CHRISTIAN LAVAL
NOVA RAZテグ DO MUNDO
LA NOUVELLE RAISON DU MONDE ESSAI SUR LA SOCIÉTÉ NÉOLIBERALE1 Introdução Não terminamos com o neoliberalismo. Não é uma ideologia nem simplesmente uma política econômica. Trata-se do modo com o qual vivemos, pensamos, sentimos: é uma forma de nossa existência. Ele define uma certa norma de vida que nos provoca a viver num universo de competição generalizada, instiga as populações a entrar em luta econômica umas contra as outras, ordena as relações sociais ao modelo de mercado, transforma até o indivíduo, chamado a conceber-se como uma empresa. Pode se falar de nova razão do mundo porque é global em dois sentidos: é mundial porque vale na escala do mundo. Tende a totalizar, quer dizer "construir mundo" pelo seu poder de integração de todas as dimensões da existência humana. Razão do mundo, é ao mesmo tempo "razão-mundo". O neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, de um capitalismo libertado de suas referências arcaicas e plenamente assumido como construção histórica e como norma geral da vida. O neoliberalismo pode ser definido como o conjunto de discursos de práticas, de dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência. Uma das grandes novidades do neoliberalismo não consiste num ilusório retorno ao estado natural de mercado, mas sim no estabelecimento jurídico e político de uma nova ordem mundial de mercado cuja lógica implica não a abolição, mas sim a transformação dos modos de ação e das instituições públicas em todos os países. A tese defendida por esse livro é precisamente que o neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica, é primeiro e fundamentalmente uma racionalidade e que, sendo isso, ele tende a estruturar e organizar, não somente a ação dos governantes, mas até a conduta dos próprios governados. Governar não é governar contra a liberdade ou apesar dela, é governar pela liberdade, quer dizer jogar ativamente sobre o espaço de
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DARDOT Pierre/LAVAL Christian, La nouvelle raison du monde, essai sur la société néoliberale, Paris, La Découverte, 2009
liberdade deixado aos indivíduos para que eles venham a se conformar por eles mesmos a certas normas.
Capítulo
5:
crise
do
liberalismo
e
nascimento
do
neoliberalismo É uma crise da governabilidade liberal, que coloca essencialmente o problema prático da intervenção política e matéria econômica e social e o de sua justificação doutrinal. O que era posto como uma limitação externa a essa ação, em particular aos direitos invioláveis do indivíduo, tornou-se um puro e simples fator de bloqueio da "arte de governar", no momento em que essa é precisamente confrontada a questões econômicas e sociais ao mesmo tempo novas e prementes. É a necessidade prática da intervenção governamental para enfrentar às mutações organizacionais do capitalismo, aos confrontos de classe ameaçando a "propriedade privada", às novas relações de força internacionais, que coloca em crise o liberalismo dogmático. O triunfo liberal do meio do século XIX não durará. Os capitalismos americano e alemão, as duas potências emergentes da segunda metade do século, demonstravam que o modelo atomístico de agentes econômicos independentes, isolados, guiados pela preocupação do seus interesses bem compreendidos
e
cujas
decisões
eram
coordenadas
pelo
mercado
concorrencial, não correspondia mais às estruturas e às práticas do sistema industrial e financeiro realmente existente. Esse último, cada vez mais concentrado nos setores maiores da economia, dominado por uma oligarquia estreitamente conectada aos dirigentes políticos, era regido pelas "regras do jogo" que não tinham nada a ver com as concepções rudimentares da "lei da oferta e da procura" dos teóricos da economia ortodoxa. O que o liberalismo clássico não tinha integrado o suficiente era o fato mesmo da empresa, de sua organização, de suas formas jurídicas, da concentração de seus meios, das novas formas de competição. As novas necessidades da produção e da venda chamavam por um "management científico", mobilizando os exércitos industriais enquadrados num modelo hierárquico de tipo militar por pessoas qualificadas e devotadas. O aparecimento de grandes grupos cartelizados marginalizava o capitalismo de pequenas unidades, o desabrochar de técnicas de venda
enfraquecia a fé na soberania do consumidor, os entendimentos, as práticas dominadoras e manipuladoras dos oligopólios sobre os preços arruinavam as representações de uma concorrência leal a ser aproveitada por todos. A democracia política parecia definitivamente comprometida pelos fenômenos maciços de corrupção em todos os níveis da vida política. A inadequação das fórmulas liberais às necessidades de reformulação da condição salarial, sua incompatibilidade com as tentativas de reformas sociais aqui e acolá constituíram um outro fator de crise do liberalismo dogmático. É o que levou os neoliberais a forjar um discurso ao mesmo tempo teórico e político que dê razão, forma, sentido à intervenção governamental. Contudo, mesmo quando os neoliberais admitem a necessidade da intervenção do estado e que rejeitam a pura passividade governamental, eles se opõem a qualquer ação que viria travar o jogo da concorrência entre interesses privados. A intervenção do estado tem mesmo um sentido contrário: trata-se não de limitar o mercado por uma ação corretiva ou compensadora do Estado, mas sim de desenvolver e purificar o mercado concorrencial por um enquadramento jurídico cuidadosamente adaptado. Não se trata mais de postular um acordo espontâneo entre os interesses individuais, mas sim de optimizar as condições para que seu jogo de rivalidade satisfaça o interesse coletivo. O neoliberalismo combina a reabilitação da intervenção pública e uma concepção do mercado centrada na concorrência, fazendo dela o principio central da vida social e individual mas ele reconhece que a ordem de mercado não é um dado da natureza, mas sim o produto artificial de uma história e de uma construção política.
Capítulo 8: o homem empreendedor Não se entende o neoliberalismo se não se vê nele como ponto focal a relação entre as instituições e a ação individual. Com Ludwig Von Mises e Friedrich Hayek, existe uma mudança em relação ao liberalismo tradicional que reside na valorização da concorrência e da empresa como forma geral da sociedade. O pensamento deles está totalmente estruturado pela oposição entre dois tipos de processos, um processo de destruição e um processo de construção. O primeiro chamado por Von Mises de "destruccionismo" tem como agente principal o Estado. Ele repousa sobre a concatenação perversa
da ingerências estatais que levam até o totalitarismo e à regressão econômica. O segundo que corresponde ao capitalismo tem como agente o empreendedor, quer dizer, potencialmente, todo agente econômico. Colocando o foco na ação individual e no processo de mercado, os autores austros-americanos visam em primeiro lugar produzir uma descrição realista de uma máquina econômica que tende para o equilíbrio se não for perturbada por um moralismo ou intervenções políticas e sociais destruidoras. Visam em segundo lugar mostrar como se constrói na concorrência geral uma certa dimensão do homem, o entrepreneurship, que é o principio de conduta potencialmente universal o mais essencial para a ordem capitalista. O neoliberalismo se apresenta bem como um projeto político que busca criar uma realidade social que é suposta já existir. É precisamente essa dimensão antropológica do homem-empresa que será a principal contribuição dessa corrente. É uma outra concepção da concorrência que constitui o fundamento especifico do "concorrencialismo" neoliberal. O grande passo a frente dado por Von Mises e Hayek consiste em olhar a concorrência no mercado como um processo de descoberta da informação pertinente, como um certo modo de conduta do sujeito que busca superar e ultrapassar os outros na descoberta de novas ocasiões de ganho. A doutrina austríaca privilegia uma dimensão agonística, a da competição e da rivalidade. É a partir da luta dos agentes que se poderá descrever, não a formação de um equilíbrio definido por condições formais, mas a própria vida econômica cujo ator real é o empreendedor, cuja mola propulsora é o espírito empreendedor que anima cada um em graus diferentes e cujo único freio é o Estado quando ele trava ou suprime a livre competição. Essa revolução no modo de pensar inspirou muitas pesquisas, principalmente em relação à informação e à inovação. Contudo, ela chama principalmente para uma política que ultrapassa de longe os mercados de bens e de serviços e concerne a totalidade da ação humana. Existe uma orientação, talvez mascarada e não imediatamente percebida, de restabelecer ou sustentar dimensões de rivalidade na ação e, mais fundamentalmente, em modelar os sujeitos para fazer deles empreendedores sabendo agarrar as oportunidades de ganho, prontos a engajar-se no processo permanente da concorrência. É
mais particularmente no management que essa orientação encontrou sua tradução. O que vem atrapalhar a perfeita democracia do consumidor e abre a via para o despotismo totalitário é a intrusão de princípios éticos diferentes do princípio do interesse pessoal, heterogêneos ao processo de mercado porque o Estado pretenderia saber no lugar do indivíduo o que ele precisa. Uma nova concepção do mercado Se o pensamento austro-americano dá um papel central ao mercado, é que ele olha para ele como um processo subjetivo. A palavra chave, mercado, é bem a mesma que no pensamento liberal tradicional: contudo, o conceito designado por ela mudou. Não é mais o mesmo de Adam Smith nem dos neoclássicos. É um processo de descoberta e de aprendizagem que modifica os sujeitos ajustando os uns aos outros. A coordenação não é estática: ela não liga sujeitos sempre semelhantes a eles mesmos; ela é produtora de uma realidade sempre mutante, de um movimento que afeta os ambientes nos quais os sujeitos evoluem e os transforma também. O mercado não é um ambiente dado uma vez por todas, regido por leis naturais, governado por um princípio misterioso do equilíbrio. Ele é um processo regrado que coloca em movimentos processos psicológicos e competências específicas. É um processo não tanto auto-regulador (quer dizer conduzindo ao equilíbrio perfeito) mas sim autocriador, capaz de se auto-gerar no tempo. O mercado é, então, concebido como um processo de auto-formação do sujeito econômico, como um processo subjetivo auto-educador e auto-disciplinar pelo qual o indivíduo aprende a conduzir-se. O processo de mercado constrói seu próprio sujeito: é autoconstrutivo. Não é pela "natureza" que o homem sabe se conduzir, é graças ao mercado que constitui um processo de formação. A economia é escolha mais do que cálculo de maximização ou, mais exatamente, este é só um momento ou uma dimensão da ação que não pode resumi-la inteiramente. A escolha é mais dinâmica: ela implica criatividade e indeterminação. A economia é uma teoria da escolha. O mercado e o conhecimento Não se pode ter economia de mercado sem a primazia absoluta do interesse, excluídos todos os outros motivos da ação. A limitação do poder
governamental encontra seu fundamento, não nos "direitos naturais", nem mesmo, ultimamente, na prosperidade gerada pela livre iniciativa privada, mas sim nas próprias condições de funcionamento da máquina econômica. A condição de funcionamento da mecanismo de mercado é a livre escolha de decisão em função das informações que cada um possui. O mercado é mesmo um desses instrumentos que funciona sozinho, justamente porque ele coordena os trabalhos especializados otimizando os conhecimentos dispersos. No passado, o objeto econômico por excelência era o problema da coordenação das tarefas especializadas e da alocação dos recursos. Para Hayek, é o problema da divisão do conhecimento que constitui o principal problema da economia e mesmo das ciências sociais. Não se trata do conhecimento científico: knowledge significa para Hayek um certo tipo de conhecimentos diretamente utilizáveis no mercado, as que dizem respeito às circunstâncias de tempo e de lugar, as que dizem respeito não ao porque mas sim ao quanto, as que um indivíduo pode adquirir na prática, de que só ele pode perceber o valor e que só ele pode utilizar de modo proveitoso para ultrapassar os outros na competição. O problema da economia não é mais o equilíbrio geral mas sim de saber como os indivíduos vão poder tirar o melhor partido da informação fragmentária da qual eles dispõem. O empreendedorismo como modo de governo de si Não se pode entender essa defesa do livre mercado sem relacioná-la ao postulado que a acompanha necessariamente: não há necessidade de intervir porque somente os indivíduos são capazes de calcular a partir das informações que eles possuem. É o postulado da ação humana racional que arruína antecipadamente as pretensões do dirigismo. Daí a importância do esforço de Von Mises a fazer repousar a ciência econômica sobre uma teoria geral da ação humana, a "praxeologia". Esse subjetivismo permite evitar de pagar politicamente o preço tão caro de um resultado teórico tão duvidoso como o do equilíbrio geral que não apresenta grande interesse para o conhecimento do funcionamento das economias reais. Trata-se mais de entender como age realmente o sujeito, como ele se conduz quando está numa situação de mercado. É a partir desse funcionamento que a questão do modo de governo de si poderá ser colocada.
