Mattei - La Barbarie Interieure

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MATTÉI

LA BARBARIE INTÉRIEURE


LA BARBARIE INTÉRIEURE, Jean François Mattéi1 O QUE É BARBÁRIE? •Não é um modo de regressão histórica que precisaria ser anulado por uma reação ética, política ou estética. •Barbárie é um conceito meta-histórico que caracteriza uma atitude consubstancial a todo estado de civilização, ou, mais exatamente ainda como •Um conceito metafísico que define um dos dois pólos em relação aos quais o homem encontra sua orientação. •A barbárie pode remeter à constituição do entendimento humano que dissocia todas as coisas e, arruinando os sentimentos pelos princípios, destrói a unidade natural do ser humano. •Quando Sócrates tenta descrever o que significa para cada um cuidar da própria alma, ele ensina que só a dialética consegue tirar a alma do seu “lamaçal bárbaro” para fazer ela aceder, fora de si mesma, a o que está “acima” dela: a luz do bem. •A alma bárbara, que dorme dentro de cada um, manifesta-se pela carga ontológica que a puxa para baixo e a faz comprazer-se no lamaçal dos instintos. •É o poder de involução que proíbe que o ser humano de arrancar-se dos porões da interioridade para voltar seu olhar para uma luz exterior. BARBÁRIE MODERNA Quatro características do ressentimento: •O desconhecimento da beleza de uma obra: a ignorância. •A negação do que é elevado, ou a negação da excelência: a pretensão. •A incapacidade de realizar um gesto criador: a impotência. •A vontade confusa de destruição: a regressão. Os fundamentos da civilização são: reconhecer o que existe fora de nos, o que é diferente de nos, o que se chama religião, natureza, sociedade, cultura. O sinal da decadência, é a interiorização, o fato de referir tudo a nos: filosofia e ciência moderna. O SUJEITO MODERNO •A característica marcante do homem moderno, que se qualifica como “sujeito” sem sempre medir a própria sujeição, é a interiorização e a necessidade de referir tudo a si próprio. •A autonomia do sujeito aparece como uma ilusão e um fechamento do indivíduo em si próprio. •A noção de sujeito de direito passou por várias etapas e distinções: –A identidade do homem: seu corpo –A identidade de sua substância: a alma –A identidade da pessoa: sua consciência. •Aparece cada vez mais a figura do homem não como de um sujeito fechado em si mas aberto para o universal o que permite superar os perigos do subjetivismo e do relativismo moral.

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MATTÉI, Jean-François, La barbarie intérieure, essai sur l’immonde moderne, Paris, Presses Universitaires de France, 2001


•A

relação de si para si próprio do sujeito moderno o conduz a identificar-se a qualquer instância material que poderia dar-lhe um predicado, este lastro virtual que compensa seu vazio original. ARTE E SUBJETIVIDADE •Jean Clair mostra o vínculo intrínseco que existe entre o laicismo da arte, submetida ao reinado da expressão e não mais da representação, e a violência endêmica do nosso mundo. •Quando a arte limita-se à expressão da personalidade do sujeito libertando suas forças escuras na exaltação do imediato, o homem e o mundo não demoram a desaparecer. •O apagar-se do rosto humano na pintura bem como o desaparecer da paisagem depois do impressionismo anunciaria a barbárie dos totalitarismos. •Eis o paradoxo constitutivo da arte moderna: o desaparecimento do semblante do homem proporcionalmente à irrupção da subjetividade. •A arte identifica-se inteiramente com a subjetividade do artista no comum esquecimento do homem e do mundo. •A atrofia da obra ecoa a hipertrofia do ego: a expressão do sujeito substitui a verdade do mundo. ESPELHOS DA MODERNIDADE •Perdemos o sentido do iniciar. •Nossos tédios conjugam-se com nossas impotências no esquecimento das grandes narrativas que animaram o mundo durante séculos e que, no refluxo geral do sentido, apagam seu rosto na areia da pos-modernidade. •A vertigem permanente da razão, que a mergulha no seu abismo interior, tece uma seqüência infinita de variações sobre a morte de Deus e sobre a conseqüente morte do homem. •O que é este homem que desviou os recursos do conhecimento para sujeitar, numa escala industrial, a vida à morte. HUMANO Vs BÁRBARO •Para poder distinguir, a cada época da história, o que é humano do que é bárbaro é preciso um modelo de homem e, face a ele, um modelo de bárbaro, que transcendem as manifestações efetivas da humanidade e da barbárie. •Sem tais modelos, como poderíamos julgar a humanidade de Sócrates e de Platão, ou a barbárie de Átila e de Gengis Khan. •O bárbaro não é mais um estrangeiro para o humano do que a barbárie o é para a civilização ou a morte para a vida: cada elemento do par, sem ser semelhante, não pode ser separado do outro. •A barbárie é constitutiva da humanidade: é interior a ela. •Só o homem enquanto homem, misto de razão e instinto, de paixão e de entendimento, pode deixar soltas as pulsões destruidoras do próprio ser ou dominá-las numa obra de civilização. •Desde a Grécia e Roma, a humanidade civilizada pensou-se como humanismo somente elevando o homem acima da própria barbárie, pela uma conversão da sua violência surda numa obra de criação, ou, como diz Goethe, numa obra de excelência. •O que distingue em nos o civilizado do bárbaro é uma medida exterior ou estrangeira aos homens que são comparados; Goethe a chamava de demónica.


