Pensar a Ética para Construir

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PENSAR A ÉTICA PARA CONSTRUIR O DISCERNIMENTO E A ESPERANÇA


PENSAR A ÉTICA PARA CONSTRUIR O DISCERNIMENTO E A ESPERANÇA Hoje, a reflexão ética é provocada por graves problem as de convivência, assim como a preocupação ecológica nasce da consciência de ameaças à sobrevivência. O que significa a palavra ética? Ética vem de Ethos, que significa lar, lugar da convivência. A reflexão ética tenta responder a duas perguntas: quais são os alicerces de uma convivência harmoniosa e como construir vínculos humanos sustentáveis? Esta busca apontará critérios que inspirarão escolhas e atitudes. A avaliação dos ganhos e perdas oriundos dessas escolhas determinará um conjunto de valores para os indivíduos e as sociedades.

Hoje, como sempre, m uitos problemas éticos que afligem o conjunto da sociedade estão ligados ao exercício dos poderes político e econômico: esses é que são objeto deste artigo. Diz a história que um rei cruel, ansioso por vestes lindas e sempre diferentes, encomendou aos seus tecelões um novo traje real e foi agraciado com uma vestimenta maravilhosa de tecido invisível. Quando ele desfilou na praça pública para mostrar a nova roupa, devido ao medo que inspirava, todos fingiram admiração, até que uma criança encheu os pulmões e gritou: "O rei está nu! O rei está realmente nu!" Em nossos dias, a imprensa tomou o lugar da criança! Basta lembrar mensalinho e mensalão, Enron e Parmalat, armas de destruição massiva no Iraque e outros episódios recentes... O fim da ilusão causada por um discurso enganoso desperta um forte sentimento de indignação e leva ao desmascaramento daqueles que seqüestraram o bem comum para construir um projeto puramente pessoal: seu fim pode não ser diferente daquele tão bem expresso pelo poema Ozim andias1.

“Conheci um viajante de uma terra antiga Que disse: “Duas imensas pernas de pedra, sem tronco, Jazem no deserto. Junto a elas, Parcialmente afundado na areia, um rosto despedaçado, com o lábio Franzido e enrugado em um sorriso escarnecedor de frio poder, Demonstra que o escultor bem intuiu tais paixões, Que ainda sobrevivem , estampadas naquelas coisas sem vida, A mão que as forjou e o coração que as alimentou; No pedestal há a seguinte inscrição: „Meu nome é Ozimandias, rei dos reis: Olhem para os m eus feitos pujantes e desesperem-se!‟ 1 “Ozimandias”, por Percy Bysshe Shelley (1817) citado em DIAMOND, Jared, Colapso, como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso, Rio de Janeiro, Editora Record, 2005

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Nada resta além disso. Ao redor daquela ruína Colossal, ilimitada e desnuda As areias solitárias e planas espalham-se ao longe.” Perplexos diante de tantos ídolos destruídos, perguntamos: existem razões para ser otimistas ou pessimistas? É um dilema de torcedor. Por quê? Existe, sim, um certo progresso na passagem da condição de espectador à de torcedor: o espectador assiste passivo enquanto o torcedor envolve-se emocionalmente com o espetáculo. Todavia, em ambos os casos, inexiste a consciência de ser parte da situação e da construção de bases para uma nova convivência. Quem não percebe o quanto a sociedade sofreu por causa da superlotação das arquibancadas e da ausência de um time esforçado no campo? O escândalo político recente que assola nossa sociedade é um exemplo.

Durante anos, um partido político vendeu a idéia de que era diferente: muitos torciam a favor e outros tantos contra. Todos foram pegos de surpresa pelos acontecimentos porque nunca a sociedade se preocupou com o que realmente acontece nos partidos políticos. Enquanto isso, os problemas com a saúde e a educação avolumavam-se e as forças mais vivas da sociedade fragmentavam-se, preferindo tentar resolver seus problemas individualmente, em vez de enfrentar o desafio cidadão de cuidar do bem comum.

Algumas empresas enveredaram pela perigosa via da corrupção em busca de atalhos para solução individual de seus problemas, comprometendo-se com esquemas inconfessáveis que acabaram vindo a tona! Enquanto isso, todos torciam para que as coisas melhorassem , não considerando a possibilidade de uma ação comum contra os corruptores a fim de tornar o ambiente econômico mais saudável.

Qual seria a atitude que tornaria a indignação produtiva e despertaria uma tomada de consciência? Conta a lenda2:

“Noé estava cansado do papel de profeta da infelicidade e de sempre anunciar uma catástrofe que nunca vinha e que ninguém levava a sério. Um dia, vestiu um velho saco e espalhou pó sobre a cabeça. Este gesto só era permitido a quem pranteava um filho querido ou a esposa. Vestindo a roupa da verdade, ator da dor, voltou para a cidade, decidido a reverter em seu benefício a curiosidade, a malignidade e a superstição dos moradores. Em pouco tempo, juntou-se a seu redor um a pequena multidão curiosa e as perguntas

