 1.2. HORIZONTE EMPRESARIAL: EXISTEM DIMENSÕES RELIGIOSAS? Danièle Hervieu-Léger, socióloga da religião, abre outros caminhos para o entendimento do fenômeno religioso, ajudando nossa tentativa de responder à pergunta: o ideal proposto pela Exame teria conotações religiosas? Segundo ela, o religioso é uma dimensão transversal do fenômeno humano, que trabalha de um modo ativo ou latente, explícito ou implícito, toda a espessura da realidade social, cultural e psicológica, segundo modalidades próprias para cada uma das civilizações. Uma "religião" é, nesta perspectiva, um dispositivo ideológico, prático e simbólico, pelo qual é constituído, mantido, desenvolvido e controlado o sentido individual e coletivo da pertença a uma linhagem crente particular237. Segundo Hervieu-Léger, por muito tempo incerta quanto ao seu objeto dentro de uma modernidade definitivamente a-religiosa, a sociologia das religiões descobria que a modernidade secular, governada em princípio pela razão científica e técnica, era também uma nebulosa de crenças238. Contrariamente ao ponto de vista mais freqüente, que identifica as crenças religiosas à referência a um poder sobrenatural, a uma transcendência ou a uma experiência, que ultrapassa as fronteiras do entendimento humano, esta aproximação da religião como dispositivo ideológico e simbólico não privilegia nenhum conteúdo especial do crer. Parte da hipótese de que qualquer crença pode ser objeto de uma formalização religiosa desde que encontre sua legitimidade na invocação da autoridade de uma tradição e que tal formalização constituiria, de modo próprio, a religião239. E nenhuma sociedade, mesmo inscrita no imediatismo que caracteriza a modernidade mais avançada, pode, para existir como tal, renunciar totalmente a preservar um fio mínimo da continuidade inscrito, de um modo ou de outro, na referência à "memória autorizada" constituída por uma tradição240. A secularização das sociedades 237
HERVIEU-LÉGER, Danièle, La religion en mouvement, le pélerin et le converti, Paris, Flammarion, 1999, p. 19. 238 HERVIEU-LÉGER, Danièle, La religion en mouvement, le pélerin et le converti, Paris, Flammarion, 1999 p.12. 239 Ibid p. 23. 240 Ibid p. 24.
133 modernas não se restringe ao processo de exclusão social e cultural da religião: combina, de um modo complexo, a perda de poder dos grandes sistemas religiosos sobre uma sociedade que reivindica sua plena capacidade de orientar seu próprio destino, com a recomposição, sob uma nova forma, das representações religiosas que permitem que esta sociedade pense a si mesma como autônoma. Logo, Hervieu-Léger enuncia quatro proposições: 1. Proclamando que a história humana pertence aos homens que a constróem e afirmando que o mundo dos homens é um mundo a ser apenas construído por eles, a modernidade rompeu radicalmente com todas as representações de um desígnio divino que se realiza inelutavelmente na História. 2. Contudo, o modo como a modernidade religiosa pensa a história permanece dependente da visão religiosa de que ela se separou para conquistar a própria autonomia. Nas sociedades modernas, por muito tempo, se pensou a história "secular" segundo o modelo da chegada do Reino: colocou-se no horizonte de progresso científico e técnico cada vez maior a recapitulação total da história humana e a realização total das potencialidades humanas, no campo material, na esfera do conhecimento e, mesmo, no campo moral. 3. Os valores que fundam a modernidade: a razão, o conhecimento e o progresso, permanecem. Tiram sua capacidade de mobilização do fato de que não se pode lhes atribuir limites. A realização só pode ser, do ponto de vista da modernidade, um horizonte nunca alcançado. As sociedades modernas vivem num estado permanente de antecipação, tanto no campo da ciência no qual toda nova descoberta levanta uma nova problemática que leva a um novo esforço de conhecimento quanto no campo da economia, em que o aumento da quantidade de bens produzidos e dos meios de produção faz continuamente surgir novas necessidades. A dinâmica "utópica" da modernidade situa-se inteira nessa valorização da inovação, ela mesma ligada a um estado permanente de nãosaciedade. É o "imperativo da mudança241". A modernidade retoma o 241
GAUCHET, Marcel, Le Désanchantement du monde. Une histoire politique de la religion, Paris, Gallimard, 1985.
134 sonho da realização, próprio da utopia religiosa, projetando e prometendo um mundo de abundância e de paz finalmente realizadas sob diversas formas seculares. 4. Essa lógica de antecipação cria, no coração de uma cultura moderna dominada pela racionalidade científica e técnica, um espaço sempre renovado para as produções imaginárias, que essa racionalidade decompõe
em
permanência.
Esta
tensão
"crente"
de
uma
modernidade prisioneira entre a ambição de uma racionalização do mundo como ele é e a aspiração a um futuro sempre novo pode ser dita na linguagem secular do progresso e do desenvolvimento. Contudo a dinâmica de seu avanço implica que ela suscita constantemente sua própria crise, esta sensação de vazio social e cultural produzido pela mudança e vivida como uma ameaça pelos indivíduos e pelos grupos. É importante sublinhar que, no livro citado, Danièle Hervieu-Léger está interessada em mostrar que a religião, longe de desaparecer, ocupa nas nossas sociedades, um lugar particular e importante, muito diferente, porém, do lugar que ela ocupava nas gerações precedentes. Pesquisando a vida religiosa na França, principalmente a partir de eventos que reuniram multidões, em particular as Jornadas Mundiais da Juventude em 1997, em Paris, e partindo da constatação da intensificação do fenômeno das peregrinações, ela aponta uma mudança muito significativa: a figura do praticante foi substituída pelas figuras do peregrino e do convertido. Ante dessas constatações, a autora tenta responder a uma pergunta especificamente francesa: qual é o papel da laïcité defendida pelo Estado nesse novo contexto religioso242? As proposições por ela enunciadas podem trazer outros elementos para enriquecer nossa reflexão. “O modelo brasileiro de relações de trabalho está em crise porque se tornou um entrave à competitividade das empresas, ao emprego e ao desenvolvimento do país. Faz parte do Brasil que ficou para trás. É um país que desconhece mudanças como globalização, competitividade mundial, flexibilidade, desenvolvimento tecnológico. São avanços inexoráveis, que leis não podem deter. O mundo cada vez mais se volta para o conceito de trabalho. Aqui ainda falamos em emprego com 242
HERVIEU-LÉGER, Danièle, La religion en mouvement, le pélerin et le converti, Paris, Flammarion, 1999, contracapa do livro.
135 horários, salário, espaço e responsabilidades imutáveis. "O principal problema da Justiça do Trabalho está fora dela", diz Pastore. "Está numa legislação concebida há mais de 50 anos e que já se transformou numa barreira à competitividade das empresas brasileiras." (...) Preste atenção na seguinte afirmação: "As empresas usam menos trabalhadores porque o governo torna o emprego muito caro. Se você força uma empresa a pagar por um empregado mais do que ele vale, ela não vai contratar." Quem diz isso é o americano Milton Friedman, 86 anos, talvez a maior lenda viva da economia mundial. A tese de Friedman se encaixa com perfeição ao que vem acontecendo no Brasil.”243
Este trecho apresenta uma ilustração interessante das proposições enunciadas por Hervieu-Léger. Estamos claramente num tempo e num ambiente seculares sem qualquer referência a valores religiosos definidos, porém, por sua dinâmica utópica da valorização da inovação e de não saciedade, um tempo criador da angústia de ser privado da realização da utopia. Claudia Vassalo ilustra a tensão existente de um lado, entre a racionalidade e a aspiração a um futuro melhor e, de outro lado, a sensação de que este futuro está ameaçado porque muita gente continua olhando para trás e não acredita nesse progresso inexorável que, afinal, não poderá ser detido. No meio de toda esta modernidade secular, projetada para o futuro, existe outro elemento que caracteriza, segundo Hervieu-Léger, a experiência religiosa: a referência a uma "memória autorizada" constituída por uma tradição. Neste caso, a autoridade reconhecida é Milton Friedman, lenda viva de...86 anos de idade. Eis que a modernidade precisa dos alicerces da sabedoria comprovada por uma idade respeitável! 1.3. O SAGRADO E O PROFANO A terceira abordagem do fenômeno religioso que despontaria do ideal de perfeição do executivo, é a oposição entre sagrado e profano. A primeira vista, parece que o mundo empresarial é um mundo puramente profano, longe de qualquer dimensão sagrada. Mircea Eliade diz-nos, porém, que o homem secularizado e a-religioso pode ser muito mais alimentado pelo sagrado do que ele pensa: 243
VASSALO, Claudia, Chega, os absurdos e os escândalos do modelo trabalhista Brasileiro, Exame, 32 (688): 107, 111, 19 de maio 1999.
