OAKESHOTT
A TORRE DE BABEL
A TORRE DE BABEL A lenda de Babel Uma boa história pode ser a expressão de alguma imutável dificuldade humana1. Contada em várias tradições, ela ocupa-se com a terra e com os céus; com os homens e com os deuses e como eles se relacionam uns com os outros. A decaída raça humana solta na terra encontrou-se logo em dificuldades: os seres humanos encheram-se de ilimitadas necessidades e de uma urgência selvagem em satisfazê-las. Devastaram o mundo e suas relações com seus semelhantes seguiram o mesmo padrão: eram movidas por ganância, inveja, medo e violência. O Deus de Israel, diferentemente de outras tradições, por exemplo de Zeus que encarregou Hermes de ensinar a humanidade como lidar com as condições da mortalidade com sabedoria, sentiu-se chocado com a depravação humana, chegou a arrepender-se de ter criado “o homem na terra” e estava decidido a começar tudo de novo. Queria regenerar a raça humana a partir de uma família, a de Noé, que, por conta de sua virtude, deveria ser resgatada do dilúvio. Segundo a lenda contada por nosso autor, Nemrod, neto de Cam, filho pouco respeitoso de Noé, tornou-se conhecido como notável aventureiro. Contudo sentia-se inquieto. Apesar de achar-se invencível, temia que alguma outra pessoa, mais poderosa do que ele, surgisse e o destruísse. Além disso, estava ciente de que se acreditava haver um Deus no céu, que poderia causar sua queda porque não tinha hesitado em inundar a terra por conta da depravação de seus habitantes. Resolveu convidar seus seguidores para fundar uma cidade, Babel, que fosse a cidade da liberdade, onde eles poderiam fazer o que quisessem com impunidade. Como era um homem enérgico, estava determinado a lidar de maneira radical com essa insegurança que se tornara uma obsessão. Deus devia ser destruído e para isso precisavase construir uma torre que atingisse o céu para que qualquer tentativa de dilúvio pudesse ser sustada. Seus seguidores toparam e não demorou muito para que a empreitada absorvesse toda a sua atenção: nesse esforço para subjugar Deus e a Natureza às ambições humanas, eles haviam se deparado 1
A Torre de Babel apud OAKESHOTT, Michael, Sobre a História e outros ensaios, Rio de Janeiro, Topbooks Editora e Distribuidora de Livros, 2003, p.249 ss
com o trabalho de uma vida e tornaram-se escravos de um ideal. Construíam com paixão e energia: se um homem caísse e morresse no trabalho, não notavam. Mas se os tijolos cedessem ou se algum empecilho surgisse, formava-se um tumulto. Diz a lenda que o tio-avô de Nemrod, Abraão, observava o que ocorria em Babel e estava horrorizado ante sua impiedade. Ele rezou a Deus para que frustrasse os construtores da Torre. Ele sugeriu que isso poderia ser feito de modo mais conveniente, não por meio de um segundo dilúvio, mas de forma mais econômica, “confundindo” as línguas de Nemrod e seus companheiros, de maneira que nenhum homem entre eles pudesse entender o que o outro falasse. Eram dadas ordens que não eram obedecidas por não serem entendidas; temperamentos tornaram-se animosos; a exasperação espalhou-se; e a frustração atingiu tal dimensão que as pessoas de Babel não eram mais capazes de tolerar a presença umas das outras. Assim, não foi por meio de um dilúvio, mas por uma inundação de palavras sem sentido que o império de Nemrod foi destruído: sua torre tornou se um memorial em ruínas. O nome de Babel, que, originalmente, significava Cidade da Liberdade adquiriu seu significado histórico: Cidade da Confusão. O tema dessa história é o ataque titânico contra os céus. Nemrod não é ladrão como Prometeu: é o líder de uma revolução cósmica cujo esforço não apenas está fadado ao fracasso, mas que acarreta a destruição de todas as virtudes e consolos da vida temporalis, uma destruição da qual a confusão das línguas é o emblema. Ele é o primeiro auto-intitulado Rei - Redentor, cuja autoridade jazia em atiçar medos e ressentimentos de seus súditos.