Esse auto-governo tem um nome: entrepreneurship. Essa dimensão supera a capacidade calculadora e maximizadora da teoria econômica padrão. Todo indivíduo tem algo de empreendedor em si e a economia de mercado tem como característica liberar e estimular essa capacidade empreendedora. O puro espírito de mercado não precisa de nenhuma dotação inicial porque se trata de explorar uma possibilidade vender mais caro um bem que não se comprou. O empreendedor não é um capitalista, não é um produtor, não é o inovador schumpeteriano que modifica sem cessar as condições da produção e constitui o motor do crescimento. É um ser dotado de um espírito comercial, em busca de toda ocasião de ganho que se apresenta para ele e que ele pode agarrar graças às informações que ele detém e que os outros não têm. Ele se define unicamente pela sua intervenção específica na circulação dos bens. Para Mises, o empreendedor é o homem que age para melhorar sua sorte utilizando os espaços de preços entre os fatores de produção e os produtos. O espírito que ele desenvolve é o da especulação, mesclando risco e antecipação. O homem que quer melhorar sua sorte deve constituir quadros de fins e de meios nos quais ele deverá fazer suas escolhas. A pura dimensão de empreendedorismo, a vigilância para a ocasião comercial, é uma relação de si mesmo para si mesmo que está no princípio da crítica da interferência. Somos todos empreendedores, ou mais exatamente aprendemos a ser, formando nos pelo jogo do mercado só a governar a nos mesmos como empreendedores. O que quer dizer também que, se o mercado é olhado como um livre espaço para os empreendedores, todas as relações humanas pode ser afetadas por essa dimensão empreendedora, constitutiva do humano. O mercado é um processo de aprendizagem contínua e de aprendizagem permanente. O sujeito de mercado está engajado numa experiência de descoberta onde ele o que ele descobre primeiro é que ele não sabia que ele ignorava. Essa descoberta do que não sabíamos não se confunde com uma busca deliberada de conhecimento que supõe que saibamos antecipadamente o que não sabemos. A descoberta permitida pela experiência de mercado repousa sobre o fato de que não sabíamos que ignorávamos, que ignoramos o que ignorávamos. É essa ignorância, não sabida como tal que é o ponto de partida da análise do mercado. A surpresa, a descoberta ao acaso, desencadeia a reação dos que são mais alertas, os empreendedores.
Essa racionalidade efetiva, que é adaptação eficaz dos meios aos fins, exclui todo racionalismo que faria da reflexão sobre a ação uma condição do agir bem. Essa valorização do empreendedorismo e a idéia do que essa faculdade só pode ser formada num ambiente de mercado são constitutivas da redefinição do sujeito de referência da racionalidade neoliberal. Essa proposição genérica, de natureza antropológica, redesenha bastante a figura do homem econômico: ela dá para ele um formato mais dinâmico e mais ativo do que no passado. Essa concepção do indivíduo como um empreendedor ao mesmo tempo inovador e explorador das oportunidades é o ponto de chegada de várias linhas de pensamento.
A nova racionalidade Capítulo 10: A grande virada As políticas desenvolvidas pelos governos Tatcher e Reagan engajam uma mudança muito mais importante do que simplesmente uma volta a um liberalismo
tradicional. Elas
têm
por característica
principal modificar
radicalmente o exercício do poder governamental assim como as referências doutrinais no contexto de uma mudança de regras de funcionamento do capitalismo. Elas testemunham de uma subordinação de um certo tipo de racionalidade política e social articuladas à mundialização e à financiarização do capitalismo. Assim, existe uma "grande virada" por causa da elaboração de uma nova lógica normativa capaz de integrar e de reorientar duravelmente políticas e comportamentos numa nova direção: "Economia livre, Estado forte". O que não está sempre bem percebido é o caráter disciplinar dessa nova política, dando ao governo o papel de guardião vigilante de regras jurídicas, monetárias, comportamentais, atribuindo a ele a função oficial de fiscal das regras de concorrência no quadro de uma colusão oficiosa com os grandes oligopólios e, talvez mais ainda, dando para ele o objetivo de criar situações de mercado e formar indivíduos adaptados às lógicas de mercado. Em outras palavras, a atenção dada à ideologia do "laissez-faire" distraiu do exame das práticas e dos dispositivos encorajados, ou diretamente colocados, pelos governos. Consequentemente, foi a dimensão estratégica das políticas
neoliberais que foi paradoxalmente negligenciada na crítica "antiliberal" padrão, na medida em que essa dimensão é imediatamente presa numa racionalidade global que permaneceu desapercebida. O que entender exatamente por "estratégia"? No seu significado mais corrente, o termo designa a escolha de meios empregados para alcançar um fim. Por mais legítimo que seja, esse uso do termo "estratégia" poderia levar a pensar que o objetivo da concorrência generalizada entre empresas, economias e Estados foi elaborado a partir de um projeto amadurecido há muito tempo, como se fosse objeto de uma escolha tão racional e dominado quanto os meios colocados a disposição dos objetivos iniciais. Contudo, parece aos autores que o objetivo de uma nova regulação pela concorrência não preexistiu à luta contra o Estado Providência na qual se engajaram círculos intelectuais, grupos profissionais, forças sociais e políticas, frequentemente por causa de motivos heterogêneos. Segundo os autores, esse objetivo constituiu-se no decorrer do próprio enfrentamento, que ele se impôs a forças diferentes em razão da própria lógica do enfrentamento e que, a partir desse momento, ele desempenhou um papel de catalisador oferecendo um ponto de junção para forças até então relativamente dispersas. Para entender isso, é preciso recorrer a um outro sentido do termo "estratégia". É um sentido que não faz a estratégia proceder da vontade de um estrategista ou da intencionalidade de um sujeito. Essa idéia de uma "estratégia sem sujeito" ou "sem estrategista" foi elaborada por Michel Foucault. Tomando o exemplo do objetivo estratégico da moralização da classe operária nos anos 1830, ele afirma que esse objetivo então produziu a burguesia como agente de sua operacionalização em vez de ser a burguesia, como sujeito pré-constituído, que tivesse concebido esse objetivo a partir de uma ideologia já elaborada. O que precisa ser pensado aqui é uma certa "lógica das práticas": primeiro existem as práticas, frequentemente disparatas, que
operacionalizam
técnicas de
poder (no
primeiro
plano
técnicas
disciplinares) e é a multiplicação e a generalização de todas essas técnicas que imprimem aos poucos uma direção global, sem que ninguém seja o instigador desse "impulso em direção a um objetivo estratégico". Não se poderia dizer melhor o modo pelo qual a concorrência constituiu-se como nova norma mundial a partir de certas relações entre as força sociais e de certas
condições econômicas, sem ter sido "escolhida" de modo premeditado por um qualquer "estado maior". Fazer aparecer a dimensão estratégica das políticas neoliberais, significa não só fazer aparecer como elas se referem à escolha de determinados meios (segundo o primeiro sentido do termo "estratégia"), é igualmente fazer aparecer o caráter estratégico (no segundo sentido) do objetivo da concorrência generalizada que permitiu dar a todos esses meios uma coerência global. Precisamos analisar os seguintes pontos: a relação de apoio recíproco entre as políticas neoliberais e as transformações do capitalismo; essa transformação foi precedido e foi acompanhado por uma luta ideológica, principalmente contra o Estado-previdência; foi preciso obter uma transformação dos comportamentos que aconteceu via técnicas e dispositivos disciplinares; a progressiva extensão desses sistemas disciplinares assim como sua codificação institucional levaram finalmente ao estabelecimento de uma racionalidade geral, espécie de novo regime das evidências impondo-se aos governantes de todos as tendências como único quadro de inteligibilidade das condutas humanas. Nova regulação pela concorrência O estabelecimento da norma mundial da concorrência operou-se pela conexão de um projeto político com uma dinâmica endógena, ao mesmo tempo tecnológica, comercial e produtiva. O programa político de Tatcher e de Reagan, duplicado em seguida por um grande número de governos e replicado por grandes organizações internacionais como o FMI e o Banco Mundial, apresenta-se primeiramente como um conjunto de respostas a uma situação considerada impossível de ser gerenciada. Principalmente, nascia da consciência propagada por vários estudos, principalmente "The Crisis o Democracy" da Comissão Trilateral, documento chave que testemunha da consciência da "ingovernabilidade" das democracias compartilhada por muitos dirigentes dos países capitalistas. Os peritos, convidados para formular seu diagnóstico em 1975, constatavam que os governantes tornaram-se incapazes de governar devido ao fato da demasiada implicação dos governados na vida política e social. Segundo eles, a democracia política só pode funcionar com "um certo grau de apatia e de não-participação de certos indivíduos e de certos
grupos". Eles pediam o reconhecimento do fato que "existe um limite desejável para a extensão infinita da democracia política". Essa chamada para colocar um limite às reivindicações traduzia a seu modo a entrada em crise da antiga norma fordista. Essa última colocava em coerência os princípios do taylorismo com a regras de partilha do valor agregado favoráveis ao aumento regular dos salários reais (por indexação sobre os preços e os ganhos de produtividade). Essa articulação da produção e do consumo de massa apoiava-se também sobre o caráter relativamente autocentrado desse modelo de crescimento que garantia uma certa "solidariedade" macroeconômica entre o salário e o lucro. Assim, esse crescimento sustentado da renda assegurado pelo aumento dos ganhos de produtividade permitia de escoar a produção de massa em mercados fundamentalmente domésticos. A organização da atividade produtiva repousava sobre uma divisão do trabalho muito
forte,
uma
automatização
crescente
mas
rígida,
um
ciclo
