Paul Beauchamp - A Criação de Adao

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PAUL BEAUCHAMP

A CRIAÇÃO DE ADÃO


A CRIAÇÃO E A ELEIÇÃO NA VISÃO DE BEAUCHAMP ADÃO Diante das explicações dadas no próximo capítulo sobre a vida do homem individual e sua convivência social, podemos tentar entender o que seria a visão bíblica essencial do homem na sua origem1. A Bíblia, mais uma vez paradoxalmente, é um livro universal e o livro de um povo, livro de todos e livro de um só, porque é o livro de Jesus Cristo. Podemos, contudo, falar do universalismo

da

Bíblia

quando

falamos

do

Antigo

Testamento?

O

universalismo do Novo Testamento aparece com muito mais clareza se ele se apóia na tradição que o precede. Para olhar o Antigo Testamento, é preciso começar pelo começo, pelo livro do Gênesis. Tendo sempre privilegiado a literalidade da narrativa, estamos bloqueados pelos obstáculos que nos impedem de acreditar na letra dessa narrativa e, no intuito de tornar essa letra mais plausível, podemos perder os elementos mais vitais que o texto nos fornece: notadamente Adão e Eva, nossos primeiros pais! É claro que não se trata de voltar para ingenuidade das interpretações do catecismo da nossa infância. Trata-se muito mais de voltar a ter uma atitude de acolhida para ouvir uma mensagem que não reside na materialidade dos fatos. Adão representa um modo simples de dizer que todos os homens são irmãos: isso é afirmado com força no primeiro capítulo do Gênesis, notadamente, embora a descoberta disso seja deixada para perspicácia do leitor. O texto se apresenta como uma espécie de pergunta não formulada: “porque temos todos um único homem como pai?” Quem sabe a resposta : “somos todos irmãos”, este e somente este tem a verdade da narrativa. Crer que existe um único pai para todos não serve para nada se a conclusão não for tirada. Acreditar na fraternidade universal nos coloca na verdadeira mensagem do texto, mesmo que não saibamos como isso aconteceu do ponto de vista da origem biológica da espécie humana. No tempo que o livro do Gênesis foi escrito, os homens não sabiam muito bem e eles falavam em enigmas. 1

BEAUCHAMP, Paul, Parler d’Écritures Saintes, Paris, Éditions du Seuil, 1987 cap. 5


Algumas dezenas de anos atrás, os homens começaram saber muito bem e esqueceram, infelizmente, que a Bíblia, escrita por sábios, não por cientistas, falavam em enigmas. Hoje, voltamos a não saber muito bem onde, quando e como a espécie humana começou2. Sabemos com certeza que, materialmente, não é como a Bíblia conta. Mas percebemos melhor que, filosoficamente, o inicio da humanidade permanece um enigma que nunca será resolvido por escavações nem por nenhum outro meio científico. A verdadeira pergunta ressurge: “O que quer dizer começar?” Estamos um pouco mais dispostos a entender a linguagem enigmática dos antigos. É como uma ressurreição do texto. Quando se trata de um problema verdadeiramente filosófico, como o do sentido da história humana coletiva, não existe uma época mais competente do que a outra. Verdades esquecidas podem sempre se manifestar de novo.

os animais “segundo sua espécie” Não é a arqueologia mas a psicologia das literaturas antigas que nos diz como a Bíblia raciocina. Ela começa obrigando o leitor a raciocinar muito: conta muito com nossa intuição e nossa atividade de espírito. Errado é considerar suficiente, para entrar na Bíblia, de adquirir conhecimentos. É necessário mas é mais necessário ainda exercitar o tipo de mente que tinham os homens da Bíblia. Eis como se supõe que o leitor raciocine. Primeiro, no nível mais simples: se os homens têm todos como pai Adão, eles são irmãos. Depois, mais sutilmente, o leitor fica impressionado pela importância dada, desde o inicio e depois, aos animais. São dados para Adão e Eva como assistentes e principais parceiros do homem na narrativa dos sete dias. É uma coisa surpreendente porque talvez não teríamos começado por esse ponto de partida. A Bíblia começa com os animais desde o quinto dia da criação e vai voltar ao fato com muita freqüência. No primeiro capítulo do Gênesis, num texto onde todas as palavras têm sua importância, o leitor é convidado a notar que cada grupo de seres vivos, animais e vegetais, recebe a ordem de reproduzir-se segundo sua espécie. A palavra volta uma dezena de vezes nesse capítulo primeiro:

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Veremos mais adiante que a fórmula « espécie humana » não é muito correta...


