Canguilhem - Processo de Seleção dos Executivos

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CANGUILHEM

PROCESSO DE SELEÇÃO DOS EXECUTIVOS


Um dos aspectos mais sensíveis na vida das organizações empresariais, hoje, é o processo de seleção dos executivos que nelas vão trabalhar. Departamentos de seleção são montados e operacionalizados para conseguir atender as várias áreas da organização. Consultores e profissionais de apoio são contratados para dar suporte a estes processos. Ultimamente, astrólogos, grafólogos e outros potenciais gurus são convidados para participar da festa. Um certo tipo de profissional, de dentro e fora da organização, ocupa, porém, cadeira cativa no processo : é o psicólogo.

Gostaríamos de analisar esta presença cada vez mais marcante do psicólogo nos processos de seleção dos executivos.

1. O que se espera do psicólogo nos processos de seleção de executivos ? Todo processo de seleção de um executivo envolve riscos para quem está sendo selecionado e para quem seleciona. . Quem está sendo selecionado aposta a possibilidade de uma

carreira, sua realização e seu crescimento profissionais na opção de

trabalhar ou não na empresa que o quer contratar.

. Quem seleciona aposta na competência do candidato para resolver

os problemas a serem resolvidos na determinada posição a ser

preenchida.

A palavra aposta não é escolhida ao acaso. Quem participou de vários processos de seleção e conduziu muitos deles sabe que a analogia do jogo não está


fora de lugar.

O psicólogo aparece como sendo a pessoa que pode diminuir este risco trazendo a possibilidade de uma racionalidade e cientificidade no processo. Não se confia ao psicólogo a avaliação das habilidades técnicas necessárias ao desempenho da função profissional (por exemplo, conhecimentos financeiros de um candidato a contador); estas habilidades vão ser avaliadas por um profissional (par ou de nível superior) da área onde o profissional vai atuar. Ao psicólogo se confia a tarefa da avaliação “comportamental” do candidato.

O que se entende por perfil comportamental (outro modo de falar no jargão das áreas de Recursos Humanos) ou, mais exatamente, o que se quer avaliar do executivo além da sua perícia técnica e por quê?

A. Competência intelectual : neste momento, podem ser usados testes para medir a agilidade intelectual vista como rapidez do raciocínio, o sentido de detalhe, a capacidade de raciocinar sob pressão e a capacidade de estabelecer associações. Contudo, mais se sobe na hierarquia das organizações para entrevistar candidatos a posições altas, menos os testes são usados. Muitos executivos conversarão com o candidato; vão querer, todavia, uma espécie de chancela do psicólogo na hora de escolher. Contudo, a palavra do psicólogo é uma entre as outras porque muita gente se acha em perfeita condição de avaliar a inteligência de outrem! B. Adaptabilidade do profissional ao ambiente : O ponto reconhecido como o mais difícil num processo de seleção é saber ou prever se o candidato escolhido vai conseguir adaptar-se


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. à “cultura” organizacional, vista como1

“uma identidade, uma marca reconhecível, pelos de dentro e pelos de fora, através da exteriorização em formas variadas de uma visão de mundo, de um modo próprio de fazer as coisas, de categorizar, de interagir, que emerge, via uma estrutura interna de poder, da configuração especial, criada internamente, para responder às solicitações e peculiaridades apreendidas, reconhecidas no meio externo, pelas pessoas nas posições dirigentes.”

O candidato não pode se opor a esta cultura que é considerada como fundante e constitutiva da empresa e que abrange toda a sua vida dentro dela. O psicólogo a serviço da organização é um pouco considerado como o guardião desta cultura e quem a explicita e a interpreta.

. ao grupo com o qual vai interagir : há pouco tempo que se começa a provocar algum tipo de encontro do candidato com o grupo com o qual vai trabalhar antes da conclusão do processo de seleção. Na maioria das organizações, o psicólogo é quem opina e acaba, na maioria das vezes, decidindo sobre a possibilidade do candidato conseguir conviver bem com as pessoas com as quais vai trabalhar.

Aqui é reconhecido de um modo mais direto o campo de ação do psicólogo. Ele é habilitado pelo seu instrumental profissional a reconhecer e


decidir se uma pessoa vai "encaixar-se" ou não num determinado ambiente. O próprio verbo usado já subentende uma visão da organização como um bloco ou uma máquina com encaixes predeterminados; se a peça a ser incluída não entrar bem, faz-se uma ou duas tentativas de usar a plaina. O psicólogo, aliás, dirá se vale ou não o esforço.

