Rochefort - O Consumidor

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ROCHEFORT

O CONSUMIDOR


O CONSUMIDOR Até o meio do século XX, estávamos numa sociedade de produção 1. Depois veio a sociedade híbrida, produção e consumo até os anos 70. Estamos agora numa sociedade cuja organização econômica e social assim como o imaginário estão tão centrados no consumo que podemos falar de sociedade consumista. Os responsáveis pelo marketing, pela comercialização e pela publicidade são os reis nas empresas, acima de quem cuida da produção. É a mesma

coisa nas administrações,

embora

seja mais contestável: o

administrado tornar-se-ia um cliente e se amplia os comportamentos consumidores. Ser beneficiário de todos os direitos torna-se uma exigência tal que os deveres acabam sendo esquecidos. Tornando-se um ótimo consumidor, o indivíduo pode tornar-se um cidadão displicente. Numa sociedade que dá grande importância para a produção, a confiança coletiva no futuro é indispensável porque se produz para os outros e é preciso antecipar seus comportamentos. Na sociedade consumista cuja emergência é indissociável do estágio avançado no qual nos encontramos, o horizonte é “egocentrado”. Para gastar, o que é importante é que as coisas estejam indo bastante bem para si e para seu círculo próximo. Pouco importa pelo destino coletivo, principalmente se for longe. Nessa sociedade consumidora, não existe clivagem de gerações como no passado porque a inserção na sociedade passa pela multiplicidade das compras pela grande liberdade que cada um tem de efetuar essas compras. Aos poucos a sociedade consumidora penetra nossa intimidade. Hoje, não é mais o automóvel da última moda que conta: é a realização do próprio projeto pessoal e o cuidado de si que tornam-se primordiais. Se os produtos e serviços incorporarem essa nova espera narcisista, paga se muito caro para adquiri-los. Se eles negligenciarem essa evolução maior, eles se desvalorizam e serão comprados a preço baixo. Aos poucos, o projeto Eu toma corpo e justifica novos mercados, inclusive o da espiritualidade. Todo empreendedor nos mercados de consumo tem uma única formula a ser aplicada: demonstrar que o que ele vende pode ser posto a serviço desse

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Acompanho a análise de ROCHEFORT, Robert, Le bon consommateur et le mauvais citoyen, Paris, Odile Jacob, 2007


projeto tirânico e obsessivo de ser bem sucedido ao longo da vida. O paradoxo é que, mais nos tornamos “consumidores do íntimo”, mais ferimos os outros componentes da nossa personalidade, igualmente consubstanciais ao nosso ser, refratários a essa invasão da “mercadização”. Acabamos denunciando a mercadização do mundo sem perceber a mercadização de nossas vidas. Na realidade, vivemos uma dupla esquizofrenia. A primeira diz respeito ao consumidor face ao trabalhador e a segunda diz respeito ao consumidor face ao cidadão. No primeiro caso, o consumidor, experto em otimização do seu poder de compra, derruba o assalariado seu vizinho, seu filho, seu amigo... ou ele mesmo! Porque querendo comprar mais barato, ele colabora com as transferências de fábricas ou os call centers. Pelo endividamento privado e público, os países ocidentais se abastecessem nos paises emergentes sem contraparte produtiva, enquanto esses paises acumulam reservas monetárias excessivas. É um desequilíbrio produtivo, inédito na História, que é preocupante. A segunda esquizofrenia significa que a deriva consumista influencia nossos relacionamentos com os políticos, porque se espera deles que eles resolvem nossos problemas pessoais; o interesse geral deve ceder lugar ao interesse pessoal que passa antes de tudo. O empenho dos meios não é suficiente: espera-se resultados. O cidadão consumidor procede com seu voto do mesmo modo que ele procede nas compras: infiel e vingativo.

CONSUMIR É VIVER CENTRADO EM SI A cidadania exige comportamentos que não são evidentes. No caso do consumo, é o contrário. Nas nossas sociedades ricas, ela se tornou uma facilidade contínua, uma evidência,uma organização natural da vida. Nada deve brecar as compras. Pelo contrário, o que é difícil é resistir a um bom negócio ou a uma compra de impulso. O ato de consumir é anônimo e pode exonerar de qualquer responsabilidade individual. Estando o ato de consumir no coração do nosso cotidiano, ele carrega todas as nossas contradições. As vezes, ele faz a síntese dos nossos impulsos que vão em todas as direções; as vezes, não consegue e nossas escolhas incertas modificadas de dia para a noite levam a falar do consumidor esquizofrênico: porque paga muito caro um produto e ao mesmo tempo se precipita em cima de um produto o mais


