GIRARD
ACHEVER CLAUSEWITZ
ACHEVER CLAUSEWITZ1 É o cristianismo que desmistifica o religioso e essa desmistificação, boa no absoluto, mostrouse ruim no relativo porque não estávamos preparados para assumi-la. Não somos suficientemente cristãos. Dito de outro modo, o cristianismo é a única religião que previu o próprio fracasso. Essa presciência chama-se apocalipse. É nos textos apocalípticos que a palavra de Deus se faz ouvir com mais força, em contrapartida dos erros unicamente imputáveis aos homens, que quererão cada vez menos reconhecer os mecanismos de sua própria violência. Mais eles persistirão no seu erro, mais a potência dessa voz emergirá na devastação. É a razão pela qual ninguém quer ler os textos apocalípticos e quer reconhecer que eles se realizam debaixo dos nossos olhos como conseqüência da Revelação desprezada. Uma vez na história, a verdade da identidade de todos os homens foi dito, e os homens não quiseram ouvi-la, agarrando-se cada vez mais freneticamente a suas falsas diferenças. Duas guerras mundiais, a invenção da bomba atômica, vários genocídios, uma catástrofe ecológica iminente não bastaram para convencer a humanidade que os textos apocalípticos, mesmo não tendo um valor preditivo, dizem respeito ao desastre em andamento. A teoria do mimetismo aplica-se a descrever os mecanismos que as recentes descobertas em neurologia confirmam: a imitação é a primeira e o meio essencial da aprendizagem, muito mais do que a coisa aprendida. Só podemos escapar ao mimetismo entendendo suas leis: somente a compreensão dos perigos da imitação permite pensar uma autêntica identificação com o outro. Todavia, tomamos consciência da primazia da relação moral no momento mesmo em que a atomização dos indivíduos está se completando e onde a violência cresceu em intensidade e imprevisibilidade. A violência está hoje desencadeada no nível do planeta inteiro, provocando o que os textos apocalípticos anunciavam: uma confusão entre os desastres causados pela natureza e os desastres causados pelos homens, uma confusão entre o natural e o artificial: aquecimento planetário e subida das águas não são mais metáforas. A violência, que produziu o sagrado, não produz mais nada a não ser ela mesma. Que a realidade venha confirmar uma 1 GIRARD, René, Achever Clausewitz, Paris, carnetsnord, 2007 verdade não inventada porque foi dita há mais de dois mil anos, é o que nossa obsessão doentia da contradição e da inovação não pode nem quer ouvir. Compreendendo cada vez melhor a origem, entendemos cada vez mais que essa origem está vindo na nossa direção: o trinco do assassinato fundador, quebrado pela Paixão, liberta hoje uma violência planetária sem que se possa fechar de novo o que foi aberto. Sabemos hoje que os bodes expiatórios são inocentes e a Paixão revelou uma vez por todas a origem sacrificial da humanidade. Desfez o sagrado revelando sua violência. Por outro lado, o Cristo também confirmou o divino que todas as religiões carregavam. O paradoxo incrível que ninguém quer aceitar é que a Paixão libertou ao mesmo tempo a violência e a santidade. O sagrado que de dois mil anos para cá fez seu retorno não é um sagrado arcaico mas um sagrado satanizado pela consciência que temos dele e que assinala através dos seus excessos a iminência da Parúsia.