“Deus disse: “que a terra produza seres vivos segundo a sua espécie; animais grandes, animais pequenos e animais selvagens segundo sua espécie”. Assim aconteceu. Deus fez os animais selvagens segundo sua espécie, os animais grandes segundo a sua espécie e todos os animais pequenos do solo segundo sua espécie. Deus viu que isto era bom.” (Gn 1, 24-25)3 Não se diz isso do homem quando ele aparece logo depois: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou; criouos macho e fêmea.” (Gn 1, 27) Deus diz: “sejam fecundos e se multipliquem” mas não “segundo sua espécie”. O leitor atento vê nisso a indicação de um raciocínio. O animal esclarece a natureza do homem por contraste: o animal é múltiplo e o homem é um. Ora, o animal não é à imagem de Deus porque o homem só é à imagem de Deus. A palavra imagem tem um sentido muito forte no contexto de uma aproximação entre o homem e o animal. A criança é fascinado pelo animal no jardim zoológico, por um efeito de espelho, frente a esse ser que é, pensa ele, ao mesmo tempo como eu e não como eu. Portanto, para o Gênesis, a vida não basta a fazer do homem uma imagem de Deus, porque plantas e animais possuem como o homem o poder de reproduzir-se, próprio dos seres vivos. Ser “macho e fêmea” (como diz o texto) não é também próprio da imagem de Deus, porque isso é encontrado também no reino animal. Em compensação, a unidade do que é humano o constitui verdadeiramente à imagem de Deus porque Deus é um. A humanidade não se divide em várias espécies, como a animalidade. O homem não é acrescentado como mais uma às espécies animais: ele as ultrapassa (supera).

A unidade: uma tarefa A unidade do homem não é puramente e simplesmente dada porque ele não é Deus, mas simplesmente uma “imagem e semelhança”: sua unidade é uma missão, uma tarefa, um futuro. Por isso, ela é comandada. O homem recebe a ordem de colocar a unidade nos seres vivos, comandando ao conjunto do reino animal. Esse reino é a harmonia de todos os animais sob o sinal superior da unidade humana, ela mesma imagem da imagem de Deus:

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A tradução usada é a TEB


“Deus o abençoou e lhes disse: “sede fecundos e prolíficos, enchei a terra e dominai-a. submetei os peixes do mar, os pássaros do céu e todo animal que rasteja sobre a terra.” (Gn 1, 28) Na época onde se tinha esquecido que a Bíblia falava em enigmas, quer dizer até recentemente, esse versículo recebia pouca atenção. Considerava-se que a missão de comandar aos animais não era gloriosa nem atraente e se buscava outra coisa. Contudo, se poder restabelecer que este versículo contém uma verdade preciosa e escondida, terá se provado que a Bíblia fala em enigmas. É o caso: essa missão aparentemente muito secundaria contém um símbolo muito poderoso e muito expressivo. O leitor é convidado a decriptar a mensagem; ele descobrirá que a relação entre os homens e os animais é o sinal de uma verdade que pode ser chamada de política. A humanidade é una como uma família, quando ela é à imagem de Deus, e esse modo de ser é acompanhado por um outro modo de ser do mundo inteiro. Se o homem for completamente à imagem de Deus, então os animais, graças ao comando de Deus e ao seu exemplo real, não se devoram. Eles não precisam: todos comem unicamente vegetais: “A todo animal da terra, a todo pássaro do céu, a tudo que rasteja sobre a terra e que tem sopro de vida, eu dou como alimento toda erva que amadurece. Assim aconteceu.” (Gn 1, 30) O leitor é convidado a entender que isso é possível sob o comando de um homem tão doce e pacífico quanto é requerido sua condição de imagem de Deus. Sem o homem, os animais devorariam se mutuamente: tal seria sua “política”, porque não são irmãos, como os homens que são todos irmãos em Adão, imagem e filho de Deus. Se diz de Adão que ele se parece com Deus seu pai, que é uno. Sua vocação é ser pai de uma humanidade uma, ao mesmo tempo em que ele é quem reúne a diversidade dos seres vivos. O leitor é convidado a entender que isso era verdade “no sexto dia da criação”, quer dizer antes da História! Nesse ponto podemos perguntar porque o autor situou o que tem de mais bonito num período fabuloso “naquele tempo”, “antes da História”, quer dizer “no tempo dos mitos”. Contudo o autor não é um “mitólogo”, embora tome emprestado algo à linguagem mitológica. Se fosse um “mitólogo”, ele demoraria muito em descrever o estado de bem-aventurança primitiva,

