GÉNÉREUX
LA DISSOCIÉTÉ
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LA DISSOCIEDADE
O livro de Jacques Généreux oferece uma reflexão sobre os mecanismos da nossa sociedade, explorando os fundamentos teóricos a partir dos quais o modelo atual consegue não ser questionado por aqueles que mais sofrem por causa dele!1 CRISE DO FATOR POLÍTICO E CRISE DO SOCIAL2 A idéia que existe uma vida coletiva, uma vida da nação, que condiciona sua própria existência e que, por sua vez, depende da participação que eles querem ter, parece para nossos contemporâneos totalmente estranha. A política, pouco a pouco, nos deixou. Ela pareceu impotente frente ao aumento das desigualdades, da precariedade e da pobreza, inclusive nos países ricos. Ela nos entregou a uma competição cada vez mais áspera entre as nações assim como entre os indivíduos, dizendo que era para nosso bem e que não tínhamos escolha. Qualquer que fosse a cor ideológica do governo, fomos submetidos à lei da livre concorrência e obrigados a assumir a prioridade da competitividade. Tivemos alternâncias sem alternativa política. A política se tornou desprezível por causa da multiplicação dos casos de corrupção. Pode se temer que para as gerações que não conheceram o heroísmo ou a utilidade social dos responsáveis políticos, a imoralidade, o egoísmo e o desprezo do bem público constatados nas altas esferas de poder dêem mais exemplo do que nojo. A VITÓRIA DO MEDO E A SEGUNDA CRISE DO SÉCULO XX O essencial do mal estar político não está, porém, simplesmente no problema da corrupção. Ele está no enfraquecimento da função primitiva do político: fornecer para qualquer um a segurança mínima de viver numa sociedade e não numa selva, entregue sem defesa ao acaso e à lei do mais forte. A primeira derrota do fator político é a vitória do medo. Depois da insegurança econômica dos anos 80, precisava descobrir que, mesmo sem desemprego e sem guerra, nossa vida estava
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GÉNÉREUX, Jacques, La dissociété, Paris, Éditions du Seuil, 2006 Ibid. capítulo 1
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suspensa ao bom prazer dos empreendedores que podiam decidir injetar sangue contaminado ou servir bifes de vaca louca. Com as companhias de seguro, conseguimos lidar com riscos previsíveis e ligados a causas externas evitáveis. Somos, contudo, desamparados frente a riscos sistêmicos: as ameaças globais geradas pela própria sociedade que Keynes chamou de “incerteza radical”, a que escapa a qualquer cálculo de probabilidade porque não se sabe o que pode acontecer ou não. Frente a tais incertezas radicais, a única garantia é a existência de uma autoridade suficientemente preocupada com o interesse geral para impedir a busca do lucro seja mais importante do que a segurança sanitária e o direito ao trabalho, para sempre socorrer e indenizar as vítimas, para obrigar as empresas a respeitar as normas ambientais e as companhias de seguros a honrar seus compromissos. A intuição fundamental é que nossa única garantia contra as violências do mundo, sejam elas visíveis ou simplesmente pressentidas, é a certeza de viver ainda numa sociedade humana onde cada um tem direitos mínimos, a começar pelo direito primeiro de permanecer membro dessa sociedade, quer dizer de nunca ser abandonado pelos seus. Essa última certeza foi desestabilizada ou destruída pela incapacidade das democracias em conter a grande crise social do século XX, que levou a um ressurgência da pobreza e do desemprego em massa nos países ricos. Todos os medos que seguiram foram mais destruidores da confiança na política porque pegaram pessoas já angustiados pela perspectiva de viver não numa sociedade mas no campo de batalha onde cada um devia ganhar e defender o próprio lugar numa luta desigual. A crise do fator político se alimentou da incapacidade das democracias de responder às mudanças tecnológicas, políticas e sociais por uma reação ordenada e solidária que poderia ter evitado a exclusão das minorias menos armadas para enfrentar os choques, que teria recusado um mundo de competição generalizada onde cada um é condenado (mesmo os vencedores) à angústia solitária e permanente da performance. Não se aproveitou as lições trazidas pela crise de 29 e o conseqüente crescimento do totalitarismo. Quando a crise ressurgiu nos anos 70, a reação dos grandes paises democráticos foi o mesmo coquetel de covardia, de miopia e de miséria social. De novo aconteceu uma guerra mundial: a guerra da economia estendida ao conjunto do planeta pela livre concorrência e a desregulamentação. Muitos paises aceitaram que o custo das mutações tecnológicas fosse pago pelas vitimas: os operários e os profissionais pouco qualificados. As democracias tiraram
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as lições econômicas da Grande Depressão e não as lições políticas. Tudo foi feito para evitar que uma nova crise mundial tenha efeitos catastróficos sobre a economia: foi um sucesso. O grande paradoxo da nossa época foi de ver ressurgir os mesmos flagelos sociais e o mesmo medo do que nos anos 30, sem a depressão econômica que os causaram. É que, se tudo foi feito para preservar a economia de um colapso brutal e destruidor, nada foi pensado ou feito para evitar uma partilha cada vez mais desigual desse sucesso, para impedir que os choques derrubem a sociedade provocando a secessão entre os ganhadores e os perdedores da competição. Compreenderemos que neoliberalismo consiste em explorar a ameaça da crise econômica para impor e justificar uma sociedade mais desigual. Tivemos a crise social sem a crise econômica, e aqui está o primeiro fermento da crise política. Somos confrontados ao paradoxo de uma riqueza exuberante e crescente que, todavia, deixa as nações poderosas na incapacidade de evitar a miséria. O PARADOXO DA POTÊNCIA IMPOTENTE DAS “DEMOCRACIAS” A crise intima do político, o mal estar que se instala no espírito dos cidadãos, reflete a intuição complexa que a impotência aparente dos políticos está ligada com uma potencia política bem real, mas desviada, ociosa e indiferente quando ela poderia socorrer, fútil quando ela poderia produzir sentido. Esse estrago político reenvia os indivíduos à sua própria “potencia impotente”. Enquanto cidadãos, eles dispõem de todos os direitos e de todos os poderes que lhes permitem fazer e desfazer os governos. Mas eis que eles são incapazes de mudar as políticas, sendo assim confrontados a uma democracia de fachada, enquanto eles ainda acreditavam, ainda, viver no melhor dos sistemas. A desilusão em relação ao poder político mascara uma desilusão mais grave: em relação à própria democracia. Nunca as nações e os governos tiveram tantos instrumentos, de conhecimentos, de meios financeiros. Nunca os cidadãos dispuseram de tantas informações, de espaços e de tempos livres para o debate publico, de direitos, de instrumentos de expressão e de comunicação. Ao mesmo tempos, nunca nos sentimos tão desamparados frente a caminhada da Historia. O maior paradoxo do inicio do século XXI é a impotência dos povos os mais poderosos a orientar o próprio destino. Essa evidencia remete à própria responsabilidade: o poder do cidadão só pode ser assegurado na medida em que existe a condição mínima que ele o
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reivindica. Como levar a democracia até o fim de sua promessa – o poder do povo soberano – se o começo da democracia não for assegurado: a vontade de reivindicar esse poder, o desejo de exercê-lo. O paradoxo é que os cidadãos mais conscientes fogem os partidos em vez de tentar reformá-los. O sentimento mais comum é o sentimento misto, contraditório e angustiante de que uma alternativa é necessária e inexistente. Existe um circulo vicioso que gera resignação e solidão: no nível da sociedade, o individuo não pode ter segurança de nada em relação ao comportamento dos outros; ele pode somente apostar e fundamentar-se em crenças. Para sair desse círculo, não basta que o individuo saiba que em teoria uma mobilização coletiva melhoraria a sorte de todos. Ele precisa acreditar que, na prática, os outros vão mobilizar-se. O individuo deve apostar que seu engajamento e sua atitude cooperativa serão imitados por um grande numero de pessoas. Deve apostar que seu desejo de um mundo comum mais cooperativo é largamente compartilhado pelos outros, ele deve acreditar que vive numa verdadeira sociedade humana onde o desejo de viver bem juntos é mais forte do que o medo do outro e a rivalidade. Ora, a conseqüência maior da lógica de competição generalizada que tomou conta do mundo é justamente destruir essa aposta e essa crença. De fato, a lógica de guerra econômica degenera em “guerra incivil” que nos dissocia uns dos outros e destrói o sentimento de pertença à sociedade, porque o lugar de cada um na sociedade de competição generalizada não é mais um direito: é o resultado incerto e vulnerável de um combate permanente. Todos devem se comportar como guerreiros, em vencedores, para escapar à exclusão e ao estigma reservados aos menos performers. O que se chamou de “sociedade de mercado”, para designar a colonização de todo o espaço social pela lógica mercante, nos conduz para uma não-sociedade, ou mais exatamente uma “dissociedade”3 que justapõe os indivíduos (ou sub-comunidades de indivíduos) rivais e fechados em si mesmos. Ora ninguém pode tornar-se ou voltar a ser cidadão lá onde não existe uma cidade. Esse livro é motivado pela convicção que, na época dos riscos globais, dos riscos maiores, a mais iminente e a mais determinante das catástrofes que nos ameaça é essa mutação antropológica, bem avançada, que pode transformar no
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prazo de uma ou duas gerações, o ser humano num ser dissociado, fazer bascular as sociedades desenvolvidas na desumanidade de “dissociedades” povoadas por indivíduos posicionados (dressés) uns contra os outros. Erradicar esse risco comanda nossa capacidade de enfrentar os outros. Somente autenticas sociedades, soldadas pela solidariedade e a primazia do bem comum sobre a performance individual, estão em condição de atingir o nível considerável e inédito de cooperação e de coesão indispensáveis, nas nações e entre as nações, para enfrentar os dois grandes desafios do século XXI: evitar uma guerra de civilizações e assegurar de um modo democrático a grande mudança de modos de vida e de produção sem a qual o planeta torna-se inviável. É um problema de consciência política: a dissociedade não é uma disfunção técnica cuja correção chamaria a invenção de políticas inéditas. Trata-se de uma doença social degenerativa que altera as consciências inoculando nelas uma cultura falsa mas auto-realizadora. As sociedades de mercado são contaminadas por uma cultura neoliberal: individualista, “mercadista” e anti-política. A partir de um limiar critico de contaminação dos espíritos, ela se torna autorealizadora: convencidos de viver já e para sempre num campo de batalha, os indivíduos se comportam como guerreiros e não como cidadãos. Em vez de construir uma sociedade, eles geram um mundo hostil onde é cada vez mais racional comportar-se como guerreiro. Trata-se de um processo cumulativo, onde cada fase de dissolução da sociedade e dos vínculos de solidariedade justifica e reforça a debandada solitária dos indivíduos no medo e na aversão dos outros, debandada que acentua a regressão coletiva e torna mais árdua toda ação para inverter o senso das políticas e das crença sociais. O diagnóstico clinico pode ter um efeito determinante em termos de patologia social. Se cada um, ou cada cidadão militante, toma consciência que somos coletivamente vitimas e atores de uma cultura errônea portadora de um vírus social mortal, é um passo suficiente em direção da cura. A política pode fazer o resto, desde que uma maioria de cidadãos está convencida de que a via em direção de uma sociedade humana é não somente preferível à de uma dissociedade, mas é uma questão de vontade coletiva. Essa é a primeira convicção que a cultura neoliberal consegue destruir.