136 “...o homem a-religioso das sociedades modernas é ainda alimentado e ajudado pela atividade de seu inconsciente, sem que por isso alcance uma experiência e uma visão do mundo propriamente religiosa. O inconsciente oferece-lhe soluções para as dificuldades de sua própria existência e, neste sentido, desempenha o papel da religião, pois, antes de tornar uma experiência criadora de valores, a religião assegura-lhe a integridade. De certo ponto de vista, quase se poderia dizer que, entre os modernos que se proclamam a-religiosos, a religião e a mitologia estão “ocultas” nas trevas de seu inconsciente – o que significa também que as possibilidades de reintegrar uma experiência religiosa da vida jazem, nesses seres, muito profundamente neles próprios. De uma perspectiva cristã, poder-se-ia dizer igualmente que a não-religião equivale a uma nova “queda” do homem: o homem a-religioso teria perdido a capacidade de viver conscientemente a religião e, portanto, de compreendê-la e assumi-la; mas, no mais profundo de seu ser, ele guarda ainda a recordação dela, da mesma maneira que, depois da primeira “queda”, e embora espiritualmente cego, seu antecessor passado, o Homem primordial, conservou inteligência suficiente para lhe permitir reencontrar os traços de Deus visíveis no Mundo. Depois da primeira “queda”, a religiosidade caiu ao nível da consciência dilacerada; depois da Segunda, caiu ainda mais profundamente, no mais fundo do inconsciente: foi “esquecida”.”244 Mas, o que significam os conceitos de sagrado e de profano? Mircea Eliade pode oferecer algumas indicações de resposta quando analisa a importância do espaço sagrado e do tempo sagrado na experiência religiosa245. Segundo ele, o homem religioso desejava estar o mais perto possível do Centro do Mundo, na origem mesma da realidade absoluta, só podendo viver no cosmos percebido como um espaço aberto para o alto, que tornasse possível a comunicação com o mundo transcendente dos deuses. Todo ataque contra o cosmos ou a cidade que o simbolizava ameaçava ser uma regressão para o caos e toda vitória contra o atacante reiterava a vitória exemplar de Deus contra o dragão. E Eliade conclui: “Algo da concepção religiosa do mundo prolonga-se ainda no comportamento do homem profano, embora ele nem sempre tenha consciência dessa herança imemorial.”246
244
ELIADE, Mircea, O Sagrado e o Profane a essência das religiões, São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., 1996, pág. 173-174. 245 ELIADE, Mircea, O Sagrado e o Profane a essência das religiões, São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., 1996, capítulos 1 e 2. 246 Ibid. p. 48.
137 Tivemos a oportunidade de ver que a metáfora do caos está sendo usada na descrição do combate das empresas pela sobrevivência: esta expressão pode mostrar a abolição de uma ordem, de um espaço de negócios estruturado e previsível e a volta num estado fluido e amorfo de completa precariedade. “Medo. O voraz acirramento da competição instaurou uma síndrome nas corporações. Esse processo, iniciado com a ascensão dos Tigres Asiáticos, atinge agora temperatura máxima por conta da corrida tecnológica e da globalização. Dirigentes e acionistas convenceram-se de que não existem mais empresas invictas. O risco de colapso está no horizonte até dos mais capazes - é sempre uma hipótese a ser considerada. Vigora hoje uma versão pressurizada da lúgubre estatística segundo a qual dois terços das companhias que lideravam a lista das 500 maiores empresas da Fortune em 1970 desapareceram. Hoje a questão é formulada de outra maneira: quantas das atuais líderes sobreviverão ao ano 2000? Quantas serão tragadas por produtos e estratégias de seus concorrentes?”247
Este jogo é terrível mesmo: trata-se de luta pela sobrevivência. As estatísticas lúgubres dizem que poucos sobrevivem e o medo impera. A metáfora do caos deixou lugar à do colapso. Neste horizonte imanente onde paira a ameaça para as organizações de ser tragadas pela concorrência, a transcendência só parece presente no esforço do homem managerial de achar caminhos para superar tal situação: quem o ajudará? Os gurus da administração que proliferam: “Nesse ambiente, os executivos são atingidos por uma reação em cadeia. "Eles têm medo do futuro e sabem que não vão mais conseguir sobreviver se não incorporarem novas maneiras de pensar", afirma Michael Porter, o guru do planejamento estratégico de Harvard. É compreensível. Houve nesta década a reengenharia e sua inseparável companheira, os programas de downsizing, que fulminaram milhares de empregos. Acabou o casamento para toda a vida com a empresa, assim como a seqüência tradicional das etapas de ascensão profissional. Também os cargos foram redesenhados e a própria função de gerenciar equipes passou a exigir novas habilidades. Muitos estão confusos sobre como lidar com subordinados - sobretudo os que agora são por eles avaliados. Tudo isso gera incertezas e ansiedade. "Com uma máquina bilionária de marketing de um lado e um bando de consumidores paranóicos de outro, não chega a surpreender que suas idéias sejam consumidas tão avidamente, sem 247
BLECHER, Nelson, Nestes tempos de competição feroz, os gurus da administração proliferam. Como distinguir os que prestam dos que não prestam. Exame, 31 (636): 83; 21 de maio 1997.
138 uma seleção prévia", afirmam John Micklethwait e Adrian Wooldrige, os autores de The Witch Doctors.”248
Os gurus são ao mesmo tempo os salvadores e os aproveitadores da angústia executiva. Seu grau de eficácia vai ser avaliado pela sua capacidade de vender seus serviços a partir de um uso intensivo de técnicas de marketing. O sagrado anda de mãos dadas com o profano. Em relação ao Tempo Sagrado, Eliade mostra que é indefinidamente recuperável e repetível, mantém-se sempre igual a si mesmo, não muda nem se esgota: o homem religioso esforça-se para entrar nesta dimensão que pode ser, de um certo modo, equiparada à eternidade. Em compensação, o homem não-religioso faz a experiência do tempo predominantemente monótono do trabalho entrecortado de momentos festivos de lazer: não apresenta ruptura nem mistério porque, embora tenha começo e fim, trata-se de uma experiência somente humana, sem aparente manifestação de uma presença divina249. Eliade mostra também que todos os rituais e simbolismos de passagem exprimem que, uma vez nascido, o homem ainda não está acabado e deve nascer uma Segunda vez espiritualmente, passando de um estágio imperfeito, embrionário, a um estado perfeito de adulto. A existência humana chega à plenitude ao longo de uma série de iniciações sucessivas expressas pelas imagens de ponte ou de porta estreita, sugerindo a idéia de passagem perigosa, que abundam nos rituais e nas mitologias iniciáticas e funerárias. Logo, todo o caminho do homem religioso é passível de ser transfigurado em valores religiosos, porque pode simbolizar “o caminho da vida” e uma peregrinação para o centro do mundo. O homem a-religioso assume uma nova situação existencial em que se reconhece como único agente da história e rejeita todo apelo à transcendência. Contudo, ele carrega toda uma mitologia camuflada e numerosos ritualismos tanto na sua vida pessoal ( festas familiares, instalação numa nova casa) como na sua vida profissional (convenções empresariais, símbolos representando o novo lugar e o novo status na organização 248 249
Ibid. Ibid. p. 64-65.
139 após uma promoção): precisa passar por um novo batismo250. Na Exame, Covey explica como poderíamos entender esse novo batismo e o processo de conversão que ele desencadeia: “Enterre o velho. Freqüentemente é necessário haver um "batismo" -- um enterro simbólico do corpo antigo para assumir um novo corpo, nome, posição, lugar, linguagem e espírito. Isso simboliza não apenas a rejeição do que é velho, mas o fato de que você está construindo com base no velho e avançando em direção ao novo. Já vi isso ser realizado de maneira muito bem-sucedida quando as pessoas se reúnem e enterram as práticas antigas e toda a carga de culpa associada a elas. O processo se transforma num momento de transição. Em seu livro Passagens, Gail Sheeley escreve: "Como a lagosta, nós também precisamos nos libertar de uma estrutura protetora a cada passagem de uma etapa do crescimento para outra. Isso nos deixa expostos e vulneráveis, mas também nos devolve a condição de embrião, que possibilita o crescimento e nos capacita a nos esticar de maneiras antes desconhecidas"."251
A transformação, descrita nos moldes de uma conversão religiosa, começa com a consciência da necessidade de mudar. Depois, as pessoas têm de decidir por si qual impacto as transformações exercerão sobre elas e sua esfera de influência e devem construir um senso de segurança interior. Cabe ao executivo abraçar o novo caminho, não como mais uma aventura, mas sim, como acesso a uma vida nova por meio de um rito de passagem, aliás, de um novo nascimento porque somos devolvidos à condição de embrião. O articulista continua seu pensamento, sempre usando palavras com forte conotação religiosa: "O fator-chave é o propósito transcendental. Hoje em dia vivemos tão soterrados debaixo de interesses particulares e especiais que não compartilhamos um propósito transcendental.(...) Os líderes efetivos "transformam" pessoas e organizações. Promovem transformações em suas mentes e seus corações, ampliam sua visão e sua compreensão, esclarecem as metas, tornam os comportamentos congruentes com as
250
Pode ser uma nova sala, uma cadeira de tamanho diferente, a mudança para um novo andar além de um novo padrão de carro fornecido pela empresa ou um título de clube, sem falar de uma assistência médica diferenciada e, ainda em algumas empresas, um restaurante diferente. Mas mesmo quando o restaurante é único, não é raro ver uma copeira trazer o filé mignon especial na mesa do presidente.... 251 COVEY, Stephen R., As dez chaves para uma era de mudanças O.k., sua empresa precisa se mexer. Passo a passo, como envolver as pessoas nesse processo, Exame, 30 (609): 66, 8 de maio 96.