falando

como

se

tivesse

sido

presente.

Interessar-se-ia

principalmente ao passado. Pelo contrário, ele interessa-se principalmente ao


futuro, mas não só ao futuro: poderia se uma evasão. Ele quer ensinar que já está deposto no homem, por um dom gratuito de Deus que não é biológico, um poder que frutificará um dia como uma promessa. O homem é como um herdeiro que não recebeu ainda sua herança. Essa herança não cairá do céu! Ela vai ser objeto de um drama. Mais exatamente, esse drama já aconteceu quando o texto é escrito, e todo mundo sabe o desfecho: a unidade foi quebrada. O autor inspirado desse texto escreveu para restaurar a coragem do homem: “você recebeu, assim mesmo, a imagem de Deus como uma herança de unidade para toda a família humana e você tem como missão de caminhar para essa herança4. A humanidade coletiva tem como missão tornar-se imagem de Deus pela sua unidade, em vez de ser, como agora, imagem da animalidade pelas suas divisões: pantera contra antílope, lobo contra cordeiro.

Quando o animal domina Sabemos que, muito cedo, desde o começo da História, existe uma ruptura da imagem de Deus. “não jaz o pecado à porta, como animal acuado que te espreita; podes por acaso dominá-lo?” (Gn 4,7) A besta comanda Caim e ele mata o irmão, o que confirma bem a interpretação da narrativa dos sete dias. Esse trecho poderia provir da mesma fonte que Gn 1 com o escopo de uma harmonização 5. Para seguir a história bíblica da divisão entre os homens (é, na sua forma negativa, o “universalismo” da Bíblia) o mais seguro é seguir a fonte literária de onde provém a narrativa dos sete dias. Ela é chamada de “fonte sacerdotal”, sendo posteriormente juntada às mais antigas para elaborar, na sua forma acabada, o livro do Gênesis. Seguindo ela, se é conduzido a uma outra versão do primeiro pecado, diferente dos capítulos 1 e 3. Esse pecado é a violência: “Noé gerou três filhos: Shem, Ham e Iefet. A terra havia-se corrompido diante de Deus e se havia enchido de violência.” (Gn 6,10)

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Como não citar como referência nesse momento o extraordinário ensaio: MESTERS, Carlos, Paraíso terrestre saudade ou esperança, Petrópolis, Editora Vozes, 1983 (primeira edição 1970) 5 Em relação à proveniência da mesma fonte, a posição é compartilhada pelo comentário bíblico: BROWN, Raymond E., FITZMYER, Joseph A., MURPHY, Roland E., Novo comentário bíblico São Jerônimo, AntigoTestamento, São Paulo, Academia Cristã – Paulus, 2007