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Transfiro para o português o neologismo criado pelo autor ibid. p. 28 e o usarei todas as vezes que
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DO PACTO SOCIAL À GUERRA ECONÔMICA4 Por que e como um mundo caracterizado pelo quase pleno emprego, um real progresso social e uma regulação política dos mercados cai em alguns anos na crise social e no desengajamento político que acabamos de evocar. Foi popularizada a idéia de que essa mudança seria fruto de uma inelutável amputação das margens de manobra dos governos. A política teria sido obrigada a ceder às exigências dos mercados. Esse quase lugar comum constitui hoje o ponto de partido não debatido de toda reflexão sobre o futuro do mundo. Ora a idéia de um poder político submerso pelo alargamento do espaço e do poder da economia mundial é uma idéia falsa. É uma mistificação que fantasia a guerra econômica em causa da desregulação do poder político quando, de fato, é um efeito deliberadamente escolhido. Esse caminho foi aberto pela vontade política dos governos nacionais que, mesmo depois de um quarto de século de mundialização, conseguiriam escolher um outro caminho. Todas as nações não se engajaram nesse caminho, em particular os Estados Unidos, que encorajaram os outros a fazê-lo. Na política, como nas bolsas, as crenças podem ser autorealizadoras porque fabricam os comportamentos que determinam por sua vez a realidade. Longe de ser submetido à economia, o poder político foi seqüestrado a serviço de interesses particulares, em nome de um projeto político. Tivemos uma primeira mundialização que aconteceu no fim do século XIX e no início do século XX e que levou à crise de 29. Karl Polanyi, no seu livro “A grande transformação” analisou como os malefícios dessa primeira mundialização conduziram a um questionamento do capitalismo liberal e suscitam a grande transformação que é regulação da economia que acontece depois da Grande Depressão, imposta pelo nazismo, o fascismo e o comunismo e, finalmente, institucionalizada pelas democracias depois dos anos 405. Isso acontece ao mesmo tempo que o sindicalismo se desenvolve, o sufrágio universal ocupa espaço e que são votadas as primeiras leis que melhoram as condições de trabalho e colocam as bases de uma proteção social. A primeira mundialização, longe de acompanhar um
o autor o usa no seu texto. 4 Ibid. capítulo 2 5 POLANYI, Karl, A grande transformação, as origens da nossa época, Rio de Janeiro, Editora Campus, 2000 (ed original 1944)
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recuo da regulação política da economia, acompanha a tomada de consciência da necessidade de tal regulação e os primeiros passos de sua implementação. Ao contrario da primeira mundialização, a segunda mundialização intervém não na continuidade de uma fase de extensão regular do capitalismo liberal, mas no termo de uma fase de expansão do Estado social, da planificação, das políticas keynesianas, da redistribuição de renda, da regulação das finanças internacionais etc. Ela acompanha o recuo voluntário das soberanias nacionais, o desmantelamento do direito social, as privatizações e a desregulamentação das finanças. Na primeira mundialização, pode se dizer que as elites políticas e econômicas não sabiam ou não podiam avaliar bem as conseqüências do processo que estava em andamento. Não se pode dizer a mesma coisa das elites que governam a partir do fim do século XX. Sabem que a guerra econômica conduz à guerra, que a democracia parlamentar pode gerar o totalitarismo, que os mercados perfeitamente livres provocam desequilíbrios, crises, desemprego, desperdício, privatização dos bens públicos, catástrofes ecológicas; sabem que uma regulação política da economia de mercado é possível e muito eficaz quando se vê a prosperidade e os progressos sociais das Trinta Gloriosas. Daí o paradoxo: por que os instrumentos políticos que contribuíram para a prosperidade das três décadas depois da guerra são desprezados no mesmo momento em que a quebra do ritmo de crescimento e o aumento do desemprego deveriam fundamentar uma intervenção mais forte dos governos? Não é a livre circulação dos capitais que obriga a desregulamentação dos mercados financeiros: é o contrario. É uma questão de escolha e de forças políticas. A guerra econômica não é uma fatalidade: os órgãos de cooperação internacional ou as instituições da Comunidade européia ofereciam um espaço de coordenação onde os grandes paises industriais poderiam ter decidido conter a competição mundial num quadro compatível com a manutenção da coesão social. As virtudes da concorrência são compatíveis com qualquer nível de regulação e de proteção social, desde que existam oportunidades de lucro e que todos os atores estejam submetidos às mesmas regras. Bastou que alguns paises renunciem à regulação dos mercados para dissuadir os outros de preservá-la. Assim, o aumento da pobreza e da exclusão não era a conseqüência inelutável de uma lei natural da economia: existia a escolha entre varias estratégias
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de adaptação e de reação. Um sistema econômico nunca é a aplicação pura e simples de regras advindas de um qualquer tratado universal de economia política, mas é um compromisso social complexo refletindo fundamentalmente uma relação de força política entre os atores de uma situação. O quase consenso liberal dos anos 80 forjou-se no momento em que as relações de força foram radicalmente modificados a favor dos detentores de capital e no momento em que um grande número de eleitores e os responsáveis políticos encontraram vantagens nesse novo cenário. O DESABAMENTO DO PACTO SOCIAL6 No período de crescimento extensivo dos anos 50-80 (Trinta Gloriosas), o capital precisava de uma mão de obra abundante, mesmo que pouco qualificada, a ponto de desenvolver a imigração para compensar a insuficiência da população ativa nacional; precisava da difusão do poder aquisitivo para criar saídas necessárias para a produção de massa das industrias de consumo. Era favorável a um Estadoprovidencia que garantia a renda e a estabilizava frente às flutuações da conjuntura. O capital também tinha medo da subida do comunismo: necessidade econômica e medo político se conjugavam para promover um pacto social: o poder de gestão dos detentores de capital não era contestado mas, em contraparte, o capital aceitava uma maior progressão dos salários, dos direitos sociais estendidos e a melhoria das condições de trabalho. O capitalismo tinha entrado numa segunda idade caracterizado pelo compromisso social e pela regulação política. A partir dos anos 70, os fundamentos objetivos desse pacto social são, um por um, abalados. A evolução tecnológica (telecomunicações, informática, robótica), a concorrência aumentada de novos paises industriais e a ruptura nítida do ritmo de crescimento econômico, se conjugam para incitar as empresas a comprimir os custos limitando o emprego e/ou a progressão dos baixos salários. Nos paises ricos, as taxas de equipamento das famílias aproximam-se da saturação. Em conseqüência, a prosperidade das empresas não é mais garantida pela produção em massa dos bens de consumo estandardizados. Torna-se mais incerta e depende da capacidade em desenvolver novos produtos com alto valor agregado, encontrar mercado no exterior e adaptar-se rapidamente às variações da demanda e às
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Ibid. p.43 ss
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inovações dos concorrentes. As empresas precisam de uma mão de obra mais móvel, mais flexível e mais bem formada. Podem dispensar os trabalhadores de pouca qualificação pela robotização das tarefas repetitivas. É verdade que desempregando assalariados, as empresas perdem clientes; contudo, essa perda é compensada pela compressão dos custos e pela demanda renovada de todos aqueles que conservam o emprego e cujo poder aquisitivo continua progredindo. No mercado de trabalho, o aparecimento de um desemprego de massa inverte a relação de forças a favor dos empregadores. A ameaça continua de demissão obriga quem conserva o emprego a aceitar a “moderação salarial” e as novas exigências de mobilidade, de flexibilidade e de produtividade associadas à intensificação da concorrência internacional. No prazo de quinze anos, a gestão da produção e as condições de trabalho sofrem uma completa metamorfose concebida para garantir a rentabilidade financeira máxima. O medo do desemprego não é instrumentalizado somente para obter dos assalariados todos os sacrifícios necessários a rentabilidade do capital, mas serve também a pressionar os governos para reivindicar, em nome da defesa do emprego, uma redução dos encargos fiscais e sociais. O contra poder sindical é laminado por uma nova organização do trabalho flexível que destrói os coletivos de trabalho, promove a gestão individual das carreiras e a competição interna entre assalariados. Com a destruição do muro de Berlim, acaba o medo do comunismo. Não encontrando resistência, os dirigentes de grandes empresas vão até o fim de suas vantagens. Isso significaria que o horror social é fruto de uma conspiração das firmas multinacionais? É provável que elas tiram vantagem da situação. Mas isso não explica como um clube de algumas centenas de dirigentes pode impor suas escolhas num sistema onde todo mundo vota. Se os interesses das firmas multinacionais acabaram dominando as escolhas políticas validadas pelas eleições, isso pode significar que eles correspondem às aspirações de uma boa parte da sociedade. De fato, para todos que não se sentem ameaçados pelo desemprego (executivos, técnicos qualificados, funcionários), a “coesão social” representa um custo que é preciso minimizar; são incapazes de avaliar e antecipar os custos que eles deverão suportar um dia em função da exclusão de uma parte da sociedade para uma condição de precariedade e de pobreza. Nada de estranhar que os governos representativos não resistiram ao
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desemprego dos menos qualificados e tenham aceitado a pobreza dos menos qualificados. Nos anos 80, a sociedade européia, depois da Inglaterra e dos Estados Unidos, aceita-se que o objetivo do pleno emprego não seja atingido, que era o objetivo unanimemente perseguido. A nova prioridade é: a desinflação. A conversão geral e rápida aos dogmas do rigor monetária e da inflação mínima só se produziu porque ela apresentava um interesse para as elites dirigentes. Por que essa conversão é desejada pelos políticos e aceita pela sociedade? Se a inflação é tão ruim, por que ela foi tolerada tanto tempo? Porque todo mundo, tirando quem vivia de rendimentos financeiros, era favorecido por políticas de expansão monetária: os rendimentos nominais dos assalariados e das empresas progrediam mais rapidamente do que a inflação. Uma tal política monetária traduzia-se por taxas de juros baixas ou negativas o que favorecia o investimento e o financiamento bancário das empresas; favorecia também o financiamento para o consumo. Os únicos perdedores dessa política monetária eram aqueles que tiravam uma parte essencial da sua renda de aplicações financeiras: não conseguindo achar nas taxas de juros uma remuneração estimulante, eles aplicavam em ações. Aí também, suas exigências em termos de rentabilidade eram limitadas por as dos managers que privilegiavam outros objetivos porque tinham um acesso fácil aos financiamentos bancários e eram relativamente independentes dos seus acionistas que não estavam em posição de força para exigir dividendos. Se quem vivia de rendimentos financeiros tinha interesse numa reviravolta de políticas monetárias a favor da desinflação e de uma melhor remuneração da poupança, eles estavam isolados numa sociedade que tolerava a inflação e aproveitava o credito quase gratuito. Na virada dos anos 70 para os anos 80, as aspirações dos aplicadores tornaram-se de toda uma geração de executivos: eles pertenciam a uma classe intermediária que tinha constituído um patrimônio imobiliário e uma poupança financeira. Uma vez esse patrimônio constituído, não precisavam mais do credito gratuito e esperavam taxas de juros mais altas que remunerariam melhor sua poupança, o que significa que a inflação não tinha mais nenhum atrativo. Por outro lado, a aceleração da inflação consecutiva aos choques dos custos de produção esconde um conflito para a repartição dos ganhos. No fim dos anos 60 nos grandes paises industriais, uma série de movimentos sociais desemboca numa forte revalorização dos baixos salários. Contudo, as empresas
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esforçam-se de restaurar a parte do capital, compensando o aumento dos salários por uma alta dos preços. A mesma reação prevalece depois dos choques petroleiros. Os patrões tentam de fazer pagar a maior parte da fatura pelos assalariados via alta dos preços. Esses últimos reagem por reivindicações salariais para compensar a erosão do seu poder de compra o que causa novas altas dos preços e assim sucessivamente. Essa guerra arrisca-se de degenerar num espiral inflacionário infinito enquanto um dos guerreiros não consegue dominar o outro. Os quadros políticos e econômicos, os empresários e, mais largamente, todas as famílias mais ou menos abastecidas que têm um patrimônio imobiliário e/ou financeiro, têm hoje um interesse objetivo para o endurecimento das políticas monetárias que aumentam as taxas de juros e engajam a desinflação. Os efeitos dessa reviravolta são conhecidos: explosão do desemprego nos paises ricos, insolúveis dificuldades de pagamento para os paises em desenvolvimento, endividados. Esses efeitos não são desastrosos para todos: eles reforçam as conseqüências esperadas pelos promotores da nova política econômica, quer dizer a mudança das relações de forças a favor dos detentores do capital. O rigor monetário e o desemprego são as ferramentas políticas pelas quais os governos colocam um ponto final ao conflito para a repartição do valor agregado impondo um ganhador: o capital. Na mesma época, na maior parte dos grandes paises industriais, a liberalização das operações financeiras instala um vasto mercado financeiro mundial e aberto. Os capitais podem circular de um país para o outro, os operadores financeiros podem soltar sua criatividade para criar instrumentos adaptados a essa nova realidade mundial. É preciso distinguir a retórica oficial e os verdadeiros interesses que justificam essa desregulamentação. Segundo o credo neoliberal, uma total liberdade de gestão e de circulação dos capitais é o melhor meio de assegurar uma alocação eficaz dos recursos. Num vasto mercado mundial onde os analistas profissionais julgam em permanência a gestão e a performance dos paises, das empresas e dos governos, os capitais são constantemente redistribuídos das atividades menos lucrativas para as mais lucrativas. Todavia, a teoria econômica moderna e a experiência recente mostram que essa bela crença nas virtudes do mercado é uma teologia sem fundamento. A crença na vigilância dos “analistas profissionais” ficou abalada depois das falências da Enron e da Andersen. As contas de numerosas grandes
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sociedades, embora certificadas por grandes empresas de auditoria, são tanto mais falsas quanto mais a situação da empresa é complicada. A razão encontra-se numa das grandes virtudes do mercado que consiste em agradar sempre o cliente. Os auditores fecham os olhos sobre a falsificação das contas e emitem relatórios satisfatórios para conservar os clientes e satisfazer sua hierarquia que deve poder mostrar bons resultados financeiros da própria empresa. Mesmo sem malversação, o uso dos capitais não é espontaneamente ótimo. Sempre se prefere investir capitais na renovação do parque de telefonia celular dos paises ricos do que na erradicação da AIDS na África. O dinheiro vai lá onde pode se reproduzir e não onde ele é necessário. Que a livre circulação dos capitais seja um excelente meio de selecionar as oportunidades as oportunidades de lucro imediato, ninguém duvida. Contudo, é evidente que a taxa de rendimento financeiro não é o bom indicador para saber onde a humanidade julga que ele é o mais útil, o mais urgente e o mais justo de investir. Finalmente, a desregulamentação mundial dos movimentos de capitais e dos mercados financeiros gerou crises financeiras internacionais repetidas. Todos os especialistas, liberais ou não, reconhecem nessa instabilidade financeira o efeito da desregulamentação anárquica dos mercados financeiros. A desregulamentação financeira não se justifica pela pretensa busca de uma otimização econômica ou social. Sua verdadeira razão de ser fica clara quando se descobre quem encontra aí seu interesse. A TERCEIRA IDADE DO CAPITALISMO7 Estamos passando de um capitalismo managerial para um capitalismo “mercadista” comandado pelos fundos de grandes investidores. Os grandes acionistas podem atualmente fazer valer suas exigências. Pelo intermediário dos administradores (investidores institucionais), exigem estratégias de gestão que maximizam os valores dos capitais investidos. Nasce a nova religião da empresa: a criação de valor para o acionista. Um objetivo de rentabilidade financeira se impõe rapidamente como norma de referencia: um rendimento anual do capital de 15%, mais de três vezes mais do que era considerado satisfatório nos tempos anteriores. Paradoxalmente, os detentores do capital querem explorar seu novo poder num
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momento em que é mais difícil ganhar dinheiro. Como triplicar o rendimento do capital quando o crescimento do produto nacional é dividido por dois e a competição cada vez mais feroz? Se todos quiserem o progresso para si mesmo quando tem menos para todos, todos não poderão ganhar. Nada é obtido que não seja tirado de alguém: resta para ganhar a predação e a guerra. Na guerra, o medo e o mimetismo servem de racionalidade. Por mais feroz que seja a competição entre capitalistas, eles estão de acordo para criar novas oportunidades de lucro, abrindo a guerra econômica em paises em desenvolvimento e em setores públicos outrora ausentes do culto do lucro. Na teoria como na história, o único contexto no qual a concorrência tenha virtudes é o de uma competição limitada por instituições, convenções sociais e normas políticas fortes. Se esses limites são levantados, a sadia emulação que se espera da concorrência econômica deixa lugar para uma guerra econômica, uma competição sem freios onde todos os meios são bons para maximizar o lucro. A terceira idade do capitalismo, dominada pela maximização da rentabilidade financeira imediata, tem todos os traços de uma loucura coletiva. Parece ruim para todas as partes: assalariados, clientes, managers e acionistas. Nesse novo capitalismo, a compressão dos efetivos assalariados não é mais o sacrifício último para salvar a empresa. É uma estratégia preventiva das empresas rentáveis que se preparam para aumentar a rentabilidade dos seus papeis na bolsa. O aumento do desemprego é solução para o único problema que preocupa o capitalismo atual: criar mais valor para o acionista. O aumento do desemprego ajuda o investidor de três modos: a baixa de custo da mão de obra tem um efeito rápido sobre a rentabilidade financeira; a estimulação ao medo do desemprego limita as reivindicações salariais; o aumento da taxa de desemprego pode incitar os bancos centrais a reduzir a taxa de juros para sustentar o crescimento; se a taxa de juros diminui, os poupadores se sentem encorajados a investir seu dinheiro na bolsa o que faz subir o preço das ações. Os assalariados são cada vez mais tratados como recursos produtivos cujo cada minuto deveria criar mais valor para o acionista. Para conseguir a mobilização efetiva dos assalariados, a obrigação dos meios (tempo de presença) é substituída pela obrigação de resultados cada vez mais exigente. Se individualiza a avaliação das performances e das remunerações. Não se remunera mais uma qualificação fundada sobre critérios relativamente objetivos (diploma, formação
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profissional e experiência profissional), se remunera competências avaliadas subjetivamente pela hierarquia. As primeiras competências são a subserviência e a alienação voluntária, a capacidade a demonstrar uma plena adesão ao discurso, à cultura e aos objetivos da direção. Os produtores têm interesse em adaptar o comportamento dos clientes aos objetivos da rentabilidade financeira, mais do que o contrário. Ao mesmo tempo, a loucura do rendimento financeiro pode voltar-se contra o investidor. Os administradores que se sabem julgados no curto prazo estão prontos para qualquer manipulação porque sua remuneração está calcada nos resultados obtidos no curto prazo. A POLÍTICA NÃO ESTÁ EM CRISE PARA TODOS A extensão de uma lógica de competição generalizada não resulta em nada de um desengajamento do Estado ou de uma renuncia da regulação política da economia. Ela manifesta simplesmente uma nova modalidade de engajamento do Estado e uma nova regulação que acompanham e aceleram a grande mudança das relações de forças sobre as quais se estabeleceram os compromissos sociais e políticos do pós guerra. A política não se retraiu: ela modelou um mundo favorável aos detentores de capitais financeiros e das melhores qualificações; um mundo cada vez mais precário ou inviável para os detentores de um capital humano depreciado pela evolução tecnológica. O poder mascarado é sempre mais robusto do que o poder exposto. Os neoliberais devem denegrir o Estado e o voluntarismo político para dissimular que o domínio exorbitante do capital é possível por causa da benevolência do Estado e para dissuadir os dominados de acreditar na única ferramenta capaz de ajudá-los: a política. O desafio não é de colocar a economia sob o domínio da política; é de recolocar os políticos ao serviço do bem comum. O verdadeiro inimigo de uma lógica mercadista generalizada não é a política que já foi cooptada: é a democracia de cidadãos que podem recolocar a política ao serviço do bem comum. Ora uma sociedade de competição generalizada desenvolve a obsessão da performance individual e a certeza de estar sempre ameaçado pela performance dos demais; isso transforma os cidadãos em rivais que devem enfrentar-se para salvar o próprio lugar. A competição generalizada lamina a coesão social que confortaria o poder coletivo dos cidadãos, ela transforma uma maioria política potencial em coleção de indivíduos isolados e desarmados.