140 crenças, os princípios e os valores e implementam transformações permanentes, que se autoperpetuam e cujo ímpeto é cada vez maior"252
As palavras chaves são : transcendental, mente, crença, coração e soterrados! Precisamos passar por um processo que qualquer religião chamaria de purificação: nesse caso, trata-se de expandir a inteligência para ver e entender melhor e o coração, para Ter mais ímpeto e, portanto, mais paixão e compromisso. O horizonte não é a terra prometida, mas a mudança permanente. A linguagem usada sugere uma outra dimensão, mesmo que não num mundo diferente do nosso: a palavra transcendental pressupõe, pelo menos, uma intensidade de energia diferente no compromisso assumido. Cassirer escreve: “...a existência das coisas e a atividade dos homens parecem inseridas, de algum modo, em um “campo de forças” mítico, em uma atmosfera de atuação que penetra em tudo e que pode parecer concentrada em alguns objetos extraordinários, tirados do reino do comum, ou em pessoas isoladas, providas de um Dom especial para mandar, tais como guerreiros que se sobressaem, caciques, feiticeiros ou sacerdotes.”253
Este campo de forças parece Ter sido percebido no ambiente executivo: segundo a revista Exame, há um elemento menos técnico que pode fazer a diferença no momento de decidir o futuro profissional de um executivo: o carisma! “Trata-se de algo impalpável, difícil de definir, mas fácil de reconhecer quando se está diante de alguém que tenha. Alguns a chamam de charme, outros de magnetismo pessoal ou liderança nata. A palavra: carisma. O currículo de administração de empresas não a inclui. Tampouco os manuais trazem a receita para adquirir carisma. No entanto, Ter mais ou menos carisma pode ser crucial nestes tempos em que a segurança dos empregos evaporou e a carreira depende exclusivamente da sua capacidade em desenvolver os atributos que o tornam empregável.”254
252
ibid. p. 64. CASSIRER, op. cit., p. 82. 254 MENDES, Maria Luiza, Você tem carisma? Exame, 29 (610), 22 de maio 1996. 253
141 Não é possível definir nem aprender. Não está em nenhum currículo e é crucial nestes tempos de precariedade. A autora da matéria oferece algumas indicações do que pode ser esse carisma e como ele poderia ser alcançado: “Entre os atributos dos líderes carismáticos que seduzem seus subordinados está a integridade, aquela impressão de que o líder acredita incondicionalmente nos valores que apregoa. É o primeiro passo para merecer crédito. O carismático age de acordo com o que fala.”255
O carismático tem fé, prega valores: estamos obviamente falando de valores seculares e empresariais: o recurso à metáfora da fé a ser pregada como diferencial para a empregabilidade não deixa de revelar que o sagrado acaba sempre escondido no profano, como nos alertava Eliade. Tratando-se porém de uma fé secular, embora incondicional, não se pode pedir tal Dom rezando! Resta o discipulado: de novo, a solução é achar um mestre ou um guru que ensine o caminho das pedras: “Aprender carisma com quem o possui é como Ter Pelé como professor de futebol ou Ter aulas de cinema com Spielberg. Você pode não chegar a craque, mas pode melhorar sua performance, o que é indiscutivelmente vantagem nestes tempos de competitividade renhida.”256
Tudo se mistura de novo: performance, carisma, tudo em prol de melhorar o próprio desempenho nesses tempos de competitividade. Samba de uma nota só! A importância dada à astrologia em algumas empresas para os processos de seleção, a denominação de guru257 atribuída àqueles que propõem receitas alternativas de desempenho mediante um maior auto-conhecimento e desenvolvimento da energia vital mostram o quanto o ethos produtivista da economia neo-liberal parece casar com alguns princípios da Nova Era. Segundo Lívia Barbosa258, esta corrente enfatiza o auto-desenvolvimento como responsabilidade de cada um de nós e identifica a causa dos resultados individuais 255
em
mecanismos
exclusivamente
ibid. ibid. 257 Lair Ribeiro, Roberto Shiniashiki e outros... 256
interiores
aos
indivíduos,
142 desvinculando-os de quaisquer determinantes sociais, culturais e políticas. A relação entre indivíduo e sociedade se inverte: para obter os resultados desejados, o executivo deve sintonizar o mundo exterior com o seu eu interior; nessa lógica, o indivíduo surge como o único responsável pelo seu destino, seu sucesso e seu fracasso, o que apresenta relações bem estreitas com o conceito de empregabilidade analisado na Exame259. Aubert e Gaulejac não hesitam em atribuir a um pensamento mágico esse recurso a algumas práticas que tangenciam práticas religiosas260. Segundo eles, em paralelo ao culto dos indicadores, da racionalidade matemática e da quantificação desenvolve-se uma apologia do irracional, que tem algumas características interessantes: os heróis são aqueles que experimentam, não os que refletem: daí a importância dada ao fazer, à provação, ao pragmatismo e à ação; recorre-se a práticas alternativas para produzir sentido, astrologia e tarô por exemplo e, numa dimensão mais científica, numerologia ou programação neurolinguística e grafologia; são encorajados o pensamento positivo e a busca por técnicas de mobilização energética. Diante da complexidade do mundo moderno, os gurus empresariais propõem o reencontro com a simplicidade na meditação e na iniciação a algumas técnicas espirituais ou espiritualistas. O objetivo é reencontrar um sentido para um mundo dominado pela lógica materialista e produtivista: pela descoberta dos próprios limites e de outras fontes de energia é que o executivo poderá encontrar os recursos que lhe permitirão levar sua equipe à vitória. É próprio do pensamento mágico postular uma dimensão espiritual, inacessível ao homem comum, que dá as chaves de interpretação do mundo. Neste contexto, os temas da força e do poder aparecem constantemente: é preciso ir além de si mesmo, concentrar as próprias energias e dominar as próprias fraquezas para encontrar a energia presente no íntimo. Aí reside o perigo de um esgotamento depressivo, porque no universo executivo o ideal vislumbrado nessas experiências alternativas apresenta-se com exigências cada vez mais fortes e sem o recurso a um Deus que viria a proteger o eu fraco 258
BARBOSA, Livia, Igualdade e meritocracia, a ética do desempenho nas sociedades modernas, Rio de Janeiro, Editora Fundação Getulio Vargas, 1999, p. 27s. 259 Nosso capítulo segundo, p. 40, 50. 260 AUBERT, Nicole, DE GAULEJAC, Vincent, Le coût de l'excellence, Paris, Éditions du Seuil, 1991, p. 95s.
143 pelo perdão e a misericórdia. Neste universo, a fraqueza é mal vista e a busca pelo poder não tem limite261. As referências de apoio para esta busca da força e do poder não estão nem na cultura grega, nem no judeo-cristianismo, nem na filosofia do progresso que tivemos oportunidade de analisar no terceiro capítulo. Nos movimentos de extrema direita europeus, é comum querer a volta “à natureza das coisas”, rompendo com qualquer idéia de revolução progressista e de internacionalismo. Segundo esta linha de pensamento o cristianismo e as diferentes ideologias de defesa dos direitos humanos, embora tenham se enfrentado em alguns momentos, possuem um denominador comum: o ser humano tem valor em si e não pelo que realiza, sendo este valor o fundamento da igualdade262. Contra o cristianismo e as ideologias de defesa dos direitos humanos, trata-se de justificar as desigualdades entre as pessoas como reflexos das desigualdades entre os deuses presentes no politeísmo, desigualdades igualmente presentes entre os povos ou nações que têm sua história e seu gênio particulares: nada de universal pode reverter isto e não é difícil prever as possíveis conseqüências de tal posição para a convivência entre as nações, já que a comum pertença a uma mesma humanidade não deve ser considerada como valor normativo da convivência humana. Essa desigualdade
de
tratamento
dos
seres
humanos
pelos
deuses
já
escandalizava, a partir de Homero, a cultura grega: contra ela reagiam os heróis gregos enfrentando a morte com dignidade263. Na economia globalizada, esse discurso poderia ser transferido das nações para as organizações empresariais, que lutam entre si e que vencem pela força de sua cultura e de seus heróis, independentemente das conseqüências possíveis para uma entidade abstrata que seria a sociedade humana. O ser humano vale pelo que ele consegue realizar aqui e agora: não existe horizonte mais longínquo e o futuro está na derrota do inimigo presente, inclusive por uma razão de sobrevivência econômica, que passa a ser o parâmetro da sobrevivência humana. Neste combate tão árduo, por que não reencontrar as energias primitivas, que permitirão contrabalançar o estresse? 261 262
AUBERT, GAULEJAC, op. cit., p. 99. DE HERTE, Robert, “L’Église, l’Europe et le sacré”, em Pour une renaissance culturelle,
Copernic, 1979. Este autor, citado em SIMON, Hippolyte, Vers une France païenne?, Paris, Éditions Cana, 1999, p. 147-148, é um dos ideólogos do Front National, partido da extrema direita francesa.