É preciso entender que o germe semeado pelo assassinato de Abel frutificou nos tempos de Noé, até seu máximo: por isso a Bíblia sempre entendeu a narrativa do dilúvio como uma ilustração antecipada dos últimos tempos do mundo inteiro, de toda a História, assim como os apocalipses os contam. Uma vez que o homem se dilacerou pela violência, entendemos bem que ele não tem meios de impedir uma espécie animal de dilacerar a outra. Se o homem for violento, ele obedece ao animal cego que “acuado, o espreita”. Se ele obedecer a esse animal, ele não cumpre mais sua missão humana que era comandá-lo. Ele não é mais aquele que reina sobre os animais porque não reina mais sobre si mesmo. Como poderia comandar eles quando ele os imita? Ele os toma como modelos e se torna à imagem deles. Mas se o homem for à imagem dos animais, não está mais à imagem de Deus! É uma imagem simples, mas forte, que apanha o homem sem recorrer ao idealismo; o homem está situado num cruzamento entre Deus e o animal mas ele não tem o direito de ignorar ou desprezar o animal do qual deve ser o pai pacífico. Mesmo quando se trata da própria animalidade, deve ser pastor e não inimigo. Assim, uma chave é dada ao homem para que ele possa entender a si mesmo. Uma espécie guerreando contra uma outra espécie para poder alimentar-se com ela, é o reino animal, mas pode servir de espelho (sempre a idéia de imagem) para o homem: as nações tornaram-se tão diferentes umas das outras quanto as espécies animais; foi esquecido o primeiro apelo da humanidade e as nações mais fortes alimentam se das mais fracas para sua própria sobrevivência. Depois do dilúvio, Deus resolve não impedir mais o homem de comer a carne dos animais “Sede fecundos e prolíficos, enchei a terra. Sereis causa de terror e de espanto para todos os animais da terra e para todos os pássaros do céu. Tudo o que rasteja sobre o solo e todos os peixes do mar estão entregues a vossas mãos. Tudo o que rasteja e vive vos servirá de alimento, bem como a erva que amadurece; eu vos dou tudo.” (Gn 9, 1-3) É como uma nova criação, porque essas palavras retomam as que Deus dizia ao primeiro homem. Mas seguidas por palavras que nunca tinham sido pronunciadas: ser causa “de terror e espanto”. O homem continua o rei, mas não mais à semelhança de Deus porque reinar como Deus é reinar pela


palavra, pela razão e pelo amor. O homem reina agora como o tirano, pelo ferro. Este é o enigma que faz entender o que o texto não diz: o homem, matando o animal e alimentando-se dele, serve para si mesmo de espelho. Enxerga seu comportamento de homem matando o homem e reinando sobre o homem por uma lei de ferro. Ele percebe que ele não pode mais ser o pastor da própria animalidade: pode somente reinar sobre si mesmo pela força. O autor bíblico propõe que comparemos essa lei de ferro, que rege as nações entre si, com as gaiolas onde são confinados os animais. Nos dois casos, existe um sinal de exílio do paraíso.

deus nos caminhos do homem Essa lei de ferro está expressa de um modo simbólico no capítulo 9 do Gênesis. Deus tolera, contradizendo as disposições de Gênesis 1, que o homem derrame o sangue: é preciso para que ele possa se alimentar da carne dos animais. Uma contramedida vai, todavia, ser acrescentada: “todavia não comereis a carne com vida, isto é o seu sangue.” (Gn 9, 4) Pelo efeito dessa contramedida simbólica, o homem não destruirá irremediavelmente os traços da imagem de Deus que subsiste nele. É a lei de depois do dilúvio, lei alimentar ou dietética, até hoje observada com muito cuidado por muitos praticantes da religião judaica. Essa lei foi dada primeiro para toda a humanidade e não vem de Moisés. Como interpretar esse novo “regime”, essa lei de depois do dilúvio e da queda? O que é surpreendente nessa lei é seu duplo movimento. Ela começa por conceder o que era proibido anteriormente. Seu primeiro componente é um edito de tolerância para a violência. Não tendo interditado a violência, a lei toma uma medida que a limita. É o segundo componente. Deus assume o que o homem é em realidade e sua decadência. Deus “desce com” o homem, até surpreender e escandalizar o homem. Santo Irineu dizia que, para acostumar o homem com a divindade, é preciso que Deus freqüente os caminhos imperfeitos do homem, mesmo os caminhos do homem decaído 6. Isso pode mudar nosso olhar em relação a muitos elementos da Bíblia que nos 6