A subida em direção aos extremos A ação recíproca é o que provoca a subida para os extremos o que a difere? O princípio mimético, essa imitação do modelo que torna-se por sua vez imitador e leva a um conflito redobrado de dois rivais, essa ação recíproca não seria o motor autônomo da historia? De fato, é preciso identificar ação recíproca e princípio mimético. Essa mola da imitação violenta que faz com que os adversários fiquem cada vez mais parecidos é o que está na origem de todos os mitos, de todas as culturas. A teoria mimética contradiz a tese da autonomia. Tende a relativizar a introspecção: descer dentro de si é sempre encontrar o outro, o mediador que orienta meus desejos sem que eu esteja consciente disso. A ação recíproca provoca e difere ao mesmo tempo a subida aos extremos. É uma conseqüência da imitação de provocar esses dois efeitos contrários. Essa ambivalência é fundamental e contribui a fazer da interação entre os homens um princípio único. A ação recíproca é ao mesmo tempo troca, comercio e reciprocidade violenta. A ambivalência é constitutiva do modelo que primeiro atrai e depois repele. A ação recíproca pode ser ao mesmo tempo fonte de indiferenciação e criadora de diferenças, fonte de guerra e fator de paz. Se ela provocar e acelerar a subida aos extremos, as fricções próprias do tempo e do espaço desaparecem e isso se parece com a crise sacrificial. Se ao contrário a ação recíproca diferir a ida aos extremos, ela visa a produzir sentido e diferenças novas. Mas tudo parece acontecer hoje como se fosse a imitação violenta que vence: não a que diminui ou freia a velocidade dos acontecimentos, mas como a que acelera o curso desses acontecimentos. É o fato de que o princípio mimético apareça e que as diferenças vacilem cada vez mais que provoca a aceleração da história que presenciamos há mais um menos uns três séculos. O ataque e a defesa: uma polaridade diferida Tudo acontece como se uma polaridade mascasse uma outra, mais terrível levando a uma exasperação da reciprocidade, na direção de uma “exterminação” do adversário. A segunda grande intuição de Clausewitz toma a forma de um paradoxo: o conquistador quer a paz, o defensor quer a guerra. O defensor é ao mesmo tempo quem começa e quem termina a guerra. Ele determina pela natureza de suas fortalezas, dos seus exércitos e do seu comando o que será o ataque. O modelo (o que deverá defender-se) é o do qual se tenta tomar ou retomar seus bens; é quem domina e dita a própria lei ao outro. A subida aos extremos implica uma mediação dupla porque é sempre difícil saber quem atacará primeiro: de um certo modo é sempre quem não ataca. A mimésis de apropriação que dita o comportamento do atacante implica ao mesmo tempo uma resposta, o contra-ataque, meio de defesa. Isso não tira o fato de que o “defensor de início” é quem domina. É a partir daí que o princípio de polaridade será aplicado: uma polaridade absoluta preparada por polaridades relativas. É preciso falar menos de risco de auto-destruição e mais do triunfo da violência, nessa primazia da defesa sobre o ataque. A violência vai triunfar cada vez mais: esse é o princípio da superioridade da defesa. Essa primazia da defensiva é, de um certo modo, o aparecimento, no conflito, do princípio de reciprocidade como uma polaridade diferida, no sentido em que a vitória não é imediata mas,
mais tarde, será total. A violência nunca é perdida para a violência: ela não é mais descartável. É essa realidade fundamental que deve ser entendida. Existe nesse ponto uma descoberta antropológica fundamental: a agressão não existe. Nos animais, existe a predação e provavelmente a rivalidade genética para as mulheres. Com os homens, se ninguém nunca tem o sentimento de agredir, é que sempre tudo está sempre na reciprocidade. E a menor pequena diferença, num sentido ou no outro, pode provocar uma subida aos extremos. O agressor sempre já foi agredido. Porque as relações de rivalidade nunca são percebidas como simétricas? Porque as pessoas sempre têm a impressão de que o outro é o primeiro a atacar e que nunca são elas que começaram enquanto, de um certo modo, são sempre elas. O individualismo é uma mentira formidável. Os homens estão sempre ao mesmo tempo na ordem e na desordem, na guerra e na paz. Podemos cada vez menos dispor entre essas duas realidades que, até a Revolução Francesa, eram codificadas e ritualizadas. Não há mais diferença hoje. A ação recíproca está tão amplificada pela mundialização, esta reciprocidade planetária onde o menor dos acontecimentos pode ter repercussões do outro lado do planeta, que a violência sempre tem a dianteira. A política corre atrás da violência. O ataque e a defesa acabam sendo promovidos ao papel de únicos motores da história. A vitória não pode mais ser relativa: só pode ser total. O movimento de polaridade é o movimento próprio dessa catástrofe. O apocalipse não é nada mais do que a realização de uma abstração, uma