263
Ver nosso capítulo terceiro.
144 “A saída encontrada por Galan para contrabalançar o estresse foi fugir para seu sítio em Itatiba nos fins de semana, na companhia da mulher. Ali ele se entrega, de corpo e alma, à natureza e a um hobby que vai acabar lhe rendendo uma reserva florestal particular: plantar árvores. Galan já plantou mais de 400 árvores, brasileiras e estrangeiras, todas catalogadas em seu notebook. “Pegar lenha no mato, pôr a mão na terra, encostar numa árvore e observar a água corrente – todo esse contato com as forças primordiais da natureza me reabastece de forma plena”, afirma.”264 A família, a água corrente e a árvore: quanta energia que acaba inclusive, no fim, rendendo uma reserva particular de árvores catalogadas no inseparável notebook! Formidável! 2. UM LOGOS RELIGIOSO FETICHISTA E ALIENANTE? Parece que estamos, de verdade, num discurso religioso, com todas as ressalvas que fizemos. Não se trata de uma religião constituída e institucional, mas de uma experiência religiosa difusa, que aflora principalmente na linguagem,
embora,
muito
provavelmente,
quem
escreve
não
tenha
consciência clara do fato. Sabemos, por outro lado que, desde a modernidade, a experiência religiosa tem sido muito contestada, considerando principalmente por ser considerada como um fator de alienação para o ser humano. Estariam presentes as categorias de fetichismo e alienação no discurso da revista Exame? 2.1. FETICHISMO O conceito de fetichismo é considerado por Franz Hinkelammert como o elemento central do pensamento marxista, principalmente no que diz respeito à crítica da religião265. Este conceito nos ajudará a qualificar melhor os aspectos religiosos do modelo proposto aos executivos, que temos analisado: vale a pena tentar resumi-lo. Os autores da introdução do livro citado266 distinguem entre as instituições materiais que organizam a sociedade moderna e o espírito dessas instituições. É a partir desta distinção que a teoria do fetichismo analisa a 264
BERNARDI, Maria Amália, Manter a pilha acesa, eis a questão!, Exame, 26 (568): 105, 21 de outubro 1994. 265 HINKELAMMERT, Franz J. A, As armas ideológicas da morte, São Paulo, Edições Paulinas, 1983, cap.1 p. 25. 266 HINKELAMMERT, Franz J. A, As armas ideológicas da morte, São Paulo, Edições Paulinas, 1983, Introdução de RICHARD, Pablo e VIDALES, Raúl, p. 5s.
145 espiritualidade institucionalizada da sociedade moderna, ou seja o espírito com que essas instituições são percebidas e vividas: “Ora o fetiche como espírito das instituições não surge do nada mas existe ligado a determinada organização social. Existe uma determinada coordenação do nexo corporal entre os homens, onde as relações sociais entre eles aparecem como relações materiais, isto é, como regras naturais e necessárias; pelo contrário, a relação material entre as coisas é vivida como uma relação social entre seres vivos. Os homens se transformam em coisas, e as coisas em sujeitos animados. Já não é o homem o sujeito que decide, mas são as mercadorias, o dinheiro, o capital, que, transformados em sujeitos sociais, decidem sobre a vida e sobre a morte de todos os homens. Os objetos adquirem vida e subjetividade, que é a vida e a subjetividade dos homens projetada nos objetos.(...) Portanto, o espírito de vida ou morte numa sociedade não pode ser analisado como um problema subjetivo ou casual, ligado à boa ou má vontade das pessoas; pelo contrário, é o problema de uma determinada espiritualidade institucionalizada numa determinada organização material da relação entre os homens.”267
Esta teoria do fetichismo não analisa instituições (como a escola, a empresa etc.) mas sim as relações mercantis e as realidades que elas ocultam: ”Portanto, o interesse direto da teoria do fetichismo é responder à pergunta: como está organizada e coordenada a divisão social do trabalho e que papel desempenham, dentro dessa organização e coordenação, as instituições?(...) Todavia, à teoria do fetichismo não interessa a análise de qualquer sistema de divisão social do trabalho, mas precisamente aquela que tende a ocultar, a tornar invisível o efeito da divisão do trabalho sobre a vida e a morte dos homens, a saber: a forma de relações mercantis. Com efeito são as relações mercantis que fazem aparecer como se fossem duas coisas totalmente independentes e desconexas, de um lado, as relações entre os homens e, de outro, os efeitos da divisão do trabalho sobre sua vida. Mais ainda, ao contrário de outras instituições, no caso das relações mercantis dá-se uma invisibilidade específica: a de seus resultados sobre a vida dos homens. (...) A teoria do fetichismo projeta-se sobre as formas de “ver”, de “experimentar”, de “viver” as relações mercantis. Nesta análise, descobrese que, uma vez desenvolvidas as relações mercantis, as se mercadorias transformam em mercadorias sujeitos. Ou seja, adquirem as qualidades de “pessoas”; adquirem “vida”. Mas se o homem não toma consciência do fato de que essa aparente vida das mercadorias não é mais do que sua própria vida projetada nelas, chega a perder o livre exercício de sua liberdade, e, no final, sua própria vida. Pois bem, aqui chegamos ao ponto
267
Ibid. p. 7 e 8.
146 chave: o elo entre a vida real e o mundo religioso é, precisamente, a mercadoria vista como “pessoa” .”268 A personificação das mercadorias, que se inter-relacionam, leva à criação de outro mundo cuja essência é produzir, na fantasia religiosa, as relações sociais, que as mercadorias realizam no mundo mercantil. Esse mundo “politeísta” das mercadorias passará a ser um mundo monoteísta, à medida que o homem tomar consciência de que, sob o conjunto de mercadorias e de seus movimentos, está subjacente um princípio unificador: o trabalho coletivo da sociedade, mediado pelo dinheiro e pelo capital. A religião vem a ser uma forma de consciência social que corresponde a uma situação em que os homens delegaram a decisão sobre sua vida ou morte a um mecanismo mercantil por cujo resultado deixam de ser responsáveis. É a partir das relações mercantis que se começa a interpretar o próprio destino dos homens, sendo a própria produção que predetermina o limite dos possíveis conteúdos das vontades. Nesse contexto, surge um paradoxo: o dinheiro, que qualitativamente aparece como um poder infinito, volta à sua finitude quando avaliado quantitativamente porque toda soma efetiva de dinheiro é limitada. Quando o entesourador assume a dimensão infinita do dinheiro, este se torna um objeto de devoção e seu comportamento passa a aparentar uma relação de piedade em relação a esse bem. O passo seguinte é a aparição, no mundo das mercadorias, do grande sujeito-valor, o capital, que tem o poder de valorizar-se e multiplicar-se a si mesmo: absolutamente tudo depende dele e é o sujeito milagroso dessa religião. A procriação do valor pelo valor parece agora ser um poder inato, capaz de substituir a própria força de trabalho. Ao mesmo tempo, estando toda a dinâmica da criatividade e da potencialidade humanas na dinâmica do valor, o capital chama para si a tarefa de atender os mais altos sonhos da humanidade, investindo no processo tecnológico: a realização desses sonhos pode ficar para um futuro infinitamente distante, mas possível! Prosseguindo sua análise a partir dos conceitos expostos, o autor analisa a “metafísica do empresário”269. Tanto a publicidade como as obras dos
268
Ibid. p. 9 e 10. O grifo é do próprio autor. HINKELAMMERT, Franz J. A, As armas ideológicas da morte, São Paulo, Edições Paulinas, 1983, cap.2, D, p. 150s. 269
147 teóricos de mercado apresentam o mundo das mercadorias, do dinheiro e do capital como um grande objeto de devoção que está acima dos homens e lhes dita suas leis. Assim, na matéria já citada, “procuram-se executivos, loucamente”270, fica claro que foi o mercado quem desencadeou a correria atrás dos executivos: “Nunca, desde o milagre econômico na década de 70, a temperatura de mercado esteve tão alta. (...) A ebulição do mercado de trabalho para executivos de primeira linha pode parecer estranha, a primeira vista. (...) Os sintomas de aquecimento do mercado são vários e vêm de todos os lados. (...) Esta explosão do mercado significa expectativa de desenvolvimento da economia. (...) Concorrência acirrada, competitividade, consumidores exigentes: as empresas precisam ser coladas no mercado. (...) (falando de um executivo) Seu primeiro cargo de direção foi conquistado mal tendo entrado na casa dos 30. Muito cedo, não? Pois o mercado não pensa assim.” O mercado é um ser vivo que entra em ebulição , faz suas exigências, tem sua linha de pensamento e exige uma adesão absoluta: é preciso estar colado nele. Essa adesão faz com que seus servos ou devotos passem a valorizar e sacralizar algumas virtudes para a dinâmica das próprias relações mercantis. E a virtude central é a humildade. “É fundamental, também, agir com ética e integridade tanto na maneira de trabalhar como na de se relacionar dentro e fora da empresa. Um comportamento ético e íntegro vai muito além de não desviar dinheiro alheio. Tem a ver com o caráter da pessoa (...). "Firmeza face à concorrência e humildade diante do mercado. Esta é a postura correta", afirma Firmin António, da Ticket.”271
A grande recompensa é o sucesso. Esta humildade porém não tem nada a ver com a mesma virtude na sua conotação cristã: consiste em aceitar ser, em vez de um homem individual e independente, uma personificação do capital. É a humildade que exige que o executivo se coloque totalmente a serviço da organização para poder “agregar valor”, a expressão ultimamente mais usada nas reuniões de negócios. Essa vontade de ser uma personalização do capital ou da organização e a renúncia a uma personalidade 270
CASTANHEIRA, Joaquim, Procuram-se executivos loucamente, Exame, 26 (571): 90-95, 23 de novembro 1994. 271 BERNARDI, Maria Amália, Você vai dar certo ?, Exame, 30 (618): 73, 11 de setembro 1996.