C. Segurança : nesta palavra está o porquê desta avaliação "comportamental". A organização não pode errar num processo de seleção porque repor um executivo custo caro em termos de tempo, de desgaste e de dinheiro e porque está em jogo uma certa visão da onisciência e onipotência da alta direção da empresa : ela deve passar a imagem que sempre sabe onde buscar e como atrair as competências necessárias para fazer a organização andar. Existe a crença que existem meios científicos e, portanto, infalíveis de conhecer e avaliar as pessoas de modo que todo risco seja eliminado na relação das pessoas dentro da organização. 2. A psicologia pode alcançar estes objetivos ? O psicólogo pode alcançar objetivos tão ambiciosos e tornar-se a fonte da verdade sobre as pessoas ? Esta pergunta suscita outra : o que é a psicologia e qual tipo de psicologia está sendo usado nas organizações nos processos de seleção ? Utilizaremos nesta análise as reflexões contidas no capítulo III

1 ver Cultura organizacional, uma abordagem antropológica da mudança, Maria das Graças de Pinho Tavares, Qualitymark Editora, 1993, pag.59


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“Psychologie” da 3a parte do livro “Études d’histoire et de philosophie des sciences”, de Georges Canguilhem2.

Segundo ele, a questão da essência da psicologia e do seu conceito questiona a existência do psicólogo na medida em que não podendo responder exatamente sobre o que ele é, fica difícil responder sobre o que ele faz. Portanto, o psicólogo poderá buscar numa certa eficácia a justificação da sua importância como especialista. Esta eficácia só pode ser fundada quando ficará provado que repousa sobre uma ciência que seja mais do que

"(...)um empirismo compósito, literariamente codificado a fim de ensino. De fato, de muitos trabalhos de psicologia, tem-se a impressão de que misturam uma filosofia sem rigor, uma ética sem exigência e uma medicina sem controle3."

Portanto, é preciso considerar qual é o objeto da ciência, que não é só o domínio específico dos problemas a serem resolvidos ou dos obstáculos a serem superados; mas é também a intenção e o alvo do sujeito da ciência; é o projeto específico que constitui como tal uma consciência teórica. Daniel Lagache4 define a psicologia como Teoria geral da conduta, mostrando a unidade do seu campo apesar da multiplicidade dos projetos metodológicos. Tenta assim uma síntese entre a psicologia experimental, a psicologia clínica, a psicanálise, a psicologia social e a etnologia. Só que

. a psicologia só pode ser dita experimental em razão do seu método e não em razão do seu objeto


. é pelo objeto mais do que pelo método que uma psicologia pode ser dita clínica, psicanálise ou social porque estes adjetivos visam um mesmo objeto de estudo : o homem, ser loquaz ou taciturno, ser sociável ou insociável.

Então é possível falar em teoria geral da conduta enquanto, por exemplo, não se resolve a questão de saber se existe continuidade ou ruptura entre

* linguagem humana e linguagem animal * sociedade humana e sociedade animal ? Quem vai estudar isto são as ciências, entre as quais a psicologia. Mas a psicologia, para se definir, não pode prejulgar o que é chamada a julgar. Sem o que, é inevitável que propondo a si mesma como teoria geral da conduta, a psicologia faça sua alguma idéia sobre o homem. É preciso, então, permitir que a filosofia pergunte à psicologia de onde vem esta idéia.

A via oposta seria buscar se é ou não a utilidade de um projeto que poderia conferir sua unidade eventual às vários tipos de disciplinas ditas psicológicas. Buscar como os vários projetos se encontram exige que se encontre o sentido de cada um, não quando ele se perdeu no automatismo da execução mas quando surge de uma situação que o suscita. Buscar uma resposta à pergunta "o que é a psicologia?" significa esboçar uma história da psicologia considerada somente nas suas orientações em relação à história da filosofia e das ciências, numa ótica

2 Librairie philosophique Joseph Vrin, 5ème édition, 1982, 411 páginas 3 ibid, página 365-366. A tradução é nossa. 4 in L'unité de la psychologie, PUF, Paris, 1949. A tradução é nossa.


