DRDufour - Smith Mercado

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DRDUFOUR

SMITH MERCADO


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A RELAÇÃO COM O OUTRO

Onde se sustentará que a invenção do mercado por Adão Smith remete à teologia.1 “Quero dizer que a invenção do Mercado por Adam Smith remete à teologia. Seguramente, muitos me reprovarão por afastar-me das belas e nobres questões teológicas, ontológicas e metafísicas para corrompe-las com a política, ver – supremo opróbrio – com a economia. Responderei simplesmente que não se entenderia nada a essa invenção do Mercado, que domina hoje o mundo, se não se percebesse que ela se inscreve plenamente nas problemáticas da Providência, quer dizer no modo pelo qual Deus governa a criação, propondo-se como alternativa ao antigo governo da cidade dos homens que funcionava a partir do modelo da Cidade de Deus. Falando claro, talvez fosse o momento de perceber que o capitalismo procede ele mesmo de uma metafísica cuja potência não precisa mais ser demonstrada porque conseguiu tomar conta do mundo.”2 É preciso lembrar o fato de que, na época exata (ao redor dos anos 1780) em que Kant elaborava suas formulações do imperativo categórico que ele apresentava como uma lei prática universal “Adam Smith propunha exatamente o contrário: a possibilidade de subtrair-se, no conjunto das condutas sociais, a qualquer princípio moral e transcendental. Porque a sociedade apresentava-se agora como um conjunto onde “todo homem vive da troca ou em alguma medida torna-se um comerciante”3, tornouse possível para cada um entregar-se inteiramente à atividade econômica e mercante, perseguindo objetivos perfeitamente egoístas; o interesse coletivo não devia ser menos bem atendido. Por que esse milagre? É simplesmente porque uma Providência intervém, identificada por Adam Smith (...) sob o nome, com conotação evidentemente religiosa, de “mão invisível”. Essa mão invisível é o que permite transfigurar os interesses egoístas em riqueza coletiva. Ela figura assim como a forma finalmente entendida e finalmente cumprida da Providência divina.”4 Vale a pena citar o famoso texto de Adam Smith: “Ao preferir sustentar a atividade interna em detrimento da atividade estrangeira, ele tem em vista a própria segurança; ao dirigir essa atividade de modo que sua produção tenha o maior valor possível, não pensa senão no próprio ganho,e neste, como em muitos outros casos, é levado por uma mão invisível a promover um fim que era, em absoluto, sua intenção promover. Além disso, nem sempre é pior para a sociedade que não tivesse intenção promover esse bem.

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É o subtítulo do capítulo terceiro do livro de Dany-Robert Dufour: DUFOUR, Dany-Robert, Le divin marché, la révolution culturelle libérale, Paris, Denoël, 2007 p. 91 ss 2 Ibid. p. 102 3 SMITH, Adam, A riqueza das nações, volume 1, São Paulo, Martins Fontes, 2003, Livro I cap. 3 p. 29. A citação consta no próprio texto citado de Dufour. 4 DUFOUR, op. cit. p. 103


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Ao buscar seu interesse particular, não raro promove o interesse da sociedade de modo mais eficaz do que faria se realmente se prestasse a promovê-lo.”5 Uma mão invisível toma conta de tudo, enquanto os indivíduos entregamse ao único objetivo da maximização egoísta de seus ganhos! Por isso, não adianta querer escapar a esse “espírito escondido”: ele age assim mesmo! Dufour comenta esse texto de Smith: “Deus pensou em tudo e nos não sabíamos. Eis nos finalmente livres do imperativo categórico, excessivamente pesado, consistindo a ter sempre presente ao espírito uma lei a ser seguida em toda a vida prática. O Mercado corresponde assim a uma tentativa para produzir um grande Sujeito suscetível de ultrapassar em poder todos os antigos (Deus, a Lei) graças a essa Providência enfim decifrada, aceita e, sobretudo, colocada em prática. Basta, em suma, para que tudo esteja finalmente bem, submeter-se a essa força, incoercível e sem limites, que representa como tal um grau superior de regulação, uma forma última e, finalmente, verdadeira de racionalidade que se manifesta, não somente por eventuais efeitos simbólicos, mas sobretudo pela extensão infinita da riqueza. (...) Tudo que se parece com um desejo de regulação moral ou política proviria de tentativas derrisórias do homem tentando submeter a Providência aos seus miseráveis pequenos cálculos. É preciso, segundo a palavra de ordem do liberalismo, “deixar fazer”, porque, no fundo, é deus que faz. O liberalismo, nesse sentido, está no fundamento do desenvolvimento do capitalismo.”6 “Cada deus possui sua particularidade.(...) A particularidade do Mercado é que ele não figura mais uma origem. Ele se apresenta como uma imanência transcendente, fusionando o infinitamente múltiplo em super-unidade. (...) O Mercado, de fato, conhece nem o passado nem o futuro; ele se desenvolve sempre no presente, é só um puro espaço de troca generalizada onde os fluxos cruzam, conectam e desconectam-se: fluxos de energia, de dinheiro, de matéria cinza, de mercadorias, de formas, de imagens. Daí a fortuna atual da rede que se tornou modelo de funcionamento de todas as relações compondo as sociedades liberais. A rede caracteriza-se pelo horizontalismo de todas as relações.”7 O problema é que quando Smith descobriu esse novo deus e que se entusiasmou por ele, não pensou que essa prodigiosa Providência deixava as pessoas frente a frente com o tormento do problema da origem. “O deus dele é um deus sem narrativa de fundação, um deus reduzido a uma pura Providência do acontecível.”8 “O pensamento de Smith inscreve-se num grande movimento contemporâneo de uma teologia científica de inspiração newtoniana. Kant não está alheio a esse

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SMITH, Adam, A riqueza das nações, volume 1, São Paulo, Martins Fontes, 2003, Livro IV cap. 2 p. 567 6 DUFOUR, ibid. p. 104 A grafia é do autor. 7 Ibid p. 108 8 Ibid. p. 109


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desejo: ele queria re-fundar a metafísica segundo o modelo da física newtoniana. (...) Kant está convencido do que o que Newton tinha feito para o universo cósmico devia ser feito para a metafísica, enquanto Smith está convencido de que isto deve ser feito para o universo humano. (...) O que faz de Smith o irmão inimigo de Kant é que, partindo da necessidade de alinhar seus objetos com a ciência, eles chegaram a duas conclusões perfeitamente opostas; enquanto, para Smith, é preciso deixar fazer, quer dizer desregular para que o desígnio divino possa realizar-se inteiramente, para Kant, é preciso absolutamente regular: a moral deve ser fundada no imperativo categórico consistindo em dar-se uma lei a seguir na vida prática.”9

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Ibid. p. 133. 137


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