adequação do real a um conceito; e os homens, é preciso ter a lucidez de dizer, tendem por si só na direção do aniquilamento. É a lei implacável do duelo na primazia da defesa sobre o ataque. Os homens se distinguem dos animais que conseguem a conter a violência nas redes de dominação. Os homens não conseguem conter essa reciprocidade porque eles se imitam demais e ficam cada vez mais parecidos e cada vez mais rapidamente. A violência assusta muito quando se entende suas leis, quando percebemos que ela é recíproca e que, portanto, ela virá de novo. A guerra de extermínio Não estaríamos destruindo somente para destruir? A violência parece deliberada, a subida aos extremos é apoiada pela ciência e pela política. Seria um princípio de morte que acaba se esgotando e abrindo para outra coisa ou, pelo contrário, uma fatalidade? É difícil dizer. O que podemos constatar é a infecundidade crescente da violência, incapaz de esconder-se atrás de qualquer mito para justificar-se. A polarização sobre a vítima emissária sendo impossível, as rivalidades miméticas estouram de modo contagioso sem poder ser esconjuradas. O pecado original é uma vingança interminável. Ele começa com o assassinato do rival. A religião é o que permite viver com o pecado original. Por isso, uma sociedade sem fator religioso se auto-destruiria. A vingança não existe nos animais. Somente a conjunção da inteligência e da violência permite falar em pecado original e justifica a idéia de uma verdadeira diferença entre o animal e o homem. Essa realidade constitui a grandeza de todas as religiões, com exceção do cristianismo que abole a função provisória do sacrifício. O Cristo
tirou dos homens suas muletas sacrificiais, deixando os diante de uma escolha terrível: acreditar ou não na violência. O cristianismo é a não crença! Cedo ou tarde, os homens renunciarão à violência sem sacrifício ou eles explodirão o planeta: estarão em estado de graça ou em estado de pecado mortal. Podemos dizer que se a religião inventa o sacrifício, o cristianismo priva a humanidade dele. Ninguém começa algo, a não ser pela graça. Acreditar que possamos, nos mesmos, começar algo é o pecado. Não começamos nada: sempre respondemos. É sempre o outro que decide no meu lugar e me obriga a responder. E o grupo sempre decide para o indivíduo: é a lei do sistema religioso. Nunca fundamentamos nada sozinho, mas sempre com os outros: é a lei da unanimidade e essa unanimidade é violenta. O papel da instituição é fazer nos esquecer disso. O religioso arcaico estava fundado na ausência total de crítica da unanimidade. Sófocles não achou melhor imagem para revelar essa violência: é no momento em que a violência espalhase na cidade como peste que a vacinação do sacrifício de Édipo trará uma solução. O bode expiatório contra quem é refeita a unidade do grupo ameaçado pela própria violência era chamado de fármacos, em grego: ao mesmo tempo “remédio” e “veneno”, culpado pela desordem e restaurador da ordem. É essa ambivalência própria do sagrado que faz cessar um tempo a violência. As guerras terroristas e outras pandemias que nos ameaçam lembram a peste tebana. Uma pandemia que poderia matar milhares de pessoas é um fenômeno típico da indiferenciação em curso no planeta. Podemos enfrentá-las se soubermos partilhar as vacinas para não limitálas para as nações ricas, considerando a porosidade das fronteiras assim como de todas as diferenças daqui para frente. Essas pandemias dizem algo para nos das relações humanas reduzidas a um “comércio planetário”. Existe um terror inerente a qualquer reciprocidade. Os velhos medos ressurgem com outras faces e não seremos libertados por nenhum sacrifício. Uma ética nova se impõe nesses tempos de catástrofe, nesses tempos em que a catástrofe tem que ser urgentemente integrada à racionalidade. Clausewitz e Hegel O desejo do desejo do outro tem pouco a ver com o desejo mimético que é o desejo do que o outro possui: pode ser um objeto, um animal, um homem ou uma mulher; pode ser também um ser próprio, qualidades essenciais. É esse desejo de apropriação, muito mais do que o desejo de reconhecimento, que degenera rapidamente no que pode ser chamado de desejo metafísico onde o sujeito procura apropriar a si o ser do seu modelo. Quero então “ser o que outro se torna quando ele possui esse objeto.” Não desejo esse objeto não espontaneamente, mas porque um outro perto de mim o deseja, o porque suspeito que esse outro o deseja. Eu me aproximo desse objeto ao mesmo tempo em que meu mediador aproxima-se de mim. Ele torna-se meu modelo, ao ponto que acabo esquecendo totalmente o objeto que acreditava desejar no inicio. Como toda ação é recíproca, meu rival vive o mesmo drama: ele me vê desejar um objeto que lhe é próximo; ele começa a desejar de novo esse objeto que a ausência do rival tinha feito ele esquecer; ele me encontra no caminho desse objeto ao mesmo momento em que o encontro também no mesmo caminho.