2 Texto de Gunther Anders citado em DUPUY, Jean-Pierre, Petite métaphysique des tsunamis, Paris, Éditions du Seuil, 2005

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começaram a surgir. Perguntaram se alguém tinha morrido e quem era. Noé respondeu que muitos tinham morrido e que esses mortos eram eles, o que provocou gargalhadas. Quando lhe perguntaram quando tinha acontecido tal catástrofe, ele respondeu: amanhã. Aproveitando então a atenção e a aflição dos ouvintes, Noé ergueu-se e, do alto de sua grandeza, começou a falar: depois de amanhã, o dilúvio será algo que já aconteceu. E quando o dilúvio tiver acontecido, tudo que é nunca terá existido. Quando o dilúvio tiver arrastado tudo o que existe, tudo que tiver existido, será muito tarde para lembrar, porque não haverá mais ninguém. Não haverá mais então nenhuma diferença entre os mortos e os que os choram. Se eu vim aqui diante de vocês, é para inverter o tempo, é para chorar hoje os mortos de amanhã. Depois de amanhã, será tarde demais. Dito isso, voltou para casa, trocou de roupa, tirou o pó que lhe cobria o rosto e foi para sua oficina. No decorrer da tarde, um carpinteiro bateu a sua porta e lhe disse: deixa-me te ajudar a construir a arca para que tudo aquilo se torne falso. Mais tarde, um telhador juntou-se aos dois, dizendo: chove nas montanhas, deixem-me ajudá-los para que tudo aquilo se torne falso.” Esse texto traduz a angústia que nasce da sensação de uma catástrofe iminente; desta sensação pode nascer uma postura pro-ativa que um filósofo contem porâneo chama de catastrofismo3. Não se pode iniciar numa reflexão séria sem noção da gravidade dos desafios que enfrentamos nesses tempos de tsunami e de Katrina, de recursos não contabilizados e de terrorismo... Esse choque diante de uma realidade adversa e assustadora pode, num primeiro momento, gerar um sentimento de impotência, principalmente se exercitarmos algum tipo de responsabilidade, tomando decisões que afetam outros seres humanos! Num segundo momento, ele pode despertar nossa capacidade de pensar e de julgar. Foi num momento desses que Noé, homem de esperança, trocou de roupa e começou a construir a arca!

Vale a pena refletir um pouco mais sobre este paradoxo: o mesmo pensamento lúcido permite o discernimento e acende a esperança que pode permitir evitar o desastre anunciado. O que seria o discernimento? Ultimamente, temos falado muito em construir modelos mentais. Isto tem levado a praticar em larga escala o wishful thinking, ou seja a tentação de interpretar fatos e eventos em função do que gostaríamos que acontecesse. Não raras vezes, sofremos de cegueira porque os estudos de cenários e outros relatórios de qualidade, já direcionados pelas perguntas que estamos acostumados a fazer,

3 DUPUY, Jean-Pierre, Petite métaphysique des tsunamis, Paris, Éditions du Seuil, 2005

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acabam repetindo o que queremos ouvir. Isso não melhora muito nosso discernim ento: o que fazer para reverter esse processo? A primeira providência é observar mais para analisar melhor. A construção de um pensamento mais sistêm ico pode fornecer uma ferramenta para transformar esta observação num pensamento consistente. Pensar significa, nesse caso, aprender a considerar todas as variáveis que influenciam um evento, não escolher entre elas mas sim aceitar e ponderar todas como se tivessem a mesma importância. Aos poucos, conseguiremos discernir critérios de análise e, portanto, de tomada de decisão.

A prática da empatia é outra condição necessária. Parece estranho incluir uma atitude ligada ao relacionamento como condição de pensamento. Entretanto, se deixarmos de considerar o ato de pensar como exclusivamente solitário para considerá-lo uma construção ao mesmo tempo pessoal e coletiva, colocar-se no lugar do outro torna possível a tentativa de elaboração de um pensamento comum e pode abrir o caminho para uma atitude solidária.

A aceitação da controvérsia complementa a prática da empatia: colocar-se no lugar do outro não significa aceitar tudo o que ele diz. A defesa do próprio ponto de vista permite a valorização do ponto de vista do outro. Dessa controvérsia pode nascer uma visão mais ampla,abrangente e verdadeira. Finalm ente, discernir significa elaborar critérios de escolha considerando o impacto das nossas decisões na vida de outras pessoas. O ato de pensar nunca é independente do exercício da responsabilidade. O que seria a esperança? Segundo Hannah Arendt, o ser humano consegue resgatar o próprio passado pelo perdão pedido ou recebido4. O fato de não fechar os olhos diante dos abismos que nos assustam ajuda-nos a redimensionar erros nossos e alheios. A insistência na busca do bode expiatório não serve para enfrentar grandes desafios, principalmente o de viver num mundo onde sociedades e em presas enfrentam crises tão graves.

Arendt aponta também a esperança como semente do futuro. Segundo ela, não é por causa de ameaças e crises que alguns seres humanos, como, por exemplo, Betinho, confiando no impacto causado por seu exemplo, não renunciam à sua

4 Ver ARENDT, Hannah, A condição humana, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1991

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vocação de prometer a si mesmo e aos outros que buscarão construir um mundo onde o bom, o verdadeiro e o belo possam prevalecer. É a faculdade de vislumbrar outras possibilidades, e a persistência em implementá-las, que alimenta a esperança dos profetas de hoje e de sempre!

Algum tem po atrás, um aluno me mandou um poema árabe que pode trazer uma inspiração para nossa vivência pessoal ou empresarial. “Planta uma idéia e colherás um hábito Planta um hábito e colherás um caráter Planta um caráter e colherás um destino.” É fácil entender como esses versos podem alimentar nossa vivência pessoal. Eles podem inspirar, também , nossa ação empresarial porque as empresas não são somente entidades jurídicas: elas têm uma personalidade ética! Talvez sua capacidade de construir um projeto e um destino dependa do caráter que colherão a partir dos hábitos que estão plantando no seus dia a dia de negócios. À s vezes me surpreendo com a desproporção entre o poder econômico das empresas n a sociedade, e sua pouca influência na mudança de comportamentos políticos profundam ente enraizados. Será que elas comprarão esse desafio? Talvez seja este o principal exercício da responsabilidade social! É uma questão de sobrevivência...

Jean Bartoli, autor do livro “Ser executivo: um ideal? um desafio?” Editora Idéias e Letras Artigo publicado na Revista de Marketing Industrial nº 31 de dezembro 2005

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