148 própria
significam
uma
aceitação
sem
revolta
de
qualquer
decisão
organizacional a favor dos investidores, mesmo que isso signifique o corte do próprio pescoço272. Assim fala F. A Hayek: “Não é somente uma parábola, se se denomina o sistema de preços como uma espécie de máquina para o registro de trocas, que torna possível a cada produtor...adaptar a sua atividade a trocas, das quais não precisa saber mais do que aquilo que se reflete no movimento dos preços. (...) Usei intencionalmente a palavra “milagre” para arrancar o leitor de sua apatia com a qual muitas vezes aceitamos a ação deste mecanismo como algo diário.(...) A razão não existe como singular, como algo dado à pessoa particular, que esteja à disposição, como o que parece supor o procedimento racional, mas é preciso entendê-la como um processo interpessoal, no qual a contribuição de cada um é controlada e corrigida por outros. (...) A orientação básica do verdadeiro individualismo consiste numa humildade frente aos procedimentos, através dos quais a humanidade conseguiu objetivos que não foram nem planejados nem entendidos por nenhum particular, e que na realidade são maiores do que a razão individual. A grande pergunta do momento é se se vai admitir que a razão humana continue crescendo como parte desse processo, ou se o espírito humano se deixará prender com correntes, que ele mesmo fabricou.”273
A razão do homem transforma-se assim, em nome do individualismo, numa razão coletiva – presença de um “milagre” – que chega a ter toda a aparência de um objeto de piedade. Hayek denomina “humildade” a atitude exigida frente a isso, e a interiorização desse valor se realiza por uma relação de piedade. Fazendo isso, seu individualismo se apresenta abertamente como uma delegação da individualidade num coletivo fora do homem – embora produto dele. Ao transformar o individualismo em “individualismo verdadeiro”, está transformando-o num coletivismo cego. Seria este o resultado final da grande descoberta da subjetividade feito pelo burguês que fundamentava seu contentamento no fato que as descobertas da ciência, colocada pela tecnologia a serviço do comércio, iriam redimir definitivamente a humanidade pela construção de um relacionamento comercial duradouro entre os homens?274 272
A esse respeito, não posso deixar de lembrar uma conversa com um executivo contando os cortes decididos e efetuados pelo presidente da empresa que acabava de chegar. Conclusão dele: coitado... do presidente que tinha que fazer os cortes! Nem uma palavra sobre os coitados que tinham sido cortados. 273 HAYEK, F. A., Individualismus und wirtshaftliche Ordnung, Zurich, Erlenbach, 1952 citado em HINKELAMMERT, op. cit. p.72. 274 capítulo 3, 4.3., p. 29.
149 Quem rejeitar esta humildade é condenado pelo seu orgulho. Assim fala K. Popper: “Como outros antes de mim, também cheguei à conclusão de que a idéia de um planejamento social utópico é um fogo-fátuo de grandes dimensões que nos atrai para o pântano. A híbris, que nos move a tentar realizar o céu na terra, seduz-nos a transformar a terra num inferno; um inferno como somente podem realizar alguns homens contra outros.”275
Quem aceita praticar esta humildade tem acesso à verdadeira liberdade, que consiste na submissão aos indicadores de mercado: tudo que quebra esta lógica é um atentado contra a liberdade e deve ser combatido. “Há uma equação que não fecha: nos países desenvolvidos, como se viu recentemente em Seattle, por ocasião de uma conferência da Organização Mundial do Comércio, as centrais sindicais vão para a rua bradar contra os investimentos que as suas empresas estão fazendo em economias emergentes. O resultado disso, raciocinam, é que trabalhadores americanos e europeus estão perdendo seus empregos para pares subnutridos e mal pagos na América Latina, na Ásia e no Leste Europeu. Do outro lado da cerca, nos países em desenvolvimento, os trabalhadores (ou quem imagina representá-los) deveriam, então, estar fazendo uma tremenda festa. Mas acontece o contrário. As centrais sindicais e os políticos que ganham a vida discursando em favor dos trabalhadores bradam em igual volume seu ressentimento contra os investimentos estrangeiros, contra a abertura dos mercados locais ao capital internacional, contra a chegada de empresas de fora — contra, enfim, a ampliação do comércio e de sua capacidade de criar riqueza. Assim fica difícil. A globalização, que está dinamizando como nunca os movimentos descritos acima, não pode ser ruim para eles e para nós ao mesmo tempo.”276 Fica difícil entender como alguém ousa opor-se a um dinamismo tão eficiente, que só quer restabelecer a igualdade e fazer a felicidade de todos. Todavia, falta compreensão para poder entender este milagre da felicidade global prometido e em curso de realização. Só pode ser ressentimento, e a razão desse ressentimento é nossa vocação para a escravidão:
275
POPPER, Karl, La miseria del historicismo, Prefacio à edição alemã, Tübingen, 1974 citado em HINKELAMMERT, op. cit. p. 73. 276 SILVA, Adriano, Que virtude há em ser pobre? Exame, 34 (709): 104, 8 de março 2000.
150 “Convivemos mal com a idéia de livre mercado, de liberdades — e deveres — individuais, de um Estado menor, de menos poder na mão do governo e de mais responsabilidades no colete do cidadão. Em suma: a globalização pressupõe, e estimula, a supremacia da visão liberal. E nós temos muita dificuldade de enxergar a vida por esse prisma. De fato, estamos na contramão: precisamos sentir a presença corpulenta de um aparato superior, de um sistema hierárquico forte, de um chefe sobre cujos ombros possamos jogar todas as nossas demandas e toda a culpa pelos nossos eventuais fracassos.”277
A adoração do fetiche do mercado e da competitividade que lhe dá dinamismo não deve ser confundido com nenhum outro valor: “Hoje as organizações mais avançadas consideram com seriedade os problemas familiares dos empregados e os tratam como questões estratégicas. Por benemerência? Hmmm. Por sentimentos humanitários? Hmmm. Por compaixão? Hmmm. Por que, então? "Vantagens competitivas", diz Alberto Golbert, diretor de RH da Hewlett-Packard do Brasil.”278
Pelo menos, o autor da matéria reconhece que não existe nisso nenhum sentimento humanitário nem de compaixão: a ironia do autor parece mostrar que não há espaço para esse tipo de preocupação quando está em jogo a sacrossanta competitividade. A finalidade reconhecida para a vida familiar e para o lazer é permitir que o executivo recarregue as energias, para voltar mais descansado para a luta do dia-a-dia. 2.2. ALIENAÇÃO OU REALIZAÇÃO? Temos visto que a organização empresarial é considerada por seus mais ardorosos defensores, entre os quais a revista Exame, como um lugar de busca e de realização do sentido da existência humana pela harmonização das suas dimensões material, psicológica, social e, para alguns, espiritual, no horizonte proposto da busca incansável de resultados econômicos e financeiros. A teoria do fetichismo nos alerta para os riscos que tal visão oferece aos seres humanos vivendo em sociedade. Não podemos terminar nossa análise sem analisar o conceito de alienação, que permitirá entender o
277 278
ibid. p. 106. BERNARDI, Maria Amália, Lar, doce escritório, Exame, 31 (627): 84, 15 de janeiro 1997.