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DA GUERRA ECONÔMICA À GUERRA INCIVIL8 Assim como nos anos 30, a crise econômica e social do fim do século XX desemboca numa guerra mundial de um novo tipo, aparentemente mais inofensiva, mas, na realidade, mais nociva para a sociedade e a democracia: a guerra econômica geral. Esta não opõe mais simplesmente os estados, mas principalmente e sobretudo os indivíduos dentro das fronteiras nacionais; ela não contribui mais a fazer sair da crise social pela mobilização geral contra um inimigo comum: pelo contrario, ela amplifica a crise social e se alimenta dela, porque o desgaste dos vínculos sociais constitui ao mesmo tempo a conseqüência e a condição necessária para a extensão de uma competição generalizada. Essa guerra teve efeitos devastadores sobre a capacidade e a vontade de uma comunidade humana de viver juntos e escolher coletivamente seu destino, quer dizer constituir uma comunidade política. Essa diferença não é sempre percebida por duas razões: 1. a competição generalizada distila um veneno insidioso: ela não ataca a sociedade frontalmente, mas sim um setor depois do outro; seus efeitos psicológicos permanecem muito tempo confinados na intimidade dos indivíduos. 2. o projeto neoliberal avança mascarado atrás de uma expansão do Estado que, num primeiro momento, mantém a ilusão de que a guerra econômica reforça o político. Isso acontece mas não na direção da democracia. ESTADO
PODEROSO
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NEOLIBERALISMO:
O
OUTRO
LADO
DE
UM
PARADOXO APARENTE A partir do fim dos anos 70, as despesas públicas e os impostos não cessam de aumentar. Isso é o primeiro índice que o projeto neoliberal não significa desengajamento do Estado mas, pelo contrário, seu reengajamento a serviço de interesses particulares e de um outro modelo de sociedade. Existe uma nova focalização do Estado sobre suas funções de policia da sociedade de mercado: guardião da ordem interna e externa, protetor dos bens e das propriedades, garantia da execução dos contratos. Quando se chega a esse estágio último do neoliberalismo, o essencial dos serviços coletivos e das regras do jogo econômico
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GÉNÉREUX, Jacques, La dissociété, Paris, Éditions du Seuil, 2006, capítulo 3
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depende dos contratos privados e dos mercados; trata-se de uma restrição drástica do campo aberto para a deliberação democrática e as escolhas políticas. A finalidade dos neoliberais não é enfraquecer o Estado, mas de dispor de Estados suficientemente poderosos para impor, dentro como fora, uma ordem conforme a seus interesses e a sua visão de mundo. Num primeiro momento, portanto, não se assiste a uma redução das despesas publicas mas a sua reestruturação. Por isso, taxa-se mais os menos ricos e menos os mais ricos! A PRIVATIZAÇÃO DOS ESPÍRITOS O pragmatismo reivindicado pelos neoliberais não pode reconhecer nenhum mérito a seus adversários políticos. Sabendo-se empenhado numa batalha cultural, um responsável político neoliberal não pode confundir sua mensagem dando uma parte de verdade para o campo adversário. Seu discurso teórico é preparado e inspirado por universitários que não são pragmáticos e têm uma religiosa indiferença em relação aos fatos. A adesão intelectual ao neoliberalismo não podendo ser fundada numa argumentação cientifica, nem se sustentar numa observação das realidades desse mundo, ela encontra sua energia na ardorosa necessidade de crer e a absoluta certeza de ter razão que caracterizam o fanatismo religioso. Isso não significa vontade de mentir: a retórica neoliberal é falsa pela analise dos fatos, mas permanece justa o sentido do que ela descreve um mundo tal qual deveria ser e tal qual eles têm a intenção de modelá-lo pela sua ação política. Conhecem bem a necessidade de crer, a força das crenças, e portanto a necessidade estratégica de controlar a cultura. Como eles têm acesso a comunicação de massa, eles preferem a alienação cultural dos povos a sua alienação física; não buscam controlar os corpos, mas sim o imaginário social de seus administrados. Trata-se de levar esses a imaginar que o Estado-Providencia é um predador e de suscitar o desejo de um mundo livre dessa tutela. Trata-se de privatizar os espíritos; bajular e inchar o lado narcisista e egocêntrico de cada um, de modo que perca aos poucos a consciência do bem publico e que, finalmente, no termo do processo de lavagem cerebral, as simples palavras “impostos”, “regulamentação”, “solidariedade” sejam dolorosas de ser ouvidas e desencadeiem um reflexo defensivo. Num primeiro momento, a retórica do “Estado mínimo” ou da reforma do Estado, não serve a aliviar realmente o Estado. Ela serve a criar uma cultura anti-
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funcionalismo, anti-administração e anti-impostos que deslegitima a ação política conduzida em nome do interesse publico, mas dá uma nova legitimidade quando ela é colocada a serviço das iniciativas e dos interesses privados. O uso estratégico das diminuições de impostos e das cotizações sociais aprofunda os déficits para criar a ilusão de que o pais vive acima das suas possibilidades e justificar o recuo das despesas sociais e as privatizações. A persistência do desemprego não constitui um problema: constitui uma solução porque participa do descrédito do modelo social que se quer destruir e mantém o medo que predispõe os assalariados para todas as submissões. Sabem que eles ganharam quando, no imaginário coletivo, os resistentes à “mercadização” não encarnam mais o progresso mas sim a defesa de um mundo antigo e superado. Os neoliberais conduzem assim uma estratégia eficaz de privatização do Estado por etapas. Aos poucos, numa guerra econômica mundial, não são mais somente os produtos que são colocados em competição mas também os sistemas políticos e sociais. O MITO DA GOVERNANÇA No momento do recuo efetivo das despesas publicas e dos impostos, o discurso dominante promete uma nova governança necessária para evitar os excessos de uma competição selvagem. Essa palavra governança responde à necessidade de ser governado mas sem governo, ter leis mas não de um parlamento, de obter a ordem mas sem autoridade publica, a cenoura sem o bastão. A predileção dos neoliberais para o tema da governança reflete o sonho de uma privatização bem sucedida do Estado. O que se entende por governança é um conjunto de agencias descentralizadas e especializadas de regulação dos mercados, a lei dos mercados definida pelos atores dos mercados, a ética dos negócios destinada a homens de negócios, em breve, a auto-regulação do business pelo business e nada de democracia que se tornou sem utilidade. A governança é uma espécie de governo privado, ou uma miríade de governos privados e concorrentes para satisfazer clientes e acionistas. O que se espera de um Estado ou de um governo nesse ambiente? Que ele faça a policia e a guerra. A engrenagem perversa da privatização do Estado-providencia prepara e nutre o circulo vicioso da violência social e de sua repressão por um “Estado-penitencia”. Menos a nação investe em educação, habitação e estabilidade do emprego, mais se banalizam as
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incivilidades e a delinqüência juvenil. Quando uma sociedade troca a seguridade social pela segurança, ela toma o caminho da insegurança geral. Na guerra econômica, não são simplesmente os feridos e os perdedores na competição, mas todos os cidadãos que são embarcados na engrenagem de uma sociedade violenta e insegura, o que os transforma aos poucos em guerreiros. A MUTAÇÃO DO CIDADÃO EM GUERREIRO9 Se a guerra econômica demora para enfraquecer os instrumentos da ação política, ela ataca desde a origem nas fundações morais do político quebrando a coesão nacional. Trata-se de uma guerra insidiosa onde o inimigo, normalmente invisível não é um estado estrangeiro cuja agressão estimularia a solidariedade nacional. Seu governo não lhe pede de combater todos juntos para salvar a pátria ou defender um inimigo comum. De fato, ele não pede mais nada: ele abandona puramente e simplesmente à guerra com seus concorrentes, seu patrão, seus colegas; tem se a impressão que ele abriu as portas da cidade aos predadores para que eles façam seus negócios a vontade. Portanto, não somente o político não serve para nada, mas ele se torna o aliado objetivo dos seus inimigos. Quando o inimigo torna-se perceptível, percebe-se que é o vizinho, o que quer ser mais competitivo, quer dizer o outro que te percebe como um inimigo porque assim ele é percebido por nos. Os medos coletivos desenvolvem-se pela força do discurso político e mediático bem antes de ter base nos fatos. Assim, a força do discurso economicamente correto insinua nos nossos espíritos uma lógica de guerra econômica bem mais amedrontadora do que ela é na realidade. Mas não interessa o que é: interessa que se acredita estar numa guerra para comportar-se em soldado obediente. Antes de estar ancorada nos fatos, a lógica de competição generalizada penetra os espíritos, difunde o medo e uma cultura de mercado, uma cultura de guerreiro que torna obsoleta a cultura daqueles que acreditavam ser ainda membros de uma sociedade humana. Numa sociedade, cada um pensa ocupar seu lugar cumprindo um conjunto de deveres intimamente ligados aos direitos que lhe são reconhecidos. Num mercado, o individuo não tem seu lugar, deve conquistá-lo e abandoná-lo para cobiçar um melhor; nenhuma posição, nenhuma fortuna é adquirida e suficiente sob o reinado de uma competição generalizada que condena
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Ibid. p. 102 ss
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cada uma à ofensiva permanente, à mobilidade, à mudança. Numa sociedade onde cada um tem o próprio lugar, um individuo pode esperar no mínimo uma vida decente sem combate; num mercado, ele se sente mercadoria que deverá a própria sobrevivência ao fato de ser mais forte do que os outros ou o escravo dos mais fortes. Numa sociedade se vive, num mercado se combate. Numa sociedade uma pessoa se define pelos seus vínculos, num mercado o individuo se define pelos seus talentos, seus poderes, seu capital, tudo que determina sua competitividade. Numa sociedade, se aprecia alguém, num mercado se mede alguém. Numa sociedade, o importante é amar, num mercado, o importante é ser forte. A cultura de mercado é uma cultura de combatentes engajados numa guerra esquisita, sem exércitos constituídos e solidários, onde nosso inimigo esconde-se na mesma trincheira do que nos, onde todos temos o mesmo inimigo intimo: o medo do outro; um medo que, paradoxalmente, nos empurra para o enfrentamento em vez de unir nos para ter menos medo. O reino do mercado é antes de tudo a vitória do medo. DISSOCIEDADE
HIPERSOCIEDADE
E
SOCIEDADE
DE
PROGRESSO
HUMANO10 Assim, o mundo, como ele vai, bajula o egoísmo e a combatividade, o risco e a rivalidade, adora a velocidade e a urgência, recompensa o rendimento e a mobilidade, honra a corrida e a competição... Ao mesmo tempo, esta simples lista dá, as vezes, nojo! Cada dia, em casa, na rua ou no trabalho, outras sensações, sentimentos e aspirações dão o gosto de existir. Apesar do pretenso reinado da troca comercial, sabemos que trocamos muitas vezes para trocar e falamos para falar. Nossa conversas mais vazias e as mais freqüentes falam dos nossos vínculos, mantêm e delimitam nossas relações. A privação de um bem é sempre menos dolorosa do que a ruptura de um vinculo, e a perda dos bens que nos deixam sem consolo é dos que lembravam um ser caro. “SER SI MESMO” E “SER COM” É qualidade dos vínculos que traz a felicidade mais do que a quantidade dos bens. Precisamos de amizade, não de produtividade: necessidade de atenção não de tensão.