ordinário? Se raciocinarmos em termos não em termos de padrão social e de papel a ser mantido dentro dessa sociedade, mas em termos de busca de realização pessoal numa sociedade ecológica, tudo se torna claro. A coerência do consumidor não deve ser buscada fora dele, mas a partir do que ele busca a ser, pessoa única, sempre em devir, ao mesmo tempo frágil e obstinado. A sociedade do preço baixo não é a sociedade de um queda do desejo de comprar. Pelo contrário, é a prova do hiper-consumo: comprar mais barato para comprar mais. Sem negar que o consumo continua de fazer sonhar e que o imaginário conserva uma grande importância, esses dois fatores se verificam para certos objetos escolhidos enquanto que, para o resto, o consumidor procura o preço mais baixo, correndo o risco de não sonhar mais! Não se pode projetar-se num imaginário publicitário sempre mais sofisticado quando da compra de qualquer produto banal da vida cotidiana. Para poder continuar eletivo, o imaginário deve ser seletivo. Os produtos de marca estão ao alcance de todos: portanto cada um retira-se sobre um número limitado de produtos consumidos. A sociedade de consumo não cria necessidades: ela as transforma em mercadorias, o que é diferente. Aos poucos, o que era resolvido na esfera gratuita, interpessoal, amigável, familiar torna-se organizado, pago, permitindo a emergência de novos setores de atividade – hoje, os serviços. Evidentemente, essa mercadização deforma a necessidade porque a sofistica e nos torna dependentes. Por exemplo, o celular: “preciso falar imediatamente com o fulano!” É falta de modéstia dos executivos comerciais achar que eles criam necessidades novas: eles criam os novos produtos e serviços que os clientes não podem imaginar antes que tenham sido inventados e que aprofundam a mercadização das necessidades preexistentes. É um erro de análise dos próprios consumidores acreditar que são manipulados, que se decidiria suas necessidades no lugar deles. Eles são influenciados, são tornados

dependentes:

contudo

suas

necessidade

são

anteriores

à

mercadização. Tudo que é percebido hoje como necessidades novas, criadoras de empregos e que desenvolvem os mercados de amanhã existem há muito tempo. A novidade radical está na interpenetração das necessidades. Antes, as necessidades eram claramente compartimentadas, hierarquizadas e os


objetos eram vendidos em lojas especializadas. Os consumidores previam as diferentes partes do seu orçamento destinadas a cada uma dessas lojas. Hoje, tudo está modificado: alimentos são vendidos em farmácias, companhia de trens alugam DVD porque buscam a meta-necessidade que é a realização da pessoa em todos os aspectos. É o claro sinal da passagem de uma lógica de produção para uma lógica de consumo que dá a primazia para o consumidor. É ele que está no coração do processo. Essa interpenetração das necessidades marca uma verdadeira revolução. O resort pode entrar em concorrência com a Di Cicco porque o consumidor, no último minuto, pode resolver trocar sua vontade de viajar pela vontade de reformar sua cozinha. Tendo mudado o centro de gravidade do consumo, porque passamos de uma lógica funcional e compartimentada,

baseada

nas

necessidades

tradicionais,

para

uma

centralização quase exclusiva no desejo de cada um, a lógica hedonista se impõe definitivamente? Não é tão simples porque o consumidor oscila em permanência entre a necessidade e o desejo. O ideal é quando os dois se equilibram ou se confundem. Poderia se acreditar que a importância crescente do imaginário e do prazer levaria a uma frivolidade cada vez maior. No entanto, parece acontecer o contrário: entrando cada vez mais profundamente na sociedade de consumo, aos poucos, atinge-se o essencial da existência. Os domínios nos quais se procura um consumo novo atingem os aspectos mais íntimos da vida. É o cuidado com o corpo, mas também a serenidade do espírito, a busca pelo bemestar. É a vida que está em jogo: talvez seja porque não é tão fácil viver numa sociedade instável, inquieta e imprevisível que se procura refúgio no consumo. Ninguém pode pensar que consumir faz a pessoa feliz, enquanto as expectativas em relação ao que oferece o consumo aproximam-se cada vez mais dessa busca essencial. Ser pobre é esperar que tudo melhorará adquirindo amanhã o que falta; quando já se tem quase tudo e que se percebe que as inquietudes continuam presentes e que elas se tornaram as vezes obsessivas, o que precisa fazer? O que cria um mal-estar, é a crescente aspiração a consumir coisas essenciais, saúde, beleza (os cosméticos por exemplo) e a quase-certeza de que é vão esperar achar uma resposta a tal busca no ato de consumir. Compramos cada vez mais objetos cuja finalidade consiste em pretender ajudar-nos a construir nossas vidas enquanto essa


acumulação é vã e que, apesar das embalagens bonitas e do design adaptado, esses objetos inanimados estão sem alma. Acumulamos hoje para jogar fora amanhã. Olhando para todas essas tendências que fazem o consumidor de hoje, percebe-se que a preocupação cidadã não é a primeira. Pelo contrário, as preocupações éticas, principalmente para os internautas, não entram como primeira preocupação. A imaterialidade da transação, embora desperte uma forma de confiança que parecia esquecida, quase condenada, suprime o contato humano direto e portanto, contribui para a desumanização da troca, o que amplifica o pragmatismo e um certo oportunismo. Enquanto apareçam tendências de consumo responsável, com internet, não existe a mínima visibilidade sobre as condições de trabalho daqueles que atuam na logística, inclusive porque nem sabemos onde isso acontece. Assim também no caso da busca do preço o mais baixo: busca-se as vantagens para consumir sempre mais sem avaliar as conseqüências nefastas que isso pode ter para o interesse coletivo e social. O consumidor não é incoerente: está cada vez mais auto-centrado e age somente em função dos próprios interesses. Todavia, os mecanismos que ele desenvolve dia após dia, as exigências que ele coloca e as arbitragens que ele faz não deixam lugar para a cidadania. Assim o bom consumidor pode facilmente ser um mau cidadão.


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