A mesma lenda de Babel nos dias de hoje Na nossa época, esta história de Babel está sendo contada de um modo um pouco diferente. Babel aparece como uma cidade atribulada pelo alvoroço de obter e gastar. A atmosfera geral é de uma vulgaridade moderada. A arte degenerou em entretenimento, e os entretenimentos não costumam ser refinados. Os babelianos não tem vícios espetaculares nem virtudes heróicas: são facilmente seduzidos pela novidades, ensimesmados e auto-indulgentes. Há uma tendência ao descontentamento, à falta de objetivos e à ausência de autodisciplina. A ordem que existe entre eles tem sido há tanto tempo mantida
por subornos que agora esse é o único tipo de controle que podem tolerar. Em resumo, Babel é uma civitas cupiditatis, e seus habitantes, embora não sejam excessivamente ricos, formam um povo devotado à riqueza. Sob um certo ponto de vista, essa história de Babel versa sobre o merecido castigo para a cobiça. Eles são governados por um jovem duque, Nemrod, que recentemente herdou o legado e a autoridade do pai. Em muitos aspectos, ele é um típico babeliano. A família ducal na qual fora criado era quase que uma réplica da cidade. E a deferência a seus desejos, que sempre na infância recebera dos pais e tutores, naturalmente esperava receber do povo, agora que se tornara o seu duque. Contudo, uma vez que as expectativas do povo eram similares às dele próprias (a saber a pronta satisfação de todas as suas necessidades), e uma vez que elas eram ilimitadas, o duque e o povo encontraram-se em direções um tanto diferentes. E Nemrod, impaciente ante a frustração que a situação prometia, empenhou-se em resolver o conflito. Nos eventos que se seguiram é difícil dizer exatamente que papel desempenhou a determinação do duque de organizar as atividades de seu povo, de forma que contribuíssem para a satisfação de suas próprias necessidades ilimitadas, e que papel desempenhou a cobiça dos babelianos. Mas o certo é que esses eventos não poderiam ter ocorrido se não fossem algumas crenças importantes, compartilhadas tanto pelo duque quanto por seu povo. Pode-se dizer que os babelianos acreditavam, até certo ponto, em praticamente tudo. Mas sua disposição pragmática estava ancorada naquilo que, na falta de uma palavra melhor, poderia ser chamado de crenças religiosas. Nessas crenças, Deus aparecia como dono de uma propriedade situada acima dos céus, propriedade de riqueza inimaginável, que se supunha conter tudo o que era desejável em ilimitada profusão. Entendia-se que o dono dessa miraculosa propriedade tinha uma boa disposição para com os habitantes da terra e era reconhecido como a derradeira fonte de suas satisfações e prazeres, os quais eram, direta ou indiretamente, produtos de sua propriedade celestial. Ele era conhecido como alguém que tinha rompantes de caprichosa generosidade mas também por ter uma posição um tanto mesquinha, doando prazeres aos seres humanos de forma miserável, instigando seus apetites, mas nunca os satisfazendo. Assim o Deus dos
babelianos era conhecido como um benfeitor pão-duro, criador de todos os seus prazeres, mas também de suas privações. Essas crenças, compartilhadas pelo duque assim como pelo povo, eram o solo no qual Nemrod plantou uma semente que floresceria como uma revolução do modo de vida babeliano. Nemrod reuniu o povo, confiando-lhes uma secreta ambição, que era, disse ele, seu mais caro desejo alcançar em beneficio do seu povo. Confiou-lhes também o plano para alcançá-la. A ambição era nada mais nada menos do que forçar a abertura dos portões do paraíso, desalojando aquela miserável deidade de sua propriedade e apropriando-se dela para que todos os babelianos pudessem desfrutar da ilimitada profusão do paraíso. O plano consistia em construir uma Torre em direção ao céu, da qual o ataque ao paraíso seria lançado. Seguiu uma exortação que deu ao projeto as cores de uma guerra santa e lucrativa. Uma profunda mudança ocorreu com o povo de Babel. O que os uniu foi uma profunda sensação de serem igualmente “privados”: era-lhes permitido ter desejos, mas lhes era negada sua imediata satisfação. O que eles poderiam buscar, e que agora lhes era oferecido, era uma “alternativa” às suas circunstâncias imediatamente reconhecíveis (que não pedia por nenhuma mudança de disposição neles próprios) e que era tão radical que até mesmo eles não poderiam esperar alcançá-la da noite para o dia, ou sem algum esforço. As obras da Torre começaram sem demora. Imediatamente, as conseqüências
do
empreendimento
começaram
a
aparecer.