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Nas democracias contemporâneas, existe uma dupla propriedade: o sistema econômico e social não pode ser imposto pela força; por outro lado, os novos modos de produção flexíveis e descentralizados requerem uma cooperação e uma implicação voluntárias do maior número. Essa constatação não exclui as relações de forças favoráveis ao capital a às oligarquias, mas a explicação pela submissão ao modelo pela simples dominação é insuficiente. Nenhuma dominação nunca impediu os homens e as mulheres de combater e de morrer pelas próprias idéias e a Historia mostra o quanto a energia desprendida nessa luta não é proporcional às chances de sucesso mas a injustiça percebida. O poder do mais forte não explica, portanto, tudo na submissão ou a revolta do mais fraco: os sentimentos desse são também fundamentais. Se os malfeitos do capitalismo contemporâneo fossem radicalmente insuportáveis para a imensa maioria de nos, eles não seriam suportados e a revolta o derrubaria. Quando a submissão é mais forte do que a revolta, é preciso supor a existência de arranjos internos onde as satisfações que tiramos do presente contrabalançam os efeitos negativos da nossa servidão. Portanto, sem negligenciar o papel das relações de força, é preciso considerar o que, no modelo neoliberal, suscita uma submissão ou uma sedução mais do que uma repulsão. A sociedade de mercado e de competição generalizada só pode instalar-se na medida em que ela repousa sobre finalidades e valores compartilhados pela maior parte e que suscitam uma adesão suficiente para compensar, de um modo ou do outro, uma tendência à desafeição. Portanto, se existir uma contradição entre nossos valores de solidariedade e os princípios de rivalidade, entre nosso desejo de viver em paz e as exigências da guerra econômica, não é por causa de uma contradição entre nos e a sociedade, mas por causa de uma fratura intima, uma tensão interna entre as aspirações contraditórias que modelam nosso ser. Nossos valores e nossas aspirações são ambivalentes e as vezes contraditórias. A natureza humana é feita pela interação continua entre uma aspiração à autonomia e uma aspiração à associação, entre uma pulsão de auto-satisfação e o desejo de fazer sociedade, o desejo de libertação e o desejo de socialização, o desejo de “ser si mesmo” e o desejo de ser com”. O ser humano é social por essência, por nascimento e não por construção intelectual e política; é constituído
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Ibid. capítulo 4
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pelos seus vínculos com os outros e o grande negocio da vida dele, o que comanda todos os outros, é de conciliar seus vínculos e sua liberdade, de saber como ser si mesmo e com os outros, para si e para os outros, como existir neles sem se dissolver neles. Frente a essas duas beiras da vida, estamos em tensão perman, iente, buscamos o equilíbrio e o compromisso necessário, necessário porque não somos nada sem os outros, mas não existimos se os outros são tudo para nós. A capacidade de cada um de achar o caminho de uma sinergia positiva entre suas duas aspirações a vínculos e à liberdade é afetada pela historia singular de suas relações pessoais. Mas essa historia singular não acontece num laboratório isolado do resto do mundo. Ela acontece no contexto de uma sociedade com suas instituições, suas regras, suas políticas publicas, sua cultura e esse contexto social e cultural afeta diretamente ou indiretamente a elaboração do compromisso pessoal entre ser si mesmo e ser com os outros. A sociedade pode ajudar cada um a viver em ser plenamente humano, quer dizer inteiro como um “eu social”, livre e vinculado, crescendo e andando sobre suas duas pernas que autorizam o bom funcionamento do ser. Pode também contrariar esse crescimento equilibrado e levar os indivíduos a cambalear numa perna só: tudo social privado de si mesmo, tudo a si mesmo privado dos outros. Tratamento desumano que nos coloca no encalço do que constitui ou não uma sociedade verdadeiramente humana. A SOCIEDADE DE PROGRESSO HUMANO No uso comum, “humano” não serve simplesmente para nomear ou distinguir nossa espécie; serve também para qualificar a vida que conduzimos ou nossos comportamentos. Assim, um humano (membro da espécie) pode ser julgado desumano (problema de comportamento). Assim, do mesmo modo, uma sociedade pode ser julgada desumana. Nesse sentido, a questão de saber se uma sociedade humana é “verdadeiramente humana” não é trivial: ela poderia ser desumana, impedir os seres humanos de viver uma vida plenamente humana, encorajar comportamentos (humilhações, torturas etc.) que julgamos desumanos. Portanto, pressentimos que a questão de saber o que é próprio do homem em relação às outras espécies, não se confunde com a questão de saber o que constitui uma vida humana no seio da espécie humana. Não basta ser um humano para ter uma vida plenamente humana (que atinge nossas aspirações) enquanto basta ser um macaco para ter uma vida de macaco. Podemos portanto chamar “sociedade de progresso
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humano” uma sociedade que favorece o desabrochar de uma vida plenamente humana, no sentido do que podemos definir como segue. 1. Uma vida plenamente humana consiste na realização de um equilíbrio pessoal entre duas faces do nosso desejo de ser: a aspiração a “ser si mesmo” e a aspiração a “ser com”. Equilíbrio não significa um justo meio. Significa um estado de integridade e saúde mentais, que pressupõe uma confiança em si e nos outros, uma capacidade de ser si mesmo independentemente dos outros, mesclada com a convicção que a relação com os outros permanece uma fonte inesgotável de enriquecimento do ser, apesar dos problemas de vida encontrados. 2. uma sociedade de progresso humano tende para uma situação onde cada pessoa dispõe de uma igual capacidade de levar uma vida plenamente humana, quer dizer conciliar livremente suas duas aspirações fundamentais. O progresso humano não é um estado ultimo do mundo, não é uma historia que termina bem, mas uma historia que continua bem. A sociedade não é um estado congelado do mundo, mas sim uma interação permanente entre pessoas que a compõem, num contexto histórico e num ambiente natural movediços. A questão nunca é saber como uma sociedade é mas o que ela se torna. Ela está engajada no caminho do progresso humano ou da regressão em direção de uma sociedade desumana? Uma vez na estrada, boa ou má, a sociedade tenda a avançar. As boas ou más intenções acabam sendo autorealizadoras. Uma sociedade de competição generalizada encoraja os indivíduos ao egoísmo e à rivalidade. Interessa menos saber onde estamos do que saber para onde vamos. O objetivo é o caminho. Não é a chegada para algum destino que salva a sociedade: é a mudança de direção. Por isso que “livremente” significa escapar à dominação de alguns que, em razão de um poder, estariam em condição de impor sua concepção da vida em sociedade e poderiam assim, tornando mais pesado o fardo de obrigações pesando em cima dos outros, aliviar sua própria
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dependência do ambiente que constitui a comum condição humana. 3. uma sociedade de regressão desumana trava a busca do equilíbrio pessoal por um processo político deliberado visando a reprimir as duas grandes aspirações. Existem três tipos de regressão humana: a hipersociedade, a dissociedade e o regime totalitário. 4. a “hipersociedade” é uma sociedade que hipertrofia o “ser com” (a dimensão da existência e os laços coletivos), ao ponto de reprimir e mutilar o “ser si mesmo” (a aspiração à realização pessoal). O arquétipo da hipersociedade é um sistema coletivista ou comunista. 5. a “dissociedade” é uma sociedade que reprime ou mutila ou desejo de “ser com” para impor o domínio de “ser si mesmo”. O arquétipo da dissociedade é a sociedade de mercado neoliberal fundada sobre a extensão máxima da livre competição a todas as atividades humanas. É a ela que vão os desenvolvimentos seguintes. Para ser exaustivo, é preciso evocar a terceira forma possível de regressão humana, sua forma extrema: a de uma sociedade que tende para o aniquilamento simultâneo das duas aspirações “ontogenéticas11”, que proíbe tanto de “ser si mesmo” quanto de “ser com”. O regime totalitário tolera nem a autonomia pessoal nem os laços sociais. O totalitarismo tende na realidade a abolir simultaneamente o individuo e a sociedade. A dominação total tolera nem a sobrevivência de nenhuma forma de solidariedade coletiva nem a sobrevivência de nenhuma atividade privada. Ele despreza a idéia de pessoa humana, porque o se chama assim tem por vocação de se dissolver numa única pessoa total: um novo gênero humano chamado a cumprir a lei da natureza (nazismo) ou a lei da historia (stalinismo). O QUE É A DISSOCIEDADE? Primeira proposição: a ideologia e as políticas neoliberais tendem a dissociar as duas aspirações ontogenéticas e a inflar a primeira (ser si mesmo e para si) ao ponto que ela sufoca a segunda (ser com e para os outros). É um processo de dissociação pessoal.
11
Neologismo do próprio autor.
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Segunda
proposição:
ao
mesmo
tempo
causa
e
conseqüência,
instrumento e finalidade da dissociação pessoal, a dissociedade é o processo de organização do espaço, das instituições e das relações que decompõe uma sociedade humana, de um lado isolando e opondo as comunidades ou categorias sociais relativamente homogêneas e, por outro lado, instalando e exacerbando a rivalidade entre indivíduos compondo essas comunidades ou categorias sociais. A dissociedade é ao mesmo tempo causa e conseqüência da dissociação pessoal. A guerra econômica faz as pessoas levantarem umas contra as outras e acaba convencendo os cidadãos outrora solidários a comportar-se como guerreiros solitários. Isso acaba dissuadindo qualquer um de buscar a conciliar o desejo de ser si mesmo com o desejo de ser com. A dissociedade maximiza as chances de sobrevivência e de sucesso e as oportunidades para os que aceitam de mutilar seu ser social e só se preocupam consigo mesmo, contra os outros se for necessário. É cada vez mais necessário na medida em que a competição endurece e penetra os espaços outrora regidos por outras lógicas. O herói desse tipo de sociedade, seu produto mais acabado, é o homem perfeitamente dissociado que consegue a viver na alegria seu luto do desejo de “ser com” e se compraz no único (e para sempre insaciável) desejo de “ser si mesmo”. A dissociedade é ao mesmo tempo conseqüência da dissociação pessoal, porque mais os seres humanos aderem a uma cultura individualista, mais eles apóiam politicamente e colocam em aplicação os princípios de uma dissociedade de mercado. Quando o desejo de “ser com” é mutilado e sufocado pela obsessão de si, o individuo tem dificuldade em viver no meio de uma grande sociedade mestiçada e solidária: para ele a promiscuidade das diferenças é fonte de angustia, cada um é único responsável para si e ninguém deve nada para ninguém, ninguém tem outro direito a não ser proteger-se e lutar contra os outros. Assim, os seres dissociados não suportam verdadeiramente a vida em sociedade – o viver juntos – a não ser com pessoais semelhantes a eles mesmos. No ideal do individualista dissociado, viver somente com outros si mesmos preserva ao mesmo tempo dos outros e da solidão, permite de viver, na realidade, somente consigo mesmo, mas rodeado de sósias que, numa mutua contemplação, confirmam uns aos outros a realidade e a adequação de sua existência. Vivamos juntos para permanecer entre si! Contudo, uma sociedade fundada na rivalidade e no hiper-individualismo acaba, as vezes, por dissolver os vínculos até nos últimos refúgios íntimos da
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sociabilidade: a família pode virar uma dissociedade em miniatura, o bando pode ser uma escola do ódio mais do que o último refugio do amor. Então, eventualmente, a rivalidade e a indiferença estão por toda parte, e a fraternidade em lugar nenhum: a verdadeira pessoa capaz de me amar por mi mesmo, sou eu mesmo! Depois do fechamento sobre a comunidade, sobre a família ou a tribo, vem o fechamento sobre si mesmo. A dissociedade aparece assim como uma força centrifuga que isola e decompõe em elementos cada vez mais restritos o que constituía o todo indissociável de uma sociedade humana. O ESPIRAL VIRTUOSO OU VICIOSO DAS INTERAÇÕES SOCIAIS Podemos fazer da dissociedade duas leituras opostas, seja individualista, seja holística. No primeiro caso, se consideraria que a busca pela autonomia e o egocentrismo do individuo (sua dissociação pessoal) geram a explosão da sociedade em dissociedade. No segundo caso, se tornaria a evolução do sistema em direção para a dissociedade responsável pelo individualismo. Quando se diz que a dissociedade é ao mesmo tempo causa e conseqüência
da
dissociação
pessoal,
recusa-se
essas
duas
leituras.
A
dissociedade é um processo de interação dinâmica entre o sistema social ou cultural e os indivíduos. Uma sociedade individualista favorece a tendência narcisista e autonomista dos indivíduos, mas ela não a inventa. Essa tendência preexistente facilita e reforça o desabrochar de um sistema fundado sobre a rivalidade e a performance individual, mas não basta para gerá-la. Nossa aspiração para a autonomia pessoal pode entrar em sinergia positiva com nosso desejo de fazer sociedade e que ela nos influenciaria para construir uma sociedade baseada na cooperação e a solidariedade. Assim, a dissociedade assim como a sociedade de progresso humano não é um estado fixo do mundo, mas um processo dinâmico; é uma sinergia perversa entre os atores individuais e o sistema social. Face a esse processo, a pergunta pertinente não é saber quem começou, dos indivíduos ou da sociedade, porque forçosamente eles começaram juntos! Um movimento social qualquer não deixa de ser a ação de um conjunto de pessoas, mas cada ação pessoal é indissociável do contexto social onde ela se exerce. Não somos confrontados a uma cadeia causal mas a um círculo causal onde cada elemento é ao mesmo tempo
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causa e efeito de todos os outros. Descrevemos processos dinâmicos de interação social onde tudo é ao mesmo tempo causa e efeito, onde o papel determinante dos atores compatível com o papel determinante do contexto social de sua ação. Tratase de um processo de co-determinação dos atores e do sistema. A imagem de espiral é melhor do que a de círculo. Os indivíduos mudam a sociedade tanto quanto a sociedade os muda e reciprocamente. Não só os dois agem um sobre o outro ao mesmo tempo, mas os dois são indissociáveis. O individuo não existe fora de uma interação com os outros. O ser humano é sociável na sua própria constituição. A interação entre indivíduos produz instituições, regras, modos de vida, de produção, de pensamento e de expressão, uma cultura; numa palavra, ela constitui um “sistema social” que pode, depôs ser estudado e considerado como uma entidade que não se confunde com o individuo. Mas o que entendemos por “sociedade” não é esse sistema. O sistema social é o resultado visível, o conjunto de manifestações que nos permitem caracterizar a sociedade. Por “sociedade”, todavia, o senso comum designa um conjunto de seres humanos que vivem juntos no quadro de um mesmo sistema social. O termo “sociedade” não designa, portanto, uma entidade que estaria ao lado ou separada dos indivíduos; ele designa o processo mesmo de vida comum pelo qual os indivíduos geram o sistema e são condicionados por ele. O que chamamos “sociedade” é o processo vivo de interação entre os indivíduos e o sistema que eles constituem juntos. Portanto, a questão de saber que tem o papel determinante, a sociedade ou o individuo, não tem sentido. A única reflexão pertinente consiste em identificar as circunstancias que geram uma reorientação decisiva da sinergia complexa indivíduos/sociedade no sentido de uma sociedade desumana ou no de uma sociedade de progresso humano. Todavia, embora os atores e o sistema social agem ao mesmo tempo um sobre o outro, precisamos falar de um após o outro, de descrever o que a sociedade faz para o individuo e o que o individuo faz para a sociedade até o momento em que esse vai e vem mostra que esses dois tempos do discurso são uma coisa só na vida real.