produção/consumo longo, permitindo obter economias de escala em bases nacionais ou mesmo internacionais, essas últimas já sendo ligadas à deslocalização massiva de seções de montagem nos países asiáticos. Tais condições tornavam possíveis, no plano político e social, arranjos articulando até um certo ponto a valorização do capital e um aumento dos salários reais. (o "compromisso social democrata"). Contudo, desde o fim dos anos 1960, o modelo "virtuoso" do crescimento fordista encontra limites endógenos. As empresas conhecem uma diminuição sensível de suas taxas de lucro. Essa queda da lucratividade explica-se pelo decréscimo dos ganhos de produtividade na relação com as forças sociais e a combatividade dos assalariados (1968), pela forte inflação ampliada pelos choques petroleiros dos anos 1973 e 1979. A estagflação parece assinar o atestado de óbito da arte keynesiana de "pilotar a conjuntura" que suponha uma arbitragem entre a inflação e a recessão. O desregramento do sistema internacional estabelecido depois da Segunda Guerra constituirá um fator suplementar de crise. A flutuação geral das moedas a partir de 1973 abre a via para um aumento da influência dos mercados sobre as políticas econômicas e, num contexto novo, a abertura crescente das economias solapa as bases do circuito auto-centrado "produção – renda – demanda".
A nova política monetarista tenta responder aos dois problemas maiores que constituem a estagflação e o poder de pressão exercido pelas organizações dos assalariados. Tratava-se, quebrando a indexação dos salários sobre os preços, de transferir a punção operada pelos dois choques petroleiros sobre o poder de compra dos assalariados a favor das empresas. Os dois eixos principais da reviravolta da política econômica foram a luta contra a inflação galopante e a restauração do lucro no fim dos anos 1970. O aumento brutal das taxas de juros, pagando o preço de uma recessão severa e do aumento do desemprego, permitiu relançar uma série de ofensivas contra o poder sindical, de baixar as despesas sociais e os impostos e de favorecer a desregulamentação. Por um outro "círculo virtuoso", essa alta das taxas de juros desembocou numa crise da dívida dos países latino-americanos o que permitiu que o FMI impusesse determinadas reformas fundamentais em troca da negociação das condições de reembolso da dívida. Uma nova orientação tomou assim consistência nos dispositivos e mecanismos econômicos que modificaram profundamente as "regras do jogo" entre os vários capitalismos nacionais assim como entre as classes sociais dentro de cada espaço nacional. As mais famosas das medidas engajadas foram a grande vaga de privatização das empresas públicas (quase sempre na bacia das almas) e o movimento gera de desregulamentação da economia. A idéia diretora dessa orientação é que a liberdade dada aos atores privados, os quais beneficiam de um melhor conhecimento do estado dos negócios e do seu próprio interesse, é sempre mais eficaz do que a intervenção direta ou a regulação política. Se a ordem econômica keynesiana e fordista repousava sobre a idéia de que a concorrência entre empresas e economias capitalistas devia ser enquadrada por regras fixas comuns em matéria de taxa de câmbio, de políticas comerciais e de partilha de renda, a nova norma neoliberal implementada no fim dos anos 1980 erige a concorrência como regra suprema e universal de governo. Esse sistema definiu o que se pode chamar de sistema disciplinar mundial. A formulação mais condensada foi o famoso "Consenso de Washington". As políticas seguidas pelos governos do Norte como dos do Sul consistiram em buscar no aumento de suas fatias de mercado no nível mundial
a solução dos seus problemas internos. Ao mesmo tempo atores e objetos da concorrência mundial, construtores e auxiliares do capitalismo financeiro, os Estados são cada vez mais submetidos à lei de uma dinâmica da mundialização escapa largamente a eles. Os dirigentes dos governos e dos organismos internacionais (financeiros e comerciais) podem assim sustentar que a mundialização é um fatum embora trabalhando continuamente para a criação dessa suposta "fatalidade". O desabrochar do capitalismo financeiro No nível mundial, a difusão da norma neoliberal encontra um veículo privilegiado na liberalização financeira e na mundialização da tecnologia. Um mercado único de capitais instala-se através uma série de reformas da legislação, sendo as mais significativas a liberação total do mercado de câmbio, a privatização do setor bancário, o fim da separação dos vários setores do mercado financeiro e, no nível regional, a criação da moeda única européia. Essa liberalização política da finança está fundamentada na necessidade financiamento da dívida pública que será satisfeita pelo recurso aos investidores internacionais. Justifica-se no nível teórico pela superioridade da concorrência entre atores financeiros sobre a administração do crédito pelo que diz respeito ao financiamento das empresas, das famílias e dos Estados endividados. Foi facilitada por uma revisão progressiva da política monetária americana que abandonou o estritos padrões do monetarismo doutrinal. A finança mundial conheceu durante duas décadas uma extensão considerável. O volume de transações a partir dos anos 80 mostra que o mercado financeiro se autonomizou em relação à esfera da produção e das trocas comerciais, aumentando a instabilidade, que se tornou crônica, da economia mundial. Desde quando a "globalização" é puxada pela finança, a maioria dos países estão na impossibilidade de tomar medidas que iriam ao encontro dos detentores do capital. Por isso eles impediram nem a formação das bolhas especulativas nem seu estouro. A passagem do capitalismo fordista para o capitalismo financeiro foi ainda marcada por uma modificação sensível das regras de controle das empresas. Uma das transformações maiores reside nos objetivos perseguidos pelas empresas sob a pressão dos acionistas. De fato, o poder financeiro dos
proprietários da empresa fez com que eles conseguissem obter dos managers que eles exercitem uma pressão contínua sobre os assalariados para aumentar os dividendos e aumentar o preço das ações. Segundo essa lógica, a "criação de valor" das ações, quer dizer a produção de valor para os acionistas tal qual determinada pelos mercados de ações, torna-se o principal critério de gestão dos dirigentes. Os comportamentos das empresas serão profundamente afetados: elas desenvolverão todos os meios de aumentar essa "criação de valor" financeira. A governança de empresa (corporate governance) está diretamente ligada a vontade de tomada do controle da gestão da empresa pelos acionistas. O mercado financeiro foi assim constituído como agente disciplinador para todos os atores da empresa, desde o dirigente até o assalariado da base: todos devem ser submetidos ao princípio de accountability, quer dizer à necessidade de "prestar contas" e de ser avaliados em função dos resultados obtidos. Outras conseqüências importantes: primeiro, a concentração de renda e dos patrimônios acelerou-se com a financiarização da economia. A deflação salarial traduziu o aumento de poder dos possuidores de capitais que lhes permitiu de captar um acréscimo importante de valor impondo seus critérios de rendimento financeiro ao conjunto da esfera produtiva e colocando em concorrência as forças de trabalho na escala mundial. Segundo, a relação do sujeito consigo mesmo que foi profundamente atingida. Devido a condições fiscais mais atrativas e a um encorajamento dos poderes públicos, o patrimônio financeiro e imobiliário de muitas famílias de classe média ou classe média alta aumentou consideravelmente nos anos 90. Cada sujeito foi conduzido a conceber-se e comportar-se em todas as dimensões de sua existência como um portador de capital a ser valorizado: estudos universitários pagos, constituição de uma poupança aposentadoria individual, compra da sua moradia, investimentos a longo prazo em bolsa, esses são os aspectos dessa "capitalização da vida individual" que, ganhando terreno no assalariado, contribuiu a erodir um pouco mais as lógicas de solidariedade. O que se chamou de "desregulamentação", expressão equívoca que poderia deixar a entender que o capitalismo não conhece nenhum modo de regulação, é na realidade um novo modo de pôr ordem nas atividades
econômicas, nas relações sociais, nos comportamentos e nas subjetividades. O novo capitalismo está profundamente ligado à construção política de uma nova finança global regida pelo princípio da concorrência generalizada. Pelas suas reformas de liberalização e de privatização, o Estado constituiu uma finança de mercado em vez de uma gestão mais administrada dos financiamentos bancários das empresas e das famílias. Por um choque de volta de sua própria ação, o Estado foi ele mesmo obrigado a realizar de modo acelerado sua adaptação à nova situação financeira internacional. As privatizações, assim como o encorajamento para a poupança individual, acabaram dando um poder considerável para os banqueiros e as companhias de seguros. A assim chamada "liberalização da finança", que é mais propriamente a construção dos mercados financeiros internacionais, gerou uma "criatura" cujo poder é ao mesmo tempo difuso, global e incontrolável. Paradoxalmente, o papel ativo dos Estados favoreceu o escorregão das instituições de crédito . É bem a concorrência exacerbada entre instituições de crédito "multifuncionais" que as levou a correr riscos cada vez maiores para manter sua própria rentabilidade. Essa tomada de risco só era possível se o Estado permanecesse o garante supremo do sistema. Na realidade, o Estado neoliberal tem o papel de emprestador de último recurso. Ideologia : "o capitalismo livre" e o "Estado previdência" e a desmoralização dos indivíduos Que tal ilusão seja tão comum é devido em parte a uma estratégia eficaz de conversão dos espíritos que tomou desde os anos 60 e 70 a dupla forma de uma luta ideológica contra o Estado e as políticas públicas de um lado e uma apologia do capitalismo mais desbragado do outro lado. Essa conquista política e ideológica foi objeto de números trabalhos (Hayek, Von Mises, Friedman). É pela fixação e a repetição dos mesmos argumentos que uma vulgata conseguiu se impor em todos os lugares, particularmente na mídia, nas universidades e no mundo político. Não se pode, contudo, esquecer que não é somente a força das idéias neoliberais que assegurou sua hegemonia. Elas se impuseram a partir do enfraquecimento das doutrinas de esquerda e do desabamento de toda alternativa ao capitalismo.