•Este

elemento exterior, idéia para Platão, rosto para Levinas, que comanda a singularidade de toda existência humana, é o princípio ético que dá significado para a humanidade e à sua degradação na barbárie. BARBÁRIE PARA OS GREGOS (HOMERO) •A palavra aparece na Iliade não como barbaros, o homem bárbaro, mas como barbarophonos, o que hesita, que articula mal e, portanto, o que massacra o próprio idioma antes de massacrar os outros idiomas e as outras culturas. •A primeira linha de fratura entre a barbárie e a civilização passa entre os que conseguem dominar o discurso e os que não conseguem: –Aquele que domina a palavra e as força caóticas presentes na linguagem humana é civilizado na guerra ou na paz. –Aquele que fala de modo confuso e desarticulado, deixando-se envolver pela própria violência interior, é bárbaro na guerra e na paz. •O encontro entre Diomedo e Glaucos, dois inimigos, que no momento em que eles se reconhecem, abandonam as armas é o símbolo da civilização. O sinal de reconhecimento inicial (symbolon) é o da palavra dividida e o da palavra mantida, da confiança mútua e da fidelidade a compromissos assumidos pelos pais deles. •O reconhecimento é sempre o reconhecimento do outro pelo qual devo passar se quiser conhecer a mi mesmo e tornar-me o que sou. •A poesia, o teatro e a historia são os três limites que a civilização grega impõe à barbárie que a gera. BARBÁRIE NA FILOSOFIA GREGA •Heráclito já dizia que quem confiava nos sentidos em vez de confiar na própria razão deviam ser considerados como “almas bárbaras”. Pela primeira vez a barbárie não é situada na exterioridade de um idioma ou de um povo, mas sim na interioridade da alma humana. •Somente a razão comum deve ser considerada como o critério da verdade e não os sentidos que são desprovidos da faculdade de apreender a unidade do Todo. •Heráclito vai chamar de escravos os que estão fechados dentro do idion, o particular ou na idiotia daquele que permanece cego e surdo para a razão comum; é um tipo de regressão para o caos primitivo. •A barbárie latente sempre presente no homem afastado do logos, este sentido comum que pertence a todos e portanto não é de ninguém, é nomeada por Heráclito de hubris, que significa excesso desmedido. •A maioria dos homens aparecem como voltados para si, fechados nos seus sonhos e incapazes de abrir-se para o mundo comum. •A barbárie deve ser combatida pelo pensar que significa descobrir a verdadeira medida e os limites que permitam sair da própria idiotia e inscrever-se no mundo comum do logos. BARBÁRIE NA FILOSOFIA GREGA 2 •A noção de “barbárie” com suas conotações lingüísticas, étnicas e culturais, será transformada por Platão que a utilizará para definir a alma do homem numa perspectiva ética, cosmológica e psicológica. •Desde Hesíodo (Teogonia), o mundo grego sabia que tinha sido tirado do caos. É uma intuição retomada por Platão que traz uma narrativa da criação