É o que podemos chamar de “mediação dupla” onde cada um dos dois rivais torna-se um modelo-obstáculo para o outro. A rivalidade torna-se como de gêmeos e os rivais vão ficar cada vez mais semelhantes. Um dos dois pode vencer e reencontrar sua ilusão de autonomia; o outro humilhar-se-á diante dele ao ponto de sacralizar seu adversário. Essa atração-repulsão está na base de todas as patologias do ressentimento: a adoração do modelo obstáculo, o desejo metafísico que tenho do seu ser podem conduzir até o assassinato. Duas concepções da história O romantismo representado por Hegel é a crença excessiva na autonomia do indivíduo mas é ao mesmo tempo a passagem necessária para entender o ressentimento, a reciprocidade, a lei do duelo: quer dizer entender que somos passados para um mundo de mediação interna, onde nenhum modelo externo nos garante. É preciso lidar com a violência. A identidade dos homens da qual Hegel esperava que ela realizasse o entendimento entre os homens vai dividi-los cada vez mais. Não podemos porém olhar a história e os acontecimentos do alto. Não existe um saber absoluto possível, somos obrigados a permanecer no coração da história, a agir no coração da violência, porque entendemos cada vez melhor os mecanismos. Saberemos dirimi-los? Não temos certeza. Clausewitz enxergou na guerra total, quer dizer na mobilização de um povo inteiro, a nova situação da guerra. A história retorna com violência: incapaz de resistir à força, a razão a justifica. O que vão fazer Marx e Engels: copiar de Clausewitz a subordinação da guerra à política? Dessa vez porém, será a luta das classes: a guerra civil substituirá as guerras nacionais. Essa inflexão que o leninismo impõe à definição mesma da guerra contribuirá para sua generalização: rapidamente a guerra civil torna-se européia e mundial. Nesse sentido, a guerra ideológica é que nos faz passar da guerra clássica entre os estados para a violência que conhecemos hoje: violência imprevisível e totalmente indiferenciada. Clausewitz diz, do seu modo, que não existe mais razão na história. Em toda parte, a política, a ciência ou a religião vieram colorir com ideologias um duelo que tende a tornar-se planetário. Elas forneceram para o princípio de reciprocidade temas e justificativas: é só. A tendência para a indiferenciação é reforçada pelos meios técnicos e militares a disposição do Ocidente. De um certo modo, essa tendência testemunha de uma superação do político pelo tecnológico. As guerras ideológicas tem menos força hoje porque não se procura mais realmente justificar a violência: elas foram uma etapa no aparecimento de um princípio planetário de reciprocidade. É na total imprevisibilidade da violência que se pode constatar o que podemos chamar do fim da guerra e que é o outro nome do Apocalipse. O verdadeiro princípio latente por trás das vitórias e das derrotas, a “tendência filosófica”, a “lógica pura”, a “natureza” da guerra não é a armadilha da razão, é mesmo o duelo. A luta até a morte é então muito mais do que um simples desejo de reconhecimento. Não é uma dialética do mestre e do escravo: é uma luta sem misericórdia entre dois gêmeos. Sabemos então que diferir a violência, não renunciar imediatamente a ela, é sempre fazer ela crescer. A violência nunca é perdida para a violência. Contudo, os homens continuam não querer ver a catástrofe que eles mesmos preparam reintroduzindo sempre diferenças novas e
novos conflitos. Esse desconhecimento é o mesmo que o mimetismo, que é uma denegação de nossa própria violência. É preciso pensar a reconciliação não como seqüência mas como o inverso da subida aos extremos. Ela está como uma possibilidade real mas que ninguém quer ver. O Reino já está presente mas a violência dos homens o mascarará cada vez mais. Este é o paradoxo desse mundo. O pensamento apocalíptico opõe se a essa sabedoria que acredita numa identidade pacífica e a fraternidade acessível num nível puramente humano. Ele se opõe a todos os pensamentos reacionários que querem restaurar a diferença que só vêem na identidade uma uniformidade destruidora ou um conformismo que nivela. O pensamento apocalíptico vê, pelo contrário, na identidade a fonte do conflito. Ela vê também a presença dissimulada do “como a ti mesmo”, incapaz de triunfar, todavia secretamente ativo, secretamente dominando por trás do barulho e do furor que o encobrem. O cristianismo é o primeiro que vê a convergência da história em direção a uma reciprocidade conflitante que deve transformar-se em reciprocidade pacífica sob pena de cair no abismo da violência absoluta. É o primeiro que vê que nada sério, nada real opõe se a essa mudança que tudo exige. Contudo, ele afirma, e é nesse ponto que ele se distingue dos pensamentos modernos sobre identidade, que já uma vez, o momento dessa reconciliação