Citado por BEAUCHAMP. Tema recorrente em Irineu, por exemplo Adversus Haereses V, 14, 1 em IRÉNÉE DE LYON, La gloire de Dieu c’est l’homme vivant, textes choisis, Paris, Foi vivante les classiques, Éditions du Cerf, 1994


deixam chocados. É claro que se Deus desce com o homem é para fazê-lo subir. Por isso, podemos prever que essa lei dada a Noé é provisória. Como ela é a primeira formulação de uma lei especificamente bíblica em todo o Antigo Testamento, é importante perceber suas características: tem por função lembrar o sentido da história humana olhando para o passado porque ela obriga o homem a meditar sobre seu pecado. Anuncia também o futuro. É uma lei que anuncia uma justiça muito maior do que ela mesma. Primeiro o futuro é anunciado negativamente porque essa lei é um acerto provisório. A violência não é supressa, ela é somente contida: a lei é tão somente um dique. A repartição dos filhos de Adão em nações separadas por fronteiras, narrada no capítulo 10 do Gênesis, obedece a essa lei de ferro: as fronteiras contêm a violência, sem suprimi-la. Num certo sentido, o que contém a violência sem suprimi-la contribui um pouco para essa violência. Um dique aumenta a energia que ela contém: assim São Paulo diz que a Lei aumenta a força do pecado (cf.1 Cor 15, 56). Até quando dura o acerto? O Gênesis não responde essa pergunta mas está preocupado com o futuro, presente no texto de um modo bastante enigmático. Gênesis (9, 6) confirma que, na lei alimentar proibindo de consumir o sangue derramado, existe um simbolismo que diz respeito à violência: “quem derramar o sangue do homem, pelo homem verá derramado o seu sangue. Pois à imagem de Deus, Deus fez o homem” O sangue chama pelo sangue: é um equilíbrio da violência que está sempre em desequilíbrio porque Caim será vingado sete vezes e seu descendente, Lamek, será vingado onzes vezes mais. Assim Deus anuncia que, doravante, a humanidade não desaparecerá mais: é o significado do arcoíris. Mas a única promessa verdadeira que existe um futuro, é a imagem de Deus. O fato de que a “imagem de Deus” seja mencionada aqui parece significar que o homem, após as violências do dilúvio, é chamado à paz para a unidade, por meio do domínio de sua animalidade. Noé é um modelo antecipado dessa paz, de um homem novo que seja o novo Adão, imagem de Deus para sempre. Noé é um novo Adão porque comanda aos animais, salvando-os, eles que são símbolos da nações. Navega com eles uma nova criação recomeçada.


No que consiste o valor universal do que acabamos de ler? Sem dúvida no fato de que essa narrativa pode interessar todo ser humano. Tem mais. Na parte da Bíblia que vai até Noé e mesmo um pouquinho mais longe, não se trata dos judeus uma única vez. É a história que Israel conta, mas não é a historia de Israel porque, nesse período relatado, Israel não existe ainda. A história que contam os judeus deixa passar mais de dois mil anos a partir da criação do mundo antes que exista um único judeu sobre a terra. Durante todo esse longo período, toda a humanidade instala-se e discute com Deus sem o povo eleito, mas conta já com eleitos que permanecerão como modelos para sempre (Enoc, Noé, Abel). É, portanto, totalmente insuficiente dizer que o Deus do Antigo Testamento é o Deus dos judeus. Deus se compromete por aliança a nunca abandonar os filhos de Noé, que representa toda a humanidade que inclui e ultrapassa Israel. Essa aliança é seguida da separação das nações, separadas e contidas por uma lei de ferro, mas provisória e sinal de promessa também. Portanto, para sempre, Deus, o Deus de Israel, fez uma aliança com todas as nações para sua salvação. A historia universal das nações é o fundamento da historia de Israel. Inversamente, a historia de Israel não está dissolvida na historia universal. Ela tem uma função única, a da eleição, que aparece no início do capítulo 12 do Gênesis.