Ao mesmo tempo, um grande número de teses, de relatórios, de ensaios e de artigos buscarão calcular o custo e as vantagens do Estado para concluir que os salários desempregos e a cobertura das despesas de saúde aprofunda os déficits e provoca a inflação dos custos e as políticas de redistribuição de renda não reduzem as desigualdades e desencorajam o esforço e tornam os impostos mais pesados. Isso sem considerar, segundo esses autores, o custo moral: o Estado Previdência destrói as virtudes da sociedade civil, a honestidade, o gosto para o trabalho bem feito, o esforço pessoal, a civilidade, o patriotismo. Não é o mercado que destrói a sociedade civil pelo "apetite pelo lucro", porque ele não poderia funcionar sem essas virtudes da sociedade civil. Uma
das
constantes
do
discurso
neoliberal
é
sua
crítica
do
"assistencialismo" gerado pela cobertura generosa demais dos riscos dos sistemas de assistência social. Não somente os reformadores neoliberais usaram o argumento da eficácia e do custo, eles focaram também a superioridade moral das soluções de mercado ou inspiradas pelo mercado. Essa crítica baseia-se num postulado que diz respeito à relação do indivíduo com o risco. O "Estado Providência", querendo promover o bem-estar da população por mecanismos de solidariedade, desresponsabilizou os indivíduos e os dissuadiu de buscar trabalho, de estudar, de cuidar dos seus filhos, de premunir-se contra as doenças devido a práticas nocivas. O remédio consiste em usar em todos os campos e em todos os níveis, porém primeiramente no nível, microeconômico, dos indivíduos, os mecanismos do cálculo individual. Isso deveria ter um duplo efeito: uma moralização dos comportamentos e uma maior eficiência dos sistemas sociais. Numa palavra, a proteção social é destruidora dos valores sem os quais o capitalismo não poderia mais funcionar. Um novo discurso valorizando o "risco" inerente à existência individual e coletiva tenderá a fazer pensar que os dispositivos do Estado Social são profundamente nocivos para a criatividade, a inovação, a auto-realização. Se cada um for o único responsável pela própria sorte, a sociedade não lhe deve nada, enquanto ele deve constantemente trazer as provas que ele merece as condições de sua existência. A vida é uma perpétua gestão dos riscos que exige uma rigorosa abstenção das práticas perigosas, o controle permanente de si, uma regulação dos próprios comportamentos que mescla ascetismo e flexibilidade. A grande palavra da sociedade do risco é a "auto-regulação".
Essa "sociedade do risco" tornou-se uma dessas evidências que acompanha as mais variadas proposições da proteção e do seguro privados. Um imenso mercado
da
segurança
pessoal
desenvolveu-se
em
paralelo
ao
enfraquecimento dos dispositivos de seguros coletivos obrigatórios, reforçando assim o sentimento do risco e da necessidade de proteger-se individualmente. Por uma espécie de extensão dessa problemática do risco, um certo número de atividades foram reinterpretadas como meios de proteção pessoal. Assim, a educação e a formação profissional são olhadas como escudos que protegem contra o desemprego e aumentam a "empregabilidade". Para entender essa nova moral, é preciso entender a "revolução" operada por economistas americanos desde os anos 60 (por exemplo G. Becker). A razão econômica aplicada a todas as esferas da ação privada e pública permite derreter as linhas de separação entre política, sociedade e economia. Global, ela deve estar na base de todas as decisões individuais, permite a inteligibilidade de todos os comportamentos, e só ela deve estruturar e legitimar a ação do Estado. É preciso sair dos domínios tradicionais da análise econômica para generalizar a análise custo-benefício para o conjunto do comportamento humano. Os economistas americanos querem estabelecer que as ferramentas mais tradicionais da análise são suscetíveis de uma maior extensão, mostrando que se pode fazer da economia uma revolução paradigmática e conservar as velhas ferramentas do cálculo de maximização. A família, o casamento, a delinqüência, a educação, o desemprego, assim como a ação coletiva, a decisão política, a legislação tornam-se objetos do raciocínio econômico. Assim, G. Becker formula uma nova teoria da família, considerando-a uma firma utilizando um certo volume de recursos em moeda e em tempo para produzir "bens" de várias naturezas: competências, saúde, auto-estima e outras "mercadorias" como as crianças, o prestígio, a inveja, o prazer dos sentidos etc. O fundamento da reflexão de G. Becker consiste a estender a função de utilidade utilizada na análise econômica de tal modo que o indivíduo seja considerado um produtor e não um simples consumidor. Ele produz mercadorias que o satisfarão utilizando bens e serviços comprados nos mercados, tempo pessoal e outros inputs que têm valor, preços escondidos
mas calculáveis. Trata-se portanto de escolher entre as "funções de produção", supondo que todo bem é "produzido" pelo indivíduo que mobiliza recursos variados, dinheiro, tempo, capital humano e mesmo as relações sociais identificadas a um "capital social". O essencial, nesse re-investimento da regiões exteriores ao campo classicamente delimitado pela ciência econômica, é dar uma consistência teórica à antropologia do homem neoliberal para fornecer apoios discursivos indispensáveis a governabilidade neoliberal da sociedade. Contudo, por mais influente que seja, sozinha essa concepção do homem como capital – o que é propriamente o significado do conceito de "capital humano" – não pôde produzir as mutações subjetivas de massa que se pode constatar hoje. Foi preciso para isso que ela se materialize por meio de dispositivos múltiplos, diversificados, simultâneos ou sucessivos, que modelaram duravelmente a conduta dos sujeitos. Disciplina 1: um novo sistema de disciplinas O conceito mesmo de governabilidade, enquanto ação sobre as ações dos indivíduos supostamente livres para sua escolhas, permite redefinir a disciplina como técnica de governo própria para as sociedades de mercado. Longe de opor a "disciplina", a "normalização" e o "controle", Michel Foucault fez cada vez aparecer melhor a matriz dessa nova forma de "conduta das condutas", a qual pode ser diversificada segundo os casos a serem tratados, desde o fechamento dos prisioneiros até a vigilância da qualidade dos produtos a serem vendidos no mercado. Se "governar for estruturar o campo de ação eventual dos outros", a disciplina pode ser redefinida, de modo mais amplo, como um conjunto de técnicas de estruturação do campo de ação, diferentes segundo a situação na qual o indivíduo se encontra. Desde a idade clássica das disciplinas, o poder não pode ser exercido simplesmente por uma pura pressão sobre os corpos: deve acompanhar o desejo individual e orientá-lo fazendo valer todos os aspectos da "influência". Isto supõe que ele penetre no cálculo individual, que ele participe dele, para agir sobre as antecipações imaginárias que fazem os indivíduos: para reforçar o desejo pela recompensa, para enfraquecê-lo pela punição, para desviá-lo pela substituição de objeto.
Essa lógica que consiste em dirigir indiretamente a conduta é o horizonte das estratégias neoliberais de promoção da "liberdade de escolher". Não se enxerga sempre a dimensão normativa que lhes pertence necessariamente: a "liberdade de escolher" identifica-se à necessidade de obedecer a uma conduta de maximização num quadro legal, institucional, regulador, relacional que deve precisamente ser construído para que o indivíduo escolha "em toda liberdade" o que ele deve obrigatoriamente escolher para seu próprio interesse. Três aspectos das disciplinas neoliberais devem ser distinguidas: 1.
A liberdade dos sujeitos econômicos supõe primeiro a segurança
dos contratos e a fixação de um quadro estável. O cálculo individual deve poder apoiar-se numa ordem de mercado estável, o que exclui de fazer do próprio quadro o objeto de um cálculo. 2.