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teleológica enquanto considera o sentido originário das várias disciplinas e os vários métodos. Canguilhem considera então a história da psicologia dividindo ela em três

grandes etapas : . a psicologia como ciência natural . a psicologia como ciência da subjetividade

• física do sentido externo • física do sentido interno (consciência de si) • ciência do sentido íntimo . a psicologia como ciência das reações e do comportamento. Canguilhem mostra que esta última linha de reflexão vai ser privilegiada dentro das organizações por causa dos seus pressupostos. Devido ao objeto da nossa

reflexão, vamos acompanhá-lo no detalhamento deste ponto. No século XIX constitui-se uma biologia do comportamento por várias razões : . Razões científicas : a constituição de uma biologia como teoria geral das

relações entre os organismos e os meios marca o fim da crença na existência de um reino humano separado.


. Razões técnicas e econômicas : o desenvolvimento de um regime industrial orientando a atenção para o caráter industrioso da espécie humana marca

o fim da crença na dignidade do pensamento especulativo. . Razões políticas : fim da crença nos valores dos privilégios sociais e difusão do igualitarismo. A conscrição e a educação pública tornando-se uma função do Estado, a reivindicação de igualdade frente aos deveres militares e às funções civis (cada um recebe em função do seu trabalho, de suas obras e de seus merecimentos) é o fundamento real, embora freqüentemente despercebido, de um fenômeno próprio das sociedades modernas : a prática generalizada da expertise, no sentido amplo, como determinação da competência e desmascaramento da simulação.

Esta psicologia do comportamento exibe uma incapacidade constitucional em perceber e exibir com clareza seu projeto instaurador. Recusando toda fundamentação filosófica e aceitando, segundo o padrão da biologia, se tornar uma ciência objetiva das aptidões, das reações e do comportamento, esta psicologia e estes psicólogos esquecem totalmente de situar seu comportamento específico em relação às circunstâncias históricas e aos ambientes sociais nos quais são chamados a propor seus métodos ou técnicas e a fazer aceitar seus serviços. Canguilhem cita Nietzche5

"Nós, psicólogos do futuro... consideramos quase como um sinal de degenerescência o instrumento que quer conhecer a si mesmo; somos os instrumentos do conhecimento e queríamos ter toda a ingenuidade e precisão de um instrumento; portanto, não devemos analisar a nós mesmos nem conhecer a nós mesmos."

O psicólogo só quer ser instrumento sem procurar saber de quem ou de que é


instrumento.

5 La volonté de puissance Livre III § 335.A tradução é nossa.


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Ao contrário da idéia de utilidade que estava ligada à tomada de consciência filosófica da natureza humana como potência de artifício (Hume, Burke) ou à definição do homem como fabricante de ferramentas (Enciclopedistas, Adam Smith, Franklin), o princípio da psicologia biológica do comportamento não emergiu de uma tomada de consciência filosófica explícita porque só pode ser operacionalizado se permanecer não formulado. Este princípio é a definição do próprio homem como ferramenta.

Devemos, então, distinguir entre :

. O utilitarismo onde o homem julga da utilidade das coisas.

. O instrumentalismo que considera o homem como meio de utilidade. A

inteligência não é mais o que faz os órgãos e os usa mas o que serve os

órgãos.

Os trabalhos suscitados pela descoberta da equação pessoal própria dos astrônomos que usaram o telescópio (Maskelyne, 1796) estiveram na origem da psicologia da reação e do comportamento. O homem foi estudado primeiramente como instrumento do instrumento científico antes de sê-lo como instrumento de todo instrumento. A natureza do ser humano é ser uma ferramenta; sua vocação é ser colocado no seu próprio lugar, na sua própria tarefa. Daí a necessidade de pesquisas sobre as leis de adaptação e de aprendizagem, sobre a detecção e medição das aptidões, sobre as condições de rendimento e produtividade, pesquisas


inseparáveis de suas aplicações à seleção ou orientação. Devemos acrescentar que

o determinismo é, hoje, menos mecânico e mais estatístico. O autor faz a seguinte pergunta : o que leva os psicólogos a ser, dentre os homens, os instrumentos de uma ambição de tratar o homem como instrumento? . Nas outras escolas de psicologia, a alma ou o sujeito, forma natural ou

consciência de interioridade, podem ser o princípio do qual se parte para

justificar o valor de uma certa idéia do homem em relação com a verdade

das coisas.

. Para uma psicologia onde a palavra "alma" faz fugir e a palavra

"consciência" rir, a verdade do homem é dada no fato que não tem mais

idéia do homem enquanto valor diferente da idéia uma ferramenta.