ABRAÃO ELEITO PARA TODOS Abraão Em todas as fontes que, no livro do Gênesis, contam o inicio da aventura humana, uma ligação está estabelecida entre a culpa da origem e a divisão da humanidade em nações inimigas. Eis em que consiste essa ligação. Lembramos que, segundo a fonte sacerdotal que se expressa no capítulo primeiro do Gênesis, o homem foi criado à imagem de Deus. Segundo essa mesma fonte, derramar o sangue pela violência é justamente o que questiona a imagem de Deus (Gn 9, 6). A imagem de Deus é a unidade da humanidade. O primeiro crime que essa fonte conhece parece ser o crime de Caim, que prepara a violência anunciadora do dilúvio. Depois do dilúvio, as nações são divididas. Essa divisão é ao mesmo tempo um bem e um mal: a violência é contida por essas fronteiras, mas não é curada por elas.


Na fonte que se expressa nos capítulos 2 e 3 pela narrativa do paraíso terrestre e pela queda dos primeiros pais, vemos que a terra é amaldiçoada por causa do homem. Depois, Caim é amaldiçoado por causa do seu crime: por sua culpa, o solo bebeu o sangue de Abel e não dará mais frutos para Caim7. Aprendemos que Caim, que é violento, responderá a qualquer crime com uma violência maior ainda “setenta sete vezes pior” (Gn 4, 24): esse aumento da violência vai ritmar a história num movimento cada vez mais acelerado. A narrativa do paraíso terrestre revelou a raiz dessa violência: o ciúme. A serpente está com ciúme do homem e inspira o homem a ter ciúme de Deus: o ciumento é aquele que não pode acreditar na bondade do outro mesmo quando recebe os sinais do seu amor. Os sinais não bastam mais: ele quer provas. Assim, a mulher, tendo sinais da bondade de Deus, prefere crer que Deus é um dono duro e orgulhoso: por isso ela desobedece. Assim, o ciúme leva a considerar todo ser como um rival e a não acreditar na amizade. O homem não pode acreditar na bondade de Deus: ele deve lutar contra Deus, esse rival. Vem a história de Babel, onde a culpa não é mais individual, como no jardim do primeiro casal, mas coletiva. O castigo acontece no campo da vida coletiva política: a humanidade é dividida em várias linguagens. Não é a pluralidade em si que é um mal ou um castigo. Contudo ela está marcada pelo sentimento de hostilidade que está na origem da infelicidade. Do ódio entre dois irmãos passamos ao ódio entre nações. Assim os onze primeiros capítulos do Gênesis têm como único escopo vincular à culpa das origens o status de inimizade política que rege as relações entre as nações da terra. É então que Deus refaz uma nova humanidade, que uma nova Aliança se prepara. Todos esses acontecimentos explicam a razão de ser de Abraão que surgiu nesse momento, bem no início do capítulo 12 do Gênesis: “O Senhor disse a Abraão: “parta da tua terra, da tua família, da casa dos teus pais para a terra que eu te mostrarei. Eu farei de ti uma grande nação e te abençoarei. Tornarei grande teu nome. Tu seja uma benção. Eu abençoarei os que te abençoarem, e quem te injuriar, eu o amaldiçoarei: em ti serão abençoadas todas as famílias da terra.” (Gn 12, 1-3) Abraão e somente Abraão. Contudo, atrás de Abraão, existe um povo na visão de Deus. Dá para entender porque trata-se do estado dos povos

