Morin - Rumo ao Abismo

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MORIN

RUMO AO ABISMO


RUMO AO ABISMO1

Notas de leitura redigidas por Jean Bartoli: seguem a ordem dos capítulos do livro.

RUMO AO ABISMO A idéia de desenvolvimento, mesmo “sustentável”, considera como modelo uma civilização em crise, esta mesma que precisa ser reformada. Ela impede o mundo de achar formas de evolução diferentes das calcadas no modelo ocidental.

A CRISE DA MODERNIDADE A ciência contemporânea comporta em si um antagonismo. Conforme sublinhado por Popper, ela não procede simplesmente da verificação: ela nasce também de conflito de idéias. Por outro lado, ela se coloca como antagonista da religião. A técnica associa-se no decorrer do tempo com a ciência: por isso se fala em tecno-ciência. A economia desenvolve se através da concorrência e os Estados-Nações através de conflitos sem fim. Através de tudo isso, desenvolve-se uma civilização que se estende no mundo inteiro e cujo caráter principal é o individualismo. No que diz respeito ao mundo do pensamento, no momento em que Deus, a natureza, o homem, a realidade tornam-se problemas, o Renascimento vai desencadear uma problematização ininterrupta que será a característica maior do pensamento moderno até os dias de hoje, assim como uma busca apaixonada pelo fundamento. Daí uma “dialógica”, uma relação ao mesmo tempo antagonista e complementar entre religião e razão, fé e dúvida. E esses conflitos são produtores. O humanismo moderno pode ser concebido como a simbiose da idéia grega, que transforma os indivíduos em cidadãos depositários da razão, portanto autônomos e capazes de dirigir a cidade (como

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MORIN, Edgar, Vers l’abîme, Paris, L’Herne, 2007


a Atenas), e a concepção crista de um homem à imagem do Deus bíblico e de um Deus evangélico que toma a forma humana. O pensamento moderno é marcado por uma disjunção, bem formulada por Descartes, entre dos domínios que se tornaram incomunicáveis: o do espírito, do sujeito e da filosofia e o da matéria, da extensão, da ciência, da realidade empírica. Não existe somente separação, mas também duplo desenvolvimento de cada um desses domínios, em separado. A modernidade manifesta-se por três grandes mitos: 

O MITO DO DOMÍNIO DO UNIVERSO (Descartes, Buffon, Marx...)

O

MITO

DO

PROGRESSO,

DA

NECESSIDADE

HISTÓRICA

(Condorcet) 

O MITO DA FELICIDADE (Saint-Just)

No século XX, o que foi chamado de “modernidade desbragada” consiste num formidável desenvolvimento da ciência, da técnica, da economia e do capitalismo que são os quatro motores associados da nave espacial Terra, liberando uma capacidade jamais vista de invenção e de inovação, e, ao mesmo tempo, de manipulação e de destruição. A ciência está diante de uma ambivalência fundamental: ela produz novos saberes que revolucionam nosso conhecimento do mundo, dão capacidades extraordinárias de desenvolver nossas vidas e, ao mesmo tempo, essa ciência desenvolve gigantescas capacidades de morte, tal como a morte nuclear. Ao mesmo tempo, a ciência clássica, fundamentada até o inicio do século XX em dois princípios, o da redução – para conhecer um conjunto, é preciso reduzi-lo às suas partes – e o da disjunção – quer dizer a separação dos conhecimentos – mostra hoje seus limites: esses princípios não permitem mais apreender a complexidade. As ciências produziram enormes ganhos de conhecimento, os quais são pagos em enormes ganhos de ignorância: incapacidade de contextualizar, de religar o que está separado, impossibilidade de apreender os fenômenos globais e planetários. A mesma interrogação existe para a técnica.