151 risco que uma outra dimensão da sociedade das organizações apresenta para o ser humano: o sucesso alcançado pelo executivo é recompensado pelo aumento de sua capacidade de consumo. Não será a hipertrofia dessa dimensão consumista uma máscara da idolatria, uma fonte de alienação com algumas características religiosas? Gostaríamos de discutir o conceito de alienação a partir de dois autores: Marx, na interpretação de Erich Fromm, e Paul Tillich. A escolha vem do fato de Marx ter dado grande notoriedade ao conceito focando sua importância como chave de interpretação do relacionamento do ser humano com o mundo da produção econômica, dividido em oprimidos e opressores, operários e patrões. O interesse da interpretação de Fromm reside no acréscimo de um terceiro ator, chamado hoje de executivo, que ele situa entre as duas classes, como agente manipulado e manipulador. Primeiro, Fromm dá uma definição do conceito: “a alienação (ou “alheamento” para Marx significa que o homem não se vivencia como agente ativo de seu controle sobre o mundo, mas que o mundo (a natureza, os outros, e ele mesmo) permanece alheio ou estranho a ele. Eles ficam acima e contra ele como objetos, malgrado possam ser objetos por ele mesmo criados. Alienar-se é, em última análise, vivenciar o mundo e a si mesmo passivamente, receptivamente, como o sujeito separado do objeto” 279 O autor liga o conceito de alienação ao conceito de idolatria280. Os ídolos são a obra das mãos do próprio homem, que adora o que ele mesmo criou, transformando-se ele mesmo em coisa, transferindo aos objetos os atributos de sua vida e reencontrando a si mesmo pela adoração do ídolo. Não é só o mundo das coisas que se torna superior ao homem; também as circunstâncias sociais e políticas por ele criadas se tornam seus senhores281. Esta alienação conduz à perversão de todos os valores: cada homem especula sobre o modo de criar uma nova necessidade em outro homem, a fim de forçá-lo a um novo sacrifício, colocá-lo numa nova dependência e incitá-lo a um novo tipo de prazer e, por conseguinte, à ruína econômica. Com a massa de objetos, cresce 279
FROMM, Erich, Conceito Marxista do homem, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 8ª edição, 1983, capítulo V p.50. 280 Podemos acrescentar que esta ligação entre alienação e idolatria é um tema amplamente desenvolvido por autores da teologia da libertação como F.J. Hinkelammert, Hugo Assmann, Jung Mo Sung, Enrique Dussel. 281 FROMM, op. cit. p. 57.
152 o número de entidades estranhas a que o homem fica sujeito e o homem se torna cada vez mais pobre como homem. Fromm acrescenta que Marx não previu até que ponto a alienação chegaria a ser o destino das pessoas, como os executivos, que manipulam símbolos e homens em vez de máquinas282. O operário depende da expressão de certas qualidades pessoais como habilidade e confiança de que é merecedor; não é obrigado a vender sua personalidade, seu sorriso e suas opiniões ao ser contratado. Os manipuladores de símbolos não são contratados apenas por sua perícia, mas também por suas qualidades pessoais que os tornam “acondicionamentos de personalidades atraentes” de fácil trato e manuseio. São verdadeiros homens da organização, cujo ídolo é a empresa. O próprio Fromm283 sugeriu a leitura de Paul Tillich, que analisa o conceito de alienação (estrangement) numa dimensão mais existencial e teológica284. As duas abordagens, portanto, parecem complementares. Numa visão teológica, Tillich considera que o conceito de alienação (estrangement), embora não bíblico, está presente em muitas descrições das dificuldades e difíceis escolhas do ser humano. Está presente na descrição que o apóstolo Paulo faz da luta interior do homem contra si mesmo quando perverteu a imagem de Deus, transformando-a em ídolo285. O autor prossegue mostrando que essa alienação traduz-se por duas expressões na Confissão de Ausburgo: o ser humano se encontra “sem fé e com concupiscência” (sine fide erga deum et cum concupiscentia)286. Ele acrescenta uma terceira expressão: a hybris, que poderia se traduzir por orgulho, no sentido de auto-elevação. Pensamos que as duas últimas expressões (hybris e concupiscência) ajudam a entender com mais profundidade o conceito esboçado por Marx e permitem uma análise mais acurada da alienação presente nas organizações. Alienado, o homem se encontra fora do centro divino e é centro de si mesmo e do seu mundo; por isso, ser ele mesmo e ter um mundo 282
Ibid. p. 60. Confere, no capítulo 2, a definição do executivo como analista simbólico que encontramos em Robert Reich. 283 Menciona na nota 1 da pág. 50 a conexão que Paulo Tillich faz entre os dois conceitos. 284 TILLICH, Paul, Systematic Theology three volumes in one, Chicago, The University of Chicago Press, 1967, Volume two, Part III, I, C e D p. 45 ss. 285 Op.cit. p.45. 286 Op.cit. p. 47.
153 constituem para ele, como perfeição da criação, o desafio. Esta perfeição desperta ao mesmo tempo a tentação de criar imagens de deuses imortais, porque tem consciência de sua infinidade potencial. Isto faz com que se possa chamar os homens mortais e as imagens divinas, imortais. Quem não reconhecer a ambigüidade desta situação, cai na hybris. Eleva a si mesmo além dos limites do seu ser finito e provoca a vingança divina que o destrói. A hybris é o chamado pecado espiritual que o homem pratica quando não reconhece sua finitude, identifica verdade parcial com verdade absoluta e identifica sua criatividade cultural com a criatividade divina, enquanto os povos confundem sua bondade limitada com a bondade absoluta (fariseus e puritanos). O ser humano confunde uma auto-afirmação natural com uma auto-elevação destrutiva287. A vontade do ser humano em trazer a totalidade do seu mundo dentro de si mesmo é a tentação de quem está entre o finito e o infinito. Todo indivíduo, consciente do seu alheamento do mundo, deseja uma reunião com o mundo. Sua “pobreza” o faz buscar a abundância: é a concupiscência ou desejo ilimitado de trazer para dentro de si a totalidade da realidade. Isto se refere à fome ou ao sexo, ao conhecimento ou ao poder, à riqueza material ou aos valores espirituais288. Que
pode
o
conceito
de
alienação
esclarecer
sobre
o
consumismo, tão presente em nossa sociedade e sustento das organizações empresariais? O hábito de consumo como filosofia de vida não é um fenômeno natural. Trata-se de um comportamento induzido, que corresponde, segundo Rifkin289, a uma religião ou a um evangelho: "O Evangelho do Consumo de Massa". Em sua forma original, consumir significa destruir, saquear, subjugar, exaurir. A metamorfose do consumo, que passa de vício a virtude, é, no entender deste autor, um dos fenômenos mais importantes, e, todavia, menos analisado do século XX. O consumo de massa não ocorreu espontaneamente, tampouco foi o subproduto inevitável de uma natureza humana insaciável. O fato de as pessoas preferirem trocar horas a mais de trabalho por horas a mais de ociosidade tornou-se uma preocupação crítica e a ruína de empresários, 287
Op.cit. p.51. Op. cit. p. 52. 289 RIFKIN, Jeremy, O fim dos empregos, MAKRON Books 1996. 288
154 cujos estoques de produtos se acumulavam rapidamente. A empresa precisa do consumo para poder sobreviver e produzir dinheiro para seus donos ou seus acionistas e a incitação ao consumo nasce da necessidade de poder continuar a vender quantidades cada vez maiores produzidas com os avanços tecnológicos. A mudança dos hábitos de compra dos assalariados foi obra do crédito ao consumidor que permitiu, em menos de uma década, uma nação de americanos esforçados e frugais se transformar em adeptos de uma cultura hedonista, em busca dos caminhos sempre novos da gratificação imediata. Os novos esquemas publicitários estimulavam uma nova psicologia de consumo em massa porque o modelo econômico dominante está ancorado sobre a acumulação e a destruição compulsivas. O consumo leva ao isolamento: as pessoas passam a se relacionar com um círculo bastante fechado de pessoas que seguem o mesmo modo de vida, que têm o mesmo padrão de renda e os mesmos centros de interesse. Deste modo, segundo Canclini290, forja-se um consenso em relação a um modelo socio-econômico apresentado como o único possível: a manipulação de símbolos por modalidades audiovisuais e massivas de organização da cultura, subordinadas a critérios empresariais de lucro, reforça este consenso que vira pensamento único291. A perda da eficácia das formas tradicionais e ilustradas de participação cidadã (partidos, sindicatos, associações de base) não é compensada pela incorporação de massas consumidoras ou participantes ocasionais dos espetáculos que os poderes políticos, tecnológicos e econômicos oferecem pelos meios de comunicação de massa. Desaparece a cultura política que via as ações presentes como parte de uma história e procura de um futuro renovador. As decisões políticas e econômicas são tomadas em função das seduções imediatistas do consumo, que é a causa, a razão de ser e a finalidade das empresas. Para o executivo, como temos visto, a comunhão com a empresa passa pela participação, o que é a razão de ser e a finalidade da empresa:
290
CANCLINI, Nestor García, Consumidores e cidadãos, conflitos multiculturais da globalização, Editora UFRJ, Rio de Janeiro 1995, pag.27ss. 291 Expressão cada vez mais usada para designar este consenso forjado: cf. por exemplo as análises feitas por vários autores e intelectuais publicadas mensalmente no periódico Le Monde Diplomatique.