–Como

um mito: o demiurgo coloca em ordem o caos inicial a partir do seu olhar em direção às Formas. –Como razão: apresenta o sistema de um mundo ordenado por leis que proíbem a regressão para a confusão primitiva. •A intenção didática de Platão revela sua preocupação ética e política: a alma e a cidade devem ser formadas segundo o modelo do cosmos que se dá, como em Heráclito, como o mundo comum. •Esta alma, porém, deve ser tirada do seu lamaçal para que possa alcançar o que há de mais alto. Assim, a barbárie, para ele, é a linguagem desarticulada da alma que, por inércia, fecha-se em si mesma em vez de elevar-se em direção ao que a ultrapassa. •Identifica o homem ao princípio de sua humanidade, sua alma, que o vincula ao que o transcende. Somente uma bela narrativa, um mito de fundação, pode voltar ao nascimento da alma, mostrando seu vínculo com o divino. BARBÁRIE NA FILOSOFIA GREGA 3 •O mundo é oriundo de duas espécies de causas: –A causalidade da razão que ordena o corpo do mundo a partir dos quatro elementos materiais (fogo, ar, água e terra). –A causalidade da necessidade que é devida à resistência e à cegueira da matéria: é a “causa errante” que cobra o conjunto dos elementos convulsivos suscitados pela desordem dos quatro elementos. •Platão é o primeiro autor a interpretar racionalmente o caos hesiódico como uma massa confusa de forças sem lei nem medida que se dobram à ação conjugada de modelos inteligíveis e da chora, uma espécie de lugar de inserção material das formas matemáticas. •A causa errante que deverá submeter-se à causa racional, embora não mudada no seu fundo primitivo, é o resíduo cósmico do caos de onde vêem as energias “bárbaras” da alma e sobre o qual deverá intervir a ação demiúrgica da razão para impor sua ordem teleológica que é a do Bem. BABÁRIE, ERRAR, PLANETA... •O fundo escuro do mundo e do homem é desde a origem um errar, um errar planetário (planetes significa errar) que proíbe que a vida humana esteja em harmonia com o curso do mundo quando resiste a suas Formas exteriores. •O termo planetes significa, no Timeu, a causa errante que resiste à ação da causa inteligente, o movimento aproximativo dos planetas, a convulsão dos corpos sacudidos pela alma, as confusões da alma e a conduta dos sofistas que erram de cidade em cidade e de discurso em discurso, sem fixar um ponto firme nem chegar a um conhecimento seguro. •As divagações astronômicas dos planetas, as divagações físicas dos corpos, as divagações psíquicas da alma, as divagações verbais dos sofistas são efeitos de barbárie das divagações da causa errante. BARBÁRIE, ENERGIA... •Platão parece supor, nestes textos, antes de Freud, a existência de um fluxo de energia indiferenciada, comum ao mundo, aos corpos e à alma. •Os movimentos incessantes desta energia fazem vacilar o homem que não teve acesso à educação. •A educação, paidéia, cuja mais alta manifestação é a filosofia é um esforço consoante , sinfonia ou harmonia, que a alma razoável tenta impor à dissonância primitiva do ser.


•A impossibilidade de resolver a dissonância inicial em um acordo perfeito, a

regressão aquém da harmonia e a recusa violenta de dobrar-se à ordem da razão que são, para Platão, a marca da barbárie. •Tudo é barbárie, na alma porque a alma se descobre no seu confronto com o desmedido. Ela precisa sempre voltar para si para dominar-se e não permanecer em si para não deixar as rédeas às paixões que produzem na caverna as imagens que a escravizam. DUAS BARBÁRIES ROMANAS •Primeiro pólo europeu e nórdico: a feritas ( crueldade), a ferocitas (violência) remetem a uma violência e uma destruição desmedidas. •O pólo asiático e oriental é o da vanitas (vacuidade): o mundo vazio das aparências, da ilusão e da inconsistência, próprias de uma vida sem energia e sem firmeza. •Nietzsche falará do niilismo ativo e do niilismo passivo e Vico distinguirá a barbárie da reflexão da barbárie primitiva. •O ideal do Orbis romanus é de restaurar uma humanidade arrancada da selvageria dos seus instintos, fazer aparecer o limes interior que separa o homem de si mesmo, domina seus instintos, a parte irracional de sua alma por uma disciplina moral imperiosa apoiada em regras jurídicas correspondentes. Assim poderá ser edificada a patria communis. •É preciso afirmar a comunidade da espécie humana que impõe-se a cada um quando toma consciência da universalidade da razão. DESCOBERTA DO HOMEM INTERIOR •O pensamento romano voltando para sua origem grega, para repensá-lo na sua universalidade, ia descobrir no homem o reflexo desta pátria comum na forma do espaço interior da consciência. •Neste terreno, Roma encontra o ensino novo do cristianismo. Este enxerto rompe radicalmente com a divisão entre gregos e bárbaros, ou romanos e bárbaros, embora reconhecendo dentro do homem a distinção entre humanidade e barbárie. •Enquanto, na tradição grega, o corpo era o túmulo da alma, o cristianismo ensina que o corpo é o santuário que cada homem recebe de Deus, de tal modo que o Espírito de Deus mora em cada corpo. •O “homem interior” é mais profundo e insondável porque se renova na medida em que o corpo, o “homem exterior” se destrói. •O cristianismo realiza uma revolução espiritual transferindo o centro de gravidade da alma em Deus, cujo Espírito, pela Graça, vem saciar o ser humano que não é mais abandonado na solidão. NOÇÃO DE PESSOA •No fim da Antiguidade, convergem as noções de alma, homem interior, pessoa e consciência que desenham os traços primitivos do sujeito moderno. •Estas instâncias tiravam sua essência e dignidade de uma origem exterior ao ser humano, divina ou demoníaca, nas tradições grega ou cristã. •O homem percebia sua fonte vital numa excentração de seu ser que o impedia de repousar em si mesmo. •A noção de “pessoa” foi forjada nos séculos IV e V num contexto puramente teológico quando da elaboração do dogma trinitário. •O termo “persona”, para nos tão problemático, vem dos etruscos. O culto da deusa Perséfone tinha rituais durante os quais os fiéis usavam uma máscara chamada phersu. Roma adaptará este termo para o teatro chamando de per-