se apresentou e não aconteceu. A violência dos homens produz o sagrado, mas a santidade leva para essa “outra beira” cujos cristãos como os judeus pensam que nunca será estragado pela loucura dos homens. Nos estamos na hora das escolhas decisivas: logo não existirá nenhuma instituição, nenhum rito, nenhuma “diferença” para regular nossos comportamentos. Devemos destruir ou amar uns aos outros, e os homens talvez prefiram destruir uns aos outros. O futuro do mundo nos escapa e, ao mesmo tempo, está nas nossas mãos: existe aí algo para ser meditado. A novidade extrema, o acontecimento cujo alcance o mundo ocidental ainda não percebeu, embora sua história seja cada vez mais determinada por ele , é que Deus está do lado da vítima emissária e expiatória. Javé está daqui para frente fora do templo: a descoberta do lugar do emissário que consente é uma operação espiritual rigorosa que não pode se fundamentar em outros dados empíricos que não sejam a Crucifixão. O que é preciso imitar no Cristo é seu afastamento. A verdadeira palavra profética enraíza-se na verdade do emissário que consente. Ela não pretende encarnar essa verdade: ela diz que é outra e que ela está mais especialmente lá, naquele lugar que está fora da cidade. Todavia o profeta não é essa verdade, senão outros profetas quereriam apoderar-se dela. Ele testemunha dela, ele a anuncia, ele a precede e ele a segue. Tristeza de Hölderlin
Os dois círculos do Evangelho Quando se olha a realidade da guerra descrita por Clausewitz, se descobre que a política que pertence à violência e não a violência que pertence à política. A instituição da guerra não eludia a violência mas tentava frear seu progresso. Vimos que essa instituição não existe mais: não é porém essa resistência que precisa continuar pensar? Uma resistência individual à subida aos extremos é vã: só poderia ter chance se fosse coletiva. É preciso porém ter presente a possibilidade de uma imitação positiva porque vimos que a imitação é central na gênese da violência. Reconhecer a imitação e sua ambivalência seria o único meio de sentir essa passagem sempre possível da reciprocidade para a relação, do contagio negativo para uma forma de contagio positivo. A imitação do Cristo quer dizer isto. Todavia, essa passagem não é adquirida nem pensável: é da ordem de uma conversão específica, de um acontecimento. Não se pode negar que os Evangelhos tenham uma intuição formidável do mimetismo: é no seio do mimetismo que o Cristo nos convida a trabalhar. Contudo o espírito sopra onde quer. É preciso, portanto, raciocinar num nível global, sair de perspectivas puramente individuais e pensar as coisas “por grandes massas”. As narrativas apocalípticas têm, nesse sentido, uma importância essencial. Somente esses textos nos obrigam a mudar radicalmente de perspectiva. Por que foram ocultados até esse ponto? Estavam muito presentes na origem do cristianismo: a Idade Média os retomou na perspectiva do Julgamento, num sentido mais ingênuo do que no tempo de São Paulo. É preciso manter o movimento da Escritura porque os textos apocalípticos foram gradualmente esquecidos enquanto sua pertinência aparece cada vez mais evidente. Esse fenômeno é incrível. A acolhida alegre do Reino, da qual esses textos dão testemunho, foi abafada por um duplo movimento: o enegrecimento catastrofista de um lado; o adiamento indefinido da Parúsia do outro. Esse distanciamento constante e lento em relação ao texto evangélico assombra o que devia ser luminoso e o atrasa. O anti-cristianismo atual faz assim aparecer essa realidade de um modo claro como a seqüência de uma evolução começada com a Revelação. O “tempo dos pagãos”, do qual fala São Lucas, sugere o atraso do Julgamento, que vai pouco a pouco impor uma perspectiva nova sobre os Evangelhos e insinuar uma dúvida crescente quanto à validade dos textos apocalípticos. Esse “tempo dos pagãos” é, todavia, um tempo extraordinário, o de uma civilização sem comum medida com as outras, que deu ao homem um poder que nunca teve antes. Pode se dizer, forçando a barra, que esse tempo confiscou a Revelação a seu favor, para fazer bombas atômicas. Por isso eu mantenho, lembrando esses textos, uma leitura mais cheia de paixão das Escrituras. Penso, de fato, que não existe um texto total sem apocalipse para concluí-lo: “o Filho do Homem encontrará ainda fé quando ele voltará?” Os Evangelistas fazem essa pergunta de um modo lancinante. Aí situa-se a interrogação apocalíptica: menos no Apocalipse de João do que nos textos dos três outros evangelistas, que precedem a narrativa da Paixão. Nos Sinóticos, existe um efeito de composição fundamental: a história dos homens está embutida na de Deus. O segundo círculo da história (e de seu fim catastrófico) está contido pelo primeiro círculo que leva até a Paixão.