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Gn 4, 12


na face da terra. Nesse livro, trata-se da relação de todos os povos com um povo único e, acrescentemos, esse povo único está representado por uma pessoa única, Abraão, assim como, mais tarde, será representado por Davi e por um filho de Davi, sempre vistos na suas relações com as nações inteiras. Abraão não é um novo Adão: a Bíblia abre um espaço para o espírito de cada um, convidando a entender que Abraão é eleito para as nações. Deus que salvar o homem todo, Adão, por Abraão que ele acaba de escolher como seu eleito. Não bastará portanto dizer que Deus enviou seu Filho único para salvar todos os homens divididos pelo pecado. Nesse envio, o Antigo Testamento teve um papel e essa história é a história de um povo, já presente em Abraão. A história sagrada está preenchida por um único assunto: as relações de um povo com todos os povos. O sentido da vocação de Abraão é que nele “sejam abençoadas todas as nações da terra.” Um leitor distraído poderá imaginar que Abraão é muito sortudo porque Deus chama sobre ele a benção dos homens atraindo eles por promessas. Sem excluir isso, parece muito mais que as nações devem ser parabenizadas pelo fato de que a benção venha a elas por meio de Abraão, considerando principalmente o fato de que a benção foi justamente o que Adão tinha quase perdido no jardim do Éden. Se as nações se reagrupassem ao redor de Abraão, isso seria a volta do primeiro Adão para a verdadeira pureza, e para a plenitude da benção! É preciso admirar o jeito de Deus fazer as coisas: já que o homem perdeu a unidade junto com a imagem de Deus, não será bendizendo a Deus que o homem será restaurado, mas o será se um abençoar o outro, se o filho de Adão abençoar o filho de Abraão. É assim que Adão reconstruirá sua unidade, à imagem de Deus. A história segue um curso bem preciso.

O êxodo Poder-se-ia crer que a perspectiva universal desaparece do livro do Êxodo, porque se trata de assegurar a salvação de um único povo, Israel, caído na escravidão debaixo do poder dos egípcios. Esse modo de ver aflora certamente em muitas passagens da Bíblia, principalmente quando tomados isoladamente. O ângulo do livro do Êxodo, tomado no seu conjunto e colocado em perspectiva, talvez possa ser diferente. Trata-se para Deus de fazer justiça


entre dois povos: o povo de Moisés e o povo do Faraó. Nesse ponto de vista, o livro do Êxodo é uma parábola ao mesmo tempo da salvação e do julgamento último. É o livro não somente da eleição de Israel mas também do julgamento das nações, entre as quais Israel. Parábola: a palavra não significa “invenção”, “ficção”, embora tenha uma parte importante de expressão poética, mais do que histórica, nessa antiga narrativa, retocada por várias gerações. Todo esse livro repousa sobre a experiência vivida por um povo. É uma parábola e uma experiência. O ponto de partida do livro mostra que o início do Gênesis não foi esquecido: os filhos de Abraão multiplicaram-se e encheram a terra. Um outro ponto do livro do Gênesis é lembrado, mas a palavra de Deus é contradita e do modo mais direto. Trata-se no primeiro capítulo do Gênesis de dominar, pela doçura, os animais? Trata-se do mesmo tema, mas invertido. Para que, de fato, os homens devem comandar aos animais? Os animais são uma força e devem ser comandados para serem contidos. O homem quer encher a terra e os animais também querem. Nos dois casos, a ocupação do espaço é a conseqüência da fecundidade: existe uma concorrência. Comanda-se a uma força também para que seja usada: os animais servem para o transporte e para o trabalho. O que acontece no início do Êxodo? O homem está bem numa situação de comando (o homem egípcio), mas comando o outro homem (o homem de Israel). De dois modos: comanda ao homem de Israel para contê-lo: as parteiras devem jogar as crianças no rio. Comanda ao homem também para usá-lo (fazer tijolos) e o considera unicamente em função do seu interesse, que é sua única lei. Infanticídio e escravidão: um povo trata assim o outro que mora no mesmo espaço. Essa situação ocupa o lugar principal na história da Páscoa: intervenção de Deus para tirar um povo oprimido das mãos de um povo opressor pelo qual sua fecundidade é recusada, sua liberdade humilhada. Nossas narrativas tinham começado por histórias de animais. Não achamos animais no início do Êxodo. Não é porque o narrador os esqueceu, é porque o homem foi colocado no seu lugar. Em outras palavras, a problemática não mudou seu eixo: é sempre a da imagem de Deus. Ora, a imagem de Deus, é Adão; a problemática é universal. Trata-se do modo com o qual Adão trata Adão. Se Adão (“Homem”) for quebrantado, é a ausência de Deus e a morte. É