sona (de per-sonare ressoar através) a máscara porta-voz que os gregos nomeavam prosopon. A pessoa significa a personagem, o papel do ator no palco e, de modo mais geral, o papel assumido pelo homem na cidade enquanto sujeito de direito. •Quando Boêcio dá a definição de pessoa como “substância individual de natureza racional”, que influenciará a Idade Média e o Renascimento, ele abre o espaço para uma antropologia nova que, insistindo univocamente sobre a individuação e identificando o sujeito com a substância, enfraquecerá o vínculo inicial entre o homem e Deus. NOÇÃO DE CONSCIÊNCIA •A Bíblia não utilizava os termos de “consciência” ou de “voz interior” para designar o homem que submete-se ao mandamento de Deus, mas de “coração”. •Santo Agostinho, a partir da fórmula que o mandamento do amor descrito no evangelho de Mateus é “scripta in conscientia”, fixa o espírito de Deus, enquanto moral universal, na consciência e a consciência na interioridade, embora salvaguardando a exterioridade da fonte. •É uma fusão do ensinamento cristão com a reflexão plotiniana que queria libertar a alma de sua solidão monádica. •Segundo Plotino, é a audácia (tolma) que arranca a alma individual da comunidade inteligível que ela forma com a Alma do mundo e as outras almas. •A descrição plotiniana do isolamento da alma constitui a ilustração mais forte do passagem da alma antiga para o sujeito moderno quando a alma separase do mundo, das outras almas e do Uno para cair no idion , onde a luz do inteligível não consegue mais iluminar uma individualidade entregue ao abandono. •Este movimento pode ser interpretado como um processo de interiorização da barbárie, que significa dissociação do ser. •O homem interior vai descobrir uma fratura da alma: –De um lado, um homem entregue ao universal, pensado pelo humanismo do Renascimento –Do outro lado um sujeito fechado no particular, pensado pelo individualismo dos Modernos. A AUTO-PRODUÇÃO DO SUJEITO •Etimologicamente, o subjectum latim, de sub-jicere, colocar abaixo ou colocar no lugar de, é tradução de hupokeimenon, que pode ser traduzido por subsistência ou substância. •Na metafísica aristotélica, hupokeimenon seria o substrato das qualidades sensíveis, a materialidade que é suposta subjacente à forma e, por causa disto, o suporte permanente de qualquer realidade concreta. •Para Aristóteles, o sujeito é pensado na plenitude de seu ser como substancial. A substância aristotélica, ousia, é a categoria fundamental do ser, on, e um dos significados principais da substância, ousia, é precisamente o sujeito, hupokeimenon, “o em relação ao qual tudo é afirmado e que não é mais afirmado de qualquer outro”. •A concepção moderna do sujeito vai progressivamente distinguir, e finalmente opor, a ousia como ser substancial do hupokeimenon como sujeito determinado ou ser subjetivo, existindo por si mesmo e referindo-se só a si mesmo.