155 “Dinheiro pode não ser tudo. Mas pesa sim, e muito, para dar sustentação aos outros fatores de motivação. Na mesma Monsanto, há cinco anos vem sendo feito todo um trabalho de mudança(...). O que a empresa pretende é criar uma mentalidade de sócios no negócio. (...) A melhor maneira de conseguir que os funcionários se sintam e atuem como sócios do negócio é dividir os lucros.”292
Este conceito de alienação, esta perda de uma abertura para um outro mundo, deixa o ser humano entregue ao caos e a uma dinâmica de mudança permanente. Principalmente, deixa-o sozinho. "Está escrito no Eclesiastes que o poder resulta sempre em acúmulo de tristeza e solidão. Abraham Lincoln, séculos mais tarde, no exercício da Presidência dos Estados Unidos, escreveria que um presidente não tem amigos. Recentemente, Peter Drucker, o guru dos gurus da administração moderna, arrematou em seu livro Administrando em Tempos de Grandes Mudanças: "Os presidentes são seres humanos, e seu cargo é solitário". Então, meu caro, se você deseja e trabalha para ser o número 1, encare o fato concreto de que a solidão do poder, cedo ou tarde, vai atacá-lo. Essa é uma angústia que persegue líderes de todos os quilates. A quem confiar uma dúvida, uma insegurança? Com quem compartilhar uma decisão quando você é o cara que deve tomar as decisões? "O travesseiro é o melhor amigo para esse problema", dirão alguns. Pode ser. Mas nem todas as penas de ganso que ele possa conter darão as respostas para as suas lamentações. De onde vem a solidão de um executivo bemsucedido? "Os executivos são as maiores vítimas da solidão gerada pela profissão", diz Claudia Lessa, gerente de gestão de recursos humanos da consultoria Price Waterhouse."293 Não adianta pensar que a insistência dada ao trabalho em equipe modificou algo neste ponto. Mesmo assim, esse homem pode surpreender, porque tem emoções, realidades com as quais as empresas precisam aprender a lidar. "Esse homem vem com coração, com sentimentos", diz. O problema, continua Cabrera, é que as companhias precisam aprender a administrar os sentimentos das pessoas. Só assim estarão também administrando o vínculo delas com a empresa. Essa nova gestão independe da lógica. Segundo ele, agora estamos falando daquilo que os americanos já
292
BERNARDI, Maria Amália, Uma questão que vai além do dinheiro, Exame, 27 (584): 120, 24 de maio 1995. 293 GOMES, Maria Tereza, Eu, eu e eu, o poder é solitário? É, Mas como preencher esse vazio? Exame, 31 (648) : 126, 6 de novembro 1997.
156 batizaram de gestão espiritual. "O vínculo não está mais no contrato de trabalho. Ele é sustentado, é eterno enquanto dura", diz. "294
Parece que ingressamos na era da gestão que é sentimental, espiritual e eterna enquanto dura! Pode parecer contraditório pedir-se ao executivo que pratique as virtudes da abnegação, da renúncia aos seus interesses para dedicar-se à empresa com total disponibilidade e pôr toda a criatividade ao seu serviço, deixando nas mãos dela todas as decisões que dizem respeito a sua remuneração, a sua qualidade de vida e a suas outras aspirações. Por outro lado, devido às reestruturações e aos conseqüentes cortes de funcionários, a empresa recusa-se cada vez mais a assumir um vínculo contratual com seus funcionários, condicionando sua permanência à abstenção da cobrança de outra lógica que não a da competitividade e dos cortes de custos. As empresas precisam preocupar-se com os sentimentos dos seus executivos para induzilos a entender que o vínculo empresa-executivo só pode ser eterno enquanto dura! Para concluir esta análise, dois autores sugerem que esse ideal de uma sociedade managerial poderia ser qualificado de fundamentalista. Para George Soros, que raciocina a partir da visão de uma sociedade capitalista, exacerbadamente competitiva e que corre um grande perigo, a ameaça maior para todos nós é o fundamentalismo de mercado: "O argumento central deste livro é que o fundamentalismo de mercado representa hoje uma ameaça maior para a sociedade aberta do que qualquer ideologia totalitária.(...) O fundamentalismo de mercado coloca em risco a sociedade aberta, inadvertidamente, ao interpretar de forma errônea o funcionamento dos mercados e ao artribuir-lhes uma importância indevida." 295
294
BERNARDI, Maria Amália, O capital humano, reter e atrair talentos tornou-se uma questão de vida ou morte para as empresas, Exame, 31 (647): 124, 22 de outubro 1997. 295 SOROS, George, A crise do capitalismo, as ameaças aos valores democráticos, as soluções para o capitalismo global, Rio de Janeiro, Editora Campus, 1998, p. 24-25.
157 Por sua vez, David Korten fala de uma fé religiosa fundamentalista quando mostra o fervor com que a ideologia do livre mercado tem sido abraçada296. O dinheiro sendo sua única medida de valor, a prática oriunda dessa ideologia promove políticas que agravam em toda parte a desintegração social e ambiental. Segundo ele, essa ideologia defende valores que degradam o espírito humano, criam um mundo imaginário distante da realidade e reestrutura nossas instituições governamentais de forma a dificultar a solução de nossos problemas mais simples. Contudo ela se propagou como um fundamentalismo, posto que questionar sua doutrina tornou-se quase uma heresia, atraindo riscos de censura profissional e prejuízos para a carreira na maioria de instituições empresariais, governamentais e acadêmicas. O autor resume assim as crenças que fundamentam a ideologia do livre mercado: O crescimento econômico sustentado pelo produto nacional bruto é o caminho para o progresso humano. O livre mercado, sem restrições governamentais, geralmente resulta numa distribuição de recursos mais eficiente e socialmente mais favorável. A globalização econômica, atingida com a remoção de barreiras ao livre fluxo de mercadorias e de dinheiro em qualquer parte do mundo, estimula a competição, aumenta a eficácia econômica, cria empregos, diminui os preços ao consumidor, aumenta as opções ao consumidor, estimula o crescimento econômico e é geralmente benéfica para quase todos. A privatização, deslocando as funções e os ativos dos governos para o setor privado, melhora a eficiência da economia. A principal responsabilidade do governo é providenciar a infra-estrutura necessária para promover o comércio e impor as normas da lei com relação a direitos e contratos sobre propriedade. Tais crenças se baseiam em várias suposições, aceitas sem discussão, que servem de axiomas para as teorias econômicas hoje em voga: Os seres humanos são motivados por interesses pessoais, expressos principalmente pela busca de ganhos financeiros.
296
KORTEN, David C , Quando as corporações regem o mundo, São Paulo, Editora Futura, 1996, p. 87ss.
158 A ação que traz maior retorno financeiro para o indivíduo ou a empresa é mais benéfica para a sociedade. Para o indivíduo ou empresa, o comportamento competitivo é mais racional do que o comportamento cooperativo; consequentemente, as sociedades deveriam se basear no estímulo competitivo. A melhor medida do progresso humano são os aumentos dos valores do que os membros da sociedade consomem, e os níveis sempre maiores dos gastos do consumidor promovem o bem-estar da sociedade ao estimular uma produção econômica maior. Assim, existe a pressão constante para mais crescimento econômico, independente de como este crescimento é distribuído. Essa ideologia permeia a tal ponto nossos valores, nossas instituições e nossa cultura popular, que a aceitamos quase sem questionar. Ela nos cerca e desempenha um papel crítico na modelagem de quase todos os aspectos da política pública. Nisto reside seu aspecto religioso, se aceitarmos o conceito desenvolvido por Hervieu-Léger.
A corporação econômica, como Korten
chama a empresa, existe cada vez mais como uma entidade à parte – até das pessoas que a compõem. Cada membro da classe corporativa, não importa quão poderosa seja sua posição dentro da corporação, tem se tornado sacrificável – como está aprendendo um número crescente de grandes executivos. À medida que as corporações conquistam poder institucional autônomo e mais se desvencilham de pessoas e lugares, mais divergem o interesse humano e o interesse corporativo.