Alguns
prejudicados pela desapropriação de seus negócios no terreno onde ia ser erguida a torre foram se queixar: lhes foi respondido que, quando grandes obras eram iniciadas com a intenção de aumentar a prosperidade de todos, a conveniência privada deveria submeter-se ao bem comum. E essa confirmação da soberania da utilitas pública pôs um na história civil de Babel. Passou-se algo antes que os babelianos começassem a reconhecer claramente que estavam engajados em um empreendimento que exigia a total mobilização de seus recursos. A Cidade da Liberdade estava se tornando uma comunidade, e seus habitantes estavam a caminho de adquirir uma nova identidade comunal no lugar de suas antigas individualidades distintas. Mas se essa identidade era
a de Buscadores do Paraíso, ou a de meros Construtores de Torres, isso não foi esclarecido. Um
a
um,
os
compromissos
e
ocupações
estranhos
ao
empreendimento desapareceram, e as atividades dos babelianos começaram a se contrair ao redor de um único centro. Um povo dedicado à conquista de um chamado “padrão de vida” perpetuamente em elevação não é mais que um pálido reflexo da devoção dos babelianos à satisfação total, não em prestações, mas como recompensa final. Aqueles que não trabalhavam na Torre dedicavam-se a cuidar dos que trabalhavam. A distinção entre rico e pobre deixou de existir; todos estavam igualmente empobrecidos. E, no fim, o único uso que restava para o dinheiro era apostar nas casas lotéricas qual seria a conquista dos construtores no dia seguinte, e ganhar ou perder somas inteiramente nocionais. Onde havia apenas um assunto sobre o qual falar, a imaginação e a língua tornaram-se empobrecidas. Jornais foram substituídos por boletins oficiais relatando os progressos da Torre e sua difusão foi conhecida como mídia. Toda conduta era apenas reconhecida apenas por sua relação com o empreendimento. A medida que a obsessão dominava, ninguém duvidava do motivo pelo qual estava vivo: crises de identidade não estavam mais na moda e alienação era uma palavra que pertencia ao passado. Novas doenças apareceram. Além da Torre, os únicos projetos de construção realizados naquela época eram os de hospitais psiquiátricos e clínicas para tratar da proliferação das ansiedades que o empreendimento havia gerado. O ceticismo gerado pelo novo “estilo de vida” foi combatido com maciça propaganda. As liturgias das cerimônias religiosas foram revisadas e uma Nova Teologia surgiu que pregava a doutrina do Deus avarento. As obras prosseguiam a passos acelerados: independentemente da enormidade do empreendimento, não havia nenhuma negligencia ou descuido na maneira como era realizado. A própria extravagância da empreitada parecia exigir que ela fosse dotada de um inusitado grau de autoconsciência. Contudo, o que essa autoconsciência evocava não eram reflexões projetadas para acomodar o esforço exigido pelo empreendimento ao ímpeto dos nativos de agarrar e desfrutar de benefícios imediatos, mas uma curiosidade quase que insaciável sobre os sentimentos e atitudes que isso gerava. E toda uma indústria emergiu, preocupada com “pesquisas” de opinião, de motivos, de esperanças e de
medos dos habitantes da cidade. Assim, o propósito social dos babelianos estava sob um contínuo e não-crítico escrutínio. Até o menos entusiástico dos cidadãos dificilmente poderia queixar-se de que o projeto não estava sendo “ bem pesquisado”. Os anos se passaram. À medida que a Torre crescia, a sombra que ela lançava sobre a cidade aumentava. Depois dos primeiros meses de entusiasmo, o ritmo do trabalho acomodou-se em um passo menos excitante, o trabalho tornou-se um empreendimento profissional. E ao longo do tempo surgiram pessoas que queriam demolir o trabalho que havia feito para dar início à construção de uma Torre mais bem planejada. Havia então o perigo que seu propósito pudesse ser esquecido e que Babel se tornasse uma cidade de trabalhadores braçais, que simplesmente respondiam a uma disposição adquirida de colocar uma pedra em cima da outra. Na verdade, há uma versão da história que tem esse fim pouco dramático, com os babelianos degenerando-se em uma nação de idiotas construtores de torres. Contudo a aventura a que Nemrod dera inicio recebia ameaças de outra direção. Os habitantes de Babel nunca tiveram nenhuma idéia exata da propriedade celestial que estavam se preparando para invadir, e os teólogos, em sua maior parte, mantinham silêncio sobre o assunto, preferindo discorrer sobre a maldade de seu miserável proprietário e a justiça de sua planejada expropriação. Assim, os babelianos haviam se lançado à tarefa como um povo com muitas necessidades, e pensavam no paraíso como um lugar onde essas necessidades seriam instantaneamente satisfeitas. Mas sua devoção a tarefa os transformou em um povo com uma única necessidade – obter o paraíso. Porém, a medida que a Torre crescia, grupos de estudo eram formados e se reuniam para ouvir os insights que revelariam o que devia ser esperado. É verdade que esses encontros tornaram-se pouco mais que competições para imaginar novas necessidades e suas satisfações, mas, mesmo assim, eles contribuíram para proteger os babelianos da frustração final de entrar no paraíso e descobrir que não tinham necessidades a satisfazer. Mas enquanto todos esses preparativos eram feitos, a coragem dos habitantes da cidade foi duramente testada. Materiais de construção começaram a escassear. Começando com o palácio ducal, os prédios da cidade foram demolidos para fornecer materiais para a Torre, e, antes que