Contudo, para que possa existir uma idéia de ferramenta, é preciso que toda idéia não seja colocada a nível de ferramenta. Para poder atribuir a uma ferramenta algum valor, é preciso que exista algum valor atribuído a outra coisa que não seja ferramenta cujo valor subordinado é justamente de fornecer algum valor para outra realidade. Portanto, se o psicólogo do comportamento não extrair seu projeto de psicologia de alguma idéia do homem, acreditaria ele poder legitimá-lo pelo seu comportamento de utilização do homem ?

O psicólogo contemporâneo é freqüentemente um profissional cuja "ciência"é toda inteira inspirada pela busca de "leis" de adaptação a um ambiente socio-técnico


-não a um ambiente natural -o que sempre confere a suas operações de "medição" um significado da avaliação/apreciação e um alcance de expertise. Portanto, o comportamento do psicólogo inclui quase obrigatoriamente uma convicção de superioridade, uma boa consciência dirigista, uma mentalidade de manager das relações do homem com o homem.


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3. Algumas perguntas cínicas... ou pertinentes ! . Quem designa os psicólogos como instrumentos do instrumentalismo ? . Quais são os critérios para reconhecer dentre os homens os que são dignos de atribuir ao homen-instrumento seu papel e sua função ? . Quem orienta os orientadores ? Segundo Canguilhem, nenhuma ciência nem técnica contém em si mesma alguma idéia que lhe confira o próprio sentido.

A psicologia do comportamento acreditou tornar-se independente separandose de toda reflexão que busca uma idéia do homem olhando além dos dados biológicos e sociológicos. A questão "o que é a psicologia ?", na medida em que proíbe a filosofia de buscar uma resposta torna-se : Aonde os psicólogos querem chegar ? Em nome de que instituíram a si mesmos psicólogos ?. Para selecionar um selecionador, é preciso transcender o nível dos procedimentos técnicos de seleção. Então a quem pertence, não a competência, mas a missão de ser psicólogo ?

A psicologia sempre se baseia numa dissociação (dédoublement); neste caso, não é mais o da consciência segundo os fatos e as normas enxergados a partir de uma certa idéia do homem; é o de uma massa de "sujeitos" e de uma elite corporativa de especialistas investindo a si mesmos de sua própria missão.

A psicologia instrumentalista apresenta-se como teoria geral da habilidade fora de toda referência à sabedoria. Se não pudermos definir esta psicologia por uma idéia do homem, não temos o poder de proibir a quem quer que seja de dizer-se


psicólogo e de chamar psicologia o que está fazendo.

4. E a ética ? A própria crítica do autor abre pistas para uma reflexão ética sobre o assunto. O primeiro aspecto, amplamente e profundamente analisado pelo autor, é epistemológico mas também ético : é possível basear um processo de escolha de profissionais em critérios puramente funcionalistas, partindo do princípio não explicitado que o ser humano é instrumento a serviço de outros instrumentos ?

O segundo aspecto diz respeito ao poder atribuído aos psicólogos neste processo. Diga-se de passagem que os profissionais mais conscientes que atuam nas organizações assustam-se diante da incumbência. Mas o peso descomunal da responsabilidade recebida corresponde a uma falta proporcional de comprometimento por parte de quem é o real dono do processo seletivo, ou seja a pessoa que vai empregar o candidato.

O terceiro aspecto concerne a própria eficácia do processo. As empresas usam cada vez mais o discurso da parceria, não tanto em função de uma visão da harmonia social. mas também de modo funcionalista em função dos seus novos desafios competitivos. Mesmo assim, a parceria só pode se constituir a partir de uma relação de confiança e lealdade recíprocas. Estas atitudes, ou virtudes, dependem fundamentalmente da liberdade e da boa vontade no sentido mais literal e mais forte da expressão. Existe algum milagreiro, psicólogo ou não, capaz de provocar e depois avaliar e medir tal fenômeno ?


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Conclusão :

Esta análise pode logo ser irrelevante. Pelo fato de ser difícil de definir o que é um psicólogo e o progressivo desaparecimento do prurido ético impedindo de se investir perito em humanidade, vende-se e compra-se técnicas que, em quatro ou cinco dias, se propõem de transformar qualquer executivo em juiz infalível e absoluto

o seu semelhante com a ajuda desavisada de alguns gráficos produzidos por qualquer 486 à beira da aposentadoria compulsória. Não se pode deixar de lembrar algumas palavras pertinentes e relevantes : "Deixai-os. São cegos conduzindo cegos ! Ora, se um cego conduz outro cego conduz outro cego, ambos acabarão caindo num buraco6."

6 Mt. 15,14


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