A estratégia neoliberal consistirá então em criar o maior número
possível de situações de mercado, quer dizer em organizar por vários meios (privatização, concorrência de serviços públicos etc.) a "obrigação de escolher", para que os indivíduos aceitem a situação de mercado tal como lhes é imposta como "realidade" quer dizer como única "regra do jogo", e integrem a necessidade de operar um cálculo de interesse individual se eles não quiserem perder "no jogo" e, mais ainda, se quiserem valorizar seu capital pessoal num universo onde a acumulação parece ser a lei geral da existência. 3.
Dispositivos de recompensa e de punição, sistemas de incitação e
de "desincitação" substituirão enfim as sanções do mercado para guiar a escolha e a conduta dos indivíduos lá onde as situações comerciais ou quase comerciais não são inteiramente realizáveis. O orçamento torna-se ele mesmo um instrumento de disciplina dos comportamentos. O objetivo da diminuição da pressão fiscal assim como a recusa em aumentar as cotizações sociais foram os meios, mais ou menos eficazes segundo as situações de relação de força, de impor reduções dos gastos públicos e dos programas sociais em nome do respeito dos equilíbrios e da limitação da dívida do Estado. Tudo acontece assim como se o Estado proibisse para si mesmo, por essas regras, de usar algumas alavancas sobre o nível de atividade; ao mesmo tempo, obrigando os agentes a interiorizá-las, ele se dá os meios de agir permanentemente por uma "corrente invisível", para
usar a expressão de Bentham, que os obrigaria a comportar-se como indivíduos em competição uns com os outros. Um dos argumentos maiores das políticas neoliberais consistiu em denunciar a demasiada rigidez do mercado de trabalho. A idéia diretora é a contradição que existiria entre a proteção da mão de obra e a eficácia econômica. Não se trata de suprimir puro e simplesmente toda ajuda aos desempregados, mas de agir de modo que a ajuda leve a uma maior docilidade dos trabalhos privados de emprego. Trata se de fazer do mercado do emprego um mercado muito mais conforme ao modelo da concorrência pura, não simplesmente por cuidado dogmático, mas para disciplinar melhor a mão de obra ordenando ela aos imperativos da restauração da rentabilidade. Assim, a disciplina neoliberal consiste em "responsabilizar" os desempregados utilizando a arma da punição para quem não aceitaria o suficiente dobrar-se às regras do mercado. Essa política disciplinar questiona radicalmente os princípios de solidariedade com as vítimas econômicas eventuais dos riscos econômicos. Disciplina 2: a obrigação de escolher A "liberdade de escolha" é um tema fundamental das novas normas de conduta dos sujeitos. Parece que não se pode conceber um sujeito que não seja ativo, calculador, na espreita das melhores oportunidades. Trata-se de fato de construir novas pressões que colocam os indivíduos em situações nas quais eles são obrigados a escolher entre ofertas alternativas e são incitados a maximizar seu interesse próprio. A "liberdade de escolher", que resume para M. Friedman todas as qualidades que se pode esperar do capitalismo concorrencial, constitui uma das principais missões do Estado. Não só ele tem por tarefa de reforçar a concorrência nos mercados existentes, mas ele tem igualmente a de criar a concorrência onde ela não existe ainda. É que o capitalismo é o único sistema capaz de proteger a liberdade individual em todos os campos, particularmente no campo político. Trata-se portanto de introduzir dispositivos de mercado e incitações quase mercantils para obter que os indivíduos se tornem ativos, empreendedores, "atores de suas escolhas", "tomadores de riscos".
Disciplina 3: a gestão neoliberal da empresa A extensão e a intensificação das lógicas de mercado tiveram efeitos muito sensíveis na organização do trabalho e nas formas de emprego da força de trabalho. A lógica do poder financeiro só acentuou o disciplinamento dos assalariados submetidos a exigências de resultados cada vez mais elevadas. A busca obsessiva da mais valia nas bolsas não só acarretou garantir aos proprietários do capital um aumento continuo da sua renda em relação à dos assalariados, o que levou a uma divergência maior da evolução dos salários relativamente à dos ganhos de produtividade e uma acentuação cada vez maior das desigualdades de distribuição de renda. Outrossim, traduziu-se pela imposição de normas de rentabilidade mais elevadas em todas as economias, em todos os setores e em todos os escalões da empresa. Um número cada vez maior de assalariados está sendo submetido a sistemas de incitação e de sanção visando atingir ou ultrapassar objetivos de criação de valor para os acionistas, objetivos por sua vez definidos por métodos de ajuste a normas internacionais de rentabilidade. Toda uma disciplina de valor aos acionistas tomou assim forma nas técnicas contábeis e avaliadoras da gestão de mão de obra cujo princípio consiste em fazer de cada assalariado um "centro de lucro" individual. É que o princípio da gestão neoliberal visa ao mesmo tempo "internalizar" as coações da rentabilidade financeira na própria empresa e fazer interiorizar pelos assalariados as novas normas de eficácia produtiva e de performance individual. O sentido da obediência foi também profundamente modificado: mais do que obedecer a procedimentos formais e a comandos hierárquicos, os assalariados são conduzidos a dobrar-se às exigências de qualidade e de prazos impostos pelo "cliente" erigido em fonte exclusiva de coações incontornáveis. Em todos os casos, a individualização das performances e das gratificações permitiu a colocação em concorrência dos assalariados entre eles como tipo normal de relação dentro da empresa. Tudo aconteceu como se o mundo do trabalho tivesse "internalizado" a lógica da competição exacerbada existindo ou devendo existir entre as empresas ao mesmo tempo que a lógica concorrencial para captar e guardar os capitais trazidos pelos acionistas, empurrando para a "criação de valor" em seu proveito.
Esse
"novo
management"
tomou
formas
muito
diversificadas:
contratualidade das relações sociais, descentralização das negociações entre assalariados e patrões no nível da empresa, colocação em concorrência das unidades da empresa entre elas ou com unidades externas, normalização pela imposição generalizada de padrões de qualidades, surgimento da avaliação individualizada dos resultados. A fronteira entre o que está dentro e fora da empresa tornaram-se mais fluídas com o advento da terceirização, a autonomização das entidades na empresa, o recurso ao emprego temporário, as estruturas de projeto, o trabalho recortado em "missões" e o uso de consultores externos. Isso levou a um enfraquecimento e uma instabilidade dos coletivos de trabalho. Essa gestão mais "personalizada" e mas fluída influencia a concorrência entre assalariados e entre segmentos da empresa para coagi-los por uma comparação dos resultados e dos métodos (benchmarking) a alinharse segundo um processo sem fim às performances máximas e às "melhores práticas". A avaliação torna-se a chave da nova organização o que não deixa de cristalizar as tensões de todos os tipos, por exemplo a que vem da contradição entre a injunção à criatividade e à tomada de risco e o julgamento social que vem como uma chamada a lembrar as relações efetivas de poder na empresa. Esse novo modo de organização da empresa teve conseqüências importantes para o trabalho e o emprego. Traduziu-se pela intensificação do trabalho, pelo encurtamento dos prazos, pela individualização dos salários. Esse último método, ligando a remuneração com a performance e a competência, aumenta o poder da hierarquia e reduz todas as formas coletivas de solidariedade. O management procura assim captar as energias individuais, não segundo uma lógica "artista" ou "hedonista" mas segundo um regime de autodisciplina que manipula as instâncias psíquicas de desejo e de culpabilização. Esse controle da subjetividade opera eficazmente só no quadro de um mercado de trabalho flexível onde a ameaça do desemprego está no horizonte de cada assalariado. É também o produto de técnicas de gestão que buscaram objetivar as coações de mercado e as exigências de rentabilidade financeira sob a forma de indicadores cifrados de objetivos e de resultados e, pela
individualização de performances medidas e discutidas no decorrer de conversas pessoais, fazer interiorizar pelos assalariados a necessidade vital de melhorar sem cessar sua "empregabilidade". O cúmulo do autocontrole, quer dizer também do mecanismo perverso que faz de cada um o "instrumento de si mesmo", acontece quando o assalariado é convidado a definir não só os objetivos que ele deve atingir mas também os critérios segundo os quais ele vai ser julgado. Racionalidade: a prática dos peritos e dos administradores Não se trata mais como no tempo do Estado de Bem Estar Social de redistribuir bens segundo um regime de direitos universais à vida, quer dizer à saúde, à educação, à integração social, à participação política, mas sim de apelar para a capacidade calculadora dos sujeitos para fazer escolhas e para atingir resultados postos como condições de acesso a um certo bem-estar. O que supõe que os sujeitos, para "serem responsáveis" disponham dos elementos de cálculo, dos indicadores de comparação, das traduções contábeis de suas ações ou ainda, mais radicalmente, da monetarização de suas escolhas: é preciso "responsabilizar" os doentes, os alunos e suas famílias, os estudantes, os que estão à procura de um emprego, fazendo que eles arquem por uma parte crescente do "custo" que eles representam, exatamente como é preciso "responsabilizar" os assalariados individualizando as recompensas e as penalidades ligadas a seus resultados. Esse trabalho político e ético de responsabilização está de acordo com numerosas formas de "privatização" da conduta porque a vida apresenta-se tão somente como o resultado de escolhas individuais.