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BUSCANDO OS PILARES FUNDADORES DO EDIFÍCIO NEOLIBERAL12 Todo sistema social e todo discurso político repousa, pelo menos implicitamente, sobre uma antropologia, quer dizer, no sentido mais amplo, sobre uma teoria do ser humano. Ignorar esse fundamento antropológico, é expor-se a suportar como uma fatalidade o advento de uma sociedade desumana, quando se trata simplesmente da aplicação de uma teoria errônea. Ora, precisamente, nossa pouca atenção para o que sabemos sobre a natureza humana tem uma conseqüência funesta: o mundo presente está cada vez menos regido pelos princípios que guiam nossas vidas ou pela nossa concepção usual das relações esperadas com os outros. Mas por que os princípios governando o mundo, a economia, a política, as relações entre nações deveriam ser tão diferentes daqueles que governam nossa vida pessoal? Se a solidariedade é melhor do que a competição nas nossas relações intimas, por que a extensão da competição deveria constituir a pedra angular da nossa sociedade? Na dissociedade, a união só faz a força de um grupo somente para a competição com outros grupos. A união nunca realiza a harmonia e a coesão de uns com os outros – entre “nos” e “eles” – ela autoriza simplesmente a coalizão dos semelhantes para combater os dessemelhantes (“nos” contra “eles”), a fusão de uns em vista da luta contra outros. Contudo, nas nossas relações cotidianas, sabemos que é com os estrangeiros, os dessemelhantes, os verdadeiramente “outros” que a cooperação, a educação e a busca de compromissos solidários são mais úteis e mais necessários. A solidariedade, a cooperação e a preferência para relações pacificas não são práticas excepcionais: elas constituem a realidade cotidiana de todos os seres humanos. Assim, quem diz que “o que nos sentimos (como todos os seres humanos) não é generalizável” apóia-se, insidiosamente, sobre a intuição razoável que uma prática singular não é universal para convencer que uma prática singular é universal! Assim, embora a maioria dos habitantes do planeta vivem segundo os mesmos princípios fundamentais, alguém quer que acreditemos que esses princípios são excepcionais, extraordinários, não generalizáveis enquanto eles constituem a generalidade! Por que seriam somente generalizáveis as disposições individualistas e não a empatia, a simpatia, a compaixão e a solidariedade que cada dias as temperam? 12
Ibid. capítulo 5
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POR QUE NÃO ELUDIR O DEBATE ANTROPOLÓGICO? A orientação de todo discurso político depende de respostas a algumas perguntas elementares: qual é o motor da ação humana? O que motiva as escolhas? Os pensamentos, os desejos, as escolhas do individuo são dependentes ou independentes do que pensam ou fazem os outros? Por que os humanos constituem sociedades? Qual é a finalidade da sociedade? Qual é a relação entre sociedade e individuo: independência, dependência, interação? As respostas a essas perguntas põem os alicerces antropológicos a toda analise das sociedades humanas e, portanto, a toda teoria política, econômica ou social. Essas questões concernem o que constitui a natureza mesma do ser humano e de uma sociedade; são “básicas” no sentido estrito da palavra: são a base sobre a qual repousa o modo de abordar todos os outros debates da sociedade. Contudo, o debate público as ignora quase sempre. Sem a revelação desses alicerces, não sabemos ao que aderimos e a qual concepção do homem damos apoio através do voto, das opiniões que defendemos e da cultura que ajudamos a transmitir. Quando aderimos, por exemplo, à sociedade de mercado porque “funciona”, isso significa uma tomada de posição filosófica sobre a hierarquia das finalidades sociais, o que supõe também uma idéia sobre o que constitui uma boa vida humana e, portanto, antes disso sobre o que consiste o fato de ser humano. Por isso, antes de dizer “funciona”, é preciso saber de onde isso vem e para onde vai e verificar até que ponto nos sentimos confortáveis em relação a tudo isso. Acreditando na eficácia superior de uma sociedade que estende cada vez mais a livre competição e o papel dos mercados, é preciso buscar alguns dos pressupostos necessários para validar a crença. Por “eficácia superior”, entende-se o fato que o modelo neoliberal maximiza a “produção de riquezas”, e, por “riquezas”, entende-se os bens e serviços mercantes frutos de uma mobilização racional do trabalho e do capital dos empreendedores. Essa concepção da eficácia não é universal. Sociedades primitivas perduraram até nossos dias sem nunca ressentir a necessidade de desenvolver a produção material além do que é necessário para a vida biológica. Essa concepção de sociedade eficaz não é universal: ela caracteriza uma cultura recente na historia do Ocidente e sempre minoritária na humanidade de hoje. Admitamos que uma sociedade eficaz seja a que explora do melhor modo possível todos os recursos do planeta para maximizar o consumo de bens e
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serviços. É preciso porém reconhecer que a livre concorrência reserva essa fartura para uma minoria no planeta e que, mesmo nos paises ricos, ela exclui do festim uma parte não pequena da população. Mas, num sistema de livre concorrência, todo mundo pode tentar a chance e conseguir vencer pelo próprio esforço; cada um é, portanto, responsável pela própria sorte e a concorrência obriga precisamente cada um a se assumir. É o principio da “responsabilidade individual”: a sociedade não pode fazer nada para a sorte dos humanos. Isso supõe aceitar algumas hipóteses muito precisas em relação à natureza humana. Um individuo é o único responsável do que ele faz se ele for livre de toda determinação exterior pela educação, pela cultura, pelas convenções, pelos vínculos afetivos, sua posição social, em breve se ele constituir um centro de decisão perfeitamente autônomo. Surge uma outra pergunta: por que os indivíduos autônomos e responsáveis desejando maximizar seu consume devem despender suas energias e seus recursos na competição de uns contra os outros? Não deveriam eles concentrar seus esforços unicamente na produção, limitando a competição e desenvolvendo a cooperação solidária em vista do bem comum? Aí viria uma nova hipótese sobre a natureza humana: a cooperação solidária é problemática e necessariamente limitada porque os indivíduos são egoístas e naturalmente inclinados para a competição para obter mais do que os outros. A competição mercante é um mal menor em relação à “lei da selva” e o mercado ajuda a viver juntos canalizando a violência potencial de toda relação humana. Daí viria a seguinte proposta: se os neoliberais crêem na superioridade do mercado de livre concorrência, é porque eles supõem que cada individuo é motivado unicamente pelo seu interesse próprio. É a motivação egoísta que torna o trabalhador e o empreendedor particularmente produtivos, num sistema em que cada um pode apropriar-se uma vantagem ligada a sua performance. Se os indivíduos fossem mais interessados pelo resultado coletivo ou pelo bem estar dos outros do que por eles mesmos, a livre concorrência seria inútil e nociva. Inútil porque se obteria a produtividade ótima dos indivíduos sem colocá-los em competição máxima: um sistema de cooperação coletiva bem organizada seria eficaz. Nociva porque a competição tem um custo (despesas de publicidade, tempo, estresse, investimentos múltiplos e redundantes dos competidores para conquistar as mesmas fatias do mercado); consequentemente a concorrência reduz inutilmente o bem estar coletivo desde o momento em que a performance produtiva equivalente
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ou superior é acessível pela adoção de um sistema cooperativo que limita a concorrência. Admite-se portanto que a superioridade da livre concorrência está ligado ao postulado do egoísmo e desvanece se esse postulado não se mantiver mais. Ora não se pode negar a existência evidente de comportamentos altruístas, nem que seja olhando para nossa experiência cotidiana. Se os indivíduos forem capazes de altruísmo e se souberem que a cooperação dos altruístas é frequentemente mais eficaz do que a rivalidade dos egoístas, deveriam decidir ser altruístas e fundar um sistema social combinando competição moderada e cooperação organizada. Admitir o altruísmo conduz logicamente a recomendar a abandono ou, pelo menos, um recuo substancial do principio liberal de livre concorrência. Os neoliberais preferem uma outra linha de defesa, que consiste em negar a existência de um altruísmo autentico. Segundo eles, o que denominamos “altruísmo” é na realidade o efeito da racionalidade dos indivíduos egoístas: nosso interesse bem entendido incita nos à cooperação solidária mais do que à rivalidade solitária, cada vez que a primeira nos oferece uma vantagem superior ao que seria proporcionado pela segunda. O “altruísta interessado” é um egoísta: só pode cuidar do bem dos outros enquanto instrumento do seu próprio bem, nunca enquanto objetivo. Opta pela solidariedade coletiva unicamente nas situações onde é fácil concluir um acordo de cooperação mutuamente vantajoso e controlar sua aplicação pelos outros. Isso restringe o campo de cooperação para as relações sociais de pequeno numero onde cada um pode vigiar o outro. Fora desse campo, os comportamentos são dominados pela rivalidade natural e é, então, racional para cada um comportar-se como um competidor implacável. Os neoliberais só podem sustentar seu modelo de competição generalizada negando a existência de comportamentos realmente altruístas. Essa tese do “altruísmo interessado” (ou do egoísmo disfarçado) levanta notadamente duas dificuldades lógicas (sem falar do debate ético e filosófico): 1. postular um egoísmo irredutível não basta para justificar a extensão máxima da livre concorrência. De fato, se os indivíduos são racionais, sabem que a cooperação solidária é frequentemente mais eficaz do que a competição solitária. Seu interesse bem entendido os incita a estender as possibilidades de recurso à
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cooperação em detrimento da competição. Quando a cooperação não pode ser garantida pela pressão social de um pequeno grupo onde cada um vigia o vizinho, ela não pode sê-lo pelas instituições e a lei. Para salvar o modelo neoliberal, hipóteses suplementares são necessárias: é preciso, por exemplo, pressupor que a cooperação é quase nunca virtuosa porque os indivíduos têm uma aversão natural para a associação pacifica com os outros indivíduos. Ou deve se postular que a cooperação instaurada pela lei não é sustentável: os indivíduos só respeitam as leis sob o jugo de um Estado tão repressivo e assustador que é preciso pagar as virtudes da cooperação ao preço da desaparição das liberdades. Tudo isso supõe uma concepção do ser humano sombria: todo individuo não somente é estritamente egoísta, mas também violento e predador, pronto a tudo para aumentar seu prazer as custas dos outros. 2. outrossim, se a tese do altruísmo interessado for aceita, admite-se que os indivíduos decidem ser solidários e rivais em função do contexto social. Mas daí não se escapa de uma outra pergunta: o mercado livre impõe se como o melhor sistema porque os indivíduos são egoístas, ou é porque eles são mergulhados num contexto de livre competição que os indivíduos racionais devem comportar-se em seres egoístas? Onde está a causa? Onde está o efeito? Se o contexto social (livre competição ou cooperação coletiva) determina a opção do individuo para a rivalidade ou a solidariedade, uma sociedade que estende deliberadamente os contextos de cooperação no detrimento dos contextos de livre competição conduz os indivíduos a comportar-se cada vez mais como altruístas interessados. Essa mutação dos comportamentos torna a cooperação solidária cada vez mais eficaz e cada vez mais desejada e sustentada politicamente por cidadãos racionais. Portanto, a preferência por competição generalizada não é concebível a menos que se coloque uma hipótese suplementar: o comportamento dos indivíduos não é em nada determinado pelo contexto social no qual eles vivem; os indivíduos são egoístas por natureza, e nem a educação nem a transformação da sociedade podem afetar essa natureza. Essa hipótese precisa de um postulado
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prévio, já necessário para estabelecer a responsabilidade individual: a personalidade definitiva de cada individuo lhe é dada desde sua concepção biológica (pela natureza ou por Deus) e é isenta de toda determinação exterior; permanece imutável, alojada num lugar que a preserva da historia singular do corpo que, por sua vez, sofre a mudança biológica e evolui num espaço de relações sociais. Contrariamente ao que pretendem seus gurus, o neoliberalismo não é a operacionalização
do
que
“funciona”,
sem
preconceitos
ideológicos;
é
a
operacionalização de uma teoria muito peculiar de homem e de sua relação com os outros. Se não se compartilhe essa concepção do homem, ou se ela for falsa, deve se rejeitar o sistema social que lhe é ligado. Se admitirmos, por exemplo, que nos cuidamos realmente dos outros, nossa personalidade é afetada pelo contexto de nossa existência, aceitamos de bom grado as leis que nos permitem viver melhor juntos, então o modelo da livre concorrência desaba e deve se reconhecer a necessidade de moderar a competição e de estender a lógica da cooperação solidária o mais possível. Falta agora só perceber que na gênese das idéias modernas, o neoliberalismo partilha com o marxismo 90% de seu patrimônio genético; é um erro antropológico comum a essas duas ideologias que conduz a primeira em direção da dissociedade individualista e a segunda em direção da hipersociedade coletivista. PENSANDO NUMA ARQUEOLOGIA DO DISCURSO POLÍTICO Podemos descobrir hipóteses e discursos escondidos e postos por outros durante a historia do pensamento moderno, historia na qual o neoliberalismo encontra suas fontes, mesmo se ele nem sempre confessa isso ou se ele ignora essas fontes. O neoliberalismo é, principalmente, uma variante contemporânea do ultra liberalismo, um das correntes que brotou do liberalismo clássico do século XVIII que, por sua vez, encontra suas raízes no século XVII, quando emerge um pensamento “moderno”, fundado na razão e emancipado da “crença”. O neoliberalismo tem raízes intelectuais comuns com o marxismo, o socialismo e o anarquismo que, no século XIX, opõem se, certo, à corrente liberal, mas encontram sua fonte primeira na filosofia liberal clássica do século XVIII e, através ela, numa nova concepção da natureza humana que se afirma no século XVII, notadamente com Descartes, Hobbes ou Locke. Ora essa nova concepção prefigura os alicerces antropológicos
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característicos da modernidade: o individuo racional, livre e autônomo no “estado de natureza”, que teria depois constituído sociedades utilitárias e aceito leis comuns para conter a rivalidade e a violência inerentes ao reino da liberdade natural. É nesse século XVII que se impõe a idéia de que o direito e a política devem ser fundadas não sobre a ordem inscrita por Deus no universo, mas sobre uma reconstituição racional do que é o “estado natural” dos humanos antes do advento de uma sociedade política e das razões que os conduzem a constituir tal sociedade. Fazendo isso, a filosofia do século XVII coloca as primeiras bases antropológicas do pensamento político moderno. Mas é uma “pré-antropologia”: antes da emergência de uma verdadeira ciência do humano, três séculos antes da descoberta dos primeiros australopitecos, a paleo-antropologia, a genética, a psicologia, a neurobiologia, a sociologia etc.. não existiam. É portanto uma antropologia especulativa - suposta dedutível só pelo raciocínio - o que não é nada surpreendente numa época em que Descartes acredita demonstrar a existência de Deus pela lógica. A maioria dos autores que escreve sobre o “estado de natureza” não dissimulam que se trata de uma construção mental, de um modelo teórico, e não de uma descrição histórica do que foi a vida real dos primeiros humanos. Assim de Hobbes (1640) até Rousseau (1761)13, uma sucessão de filósofos vai fundar nossa concepção moderna da natureza humana sobre crenças racionais, levando em consideração que o que eles poderiam saber sobre isso é quase nada. O que significa que no momento em que as ciências humanas e sociais começam a se desenvolver, a partir de meados do século XIX, existe uma concepção puramente especulativa do ser humano que constitui a cultura inconsciente e não discutida pela maioria, inclusive dos primeiros pesquisadores da novas ciências. Esses últimos, preocupados em “fazer ciência” e de se desmarcar de toda filosofia como de toda metafísica, reproduzem a caminhada dos seus ilustres predecessores filósofos: aplicar ao estudo das ações e das sociedades humanas o quadro de raciocínio e os métodos prevalecendo nas únicas ciências dignas desse nome: a física e a matemática. Assim, a nova “ciência” econômica e a sociologia nascendo no fim do século XIX renunciaram a interrogar-se sobre a natureza do seu material animal (o ser humano) e sobre as diferenças entre esse último e o material inanimado da
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As referencias são “O cidadão” de Hobbes e “Do contrato social” de Rousseau
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física. No lugar disso, eles postularam sem hesitar que a sociedade devia ser estudada como um conjunto de “átomos” independentes (os indivíduos) regidos por “forças” mecânicas, chocando ou associando-se para produzir um estado de “equilíbrio”, ou não, segundo leis estáveis que as ciências sociais teriam por objeto de descobrir. Esta é a concepção transmitida por Hobbes dois séculos antes. As
novas
ciências sociais
não
só
reproduziram
os
postulados
antropológicos do século XVII; elas os transmitiram para o século XX e os imunizaram contra a critica colocando um termo ao debate do modo mais radical: raciocinando como se o problema antropológico não existisse mais. Assim, aceitando sem debate uma certa concepção do ser humano, a metodologia dominante nas ciências sociais enfiou essa concepção num inconsciente coletivo. Contrariamente a tudo que caracterizava todos os tratados políticos e filosóficos dos séculos XVII, a discussão sobre a “natureza humana” desaparece quase da literatura sobre as sociedades humanas! O problema já está resolvido! É portanto o modo pelo qual a questão foi tratada na ignorância há três séculos que modelou inconscientemente o modo de pensar do ser humano e as sociedades até o fim do século XX, numa época onde o acúmulo das descobertas cientificas começava a desvendar a verdadeira historia da nossa espécie, do nosso cérebro, do nosso nascimento, dos nossos ancestrais etc. A especialização e a profissionalização das ciências contribuíram para essa negligencia. As separações entre as várias disciplinas limitou a capacidade dos economistas para integrar os desenvolvimentos da antropologia, como a dos sociólogos a levar em conta os progressos da neurobiologia. A competição entre os pesquisadores de uma mesma disciplina os incitou a uma hiper-especialização, fonte de excelência num campo de conhecimento, em vez de pensar numa cultura geral. A competição entre as ciências humanas e sociais favoreceu a pretensão estéril de cada uma tentar impor-se como a ciência da homem fundamental, em vez de cooperar numa dimensão interdisciplinar suscetível de constituir uma ciência do homem, integrando vários saberes. Assim, muitos pesquisadores desenvolvem com muito refinamento modelos que repousam implicitamente sobre uma concepção não cientifica da natureza humana, concepção que se acha a fortiori compartilhada pelo senso comum, porque quase ninguém a debate.