FRATURA ENTRE SUBSTÂNCIA E SUJEITO •Esta fissura entre a substância e o sujeito, na Idade Média e no Renascimento, torna-se fratura que separará o homem de si mesmo. •A vacuidade do sujeito moderno vem do fato de que não é mais sub-sistente, integrando a substância do mundo e a pessoa de Deus, mas in-sistente, quer dizer posto em si mesmo como uma forma abstrata e vazia. •Quando o sujeito extrai a própria identidade só do entendimento, por um processo analítico de dissociação, seja do homem em relação a Deus, ou do mundo em relação a si mesmo, ele obriga a própria identidade a submeter-se a esta mesma dissociação. •Segundo Charles Taylor, a dimensão substancial (a natureza profunda expressa pela própria universalidade do homem, chamada de alma ou pessoa) fica separada da sua dimensão formal, ou modo de operação intelectual do sujeito definido pelos seus procedimentos internos. •O homem contemporâneo tem tendência em considerar-se não como um ser substancial, referido a uma essência espiritual expresso por atos reais ( realidade expressa pelas noções de alma, homem interior ou pessoa) mas como um sujeito em processo, desligado de toda realidade substancial. •O processo substitui a finalidade e o formalismo das operações substitui a verdade do seu conteúdo. •O sujeito moderno é construído pelos seus processos de reflexão que nunca remetem a um conteúdo externo porque a interioridade reduz-se precisamente à gestão desses processos que são vazios. •A tradição grega e a tradição cristã davam ao homem uma natureza e uma finalidade que o situavam no horizonte substancial do significado. •A auto-produção do sujeito moderno é a auto-produção de regras virtuais que não dependem mais, externamente, de uma realidade universal mas do encadeamento de processos formais privados de finalidade e de significado. •O sujeito contemporâneo não pensa mais nem age mais: ele funciona. MAL ESTAR DA MODERNIDADE •Segundo Taylor, a novidade absoluta do sujeito moderno reside na indiferença radical que ele manifesta em relação a qualquer forma de exterioridade, seja ela divina, mundana ou social. •O sujeito torna-se estrangeiro em relação a tudo que não é ele mesmo, como se seus olhos revirassem-se nas próprias órbitas para olhar só para as próprias cavidades! •Existem três causas essenciais deste mal estar: –O individualismo que separou os homens do seus horizontes morais tradicionais. –A primazia da razão instrumental que aparece como uma dissociação do entendimento. –A atomização dos indivíduos que reduziu suas vidas a um fechamento egoista sobre si mesmo. •Segundo Dumont, a sociedade moderna é antropologicamente individualista, metafisicamente subjectivista, eticamente egoísta e teologicamente antropocêntrica. •Recusando o duplo alicerce da terra e do céu, negando que o pensamento possa edificar um mundo humano para o alto e deixando abaixo dele a desordem das pulsões, o que define o ato próprio da civilização como


domínio da barbárie, o sujeito moderno abandona-se ao próprio peso/inércia sem o contrapeso da luz. A AUTODESTUIÇÃO DO SUJEITO •Quando o filósofo pensa em direção a uma idéia, mesmo se ele morar ainda

na caverna, quer dizer o mundo, ele volta seu olhar para fora. É o sentido da conversão segundo Platão e, analogicamente, da conversão cristã. –O homem antigo alicerçava a elevação de sua alma sobre o mundo ou sobre o além do mundo que é o Bem; –O homem cristão alicerçava a dignidade da pessoa sobre Deus; –O homem moderno alicerça unicamente o próprio ego sobre si mesmo. •A atomização dos egos na decomposição do individualismo contemporâneo os proíbe de participar a qualquer universalidade. •Se um ego exige o respeito a si próprio sem justificar a própria pretensão recorrendo a um fundamento comum e que outro ego recusa este respeito, quem poderá julgar e devolver a cada um o que lhe é devido. PENSAR •Segundo Hanna Arendt, Eichmann era um sujeito de direito: tinha conhecimentos, convicções e argumentos mas não tinha consciência dos seus atos e não conseguia pensá-los como maus porque era impossível para ele percebê-los por um outro ponto de vista que não fosse o dele mesmo! •O pensamento estabelece uma ruptura no tempo: ela é o hiato que permite que o ser humano suspenda uma ação, estabeleça uma ruptura no fluxo contínuo da vida que é tecido de desejos, de necessidades e de submissão. •Na sua energia interna que o arranca à indiferença, o pensamento cava uma falha, um entre-dois, entre o passado e o futuro para inserir-se nela. •O homem é sempre, a todo instante, um começo absoluto, um initium, porque o pensamento tem o poder de interromper o desenrolar-se da vida animal para alojar-se neste entre-dois, além dos processos temporais. •O ato de pensar não define o critério lógico mas sim o critério ético da humanidade, quando cada um consegue suscitar em si, suspendendo o fluxo de ódio e o barulho das armas. Entre o elã e o ato existe um breve intervalo onde se aloja o pensamento. •O amor pelo pensamento é menos a busca do saber e mais a busca do sentido que se oferece através a divisão interior, a brecha entre o tempo e a eternidade. BARBÁRIE E ESCOLA •A barbárie é previsível quando se considera a escola não como um lugar de estudo mas como um lugar de vida. •A escola não deve abrir-se para a vida mas para o mundo; e para abrir-se para o mundo permanente das obras legadas pela história e para o mundo comum dos homens entregue pelo espaço público, a escola precisa continuar como um lugar à parte. •A escola deve fechar-se fora da vida biológica (não é família), da vida social (não é cidade). Deve separar-se rigorosamente delas numa fronteira própria (limes) que é a medida de sua reflexão para permitir a aquisição de conhecimentos que fazem da pessoa um ser humano verdadeiro.