o que acontece quando os filhos de Adão não tratam os filhos de Adão como homens. Nessa perspectiva, Moisés é imagem de Deus, assim como Faraó o é e assim acontece com seus respectivos povos. Imagem contra imagem: se o drama é intensamente trágico, é bem porque existe uma única imagem traçada sobre uma humanidade que a violência divide em dois campos inimigos. Faraó é golpeado por Deus porque, se um homem não sofrer ele mesmo, ele nunca perceberá que ele faz sofrer um outro. As pragas do Egito se sucedem para obter do Faraó que ele ceda. Cada vez que o flagelo para, Faraó, em vez de ver um sinal da bondade de Deus, aproveita da bonança para retomar o que ele tinha solto. Nisso consiste sua culpa principal: ele acredita somente na força e, quando ele provou definitivamente que não tinha nada outro dentro dele, a imagem de Deus apaga-se nele. A narrativa é uma tragédia que se desenvolve em mais de dez atos! Durante esse tempo, o povo oprimido tenta falar. Moisés seguiu um itinerário inverso. Ele começou matando um homem quando ninguém exigia isso dele. Teve que fugir e achar um asilo em Madiã. Nesse tempo ele não tinha ainda visto a Deus. Deus mostra-se a ele e o envia falar com Faraó. Moisés que não tinha tido medo de matar um egípcio, esquiva-se quando Deus lhe pede de falar ao Faraó. Deus o coloca num outro caminho dando-lhe a missão de falar: ele viverá enquanto Faraó, para quem a força substitui a palavra, precipitar-se-á no mar. Para Israel, a palavra e a observação do sabá, já inscritos no capítulo 1 do Gênesis, são os grandes sinais de sua liberdade. Frente à servidão de um trabalho sem lei, Israel pede de poder prestar culto a Deus no deserto. A resposta de Faraó é bem conhecida : “são preguiçosos” (Ex 5, 8). A mesma resposta será muitas vezes ouvida no decorrer da História, para disfarçar a negação da liberdade do outro. A lei do trabalho suprime então todas as outras leis, mas o que se chama lei do trabalho significa, muitas vezes, o trabalho sem lei. Nesse julgamento instaurado entre Faraó e Moisés, os dois antagonistas não são indiferentes um em relação ao outro. Dá para ouvir o eco muito preciso da vocação de Abraão. Faraó pede que Moisés e Aarão intercedam para ele (Ex 8, 24). Nos momentos em que Faraó se deixa


convencer por algumas horas, ele chega a pedir a Moisés e Aarão que eles peçam a benção para ele também (Ex 12, 31ss): ele se coloca no eixo da palavra de Deus a Abraão: “abençoarei os que te abençoam”. É possível pressentir que a liberdade de Israel não teria salvo simplesmente Israel: era feita para salvar também o Egito. Infelizmente, o Êxodo que contém simplesmente a figura da nossa salvação, não nos faz assistir à salvação das nações, mas sim à morte dos primogênitos do Egito e ao desaparecimento de Faraó e do seu exército. É o mistério do mal que esse livro toca com tanta acuidade. A imagem de Deus nunca será realizada por Israel ou pelo Egito sozinhos. Será preciso que os dois constituam um único povo, como diz Paulo: “Ele quis assim, a partir do judeu e do pagão, criar em si um só homem novo, estabelecendo a paz, e reconciliá-lo com Deus, ambos em um só corpo, por meio da cruz.” (Ef 2, 15-16) Desde o momento do Êxodo, percebemos o quanto Moisés é próximo dos Egípcios. Ele tem duas mães: ele é também um egípcio. Para que o Êxodo seja conduzido a seu verdadeiro termo, seria preciso que Israel leve o Egito porque Deus tem um único Filho.


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