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OS FUNDAMENTOS DE CULTURA NEOLIBERAL E DA DISSOCIEDADE: A NATUREZA HUMANA O grande movimento de emancipação dos espíritos que caracteriza o nascimento do pensamento ocidental moderno no século XVII gerou uma nova concepção do ser humano: o “indivíduo autônomo”. Essa idéia nova é um dos alicerces de todas as promessas da modernidade, da democracia ao progresso, passando pelos direitos humanos. É também a fonte fundadora de onde se alimentou a concepção neoliberal e mesquinha do ser humano: um autômato egoísta e predador em competição permanente com os outros para consumir e acumular os objetos do seu desejo. O erro dos modernos foi conceber a autonomia como se a liberdade do individuo se construía fora de qualquer vinculo, ou contra seus vínculos contra os outros. Se o modo de pensar de nossa sociedade persistir nesse erro apesar dos conhecimentos novos que temos, isso prova que nossa concepção do mundo repousa sobre algumas crença antigas e tão fortemente sedimentadas e comumente admitidas que não existe a preocupação de confrontálas a um estado novo dos conhecimentos porque foram pura e simplesmente esquecidas. É, portanto, importante entender como elas foram formadas e impostas. É interessante ter uma reconstituição lógica das suas fundações teóricas. PRIMEIRO PILAR: O SER HUMANO É UM “INDIVÍDUO” QUE EXISTE ANTES E FORA DE QUALQUER RELAÇÃO COM O OUTRO UMA CONCEPÇÃO METAFÍSICA DO SER
É uma concepção metafísica do ser que validamos quando dizemos de recém nascido que ele “vem ao mundo”. Isso quer dizer que ele não vem do mundo! Se “eu” venho ao mundo, é que esse “eu” existe antes e fora do mundo: ele pode assim entrar. É igualmente a concepção que se esconde atrás da principal denominação do ser humano no discurso moderno: “indivíduo”. No sentido mais elementar e etimológico, esse termo designa o “indiviso”, o que não pode ser dividido, o que significa a menor unidade independente concebível num dado conjunto. O indiviso é a unidade elementar que constitui um todo em si mesma, perfeitamente isolável das outras unidades e que desaparece se ela for atingida na sua integridade. O indivíduo humano é considerado como devendo constituir essa unidade elementar que “entra em relação” com os outros indivíduos na família, na
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escola, na sociedade. Se pretendemos “entrar em relação”, é preciso que preexistamos a qualquer vinculo social, ser já nos mesmos antes e fora de qualquer relação: partículas elementares e indivisas que se encontram num espaço externo a elas mesmas, denominado “relação”. Essa concepção levanta uma dificuldade trivial: biologicamente, o indivíduo no sentido estrito – a menor unidade humana concebível – não é um ser humano mas três. Ninguém existe sem um pai e uma mãe para concebê-lo, e, mesmo depois dos seus pais, cada ser continua em si a vida proveniente de células oriundas deles e, através deles, de uma historia que chega até o nascimento do universo, passando pela emergência das primeiras células vivas. Suprimindo o primeiro elo, nessa historia necessária para a vida, ninguém existe. Pode se então conceber um outro ser indiviso a não ser o universo inteiro? Colocado nesses termos, o indivíduo é somente o menor componente físico observável de uma comunidade humana. Um corpo não vem ao mundo: vem necessariamente do mundo que existe antes dele. Um corpo vem de outros corpos que lhe transmitem características especificas. O corpo é influenciado por instintos, sensações, emoções que não resultam de uma deliberação consciente do “indivíduo”. O corpo sempre foi um problema para uma concepção do ser humano que busca isolar uma vontade independente, autodeterminada. Daí a necessidade de conceber um “eu” metafísico (a alma) distinto do corpo físico. Somente o corpo vem do mundo e seria submetido a determinações às quais estão submetidos todos os seres indissociáveis de uma ambiente material e social. Em compensação, o “eu” vem ao mundo como um “sujeito” que possui um corpo, um objeto primeiro que ele tem vocação de utilizar e controlar. Esse “sujeito”, contrariamente ao corpo que é filho de seus pais, filho do mundo, é necessariamente filho de um Deus, quer dizer de alguém que tem o poder de ser antes e fora do mundo, e pode acrescentar a cada corpo que vem do mundo uma alma que vem ao mundo. Para ser si mesmo, é preciso sair do eu material para colocar o eu espiritual em harmonia com a ordem cósmica. O humano não é ainda o “indivíduo” que inventarão os modernos. Ele precisa abstrair-se do que constitui sua individualidade (o corpo) para encontrar seu verdadeiro lugar pela comunhão com a ordem cósmica.
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O NASCIMENTO DO INDIVÍDUO “MODERNO” Nos primeiros séculos de nossa era, a concepção do homem se impõe aos poucos ao Ocidente. Ela se situa em grande parte na linha da visão platônica e ancora a concepção metafísica de um homem que veio de fora: Adão é criado por Deus, e o milagre da criação se repete com cada recém nascido que, embora nascido da relação entre um homem e uma mulher, tem seu ser verdadeiro e imortal diretamente de Deus. Com Santo Agostinho, a teologia cristã avança para a concepção moderna do indivíduo porque ele o aconselha a olhar para si mesmo porque a busca da verdade passa por uma busca interior. Com Descartes, acontece a ruptura essencial que leva para a concepção moderna do indivíduo: enquanto para Platão e Agostinho, o reinado da razão consiste em reconhecer e aderir à ordem inscrita no cosmos, para ele essa ordem não existe; é a razão do indivíduo que a constrói. Com essa negação de toda verdade fora do “eu” pensante, perde se o lugar concreto da vida, o seu território, o seu habitat: o mundo no qual vivemos com e graças aos outros. Assim, tem-se um processo de exteriorização total: o indivíduo torna-se exterior ao mundo e ao próprio corpo que ele pode considerar como simples objetos, simples instrumentos cujo sentido e uso ele determina. O indivíduo é dissociado do seu corpo, dissociado do mundo, seu ser fora do mundo não deve nada aos outros. Somente os corpos humanos são ligados uns aos outros, mas os corpos são objetos instrumentalizados por espíritos perfeitamente desligados ou “a-ligados”. Assim, nasce o indivíduo no sentido estrito, quer dizer o átomo humano. Essa concepção atomística do ser domina as premissas do pensamento moderno, seja ele metafísico ou materialista. Ela nega qualquer papel ao vinculo social na constituição do ser. SEGUNDO PILAR: A AÇÃO E O PENSAMENTO DO INDIVÍDUO SÃO AUTODETERMINADOS O pressuposto de um indivíduo definido fora do mundo e dos outros permite considerar sua autodeterminação (ou independência) de dois modos. Uma concepção metafísica do ser humano conduz a postular um indivíduo autônomo (que escolhe as próprias regras); uma concepção materialista leva para a hipótese de um individuo automotor (que decide as próprias ações). A autonomia designa uma única liberdade: fixar para si mesmo a própria nomia ou “regra” de conduta, de pensamento e de vida. A autonomia não concerne a
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ação mas sim às normas que guiam o pensamento e a ação. Ela coloca um problema de identificação porque nenhuma de suas manifestações visíveis autoriza a inferi-la. O fato que alguém expressa ou cumpre o que ele quer sem sofrer o mínimo constrangimento exterior não basta para estabelecer que ele age em nome de uma norma interior independente de normas fixadas por qualquer tipo de sociedade. Inversamente, alguém que é fisicamente impedido de exercitar sua liberdade pode ser perfeitamente autônomo. O indivíduo autônomo, no sentido estrito, constitui um centro de pensamento independente de tudo que não é ele, que não segue nenhuma outra norma a não ser a que ele determina para si. LIVRE ARBÍTRIO OU LIBERDADE DO CORPO Essa
concepção
está
muito
ligada
à
metafísica
cartesiana.
Contrariamente à razão platônica ou agostiniana que ordenava ao ser humano de somente reconhecer a ordem preexistente no universo, a razão cartesiana convida o ser humano a criar a própria verdade. Embora a razão permaneça um dom de Deus, ela oferece ao individuo a capacidade de reconhecer Deus, não a obrigação. O dom de Deus é em primeiro lugar o dom do livre arbítrio e da dignidade que implicam a liberdade de negar a Deus. Não são simplesmente o corpo e o mundo que o “eu” pensante pode utilizar a vontade como materiais exteriores a ele: são também as idéias. As Luzes, seguindo John Locke, acabarão de construir a figura do eu autônomo que não somente é “em si” mas também “por si”, quer dizer capaz de decidir quem ele quer ser e de agir sobre si mesmo, sobre seus pensamentos, sobre suas aspirações, breve, de criar a si mesmo. Essa concepção está muito ligada a uma metafísica. Todavia, os materialistas também alimentaram o culto moderno da autonomia individual, mas por uma concepção especifica da liberdade que não pode ser confundida com a autonomia no sentido estrito. Hobbes inspirou uma teoria materialista da autodeterminação. Para ele, o ser humano é simplesmente um corpo e, por conseqüência, a palavra “liberdade” não pode ser aplicada a outra coisa, a não ser ao corpo. Contrariamente ao que implica a idéia de autonomia, não se pode conceber nenhuma liberdade da vontade, do desejo ou da inclinação. No que pode, então, consistir a única liberdade concebível, a do corpo? Enquanto corpo, o ser humano é governado por uma lei de natureza segundo a qual cada um tem a proibição de fazer o que destrói a própria vida ou que o priva dos meios de
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conservá-la.