muitos meses se houvessem passado, Babel tornou-se um lugar de barracas e acampamentos, de habitantes de cavernas e de moradores de buracos no chão. Entretanto, agora pensava-se que a Torre logo seria terminada. Seu topo há muito estava fora do campo de visão e os construtores tinham de subir por muitas horas para chegar a seu local de trabalho: havia lugar apenas para poucos trabalharem e
Babel tornou-se
rapidamente uma cidade
de
desocupados. Como uma civilização que se vendera às maquinas, todos eram sustentados, mas apenas poucos privilegiados tinham trabalho. Contudo, os boletins eram otimistas; a confiança cresceu e os últimos críticos e céticos que restaram haviam sido silenciados. Nemrod subia à Torre e ficava ensimesmado, esquecido de tudo que o cercava. Tornara-se uma pessoa um tanto triste e introspectiva, mais dócil do que no passado e, talvez, começando a ficar apreensivo em relação a um futuro que agora parecia tão próximo. O duque havia mudada assim como os babelianos. Os anos consumidos por esse único supremo projeto, nos quais não houve nenhuma satisfação ou oportunidade temporária de quebrar a monotonia, tiveram seu peso no estresse emocional que sobreveio. E eles suportavam isso movidos apenas por uma distante e precária visão de pilhagens ilimitadas. A confiança na nobreza de um empreendimento longo e difícil pode durar muito tempo para sustentar sua realização, e pode até mesmo tornar seu colapso suportável. Contudo, aqueles que investiram todas as suas energias e esperanças em uma empreitada marcada pela depravação estão amarrados a seu sucesso, e são capazes de adquirir um obscuro autodesprezo que qualifica sua fé, primeiro em seus semelhantes, depois em si mesmos. Emocionalmente exaustos e unidos no pavor do fracasso, um grande número deles, agora praticamente desempregados, começou a achar difícil de acreditar que ninguém revelaria sua exaustão com alguma conduta fatalmente danosa. Surgiu a suspeita de que todos poderiam ser logrados por um embuste planejado para o benefício de outros que não eles mesmos. Ou seriam eles, talvez, as crédulas vítimas de uma ilusão? Quem foi que disse que toda essa conversa sobre paraíso não era mais do que uma dose de ópio para manter as massas sossegadas? Durante anos, eles se identificaram com o
empreendimento e com o duque, seu autor. Não estavam dispostos a duvidar de sua sabedoria ou competência, mas o falatório sobre aqueles que trabalhavam no topo os levou a refletir. O que ele fazia lá o dia inteiro? Com quem falava quando parecia falar consigo mesmo? E a semente de uma vaga dúvida foi plantada em suas mentes. Começaram os acenos com a cabeça, e então teve início o falatório. E toda a desconfiança nativa de um povo cujas emoções mais profundas (seja o que fosse que tivessem previsto para satisfazê-las) eram a cobiça e o ressentimento emergiu para confirmar a dúvida que tinham em relação a seu líder. A suspeita, inseparável do excesso, floresceu. Uma delegação esperou por Nemrod, aparentemente para perguntar sobre as últimas informações, mas, na verdade, para fazê-lo falar, de forma que, inadvertidamente, se revelasse. O resultado porém foi inconclusivo. Tudo o que poderiam fazer era contar suas suspeitas aos construtores, dizer-lhes para ficarem de olhos abertos e observarem os movimentos do duque. E então, numa
noite,
os
auto-intitulados
observadores
ficaram
profundamente
perturbados quando o duque não apareceu na saída da Torre. Um grito, e o alarmo foi dado. Pessoas acorreram de todos os cantos da cidade, tomados pelo pânico de pensar que estavam prestes a ser privadas daquilo que se consumiram para obter. Houve um rápido conselho de guerra: embora nada houvesse sido planejado ou ensaiado, todos sabiam o que fazer. Espremendose pelas escadas, liberado pelos mais ágeis, toda a população de Babel correu para arrancar a recompensa de sua labuta das mãos do homem que – agora estavam convencidos – nesse exato momento se esgueirava para dentro do paraíso sem eles, após ter feito uma acordo pessoal com seu proprietário. A subida estreitava-se a medida que a massa avançava, e quando os que estavam na frente começaram a alcançar o topo, uma enorme pressão formara-se dentro da Torre. Ela oscilou e, com uma infinita lentidão, o topo da Torre cedeu. Logo toda a estrutura tornou-se uma feroz cascata de pedras que caíam; corpos mutilados em sua superfície submergiram em suas profundezas. Não restaram sobreviventes para se perguntarem se a suspeita que levara ao desastre era, no fim das contas, fantasiosa ou não. O que havia sido projetado como uma escada para o paraíso tornara-se a tumba de um povo inteiro, que
não pereceu em uma confusão de línguas, mas que fora vítima de uma ilusão e confundido pela desconfiança que persegue aqueles que se engajam em façanhas titânicas.