Capítulo 12: O governo empreendedor Por razões contrárias, os "liberais" assim como os "antiliberais" parecem sempre ratificar a separação tradicional entre a esfera dos interesses privados e a do Estado, como se a primeira pudesse funcionar de modo autônomo e auto-regulado. Contudo, faz muito tempo que a fábula da imaculada conceição do mercado espontâneo e autônomo já foi posta em dúvida. Esquece-se demais do que o neoliberalismo não procura tanto o "recuo" do Estado e o alargamento dos campos da acumulação do capital quanto a transformação da ação pública fazendo do Estado uma esfera regida, também, pela regras da
concorrência e submetida às exigências de eficácia semelhantes às das empresas privadas. É a transformação da concepção da ação publica que mudou sob o efeito da lógica da competição mundial. Se o Estado for olhado como um instrumento encarregado de reformar e de gerir a sociedade para colocá-la a serviço das empresas, ele deve submeter-se ele mesmo às regras de eficácia das empresas privadas. O management se apresenta como um modo de gestão "genérico", válido para todos os campos, como uma atividade puramente instrumental e formal transponível para o setor público inteiro. Essa mutação empreendedora não visa simplesmente aumentar a eficácia e a reduzir os custos da ação publica: subverte radicalmente os fundamentos modernos da democracia, quer dizer o reconhecimento dos direitos sociais ligados ao estatuto de cidadão. Essa redução da intervenção política a uma interação horizontal com atores privados introduz uma mudança de perspectiva. Não é mais simplesmente, como no tempo dos primeiros utilitaristas, a questão geral da utilidade de sua ação que é colocada para o Estado, é a questão da medida quantificada de sua eficácia comparada à de outros atores. É essa nova concepção "desencantada" da ação publica que conduz a ver no Estado uma empresa situada no mesmo plano das entidades privadas, a qual "empresa estadual" tem só um papel reduzido em matéria de produção do "interesse geral". A instituição do mercado regido pela concorrência, construção querida e sustentada pelo Estado, foi confortada e prolongada por uma orientação que consistiu a "importar" as regras de funcionamento do mercado concorrencial no setor publico, no sentido mais largo, até pensar o exercício do poder governamental segundo a racionalidade da empresa. Da "governança de empresa" para a "governança de Estado" A palavra "governança" tornou-se a palavra chave da nova norma neoliberal na escala mundial. A palavra "governança" (gobernantia) é antiga: no século XIII, ele designa a arte de governar. O termo desdobrou-se progressivamente nas noções de soberania e de governo durante todo o período de formação dos Estados-Nações. Reencontrou um vigor nos países anglo-saxônicos para significar num primeiro tempo uma modificação das
relações entre managers e acionistas, antes de receber um significado político e um alcance normativo quando ele foi aplicado às práticas dos governos submetidos às exigências da mundialização. Torna-se então a categoria principal empregada pelos grandes organismos internacionais encarregados da difusão dos princípios da disciplina neoliberal na escala mundial. A polissemia do termo é uma indicação do seu uso. Permite de fato reunir três dimensões do poder, cada vez mais mescladas: a conduta das empresas, a conduta dos Estados e, finalmente, a conduta do mundo. Essa categoria política de "governança" ou, mais exatamente, de "boa governança", desempenha um papel central na difusão da norma da concorrência generalizada. A "boa governança" é a que respeita as condições de gestão colocadas para os empréstimos de ajuste estrutural e, em primeiro lugar, a abertura aos fluxos comerciais e financeiros, de modo que ela está estreitamente ligada a uma política de integração ao mercado mundial. Aos poucos, ela toma o lugar da categoria antiquada e desvalorizada de "soberania". Um Estado não deverá mais ser julgado sobre sua capacidade de assegurar sua soberania sobre um território, segundo a concepção ocidental clássica, mas sobre seu respeito das normas jurídicas e das "boas práticas" econômicas da "governança". A governança dos Estados empresta da governança da empresa um caráter maior. Assim como os managers da empresa foram colocados sob a vigilância dos acionistas no quadro da corporate governance a dominante financeira, os dirigentes dos Estados foram colocados pelas mesmas razões debaixo do controle da comunidade financeira internacional, de organismos de expertise, de agências de notação. A homogeneidade dos modos de pensamento, a identidade dos instrumentos de avaliação e de validação da políticas publicas, as auditorias e os relatórios de consultores, todo indica que a nova maneira de refletir a ação governamental tomou largamente emprestado da lógica managerial implementada nos grandes grupos multinacionais. A partir do momento em que os investidores estrangeiros respeitam as regras da corporate governance eles esperam que os dirigentes locais adotam as regras de state governance. Percebe-se assim que essa última consiste em uma tomada de controle dos Estados por um conjunto de instâncias supragovernamentais e privadas determinando os objetivos e os meios da política a
ser conduzida. Nesse sentido, os Estados são olhados como "unidades produtivas" como as outras no meio de uma vasta rede de poderes políticoeconômicos submetidos às mesmas regras. A nova norma concorrencial acarretou o desenvolvimento crescente de formas múltiplas de concessão de autoridade às firmas privadas, até o ponto que se pode falar, em múltiplos campos, de uma co-produção público-privada de normas internacionais. O Estado concorrencial não é o Estado árbitro entre os interesses: é o Estado parceiro dos interesses oligopolistas na guerra econômica mundial
Capítulo 13: A fábrica do sujeito neoliberal O sujeito neoliberal em formação é o correlato de um dispositivo de performance e de gozo que é o objeto de numerosos trabalhos mas esse quadro muito geral é ainda insuficiente para perceber como uma nova lógica normativa conseguiu se impor nas sociedades ocidentais. Particularmente, ele não permite apontar as modificações que a história do sujeito ocidental pôde conhecer nesses últimos três séculos, menos ainda as transformações em andamento que podem ser relacionadas à racionalidade neoliberal. É que, se existir um novo sujeito, ele deve ser apanhado nas práticas discursivas e institucionais que, no fim do século XX, geraram a figura do homem-empresa ou do "sujeito empreendedor" favorecendo a implementação de uma rede de sanções, de incentivos, de implicações que tiveram por efeito de produzir funcionamentos psicológicos de um novo tipo. Fazer acontecer o objetivo de reorganizar de ponta a cabeça a sociedade, as empresas, as instituições pela multiplicação e a intensificação dos mecanismos, dos relacionamentos e dos comportamentos de mercado, eis o que não pode não acarretar um tornar-se outro dos sujeitos. O homem neoliberal é o homem competitivo, integralmente imerso na competição mundial. O sujeito plural e a separação das esferas O sujeito ocidental vivia em três espaços diferentes: o das prestações e crenças de uma sociedade ainda rural e cristianizada; o dos Estados-Nações e da comunidade política; o do mercado monetário do trabalho e da produção. Essa repartição foi sempre muito flexível, e todo o jogo das relações de força e das estratégias políticas consistia precisamente em fixar e modificar as fronteiras. Mais importantes e mais difíceis a serem percebidos são as
modificações progressivas das relações humanas, a transformação das práticas cotidianas induzidas pela economia nova, os efeitos subjetivos das novas relações sociais no espaço mercantil e as novas relações políticas no espaço de soberania. As democracias liberais foram o universo de tensões múltiplas e de surtos disjuntivos. Podem ser descritas como regimes que permitiam e respeitavam em certos limites um funcionamento heterogêneo do sujeito, no sentido de que elas asseguravam ao mesmo tempo a separação e a articulação das diferentes esferas da vida. Essa heterogeneidade traduzia-se pela independência relativa das instituições, das regras, das normas morais, religiosas, políticas, econômicas, estéticas, intelectuais. Isso não quer dizer que se esgota, por essa característica de equilíbrio e de "tolerância", a natureza do movimento que as animou. Dois grandes surgimentos paralelos tiveram lugar: a democracia política e o capitalismo. O homem moderno, então, desdobrou-se: o cidadão dotado de direitos inalienáveis e o homem econômico guiado pelo próprio interesse; o homem como "fim" e o homem como "ferramenta". A historia dessa "modernidade" consagrou o desequilíbrio em favor do segundo pólo. Com a urbanização, a mercantilização das relações sociais foi um dos fatores mais poderosos da "emancipação" dos indivíduos em relação às tradições, das raízes, dos vínculos familiares e das fidelidades pessoais. Essa mercantilização expansiva tomou nas relações humanas a forma geral da contratualização. Os contratos voluntários engajando pessoas livres, contratos sempre
garantidos
pela
instância
soberana,
substituíram
as
formas
institucionais da aliança e da filiação e, mais geralmente, as formas antigas da reciprocidade simbólica. O contrato tornou-se mais do que nunca o padrão de todas as relações humanas. Assim, o indivíduo tem cada vez mais experimentado na sua relação com os outros sua plena e inteira liberdade de engajamento voluntário, percebendo a "sociedade" como um conjunto de relações da associação entre pessoas dotadas de direitos sagrados. Aí está o coração do que se chama de "individualismo" moderno. Como mostrou Émile Durkheim, existe uma grande ilusão na medida em que, no contrato, existe sempre mais do que o contrato: sem a garantia do Estado, nenhuma liberdade pessoal conseguiria existir. Pode se dizer também, com Michel Foucault, que debaixo do contrato existem muitas outras coisas