Hobbes descreve
um
indivíduo
comandado
pelo
instinto
de
sobrevivência e pelo medo de ser morto pelos outros. Nesse contexto determinista, a liberdade consiste simplesmente no fato de que o individuo não é materialmente impedido o que a razão o manda fazer. Todas as ações humanas são de fato necessárias, mas liberdade e necessidade são compatíveis. A liberdade do homem é uma liberdade de circulação sem entraves, análoga à liberdade da água que corre pelo canal, uma liberdade de movimento. No estado de natureza (na ausência de lei), o indivíduo não é auto-nomo mas simplesmente auto-motor: é ele mesmo que coloca seu corpo em movimento para a ação. Todavia, embora diferentes, essas duas concepções da liberdade situam o
desencadeador de
toda
ação
numa
deliberação
individual, solitária e
independente. É o ponto essencial para identificar os pilares lógicos do edifício neoliberal. O
EQUILÍBRIO AUTOMÁTICO DOS MERCADOS SUPÕE INDIVÍDUOS INDIFERENTES UNS AOS
OUTROS
Se a demanda por um bem só depende de variáveis objetivas, pode-se enunciar “leis” do comportamento do tipo: a demanda por carros é função decrescente do seu preço, todas as outras variáveis permanecendo iguais. Como as variáveis em questão são mensuráveis, pode se fazer testes estatísticos para verificar “cientificamente” se a predição teórica do comportamento é verificada ou não pelos fatos. Reconsideremos agora a questão, no caso onde as escolhas e as preferências dos indivíduos não são independentes uns dos outros, por exemplo a compra do carro por status e comparação com os outros. No momento que intervêm interações subjetivas que não se sabe medir nem introduzir nas equações de demanda, somos incapazes de isolar seu efeito próprio. Então, não se sabe se o efeito atribuído ao preço na equação de demanda é um efeito real ou se ele resulta de todas as variáveis subjetivas ausentes da equação. É, por outro lado, difícil ou impossível de atingir um equilíbrio de mercado pela livre discussão de um preço ou pela livre troca de bens quando as preferências dos indivíduos são interdependentes e que cada um se preocupa com o bem estar do outro. Querendo que um mercado funcione bem, é melhor reunir indivíduos indiferentes uns aos outros.
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A preocupação em desenvolver uma ciência dos mercados, matemática e experimental como a física, levou os teóricos neoclássicos a eliminar do raciocínio tudo que não podia entrar facilmente nas suas equações, começando pela interdependência subjetiva das escolhas individuais. Esse modelo neoclássico desenvolve-se no ultimo terço do século XIX e ele precisa do postulado da estrita autodeterminação do comportamento individual através das seguintes hipóteses: 1. as “preferências” dos indivíduos são dados exógenos 2. as preferências são constantes porque nada, a não ser o próprio indivíduo pode alterar as próprias preferências 3. as preferências de um indivíduo são independentes das dos outros. A vinculação entre essa concepção neoclássica dos comportamentos e o neoliberalismo contemporâneo é imediata. O modelo neoclássico pretende demonstrar cientificamente a eficácia superior de mercados perfeitamente concorrentes. Constitui, portanto, o fundamento cientifico da principal prescrição política do neoliberalismo. TERCEIRO PILAR: A RESPONSABILIDADE EXCLUSIVA DO INDIVÍDUO E A DESIGUALDADE NATURAL Um indivíduo autodeterminado é seguramente o único responsável do que ele faz e do que ele é. Resulta de fato de sua independência que todo ato de um indivíduo expressa unicamente sua vontade: ninguém a não ser ele mesmo pode ser louvado ou incriminado em razão desse ato. O corolário indissociável dessa responsabilidade exclusiva é a naturalização de toda desigualdade. Admitindo o principio reconhecido por toda a filosofia de que todo indivíduo tem um valor igual, e, portanto, um direito igual a exercer sua vontade, podemos definir a desigualdade como uma diferença não querida pelo indivíduo, uma diferença imposta seja por uma potência externa, seja pela natureza. Uma sociedade liberal, que exclui uma restrição desigual da volição individual, só pode conhecer “desigualdades naturais”: desigualdades de capacidades físicas e psíquicas no nascimento. A “desigualdade social” não existe, a não ser como simples comodidade de linguagem para indicar simples “diferenças” de renda, de poder, de acesso ao emprego, de condições de trabalho, de moradia etc. Em resumo, se todo ato resulte necessariamente da livre decisão de um indivíduo (que podia fazer diferente do que ele fez), as conseqüências desse ato só podem ser imputadas ao indivíduo.
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É uma concepção quase tautológica da liberdade que faz dessa palavra um simples sinônimo de “ação”. Uma ação qualquer é livre por definição, porque sua simples existência manifesta que ela não foi impedida. Segue disso uma concepção absoluta da responsabilidade individual e da irresponsabilidade da sociedade em relação ao indivíduo. Para os neoclássicos, por definição, as pessoas fazem o que fazem porque querem; senão, fariam outra coisa! Se, por exemplo, quisermos reduzir o desemprego, é preciso pensar como afetar a incitação dos desempregados a permanecer desempregados, como levar eles a decidir outra coisa. Essa concepção particular da liberdade fundamenta a prescrições neoliberais em matéria de política de emprego: se alguém for desempregado, é porque ele quer; a luta contra o desemprego consiste a incitar os desempregados a buscar trabalho e aceitar os empregos disponíveis, e, depois, a incitar os empregados a fazer de tudo para conservar o emprego, quer dizer a aceitar todas as exigências dos empregadores, sem o que eles seriam responsáveis pelo próprio desemprego. A idéia que os desempregados seriam desempregados apesar deles mesmos não faz o mínimo sentido para um economista neoliberal. Esses três primeiros pilares ajudam a responder à pergunta “O que é um ser humano?” na concepção neoliberal. A resposta é: o ser humano é um “indivíduo” que existe antes de qualquer relação com o outro; é, portanto, perfeitamente autodeterminado, independente dos outros, único dono dos próprios atos; é também, por conseqüência, o único responsável pelos seus atos e da situação que disso resulta. QUARTO PILAR: O INDIVÍDUO É ESTRITAMENTE EGOÍSTA E RACIONAL O indivíduo é estritamente egoísta: age sempre e unicamente em vista do próprio bem estar, inclusive quando isso tem como efeito (mas não como finalidade) de proporcionar algum bem ao outro. Outrossim, é um egoísta “racional”, quer dizer que ele usa a razão para explorar do melhor modo possível todos os meios para melhorar seu bem estar. O postulado de autodeterminação (ou de independência) individual implica que o bem estar de um indivíduo não é afetado pelo bem estar ou pelo mal estar dos outros indivíduos. Isso implica notadamente a ausência de qualquer interdependência da preferências associadas a sentimentos como o ciúme, a inveja,
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a empatia, a compaixão, o amor, o ódio etc. Uma pessoa que vivencia todos esses sentimentos não pode ser considerada como um centro de decisão separado e independente dos outros. O que ela pensa e deseja depende de sua relação com os outros, do que decidem os outros e do modo pelo qual eles reagirão às suas decisões: ela seria somente parte interessada de um complexo processo de interação, de co-decisão, de co-determinação (como os participantes de uma ciranda), onde suas preferências são ao mesmo tempo determinadas por e determinadas para as dos outros. A racionalidade só não implica o egoísmo. O altruísta pode agir racionalmente, quer dizer buscar os meios os mais eficazes para atingir seus objetivos: o bem estar do outro. É unicamente a associação da racionalidade e da independência que implica o egoísmo. Um indivíduo estritamente independente em nada é afetado pelo outro; se for racional, ele só age por ele mesmo e para ele mesmo: é egoísta. Se não tiver um comportamento egoísta, é ou porque ele perdeu a razão, ou porque seu comportamento tem unicamente a aparência do altruísmo e reflete em verdade seu “interesse bem entendido”. A NEGAÇÃO DO ALTRUÍSMO AUTÊNTICO A idéia de que o interesse pessoal é o motor exclusivo da ação humana é tão velha como a filosofia (assim como sua contestação). Ela progride mais especialmente a partir do século XVI, por causa do mercantilismo e da emergência de um pensamento econômico independente da teologia e da moral; ela é encontrada também no pensamento de Maquiavel. Hobbes a afirma com mais força: “Não buscamos companheiros por algum instinto dado pela natureza; é por causa da honra e da utilidade que eles nos trazem.(...) Se for para o comércio, o interesse próprio é o fundamento dessa sociedade; e não é pelo prazer da companhia que as pessoas se reúnem, mas sim para o progresso dos seus negócios particulares.”14 Tal concepção, ontem como hoje, choca o senso comum que reconhece como uma evidência a existência de motivações altruístas, por exemplo nas relações amorosa e amigáveis. Muitos moralistas (por exemplo, La Rochefoucauld, Bernard Mandeville) tentaram recusar essa objeção dizendo que podemos ser extremamente benevolentes mas para tirar alguma vantagem. Mas por que toda cultura humana
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HOBBES, O cidadão, citado por GÉNÉREUX, Ibid p. 218, de quem reproduzo as passagens sublinhadas
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desenvolve uma moral que reprova os comportamentos estritamente egoístas e louva o altruísmo. Mandeville responde a isso na Fábua das abelhas em 1714. Segundo ele, o interesse bem entendido que nos leva para comportamentos aparentemente altruístas inclui o prazer que sentimos em admirar a nos mesmos e ser admirados pelos outros. O orgulho sendo para Mandeville uma das manifestações mais vivas de nosso amor próprio, ele pode justificar um dom de si sem contrapartida material, mas que nos dá uma recompensa ainda maior: a contemplação narcisista de si mesmo no olhar dos outros. Fazemos de conta que somos bons para ser admiráveis e admirados. A moral é uma invenção genial e cínica dos legisladores para obter barato a docilidade dos indivíduos ordinários: em troca de seus esforços para temperar seus apetites e de preocupar-se do bem comum, esses recebem somente a bajulação social, o reconhecimento puramente convencional que eles são “pessoas de bem”. Os moralistas pouco ligavam para o bem publico. Era no seu interesse, sempre segundo Mandeville, de “encorajar o devotamento ao bem publico que lhes permitia de se beneficiar do fruto do trabalho e da abnegação dos outros e, ao mesmo tempo, ser mais tranqüilos para entregarse ao seus apetites.” O que impressiona, na teoria do egoísmo, é seu caráter absoluto. Não pode existir no indivíduo outro sentimento a não ser o amor próprio e nenhuma outra finalidade a não ser o interesse próprio. TEORIA MINORITÁRIA DURANTE MUITO TEMPO O liberalismo comporta duas grandes correntes a partir da segunda metade do século XVIII: o utilitarismo (Hume, Smith, Bentham. Mill) e uma corrente dos direitos humanos oriunda da filosofia do direito natural (Kant, Turgot, Paine, Condorcet). A primeira dessas correntes vê na felicidade o bem supremo e recomenda ao indivíduo assim como ao Estado de agir em vista da maior felicidade para o maior número de pessoas; a segunda corrente situa o bem supremo na justiça, quer dizer na conformidade aos direitos e deveres naturais que o homem descobre por diversos meios segundo os autores. A maior parte dos autores liberais rejeitou explicitamente a idéia de que o egoísmo constitui uma boa explicação ou uma explicação suficiente do comportamento individual. Toda a corrente liberal admite a idéia de que o homem é capaz de benevolência autentica em relação aos outros.
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Adam Smith na sua “Teoria sobre os sentimentos morais”, identifica dois traços fundamentais da relação com os outros, que não têm nada a ver com o egoísmo: a simpatia e o desejo de aprovação. O ser humano é modelado pela necessidade de amar e de ser amado. É uma teoria que exclui nem o egoísmo nem o altruísmo; admite a pluralidade das motivações humanas e proíbe pensar o individuo fora de uma interação social. Essa mesma concepção plural da natureza humana será encontrada em todos os precursores e fundadores do socialismo não marxista. A teoria do ser humano motivado unicamente pelo amor de si mesmo achou apoio na difusão da nova teoria da evolução de Darwin. A idéia nova que o humano resulta de uma longa evolução das espécies reforçava intuitivamente a convicção que, no “estado de natureza”, o homem se comporta como um animal e não conhece outra lei a não ser a satisfação egoísta de suas pulsões. “Cada um para si” parecia a lei eterna da natureza. Os ultra liberais promoveram essa leitura incompleta de Darwin. Mais ainda do que a teoria da evolução, é a vontade nova de desenvolver uma ciência matemática da economia que traz de volta com força o postulado do egoísmo racional. Depois do retrabalho das hipóteses para construir equações da oferta e da demanda independentes e desembocando num equilíbrio geral dos mercados, sobra do individuo sutil dos liberais só um átomo movido por uma pulsão mecânica de gozo, totalmente indiferente ao gozo e ao sofrimento dos outros átomos. A simpatia, a empatia, a necessidade de reconhecimento, todas as interações sociais são abandonadas. O agente econômico, ou homo oeconomicus, é uma maquina de gozar insaciável, em movimento permanente para agarrar qualquer oportunidade de gozar sempre mais. Formalmente, isto implica uma mudança de hipótese de racionalidade. O termo designa daqui para frente 1. a capacidade do indivíduo em identificar e filtrar todas as possibilidades segundo sua ordem de preferência pessoal. 2. a capacidade em empregar todos os meios disponíveis para escolher no universo dos possíveis a solução que maximize a “utilidade” (satisfação) do indivíduo (hipótese de “racionalidade forte”).
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QUINTO PILAR: O INDIVIDUO PREDADOR E A LEI DO MAIS FORTE NO “ESTADO DE NATUREZA” Se o indivíduo for estritamente egoísta e indiferente ao bem ou ao sofrimento do outro, é por natureza agressivo e predador. De fato, quando vários indivíduos autônomos e egoístas partilham um mesmo ambiente, entram inelutavelmente em competição para o uso dos recursos; enquanto um indivíduo não alcance o estado de saciedade, ele prefere privar o outro de um recurso do que ser ele mesmo privado. A cooperação e a solidariedade não podem constituir a reação espontânea e privilegiada de indivíduos confrontados a um problema de partilha de recursos. Corolário desse postulado: uma sociedade primitiva (sem Estado e sem leis) é necessariamente o lugar de uma competição feroz que cessa unicamente e temporariamente pela vitória do mais forte. O egoísmo integral dos indivíduos implica a predação e a lei do mais forte. O individuo não pode contentar-se de ser egoísta. Quando tem uma competição para os bens, ele é obrigado de ser “maldoso”, nem que seja para evitar de ser a vitima do apetite dos outros. Para Hobbes, o medo que inspiram uns aos outros os humanos no “estado de natureza” é tal que a única sociedade imaginável é uma hipersociedade estadista que dissolve a autonomia individual num Estado Soberano que impõe pelo “temor” o respeito de uma lei comum. Solução inelutável quando se considera que não existe nada no ser humano que se pareça com a aspiração de “ser com”. Pode parecer paradoxal de considerar como um pilar do neoliberalismo uma concepção do ser humano que leva a um Estado onipotente. É um falso paradoxo. Em primeiro lugar, o neoliberalismo não tem nada contra um Estado poderoso, enquanto este serve para punir ou retirar da sociedade os marginais que não respeitam a propriedade e a ordem moral necessárias para uma sociedade de livre competição. Em segundo lugar, fora desse poder de policia e de justiça, os neoliberais consideram que a regulação política da sociedade é perfeitamente inútil. Portanto, o fato de que os seres humanos são naturalmente “maldosos” não implica automaticamente a dominação geral do Leviatã de Hobbes. Engaja em vez a achar um meio de satisfazer o apetite insaciável dos “lobos humanos”, de sorte que não tenham mais motiva para entre-devorar-se. Esse meio é a instituição dos mercados de livre concorrência em todas as atividades humanas. A maldade natural dos humanos não cria obstáculos ao programa neoliberal. É uma hipótese indispensável para desqualificar todo sistema baseado em dom, cooperação e solidariedade.