•Deve ser o lugar por excelência da crítica social que permite

que o pensamento do aluno se distancie das necessidades vitais e dos processos históricos para poder analisá-los, entender e julgar. EDUCAÇÃO E PROCESSOS •O postulado de equivalência entre a educação e a vida, a vida e os processos faz com que a educação seja concebida como um processo vital indefinido, formado de procedimentos de ensino voltados para eles mesmos, sem referência e fonte externas. •A finalidade pedagógica é substituída pela função de ensino. Esta função de ensino acaba sendo reduzida a procedimentos didáticos e mecânicos. •O saber não está mais situado em conteúdos substanciais que devem ser ensinados mas em métodos formais fechados em si. •O círculo pedagógico que define os procedimentos pelos objetivos a ser atingidos e os objetivos pelos procedimentos a ser utilizados leva a um sujeito em processo privado de horizonte de significado. •Não estamos mais no mundo do pensamento nem do conhecimento, mas num laboratório experimental de condutas que se expressam unicamente em termos de funcionamento e se referem a uma função pedagógica. •O comportamento humano será avaliado por um funcionamento correto ou incorreto, sem necessidade de buscar um sentido porque a função substitui a finalidade, quer dizer o significado de nossos atos. •O antigo mestre ou magister (que tinha autoridade porque sabia magis mais). •O postulado da autonomia do sujeito transfere o ponto de Arquimedes do ensino, que se encontra fora do mestre e do aluno, na realidade do conhecimento, para o aluno. CULTURA: PRIMEIRO SIGNIFICADO •O campo cultural cobre a totalidade do campo social. •A cultura confunde-se com o modo de existência da sociedade, ou a cultura é o espelho que a representação social dá a si própria. •Cícero faz a transposição da palavra cultura do que tem a ver com o trabalho dos campos (labor que tem a ver com pena) para o que se refere ao otium (lazer), quando o pensamento se afasta de toda dependência em relação às necessidades da vida. •Cícero usa a expressão: excolere animos doctrina (cultivar os espíritos pela instrução). O homem culto é o que sabe cuidar da própria alma, como se prestasse para ela um culto, de modo que habita o mundo como um ser humano e não como um animal. •A cultura é na origem o culto da alma e não está ligado à produção de objetos nem à criação de obras de arte. Trata-se de cuidar da própria alma como o camponês cuida do próprio campo. •A cultura está articulada com a natureza, o espírito com a terra e o homem com o mundo num trabalho íntimo no qual a alma abre em si mesma o próprio sulco até colher os frutos. •Segundo Cícero: Cultura animi philosophia est: é a filosofia que é a cultura da alma. CULTURA: AMPLIAÇÃO DO SIGNIFICADO •No século das Luzes (XVIII), a palavra “cultura” designa não só o cuidado do espírito que purifica seu campo de estudo por um método apropriado (Descartes), mas também o conjunto dos conhecimentos humanos.