Não existe dúvida de que esses capítulos apocalípticos evocam uma realidade que seguirá a Paixão, mas na composição dos Evangelhos, eles foram colocados na frente. O “tempo dos pagãos” constitui como os setenta anos de servidão para o rei de Babilônia em Jeremias, um tempo indefinido entre duas apocalipses, entre duas revelações. O que isso quer dizer, numa perspectiva evangélica? Que o tempo dos pagãos, quer dizer o tempo que os pagãos demorarão para recusar a palavra de Deus, é um tempo limitado. Entre a Paixão de Cristo e sua Parúsia, se estenderá um tempo indefinido, que é o nosso, tempo da violência cada vez mais sem controle, tempo da recusa em ouvir, tempo da cegueira crescente. É preciso então não deixar a história, mas sim tentar entendê-la de um modo cada vez mais realista, como uma aceleração em direção do pior que deve ter um sentido apocalíptico. Essa tomada de consciência é cada vez mais requerida no momento atual em que as instituições não nos ajudam mais e que cada um deve transformar a si mesmo. Voltamos para a conversão de Paulo, a essa palavra que o derruba: “Por que você me persegue?” O radicalismo paulino convém muito bem para nosso tempo. É menos o herói que sobe do que o perseguidor que se converte e cai no chão. O espírito apocalíptico não é um niilismo: ele só pode entender a ida em direção do pior no quadros de uma esperança muito profunda. Essa esperança não pode dispensar a escatologia. Discernir o aparecimento perigoso do princípio de reciprocidade, mostrá-lo agindo na história, deveria constituir o princípio de qualquer apologética. A teoria mimética é uma teoria essencialmente cristã. Lucas viu a eficácia da violência feita em conjunto, ele entendeu que a violência má reconcilia os inimigos (Pilatos e Herodes). Não adianta perder a paciência, não adianta revoltar-se, o sistema cairá sozinho. Satanás será cada vez mais dividido contra si mesmo: é a lei mimética de subida aos extremos. O mimetismo é contagioso e atingirá a própria natureza. Esse “tempo dos pagãos” pode ser definido como uma lenta retirada do religioso em todas as suas formas, uma interrogação sem resposta, uma provação mesmo e principalmente para os eleitos que encontram consolo em lugar nenhum. A presença do divino, segundo Hölderlin, cresce no momento em que o divino se retira: é esse afastamento que salva, não a promiscuidade. O afastamento de Deus é a passagem em Jesus Cristo da reciprocidade para a relação, da proximidade para a distância. Um deus que pode ser apropriado é um deus que destrói. Hölderlin percebe que a Encarnação é o único meio que foi dado para que a humanidade possa enfrentar o silêncio muito salubre de Deus: o Cristo interrogou esse silêncio na Cruz e ele mesmo imitou o afastamento de Deus, juntando-se a ele na manhã da Ressurreição. Ele se retira justamente no momento em que ele poderia dominar. Nos é dado, portanto, provar esse perigo da ausência de Deus, experiência moderna por excelência – porque é o momento da tentação sacrificial, da regressão possível em direção aos extremos – e, ao mesmo tempo experiência redentora. Imitar o Cristo é recusar impor-se como modelo, sempre retrair-se diante do outro. Imitar o Cristo é fazer tudo para não ser imitado. Mais o silêncio de Deus cresce – e com ele o perigo de um crescimento da violência, de uma ocupação desse vazio por meios puramente humanos, mas doravante privados de
ferramentas sacrificiais – mais a santidade se impõe como uma distância reencontrada com o divino. A salvação consiste em imitar o Cristo, quer dizer em imitar a “relação de retraimento” que o vincula ao Pai. O Cristo é o único que nos coloca imediatamente na boa distância: está ao mesmo tempo “próximo e difícil de ser alcançado”: a presença não é a proximidade. Ouvir o silêncio do Pai, é abandonar-se a seu retraimento, conformar-se com ele. Tornar-se “filho de Deus” é imitar esse retraimento, experimentá-lo com o Cristo. Deus não é abordável imediatamente mas sim mediatamente pela seu Filho e pela história da Salvação que toma a aparência de uma subida aos extremos.