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O HOMEM SIMPÁTICO DE SMITH A “Teoria dos sentimentos morais” de Adam Smith faz da simpatia um mecanismo mais geral do que o “senso moral” de Hutcheson. Para ele, o mecanismo simpático coloca no coração do homem um desejo obsessivo de aprovação, de reconhecimento social, que o leva a fazer cada vez mais esforços para obter a simpatia daqueles que não são tão próximos. Para obter a simpatia dos outros membros da sociedade, o indivíduo deve consentir mais esforços para afinar seu comportamento de modo a suscitar uma sempre maior aprovação. Smith pensa assim ter descoberto um mecanismo que garante uma sociabilidade geral, e não somente uma de proximidade. E a busca de reconhecimento social não garante somente a harmonia de uma sociedade humana, ela explica também seu desenvolvimento. É ela que conduz os homens, contrariamente aos outros animais, a não se contentar de suas necessidades vitais. Quando esses são satisfeitos, o ser humano se preocupa com o olhar e a estima dos outros. Daí o crescimento das artes e das técnicas e a acumulação de bens fúteis, inúteis para a sobrevivência mas desejados para o reconhecimento social que eles proporcionam. O homem de Smith é um vaidoso cuja maior energia é consagrada a produzir e consumir bens fúteis. É vitima de uma ilusão que o leva a acreditar que seu desejo insaciável de bens inúteis é uma autentica necessidade. Isso não implica que o ser humano nasça naturalmente bom e altruísta, desde o alvorecer da humanidade. Smith pensa que os selvagens dos primeiros tempos viviam num estado de total despojamento e de vulnerabilidade e que toda sua energia estava voltada para a sobrevivência. A preocupação pelo outro pressupõe um mínimo de segurança em relação à própria vida. Se a simpatia for uma disposição natural, é enquanto potencialidade inscrita na natureza do homem, mas cujo desabrochar verdadeira depende da evolução das condições materiais de existência. Assim o pensamento de Smith não está simplesmente fundamentado numa filosofia da natureza humana, mas também numa antropologia. Esta, apoiando-se nos trabalhos etnológicos suscitados pela colonização do Novo Mundo, esforça se de descrever os estágios de desenvolvimento sucessivo pelos quais a humanidade deve passar para passar a ponte que separa os primeiros “selvagens” da civilização mercante.
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Segundo Smith, a humanidade passa necessariamente por quatro estágios de desenvolvimento: caça, criação, agricultura e comércio. A cada um desses estágios, a falta de recursos para enfrentar as necessidades de uma população crescente obriga o homem a inventar um novo modo de produção para aumentar momentaneamente a subsistência. Mas, autorizando um novo crescimento da população, o progresso relativo a um modo de produção restabelece a carência de recursos que força a passagem para o estagio seguinte e assim sucessivamente até a idade da “sociedade comercial” que chamamos atualmente de “economia de mercado”. Enquanto a humanidade é condenada a uma falta crônica de recursos, a precariedade da condição humana é tal que ela deixa pouco espaço para o cuidado com o outro. Assim, no que diz respeito aos estágios anteriores da economia de mercado, Smith valida a visão pessimista de Hobbes sobre o estado de natureza: um estado governado pelo medo de morrer, onde não se pode contar muito com a simpatia dos outros. Assim, bem antes de Marx, Smith desenvolve uma teoria materialista da evolução social, na qual os modos de pensamento e os valores são determinados pelas condições materiais de existência. Ao mesmo tempo, ele alcança o idealismo de Hegel, reconhecendo na caminhada cega dos homens em direção de um progresso material constante a mão invisível de uma Providencia divina que os conduz em direção ao estagio da economia de mercado onde a propensão à simpatia poderá acontecer plenamente. Uma vez atingido o estágio em que os recursos cresçam mais rápido do que a população, a falta de subsistência desaparece e a maior preocupação do homem é atrair a simpatia e o reconhecimento do outro. Uma outra forma de carência aparece para manter os homens sempre em direção do progresso. O ser humano deixa a idade da necessidade para ingressar na idade do desejo, na verdade mais insaciável ainda do que a necessidade. A harmonia social acaba não sendo objeto de uma ação política mas sim de uma lei da natureza que se cumpre necessariamente. Isso seduz os neoliberais. Os crentes escolherão que o laissez faire é fruto de Providência e os ateus que ela é conduzida pela lei da natureza. Cada um pode escolher livremente a própria alienação.
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O BOM SELVAGEM DE ROUSSEAU Rousseau enuncia um principio que Hobbes não percebeu, que foi dado ao ser humano para amansar a ferocidade do seu amor próprio: ele tempera o ardor que ele tem na busca do próprio bem estar por uma repugnância inata em ver seu semelhante sofrer. Da força dessa “piedade natural”, decorreriam, segundo Rousseau, “todas as virtudes sociais”15. Em Hobbes, trata-se de uma situação de guerra permanente porque os homens são rivais num mesmo território; em Rousseau, trata-se de um estado onde os homens não se encontram. O homem selvagem de Rousseau está sozinho e não é maldoso enquanto permanecer assim. Ele se torna maldoso quando ele começa a viver em sociedade. No estado de natureza, na realidade, o homem não é bom: ele é tranqüilo! Quando a Historia põe um ponto final nesse estado de natureza, quando ela entrega o homem à companhia dos outros e à necessidade de refletir para viver, o homem não é mais amável do que o “lobo” imaginado por Hobbes. Podemos perceber aqui a diferença de análise com Adam Smith. Para esse último, o estado de natureza de Rousseau não existe. Desde o primeiro estagio (caçador), os homens vivem em sociedade porque são assim constituídos que eles não podem sobreviver a não ser em grupo. Por isso, desde o inicio, o ser humano é feito para e constituído por vínculos sociais. Pelo contrario, para Rousseau, é precisamente quando o ser humano entra em sociedade que ele se torna maldoso e anti-social. Nisso, Rousseau alcança Hobbes numa conclusão essencial: a entrada em relação dos seres humanos é sempre problemática, dominada pela rivalidade e a lei do mais forte,enquanto não são postos os fundamentos de uma sociedade onde o poder soberano pode exercitar-se com o consentimento de todos. A convergência desses autores, que politicamente tudo opõe, reflete sua premissa comum: um indivíduo autônomo que preexiste a toda comunidade humana, sendo em nada constituído pelos vínculos com os outros. O HOMEM INCOERENTE DE MARX Para Marx também, a natureza do homem parece boa e pronta para realizar-se pacificamente no trabalho livre. Mas, como em Rousseau, as forças naturais da Historia, que vão além do indivíduo, impuseram a divisão do trabalho, a
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propriedade, o poder e o estado de conflito permanente. Para ele, o homem sempre viveu em sociedade e desde sempre é a guerra, das classes oprimidas contra as classes dominantes. A cada etapa da Historia, uma classe dominante substitui a precedente e uma forma de opressão e alienação substitui uma outra. Como com Rousseau, temos um paradoxo. Se o homem é naturalmente apto a realizar-se na vida social, se ele não for fundamentalmente maldoso, por que ele instaurou “modos de produção” que autorizam “a exploração do homem pelo homem”? A solução de Marx significa dizer que não foi ele que fez isso, é a Historia, porque, retomando as teses de Hegel, ele vê na Historia o lugar de um enfrentamento dialético de forças (teses/antíteses) às quais o indivíduo não pode se opor. Desse enfrentamento surge uma sucessão de sínteses, na forma de modos de produção, de instituições políticas e de convenções morais que caracterizam uma sociedade. Graças ao materialismo histórico, ele sustenta que não é o progresso das idéias e das consciências que determina a Historia, mas unicamente a evolução das condições materiais de existência e de produção. Surge um novo paradoxo. Se a consciência do homem e sua vontade não fazem a Historia, por que a classe operaria e o Partido Comunista teriam a idéia e a capacidade de colocar um fim no ciclo infernal da luta de classes, como se, de repente, a consciência dos homens podia reassumir o controle da Historia? Entendese, portanto, por que Marx precisa pressupor uma forma de sociabilidade natural: na fase de ditadura do proletariado, é preciso que os indivíduos aceitem de assumir uma mobilização forçada de suas energias para atingir um dia, talvez não no seu tempo de vida, o estado de abundancia material. E quando a abundancia finalmente chegou, é preciso pressupor a ausência de toda maldade porque, mesmo refestelados, os maldosos permanecem invejosos e desolados com a felicidade dos outros. Contudo, apesar da bondade natural, enquanto a paraíso materialista não foi atingido, é preciso a onipotência do Estado para manter os homens juntos e evitar o ressurgimento de classes rivais. O dilema está no fato de que não se poder reconhecer o papel da bondade na Historia sem dever considerar o da maldade.
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ROUSSEAU, Jean Jacques, Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les homes (1755), citado por Généreux Ibid p.233
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O ERRO ANTROPOLÓGICO DOS MODERNOS16 O erro antropológico fundador do pensamento moderno consiste em esquecer o fato de que o indivíduo constrói se nem antes nem sem os outros, e se acha constituído por uma interação social complexa cujo resultado é imprevisível. A idéia cartesiana de uma verdade acessível unicamente por uma razão individual negligencia o fato de que ninguém pode pensar unicamente por si. Ninguém nasce com um cérebro e uma capacidade de raciocínio de adulto: essa capacidade é adquirida e modelada pela interação sensorial, afetiva, objetiva e subjetiva com os outros. A historia da constituição de cada individuo e, a fortiori, de cada comunidade de indivíduos, é assim especifica, única, datada, situada e não reprodutível. O erro moderno consiste em negar essa interdependência contingente entre os seres, adotando uma concepção atomística do homem e o individualismo metodológico: o indivíduo perfeitamente autônomo que deve nada aos outros. Era uma condição sine qua non para colocar os comportamentos humanos em equações e torná-los previsíveis. O erro dos modernos acha-se reforçado pelo principio oposto ao individualismo: o holismo. Esse de fato nega também a interação dos indivíduos: o indivíduo totalmente determinado pelo seu ambiente social não retroage sobre os outros; ele é agido por um sistema cuja lei de evolução é independente dos seres singulares que o constituem. Assim, o holismo integral do marxismo afina-se com o individualismo absoluto dos neoliberais; esses dois métodos de raciocínio têm o efeito comum que eles buscam: a previsibilidade perfeita dos comportamentos individuais e da sua resultante coletiva. De fato, se um átomo social é estritamente dissociado e independente de todos os outros em particular, ele é totalmente dependente do sistema constituído pelo conjunto dos átomos. A interdependência subjetiva entre os indivíduos criam vínculos, alguns subsistemas interativos, que dão a cada um e a todos uma margem de manobra para orientar sua historia. A liberdade criadora dos indivíduos vem assim do fato de que eles dependem uns dos outros; pelo contrario, uma estrita independência do seres tira de cada um toda liberdade real frente à lei do sistema que, apesar deles mesmos, eles constituem todos juntos. É por isso que a abordagem individualista é idêntica à abordagem holística num ponto essencial: o sistema social é governado por leis mecanicistas e previsíveis totalmente 16
GÉNÉREUX, ibid. p. 345ss
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independentes da vontade particular dos indivíduos. No oposto, se reconhecermos que o indivíduo depende de outros indivíduos particulares para pensar, sentir, agir, decidir e que, por sua vez, ele participa da determinação de outros indivíduos, então tudo pode acontecer mas nada é certo: a Historia torna-se perfeitamente contingente. Os modernos “esqueceram” a interação social constitutiva dos seres humanos, porque ela torna a historia dos homens contingente e imprevisível. De fato, eles queriam construir uma física social que explica
e prediz os
comportamentos dos corpos humanos com a mesma precisão mecânica do que a física dos corpos celestes de Galileu. O pensamento moderno não parte do estado do mundo real. Ela parte de um novo mundo imaginário, ela procede como se sua invenção teórica – o indivíduo perfeitamente autônomo – fosse já uma realidade universal; como o sonho de um adolescente que apaga a lei imposta pelos pais, o sonho do pensamento moderno apaga a sociedade; opera um big bang social imaginário e fundador: a realidade social explodiu e a humanidade dispersou-se numa infinidade de átomos isolados. Postulando uma humanidade atomizada, a filosofia política indaga como a humanidade pode percorrer o caminho inverso: como religar átomos desligados e estritamente independentes uns dos outros? Questão insolúvel a não ser pelo retorno ao ponto de partida: não se pode religar o que está por essência desligado, não se associa átomos movidos por forças independentes e contrarias; só é possível fusioná-los. É um dilema que o pensamento fabricou para si mesmo, raciocinando a partir de um mundo virtual de indivíduos atomizados. Esse dilema nunca existiu na realidade. O verdadeiro dilema do progresso humano geral, como o do crescimento do indivíduo singular, foi sempre exatamente o inverso: como desligar-se dos outros sem desvincular-se e derivar para um espaço vazio? Cada ser nasce numa fusão perfeita com a própria mãe; o desafio vital de todo ser é constituir o cordão social que substituirá o cordão umbilical, de modo que ele se alimente dos outros sem ser fusionado com o corpo do outro. A historia de uma vida humana é esse longo desapego que nos conduz para o desapego último. O nosso desafio existencial não é o da vinculação, porque nascemos vinculados e somos constituídos por nossos vínculos, o nosso desafio é inventar uma relativa desvinculação que nos mantenha em vida, quer dizer vinculados aos outros! Inventando o indivíduo autônomo, os
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modernos não inventam a liberdade do ser humano, mas sua solidão; eles o emancipam do Outro, mas não de uma lei sem a qual sua vida não seria mais do que um vagar sem sentido. A urgência não é mais emancipar os indivíduos contra um superego social (moral ou religioso) alienante. O indivíduo é as vezes tão emancipado, assim como o mostra Alain Ehrenberg, de todo significado imposto de fora que ele sofre do não sentido, da necessidade de ser tudo sozinho, do “cansaço de ser si mesmo” que o mergulha na depressão. A urgência é crescer: deixar a infância do pensamento moderno para aceder a um pensamento adulto e consciente; cessar de recalcar e maquiar todos os fatos que desenham uma humanidade mais complexa.