•A

cultura designa tanto o saber dominado num sistema quanto o trabalho de educação do espírito que elabora este sistema na emergência da civilização. É esta cultura herdada dos princípios humanistas da Antiguidade que a Europa tentará impor ao mundo inteiro. •Nietzsche colocou em evidência dois aspectos aparentemente opostos, porém convergentes da cultura do nosso tempo: –Seu espalhamento indefinido que a difunde para um círculo de pessoas cada vez mais amplo –Seu enfraquecimento generalizado que a foca sobre objetos cada vez mais diversificados, de tal modo que abandona aos poucos sua pretensão à elevação do homem e à sua excelência. •A antiga cultura da alma que definia os traços essenciais do ser humano foi esvaziada para reduzir-se à cultura formal desse ser novo: o homem massificado. CULTURA DO HOMEM DAS MULTIDÕES •Em The man in the crowd, Poe escreve: “minhas observações tomaram primeiro um jeito abstrato e generalizador. Olhava para os transeuntes por massas, e meu pensamento os considerava tão somente nos seus laços coletivos”. •O olhar sobre o homem das multidões é abstrato e generalizador porque este homem, que vai dominar a cena social, é um homem de massas que só pode ser considerado nos seus interfaces coletivos. •Ortega y Gasset mostra como a multidão invadiu o teatro social, com prejuízo para os protagonistas, deixando lugar só para o coro que representa que sua fragmentação em uma sociedade de homens indiferenciados. •Segundo ele, isso é barbárie porque a barbárie “é a tendência à dissociação”. •Segundo Hannah Arendt, quando a sociedade se apodera dos objetos culturais para consumí-los como produtos vitais, reduzindo o mundo livre das obras ao processo determinado da vida, acontece que o lazer (entertainment) substitui a cultura. A DESTRUIÇÃO DA COLUNA •Para todas as grandes civilizações, a coluna foi o símbolo primeiro da elevação do homem para a altura do divino. •Para os antigos, o ordenamento de um edifício consiste na proporção observada pelo arquiteto , baseando-se nas relações que os gregos nomeavam analogia. •Esta analogia brota da subordinação de todas as medidas ao módulo da obra, de modo que as proporções das partes umas em relações às outras sejam como as do corpo de um homem bem formado. •A analogia do homem e do templo, que é uma coisa só com a analogia do templo e do mundo, encontra-se fixada pela ordem das colunas. Sempre se encontra uma relação constante entre a coluna que é o ponto de apoio e o que ela suporta. •É a arquitetura dos edifícios sagrados, na qual se inscreve a civilização de um povo, que define as relações entre homens e deuses pela correspondência entre a terra e o céu, presente na singularidade de cada estilo.


•No

alto da columna, o cume do teto, columen, palavra que da origem à palavra latina columna, indicando aos homens a direção do céu. •O bárbaro, visto por Nietzsche e Hannah Arendt, é o destruidor de colunas, que a abate na lama ou a esvazia do interior. •A cultura dizia respeito a seres cujo cérebro encontrava-se no cume da coluna vertebral; produz seres duros externamente e moles e pegajosos internamente. O MUNDO E A CULTURA •Um mundo possui três características essenciais: –É ordenado: cada elemento que o compõe faz sentido pela sua integração harmoniosa com o Todo. –É separado de tudo que não é ele, inscrevendo-se nos seus limites próprios (por exemplo o mundo de Proust) –É autônomo, repousando em si mesmo, na paz e na pura presença a si próprio. •A marca da cultura é um desabrochar da vida em mundo. •Os objetos que contemplamos fazem um mundo quando participam da própria irradiação interior na manifestação de sua plenitude acabada que se destaca no fundo comum da vida. •Como abertura de um mundo, a cultura verdadeira é sempre elevação: pensar a obra é elevar-se à altura do mundo que se doa como o vínculo segredo que une o Todo a si mesmo. CULTURA COMO APARIÇÃO DO MUNDO... •A cultura não é um amontoado de objetos, de fatos, de valores: é a aparição do mundo na unidade de sua manifestação e na permanência de seu significado. •Ela se distingue absolutamente das outras modalidades da vida, biológica e social, ligadas ao trabalho e ao repouso, não à obra e ao pensamento (Hannah Arendt). •Tudo que se refere ao trabalho e à instrumentalidade das ferramentas ou ao lazer e à instrumentação dos corpos, escapa à permanência do mundo e à liberdade das obras. •Os produtos do trabalho e do lazer são destinados a ser consumidos, portanto destruídos, para regenerar os processos vitais da sociedade. •Os produtos do pensamento situam-se fora desses ciclos para constituir o mundo autônomo do significado. •As obras de arte são efeitos do pensamento enquanto os objetos do trabalho são efeitos da inteligência que se caracteriza pela adaptação às necessidades da vida embora nunca possa penetrar os segredos dela. DISTINÇÃO DO MUNDO E DA VIDA •A distinção ontológica do mundo e da vida se reflete na distinção antropológica da cultura e do lazer. –O mundo e a cultura encontram-se na confluência das obras. –O lazer e a vida encontram-se na confluência das mercadorias. •No segundo caso, os sujeitos só desejam a satisfação das suas necessidades vitais, o que os leva sempre a eles mesmos. •No primeiro caso, os homens buscam uma abertura para um mundo de significados que transcende suas necessidades.