PARA ALÉM DO ILUMINISMO A razão que se manifesta nas ciências tornar-se-á soberana no decorrer do século XVIII, na França. Nesse momento, a razão enquanto razão construtiva das teorias e razão crítica vai desabrochar. A razão crítica vai criticar os mitos, as religiões de um modo míope porque não percebe o conteúdo humano dos mitos e da religião. Essa razão constrói suas teorias e constrói a idéia de uma humanidade guiada pela Razão. Essa Razão Soberana torna-se uma providencia quase mítica.’ Com Rousseau, o tema da afetividade e da sensibilidade torna-se um tema que opõe-se à razão e ele indica que a razão, sozinha, tem um caráter abstrato e quase desumano. Daí uma interrogação sobre o progresso: o progresso não é mais concebido simplesmente como uma espécie de ganho permanente do melhor. A questão é: o que se perde quando se ganha um progresso, um progresso técnico, um progresso material, um progresso urbanístico? Problema efetivamente extremamente atual na nossa crise de civilização. O quadrimotor constituído pela ciência, pela técnica, pela economia, pelo lucro, que era percebido como devendo produzir o progresso, propulsa hoje a nave espacial Terra sem que tenha verdadeiramente um piloto e carrega em si uma dupla ameaça de morte: a morte da biosfera e a morte nuclear. O progresso como certeza morreu. Podemos dizer que estamos frente a uma grande incerteza. Existe uma possibilidade de progresso, mas o progresso sempre precisa ser regenerado. Vemos a aliança de duas barbáries: 

a velha barbaria da guerra

e a barbaria técnica.

É preciso portanto superar o Iluminismo: quer dizer integrar o que se supera, acrescentando algo diferente. Isso significa primeiro reexaminar a razão, superar o racionalismo abstrato, a primazia do calculo e a primazia da razão abstrata. É preciso tomar consciência das doenças da razão: não existe racionalidade sem afetividade. É preciso encontrar uma dialógica entre racionalidade e afetividade, uma razão mestiçada pela afetividade, uma racionalidade aberta. É preciso uma racionalidade complexa que enfrenta as contradições e a incerteza sem afogá-las nem desintegrá-las.


Pode se dizer que a tragédia ecológica que começou é a primeira catástrofe planetária provocada pela carência fundamental de nosso modo de conhecimento e pelo desconhecimento que comporta esse modo de conhecimento. É o desabamento da concepção luminosa da racionalidade (quer dizer que traz uma luz fulgurante e dissipa as sombras com idéias claras e distintas, com a lógica do determinismo) que por si só ignora a desordem e o acaso. É preciso entender que o universo é complexo e comportará sempre para nosso espírito incerteza e contradição. É preciso entender que “é escura a própria fonte de onde nasce nossa luz”, como dizia São João da Cruz. É preciso entender que são o imprevisível e o improvável que acontecem freqüentemente. É preciso abandonar a idéia abstrata do humano que se encontra no humanismo. O ser humano é também sapiens e demens, faber e mitologicus, economicus e ludens, prosaico e poético, natural e metanatural. É preciso saber que o universalismo tornou-se concreto na concretização da era planetária onde podemos descobrir que todos os humanos têm 

não somente uma COMUNIDADE DE ORIGEM,

uma COMUNIDADE DE NATUREZA através de suas diversidades,

mas também uma COMUNIDADE DE DESTINO.

É preciso conjugar quatro vias de reformas: 

REFORMA DA ORGANIZAÇÃO SOCIAL

REFORMA DA EDUCAÇÃO

REFORMA DA VIDA

REFORMA ÉTICA

Em relação a esse último item, é preciso notar que a subjetividade não é inimiga da consideração objetiva das realidades: é necessário de ser um sujeito/ator crítico. Os que, muitas vezes, enxergam são aqueles que diziam : “não agüentamos mais tanta mentira e tanta ignomínia.” Muitas vezes, a revolta ética leva a uma consciência mais lúcida de que a aceitação resignada do acontecido.


Nossa esperança é a tocha na noite: não existe luz fulgurante, existem somente tochas na noite.


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