diferentes do contrato assim como debaixo da liberdade subjetiva, existe outra coisa diferente da liberdade subjetiva. Existe o agenciamento de processos de normalização e de técnicas disciplinares que constituem o que pode ser chamado de dispositivo de eficácia. Nunca os sujeitos seriam voluntariamente ou espontaneamente "convertidos" à sociedade industrial e mercantil somente pela propaganda da livre troca nem mesmo somente pela atração do enriquecimento privado. Foi preciso pensar e instalar, por uma "estratégia sem estrategistas", formas de educação do espírito, de controle do corpo, de organização do trabalho, de habitat, de descanso e de lazer que eram a forma institucional do novo ideal do homem, ao mesmo tempo indivíduo calculador e trabalhador produtivo. É esse dispositivo de eficácia que forneceu à atividade econômica os "recursos humanos" necessários, é ele que não cessou de produzir almas e corpos aptos a funcionar no grande circuito da produção e do consumo. Numa palavra, a nova normatividade das sociedades capitalistas impôs-se por uma normalização subjetiva do sujeito particular. Michel Foucault deu a esse processo uma primeira cartografia, problemática. O princípio geral do dispositivo de eficácia não é tanto um "adestramento dos corpos" quanto uma "gestão dos espíritos". Mais exatamente, seria preciso dizer que a ação disciplinar sobre os corpos foi só um momento e só um aspecto do funcionamento da subjetividade. O novo governo dos homens penetra até seu pensamento, o acompanha, o orienta, o estimula, o educa. Postular a liberdade de escolha, suscitar essa liberdade, constituí-la praticamente, supõe que os sujeitos sejam conduzidos, como por uma "mão invisível", a fazer escolhas que serão proveitosos para ele mesmo e para todos. O pano de fundo dessa representação não está tanto um grande engenheiro, segundo o modelo do Relojoeiro supremo, quanto uma máquina que funciona idealmente sozinha e que encontra em cada sujeito uma engrenagem pronta para responder às necessidades de agenciamento do conjunto. Essa engrenagem deve ser fabricada e ter manutenção. O sujeito produtivo foi a grande obra da sociedade industrial. Fabricar homens úteis, dóceis para o trabalho, prontos para consumir, fabricar o homem eficaz, eis o que é desenhado, já na obra de Bentham. Contudo, o utilitarismo clássico, apesar do seu formidável trabalho de destruição das categorias antigas, não conseguiu eliminar a pluralidade interior do sujeito assim como a
separação das esferas à qual essa pluralidade respondia. O princípio de utilidade, cuja vocação homogeneizadora era explícita, não conseguiu absorver todos os discursos e todas as instituições, assim como o equivalente geral da moeda não conseguiu subordinar todas as atividades sociais. É precisamente esse caráter plural do sujeito e essa separação que estão sendo questionados hoje. O momento neoliberal caracteriza-se por uma homogeneização do discurso do homem ao redor da figura da empresa. Essa nova figura do sujeito opera uma unificação sem precedente das formas plurais da subjetividade que deixava subsistir a democracia liberal e com as quais ela sabia jogar para melhor perpetuar sua existência. Várias técnicas contribuem para fabricar esse novo sujeito unitário que podemos chamar indiferentemente de "sujeito empreendedor" ou "sujeito neoliberal", ou, mais simplesmente ainda, neosujeito. Não lidamos mais com as antigas disciplinas orientadas, por coação, a adestrar os corpos e a dobrar os espíritos para torná-los mais dóceis, metodologia institucional em crise há muito tempo. Trata-se de governar um ser cuja a inteira subjetividade deve ser envolvida na atividade que ele deve cumprir. Para esse fim, deve se reconhecer nele a parte irredutível do desejo que o constitui. Não se trata mais tanto de reconhecer que o homem ao trabalho permanece um homem, não redutível ao status de objeto passivo; trata-se de ver nele um sujeito ativo que deve participar totalmente, engajar-se plenamente, entregar-se inteiramente na sua atividade profissional. O sujeito unitário é assim o sujeito do comprometimento total de si. É a vontade de realizar-se, o projeto que se quer levar adiante, a motivação que anima o "colaborador" da empresa, enfim o desejo que é o alvo do novo poder. O ser desejoso não é só o ponto de aplicação desse novo poder, é o retransmissor dos dispositivos de direção das condutas. Porque o efeito buscado pelas novas práticas de fabricação e de gestão do novo sujeito é fazer que o indivíduo trabalhe para a empresa como se fosse para ele mesmo, suprimindo assim qualquer sentimento de alienação e mesmo qualquer distância entre o indivíduo e a empresa que o emprega. Ele deve trabalhar para a própria eficácia, para a intensificação do próprio esforço, como se essa conduta de si viesse dele mesmo, como se fosse mandada de dentro dele pela ordem imperiosa do próprio desejo ao qual nem se pode pensar resistir.
As novas técnicas da "empresa de si" conseguem o cúmulo da alienação pretendendo suprimir todo sentimento de alienação: obedecer ao próprio desejo e ao Outro que fala baixinho dentro de si, é a mesma coisa. É o que pode ser obtido as finas técnicas de motivação, de incitação e de estimulação. A "cultura de empresa" e a nova subjetividade A governabilidade empreendedora tem a ver com uma racionalidade de conjunto que tira sua força de seu próprio caráter globalizante porque permite descrever as novas aspirações e as novas condutas dos sujeitos, de prescrever os modos de controle e de influência que devem ser exercidos sobre eles nos seus comportamentos e de redefinir as missões e as formas da ação pública. Do sujeito até o Estado, passando pela empresa, um mesmo discurso permite articular uma definição do homem com o modo pelo qual ele quer "ser bem sucedido" na sua existência assim como com o modo pelo qual ele deve ser "guiado", "motivado", "formado" e "capacitado" para alcançar seus objetivos. Em outras palavras, a racionalidade neoliberal produz o sujeito que ela necessita dispondo os meios de governar para que ele se conduza realmente como uma entidade em competição que deve maximizar seus resultados
expondo-se
a
riscos
que
deve
enfrentar
assumindo
a
responsabilidade por fracassos eventuais. "Empresa" é assim o nome que se deve dar ao governo de si mesmo na idade neoliberal. O novo governo dos sujeitos supõe de fato que a empresa não seja primeiro uma "comunidade" ou um lugar de realização, mas sim um instrumento e um espaço de competição. Perito de si mesmo, empregador de si mesmo, inventor de si mesmo, empreendedor de si mesmo: a racionalidade neoliberal leva o "eu" a agir sobre si mesmo no sentido de seu próprio fortalecimento para sobreviver na competição. As
técnicas
de
gestão
(avaliação,
projeto,
normatização
dos
procedimentos, descentralização) são supostas permitir objetivar a adesão do indivíduo à norma de conduta que é esperada dele, de avaliar por grades, e outros instrumentos de registro no "painel de bordo" do seu manager, sua implicação subjetiva sob pena de penalização no seu emprego, na sua remuneração e no seu plano de carreira. Isso não acontece sem arbitrariedades
de
uma
hierarquia
convidada
a
manipular
categorias
psicológicas apresentadas como devendo garantir a "objetividade" da medida das competências e das performances. A racionalidade empresarial apresenta a incomparável vantagem de reunir todas as relações de poder na trama de um mesmo discurso. O léxico da empresa apresenta um potencial de unificação dos diferentes "regimes de existência", o que explica que os governos recorram bastante a ele. Estabelecendo uma correspondência estreita entre o governo de si e o governo das sociedades, a empresa define uma nova ética, quer dizer uma certa disposição interior, um certo ethos, que precisa ser encarnado por um trabalho de vigilância exercitado sobre si e que os processos de avaliação são encarregados de reforçar e de verificar. A "empresa de si", segundo B. Aubrey representativo dessa corrente de pensamento, pode ser considerada como uma "entidade psicológica e social, quase espiritual", ativa em todos os campos e presente em todas as relações. É principalmente a resposta a uma nova regra do jogo que muda radicalmente o contrato de trabalho, ao ponto de aboli-lo como relação salarial. A responsabilidade relativamente à valorização de seu trabalho tornou-se o princípio absoluto. Em outras palavras, o trabalho tendo se tornado um produto cujo valor de mercado pode ser medido com cada vez mais precisão, o tempo veio de substituir o contrato salarial por uma relação contratual entre "empresas de si". Toda a atividade do indivíduo é concebida como um processo de valorização de si. Por isso o termo "empresa" não é metafórico: ele significa que a atividade do indivíduo em todas as suas facetas (trabalho remunerado, trabalho
voluntário,
gestão
da
família,
aquisição
de
competências,
desenvolvimento de uma rede de contatos, preparação de uma mudança de atividade...) é pensada como empreendedora na sua essência. "Management da alma"e management da empresa Tudo isso faz reportar todo o peso da complexidade e da competição unicamente sobre o indivíduo. Os "managers da alma" (expressão de Jacques Lacan retomada por Valérie Brunel) introduzem uma nova forma de governo que consiste em conduzir os sujeitos fazendo que eles assumam a espera de um certo comportamento e de uma certa subjetividade ao trabalho.