3. CONCLUINDO Se voltarmos à pergunta feita no início deste capítulo, podemos afirmar que o ideal apresentado aos executivos é um ideal religioso. Ele apresenta algumas analogias com os modelos analisados no terceiro capítulo: Os gregos consideravam os deuses ao mesmo tempo próximos e pouco criteriosos nas suas decisões, o que acabou levando o pensamento grego a buscar caminhos mais racionais de explicação do mundo. No caso do
159 modelo
proposto
aos
executivos,
parece acontecer um
movimento
inverso: a racionalidade da atividade econômica não está impedindo o uso de
uma
linguagem onde as relações de mercado acabam sendo
retratadas como forças parecidas com os deuses gregos: envolventes, caprichosas, imprevisíveis e ameaçadoras. As metáforas religiosas usadas pela Exame parecem excluir espaços para valores cristãos: aliás, o valor central pregado por Jesus na parábola do Bom Samaritano é considerado com suspeita, senão, ridicularizado. O mundo executivo afasta-se da modernidade porque não deixa espaço próprio para valores como, por exemplo, a cidadania: tenta apropriar-se de tais valores e transpô-los
para a empresa, falando por exemplo em
cidadania corporativa. Por outro lado, valoriza uma certa dimensão da experiência religiosa natural no sentido semelhante ao usado por Rousseau. À luz das análises sobre o fetiche do capital, que envolve mercado, empresas, empresários e seus managers, a revista Exame estaria propondo aos executivos um ideal de perfeição fetichizado. Hybris e alienação, categorias filosófico-teológicas, também estão presentes nas atitudes do executivo perfeito com as terríveis conseqüências sacrificiais que envolvem sua existência.
160
CONCLUSÃO Ao terminar esta dissertação, gostaríamos de olhar para o caminho percorrido e avaliar a relevância de seus resultados. Quando do início de nossa pesquisa, podia parecer estranho querer encontrar um discurso religioso numa revista cujo objetivo é analisar a economia do país, apontar soluções concretas para o desenvolvimento empresarial numa ótica de mercado e, sobretudo, segundo o fundador do Grupo Abril, dar boas notícias para os empresários e os executivos. Recordemos suas palavras: "ainda espero publicar um jornal cuja manchete de primeira página anunciará diariamente: HOJE, TUDO BEM!" (...) "As pessoas querem boas notícias". Eu argumentava: "E se não houver boas notícias?" "Não tem importância", retrucava ele, "você dá um jeito, um retoquezinho aqui, outro lá, e acaba achando graça em qualquer coisa". Um dia perguntei para ele, abruptamente: "então o negócio é enganar os leitores?" E ele, impassível: "Mas eles não querem ser enganados?"297
O que diz Vitor Civita a Mino Carta tem um sentido muito mais amplo do que ele mesmo, talvez, possa te percebido. Pudemos mostrar que algumas das boas notícias a ser anunciadas acabam se transformando num Evangelho pregado aos executivos para levá-los a uma transformação interior com características de uma conversão: dedicar-se integralmente à construção de suas empresas, fazendo disto o centro de sua vida. A descoberta da presença oculta de um discurso religioso na sociedade secularizada e das dimensões idolátricas do modelo econômico vigente constitui importante indicador da abrangência e importância dos estudos do Programa de Ciências da Religião. Assim, o maior editor de revistas do país e um dos maiores do mundo é flagrado numa postura querigmática!
297
Testemunho de Mino Carta, cf. capítulo primeiro , nota 22.
161 No decorrer de nosso trabalho, à medida que selecionávamos e comparávamos as matérias da revista mediante a metodologia
de
análise de conteúdos, o que emergia não era o retrato de um executivo mas, sim, o ícone de um homem perfeito, heróico, competitivo, dedicado, ético, visionário e genial. Essas características aparecem em vários artigos, escritos por vários jornalistas que parecem comungar na consciência de ter recebido a missão de pregar esse ideal. Em nenhum momento, a revista Exame define excatedra seu pensamento: simplesmente, endossa o trabalho feito por meio de elogios fartamente distribuídos aos seus redatores. Cada qualidade exigida para a concretização do ideal é reforçada por testemunhas, os executivos que conseguiram vencer, e pelo argumento de autoridade buscado nos autores, nos consultores e nos executivos considerados pelo mercado como detentores de alguma sabedoria relevante. Podemos afirmar que os textos citados são totalmente representativos do pensamento expresso na Revista. Não encontramos vozes discordantes sobre o modelo de sociedade apregoado, nem sobre o perfil do executivo destinado a construir esse modelo. O ideal pregado apresenta-se como o único possível, pois as mudanças econômicas e sociais em andamento permitem vislumbrar uma era de prosperidade e de felicidade nunca alcançadas. Tais afirmações despertaramnos o desejo de verificar se a humanidade nunca havia tentado, antes, construir ideais consistentes que pudessem ajudar as pessoas a achar o sentido de suas vidas. O aprofundamento da reflexão sobre os modelos grego, cristão e moderno propiciou-nos pontos de comparação com o ideal apresentado pela revista. O ideal grego de virtude e de democracia, o ideal evangélico da compaixão e o ideal moderno de uma sociedade impulsionada pelo progresso da ciência, embora condicionados pelo contexto em que nasceram, continuam oferecendo subsídios para nossa reflexão e nossa vida. O modelo do executivo competitivo e condenado a vencer pode ser questionado. Finalmente, quando respondemos afirmativamente a nossa pergunta inicial, identificando características religiosas no ideal de excelência proposto aos executivos pela revista Exame, não pretendemos encerrar o debate! A
162 posição que defendemos apresenta argumentação consistente e conta com “cúmplices” de peso! O primeiro deles, Jung Mo Sung, que foi nosso professor e com o qual participamos de várias discussões, nos ensinou que: “Numa sociedade idólatra, que identificou o seu sistema econômico com as normas morais dominantes e as sacralizou, numa sociedade que criou uma verdadeira “religião econômica” que exige, em nome da ciência e do mercado transcendentalizado, sacrifícios humanos, “torna-se impotente – como diz Assmann – qualquer teologia que não seja também teologia do econômico, ou seja, teologia que opera com categorias econômicas”. (...) Uma teologia assim pensada assume a economia como um tema central da teologia e o desafio de desmascarar as teologias idolátricas endógenas nas teorias econômicas como uma das primeiras e mais fundamentais tarefas.”298
Nosso trabalho exemplificou esses conceitos mostrando que, como toda teologia, a teologia econômica acaba gerando uma espiritualidade ou uma mística que precisa ser identificada para poder ser avaliada como tal e não como um discurso técnico ou científico. Os conceitos e as imagens religiosas usadas pela revista são muito mais do que simples figuras metafóricas de linguagem. Encontramos outro aliado para dar mais peso à nossa análise. Segundo Enrique Dussel, Marx usava um discurso “metafórico” que encontrava sua origem na economia política crítica, inspirava-se em máximas evangélicas e tecia uma crítica do cotidiano299. Esta “teologia metafórica” explícita de Marx, descobrindo o mundo cotidiano como fetichizado, abriu, segundo Dussel, o caminho para a Teologia da Libertação. Esta análise encoraja-nos a persistir na afirmação de que as expressões usadas pela revista Exame revelam a mudança de uma lógica puramente técnica e empresarial para uma lógica metafórica que revela a presença de uma teologia, não só dogmática, mas mística, no cotidiano dos executivos. Nossa contribuição não pretendeu acrescentar algo novo para a compreensão dos conceitos teóricos, já amplamente explicitados, mas acreditamos que nosso trabalho se faz relevante para o entendimento da articulação desses conceitos com o cotidiano dos executivos, servidores e construtores dessa lógica empresarial globalizada. 298
SUNG, Jung Mo, Teologia e economia repensando a teologia da libertação e utopias, Petrópolis, Vozes, 1995, p. 240-241. 299 DUSSEL, Enrique, La metáforas teológicas de Marx, Estella (Navarra), Editorial Verbo Divino, 1993, p.158.
163
Esta pesquisa que agora concluímos levou-nos a analisar o frio mundo globalizado que muitas vezes parece convidar as pessoas a sufocarem a própria alma. Gostaríamos de terminar este trabalho com um poema de Rabindranath Tagore que possa nos trazer um pouco de paz e nos ofereça um caminho para resgatar nossa alma. “Longo é o tempo da minha jornada, e longo é o caminho. Saí no carro do primeiro raio de luz, e continuei a minha viagem através dos desertos dos mundos, deixando minhas pegadas em muitas estrelas e planetas. O caminho mais longo é o que mais se aproxima de ti, e a mais difícil aprendizagem é a que leva à extrema simplicidade de um acorde. O viajante precisa bater em muitas portas alheias para finalmente chegar à sua própria; tem que vagar por todos os mundos de fora, para finalmente alcançar o santuário mais íntimo. Meus olhos vagaram longe e por todos os lugares, antes que eu os fechasse e dissesse: "Está aqui!" A pergunta e o grito "Onde?" derretem-se nas lágrimas de mil torrentes, e afogam o mundo no dilúvio da certeza: "Eu sou!"300
300
TAGORE, Rabindranath, Gitanjali (oferenda lírica), São Paulo, Paulus, 1991, poema 12.
164
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