•As obras da cultura não são criadas para os homens, mas sim para o mundo

que, segundo Arendt, é destinado a sobreviver à vida limitada dos mortais e ao círculo contínuo das gerações. PARADOXOS DA MODERNIDADE CULTURAL •Antoine Compagnon distingue cinco paradoxos constitutivos da modernidade cultural: –A superstição do novo –A religião do futuro –A mania teórica –O apelo para a cultura de massa –A paixão do renegamento •Isto faz aparecer quatro traços que afetam a maior parte das formas culturais contemporâneas: –O não acabado –O fragmentário –A insignificância –A autonomia. •Estes traços são os efeitos de decomposição oriundos espontaneamente da cultura de massa, enquanto ligada a um sujeito vazio e incapaz de inserir-se no mundo.

BARBÁRIE DA POLÍTICA •Pela primeira vez na história da humanidade, a barbárie de massa, disfarçada de razão social ou racial, produziu sistematicamente crimes de massa. •A morte atingiu não só indivíduos, famílias ou comunidades: atingiu blocos de humanidade. •São crimes de massa, a inércia da alma, que proibia criminosos e vítimas, num mesmo material humano, de opor-se a este movimento deliberado de destruição. •O principio de inércia da morte não parecia mais poder modificar seu estado na ausência de uma força externa de vida que colocaria um fim aos massacres. •Como a luz da razão, comparada por Heráclito a um fogo, pode reduzir, em nome da humanidade, homens a cinza? HUMANIDADE CONCRETA FEITA DE INDIVÍDUOS ABSTRATOS •A neutralização progressiva da pessoa (substância individualizada de natureza racional) em um sujeito formal (cuja formula identificável eu=eu é auto-referencial) conduziu a modernidade a explorar uma humanidade concreta paradoxalmente composta de indivíduos abstratos. •É o olhar processador do sujeito abstrato (Poe) que transforma as pessoas reais, consideradas nas suas relações coletivas e por massas, em sujeitos abstratos impossíveis de ser distinguidos uns dos outros. •A massificação do olhar produz a massificação do comportamento e a massificação do pensamento. •O sujeito recorta a realidade social em blocos estáticos, logo friáveis, em seguida dissolvidos pelo movimento da história: os seres, um momento agregados, existem só pelos seus encontros indistintos e efêmeros.


•A

morte de massa, oriunda pelo pensamento calculista e seu entendimento estéril, aplica-se naturalmente a homens de massa, unidades indiferenciadas oriundas de um reservatório inesgotável de unidades semelhantes. AUTONOMIA ABSOLUTA DO HOMEM •O

humanismo racionalista, oriundo da concepção cristã do mundo, cortando suas raízes espirituais, quis realizar a autonomia absoluta do homem em relação a todas as forças colocadas acima dele. •Este

antropocentrismo proclama a idéia do homem como centro de tudo o que existe, e a coloca num molde social. •Exonera

o homem de sua responsabilidade em relação a um princípio que o funda porque ele mesmo é seu próprio princípio. •A

liberdade humana torna-se incondicional porque ninguém precisa responder pelos próprios atos ante uma instância externa. •Cada

um responde para seu próprio tribunal sendo ao mesmo tempo juiz, testemunha e acusado. •Quando

o humanismo perdeu a própria alma e se carregou de materialismo, não esteve mais em condição de estabelecer defesas contra a pressão das necessidades que ocultaram outras dimensões da pessoa, principalmente sua exigência por justiça. •A

filosofia do sujeito é a filosofia dos bárbaros porque impõe sua vontade ao mundo e, quando o mundo resiste, sua destruição ou ainda, já que o sujeito substitui o mundo, sua autodestruição. •Para

evitar isso, é preciso cessar de representar o homem como sujeito e reinstaurá-lo como pessoa. •A

persona latina representa uma alma aberta que ressoa na sua interioridade de um som que vem de fora e a vincula ao mundo inteiro. SISTEMA TOTALITÁRIO (Raymond Aron) Raymond Aron definia o sistema totalitário a partir de cinco critérios que o distinguia dos regimes despóticos tradicionais: •A confiscação do poder por um partido único •O dogmatismo de uma ideologia que se torna o discurso oficial do Estado •O monopólio de Estado de todos os meios de persuasão e de coerção •O monopólio de Estado das atividades econômicas e comerciais •O erro político, econômico ou social que é considerado como culpa

ideológica.


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