Uma nova ascética encontra sua justificação última numa ordem econômica que ultrapassa o indivíduo, porque é expressamente concebida para harmonizar a conduta do indivíduo à "ordem cosmológica" da competição mundial que o circunda. Trabalha-se sobre si mesmo para performar mais, mas esse trabalho para performar mais tem por finalidade que a empresa, que constitui a entidade de referência, performe mais. Mais ainda, os exercícios que são supostos trazer uma melhoria na conduta do sujeito visam a fazer do indivíduo um "microcosmo" em perfeita harmonia com o mundo da empresa e, além dela, com o "macrocosmo" do mercado mundial. Contrariamente às aparências, não se trata de aplicar no mundo da empresa conhecimentos psicológicos ou problemáticas éticas; trata-se, pelo contrário, pelo recurso à psicologia e à ética, de construir técnicas de governo de si que são elas mesmas parte do governo da empresa. Nem a empresa nem o mundo podem ser mudados: é um dado intangível. A gestão neoliberal de si consiste em fabricar um eu de alto desempenho, que exige cada vez mais de si e cuja auto-estima cresce paradoxalmente com a insatisfação para as performances já atingidas. Os problemas econômicos são vistos como problemas organizacionais que, por sua vez, são interpretados como problemas psíquicos ligados a um domínio insuficiente de si e a falhas nas relações com os outros. A fonte da eficácia está dentro da pessoa e não pode vir de uma autoridade externa. O trabalho intra-psíquico torna-se necessário para encontrar dentro de si a motivação profunda. O risco e a "accountability" O novo sujeito é olhado como proprietário de "capital humano" que ele deve acumular por escolhas esclarecidas e amadurecidas por um cálculo responsável dos custos e das vantagens. Os resultados conseguidos são frutos de decisões e de esforços somente imputáveis ao indivíduo e não levam a alguma compensação particular em caso de fracasso a não ser as contidas em contratos de seguros privados facultativos. A distribuição dos recursos econômicos e das posições sociais é exclusivamente olhada como a conseqüência do percurso, bem sucedido ou não, da realização pessoal. O sujeito executivo está exposto em todas as esferas da existência dele a riscos vitais aos quais não pode subtrair-se, a gestão deles dependendo de decisões
puramente privadas. Isso não é novo: o que é novidade está na universalização de um estilo de existência econômica reservado antigamente unicamente aos empreendedores. O risco é dado como uma dimensão ontológica que está ligada ao desejo que anima cada um. O estado social tratou na forma de seguro social obrigatório alguns riscos profissionais ligados à condição do assalariado. Hoje, a produção e a gestão dos riscos obedece a uma lógica totalmente diferente: trata-se de uma fabricação social e política de riscos individualizados a ser geridos não pelo Estado social mas por empresas sociais cada vez mais numerosas e poderosas que propõem serviços puramente individuais de gestão de risco. O risco tornou-se um setor de mercado na medida em que se trata de produzir indivíduos que poderão contar cada vez menos com formas de ajuda do seu ambiente de pertença ou com mecanismos públicos de solidariedade. Segundo Ulrich Beck, o capitalismo avançado é essencialmente destruidor da dimensão coletiva da existência. Ele destrói não só as estruturas tradicionais que o precederam, em primeiro lugar a família, mas também as estruturas que ele contribuiu a criar, como as classes sociais. A novidade do governo empreendedor reside no caráter geral, transversal, sistemático do modo de direção fundado na responsabilidade individual e no autocontrole. Essa faculdade responsabilidade não é dada como adquirida, ela é tida como o resultado de uma interiorização das obrigações. O indivíduo deve governar a si mesmo do interior por uma racionalização técnica da sua relação a ele mesmo. O essencial e fabricar o homem accountable. Seguindo os diversos sentidos da expressão inglesa em uso, isso significa que o indivíduo deve ser ao mesmo tempo responsável por si próprio e prestar conta dos seus atos para com os outros e totalmente calculável. A "entrada em contabilidade" dos indivíduos não os torna simplesmente responsáveis, eles tornam-se contábeis do seu comportamento a partir de escalas de medidas que são dadas pelas áreas de gestão de recursos humanos e pelos managers. A avaliação tornou-se o primeiro meio de orientar as condutas pela incitação para a performance individual. Ela pode se definir como uma relação de poder exercitada por superiores hierárquicos colocados em posição de expertise dos resultados, relação que tem por efeito de operar uma subjetivação contábil dos avaliados.
Aceitando
ser
julgado
por
avaliações
e
aceitando
suas
conseqüências, o sujeito torna-se um sujeito avaliável a cada instante, quer dizer um sujeito que sabe depender de um avaliador e das ferramentas que ele usa, isso porque ele foi formado a reconhecer antecipadamente a competência do avaliador e a validade das ferramentas. Assim o sujeito não vale mais pelas qualidades estatutárias que lhe foram reconhecidas durante seu percurso pessoal e profissional, mas pelo valor de uso diretamente mensurável de sua força de trabalho. O ideal,que constitui o modelo dessa atividade de avaliação, consistiria em poder avaliar o retorno produzido por cada equipe ou cada indivíduo considerados como responsáveis pelo valor em ações produzido pela sua atividade. Isso engaja uma lógica de verdadeira subjetivação financeira dos assalariados. Enquanto as novas tecnologias focadas na produção da "empresa de si" pareciam responder a uma aspiração dos assalariados para maior autonomia no trabalho, a tecnologia de avaliação aumenta sua dependência em relação à "corrente managerial". Obrigado a realizar "seu" objetivo, o sujeito da avaliação é obrigado igualmente de impor ao outro, seu subordinado, cliente, paciente ou aluno, as prioridades da empesa. As "transações" ocupam um lugar cada vez maior do que as "relações" e assim a instrumentalização dos outros ganha importância em relação a todos os outros modos possíveis de relação com o outro. O novo dispositivo performance/gozo Não se entenderia a amplitude do desabrochar da racionalidade neoliberal, nem as formas de resistência que ela encontra, se não se olhasse por ela como a imposição de uma força mecânica sobre uma sociedade e indivíduos que seriam seus pontos de aplicação externos. O poder dessa racionalidade se dá no estabelecimento de situações que forçam o sujeito a funcionar segundo os termos do jogo que lhe é imposto. É através da metáfora do esporte que se obtém esse esforço de competição generalizada e esse dever de performance (cf Ehrenberg). O sujeito neoliberal é produzido pelo dispositivo "performance/gozo". É pedido ao novo sujeito de produzir cada vez mais e de gozar cada vez mais. A máquina econômica não pode funcionar na base do equilíbrio ou da perda. Ela precisa visar sempre um além, um mais. Essa exigência própria do regime de acumulação do capital não tinha ainda
desenvolvido o conjunto dos seus efeitos. Isso acontece quando a implicação subjetiva é tanta que é a busca desse "além de si" que é a condição do funcionamento tanto do sujeito quanto das empresas. Subjetivação contábil e subjetivação financeira definem em última análise uma subjetivação pelo excesso de si sobre si mesmo ou pela superação infinita de si. Da eficácia para a performance O quadro natural do corpo humano, na economia clássica, impunha limites ao gozo e à performance que se tornaram hoje inaceitáveis. O corpo é hoje o produto de uma escolha, de um estilo, de uma modelagem. Cada um é contábil do seu corpo, que ele reinventa e transforma segundo a própria vontade. É esse novo discurso do gozo e da performance que obriga cada um a dar-se um corpo que possa sempre ir além de suas capacidades atuais de produção e de prazer. É esse mesmo discurso que equaliza cada um diante das novas obrigações: nenhuma condição de nascimento ou de ambiente pode ser um obstáculo intransponível para a implicação pessoal no dispositivo geral. Essa virado só foi possível a partir do momento em que a função "psi", suportada pelo discurso "psi", foi identificada como o motor da conduta e como o alvo de uma transformação possível por técnicas "psi". É pela combinação de uma concepção psicológica do ser humano, da nova norma econômica da concorrência, da representação do indivíduo como "capital humano", da coesão da organização pela "comunicação", do vínculo social como "rede", que se construiu aos poucos essa figura da "empresa de si". O discurso "psi" entendido como "tecnologia intelectual" permitiu conduzir os indivíduos a partir de um saber relativo à sua constituição interna. Assim fazendo, ele formou indivíduos que aprenderam a conceber-se como seres psicológicos, a julgar-se e a modificar-se por um trabalho sobre si mesmos, ao mesmo tempo que ele deu às instituições e aos governantes os meios de dirigir essas condutas. O discurso "psi", quando cruzou o discurso econômico, teve outros efeitos na cultura cotidiana dando uma forma científica à ideologia da escolha. Numa "sociedade aberta", cada um tem o direito de viver como ele entende, de escolher o que quer, de obedecer às modas que prefere. A livre escolha não foi recebida primeiro como uma ideologia econômica de "direita", mas sim como
uma norma de conduta de "esquerda", segundo a qual ninguém pode opor-se à realização dos seus desejos. Enunciados econômicos e enunciados de tipo "psi" encontraram-se para dar ao novo sujeito a forma de árbitro supremo entre "produtos" e estilos diferentes no grande mercado de códigos e de valores. É ainda essa conjunção que gerou essas técnicas de si visando a performance individual por uma racionalização managerial do desejo. Contudo, é uma nova modalidade dessa conjunção que permitiu o desdobramento do dispositivo de performance/gozo, modalidade que consiste não a perguntar-se em qual medida o indivíduo e a empresa, cada um com suas exigências próprias, podem adaptar-se um ao outro, mas sim como podem identificar-se o sujeito psicológico e o sujeito da produção. A liberdade tornou-se uma obrigação de performance. A normalidade não é mais um domínio e uma regulação da pulsões, mas sim seu estimulo intensiva como fonte primeira de energia. Porque é ao redor da norma da competição entre empresas de si que opera-se a fusão do discurso "psi" com o discurso econômico, que se identificam as aspirações individuais e os objetivos de excelência da empresa, que se acordam o microcosmo como o macrocosmo.
Conclusão Quatro grandes traços da razão neoliberal: 1. Contrariamente ao que pensavam os economistas clássicos, o mercado se apresenta não como um dado natural mas sim como uma realidade construída que requer enquanto tal a intervenção ativa do Estado assim como o estabelecimento de um sistema de direito especifico. 2. A essência da ordem de mercado reside não na troca mas sim na concorrência definida ela mesma como relação de desigualdade entre diferentes unidades de produção, ou "empresas". A missão do Estado é implementar a "ordem-quadro" a partir desse princípio "constituinte" da concorrência, de supervisionar o quadro geral e de vigiar o respeito desse quadro por todos os atores econômicos. 3. O Estado não é simplesmente o guardião vigilante desse quadro; ele é, ele mesmo, submetido na sua própria ação à norma da
concorrência. Segundo esse ideal de uma "sociedade de ordem privada", não existe nenhuma razão para que o Estado seja exceção às regras de direito que ele é encarregado de fazer aplicar. Resulta dessa primazia absoluta do direito privado um esvaziamento progressivo de todas as categorias do direito público que vai na direção não na supressão delas mas da perda de sua validade operacional. 4. A exigência de uma universalização da norma da concorrência excede largamente as fronteiras do Estado: ela atinge diretamente os indivíduos considerados nas relações que eles mantêm com eles mesmos. A "governança empreendedora" que deve prevalecer no nível da ação do Estado encontra um modo de prolongar-se no governo de si do "indivíduo-empresa", ou, mais exatamente, o Estado empreendedor deve, como os atores privados da governança, conduzir indiretamente os indivíduos a conduzir-se como empreendedores.