SOROS
A CRISE DO CAPITALISMO
FICHA DE LIVRO AUTOR : SOROS, George TÍTULO : A crise do capitalismo, as ameaças aos valores democráticos, as soluções para o capitalismo global EDITOR : Rio de Janeiro, Editora Campus ANO : 1998 NÚMERO DE PÁGINAS : 315 ÁREA DE INTERESSE : Economia, Epistemologia GEORGE SOROS, O SÁBIO: A FALIBILIDADE DO CONHECIMENTO George Soros, no livro A crise do capitalismo, apresenta uma abordagem mais complexa e sofisticada do papel do conhecimento na prática de uma sociedade capitalista1. Está muito mais interessado em analisar as incertezas do momento atual do que em desenhar a sociedade do futuro: afinal estamos ainda numa sociedade capitalista, por sinal cada vez mais competitiva! Segundo ele, é a falibilidade do conhecimento que proporciona a maior faculdade de conseguir resultados financeiros num mundo de alto risco como é o mercado financeiro internacional hoje. Daí a importância da reflexão epistemológica sobre o que ele chama de fundamentalismo de mercado. Segundo ele: "O argumento central deste livro é que o fundamentalismo de mercado representa hoje uma ameaça maior para a sociedade aberta do que qualquer ideologia totalitária.(...) O fundamentalismo de mercado coloca em risco a sociedade aberta, inadvertidamente, ao interpretar de forma errônea o funcionamento dos mercados e ao artribuir-lhes uma importância indevida."2 Na crítica que vai fazer ao sistema capitalista, principalmente à instabilidade dos mercados financeiros, Soros vai introduzir o conceito de reflexividade: "Os seres humanos reagem às forças econômicas, sociais e políticas do ambiente, mas, ao contrário das partículas inanimadas das ciências físicas, os humanos têm percepções e atitudes que, ao mesmo tempo, transformam essas forças que atuam sobre eles. Essa atuação reflexiva
de dois sentidos entre as expectativas dos participantes e as ocorrências efetivas é essencial para a compreensão de todos os fenômenos econômicos, políticos e sociais. Esse conceito de reflexividade situa-se no âmago da argumentação apresentada neste livro."3 Mostrando que a reflexividade está ausente das ciências naturais dado que a afirmação, para ser verdadeira deve corresponder aos fatos, Soros continua mostrando que no caso dos 1 SOROS, George, A crise do capitalismo, as ameaças aos valores democráticos, as soluções para o capitalismo global, Rio de Janeiro, Editora Campus, 1998 2 Ibid. p. 24-25 3 Ibid. p. 26 participantes do mercado, é necessário formar juízos sobre o futuro e as inclinações que os operadores trazem consigo influenciam os resultados que, por sua vez, reforçam ou enfraquecem as inclinações iniciais dos participantes do mercado. Portanto, segundo ele, em vez de conhecimento, os participantes do mercado começam com vieses4. Começando sua reflexão sobre a crise do capitalismo global, o próprio Soros constata: "Por mais estranho que pareça para alguém que construiu sua reputação e sua fortuna no mundo muito prático dos negócios, meu êxito financeiro e minhas perspectivas políticas se baseiam, principalmente, em algumas idéias filosóficas abstratas. (...) Especificamente, é preciso explicar com detalhes os três conceitos básicos em que se fundamentam todas as minhas outras idéias e a maioria das minhas ações nos negócios e na filantropia. Esses conceitos são falibilidade, reflexividade e sociedade aberta.5" No presente trabalho, prestaremos mais atenção aos conceitos de falibilidade e de reflexividade. falibilidade O conceito de falibilidade significa, para ele, que nossa compreensão do mundo em que vivemos é intrinsecamente imperfeita. A recusa em reconhecer o hiato entre a realidade e o pensamento tem exercido um impacto historicamente muito perigoso. É preciso, porém,
reconhecer ao pensamento um duplo papel de reflexão passiva da realidade e de ingrediente ativo na formação dos acontecimentos. É preciso reconhecer que eventos sociais envolvem participantes pensantes; o pensamento é parte da realidade e orienta as ações que exercem um impacto sobre os acontecimentos. Assim, os fatos não ocorrem independentemente do pensamento dos participantes: refletem o impacto das decisões dos participantes que, portanto, não podem baseá-las no conhecimento pela simples razão de que esse conhecimento não existe na hora da decisão. Evidentemente, as pessoas não estão desprovidas de todo o conhecimento: contam com a ciência e a experiência acumulada, o que não é suficiente para o processo decisório. Existe um elemento de indeterminação que é próprio dos eventos sociais6. Mais adiante, Soros explicita sua própria teoria da falibilidade: "Entendo que todos os constructos da mente humana, independentemente de estarem confinados nos desvãos mais íntimos do pensamento ou aflorarem ao mundo exterior sob a forma de disciplinas, ideologias ou instituições, são deficientes de um modo ou de outro. A falha às vezes se apresenta sob o aspecto de inconsistências internas ou de inconsistências com o mundo exterior ou ainda de inconsistências com os propósitos a que se destinavam nossas idéias. (...) Não estou falando de uma simples falta de correspondência, mas de uma falha efetiva em todos os constructos humanos e de uma divergência efetiva entre resultados e expectativas.7" Esta teoria da falibilidade pode parecer muito negativa porque, segundo Soros, acalentamos falsas esperanças, ansiamos pela perfeição e pela imortalidade. Por outro lado, a vida nos dá condições de melhorar nossa compreensão e de aprimorar o mundo, exatamente por ser imperfeita. A perfeição é inalcançável mas o que é imperfeito é suscetível de infinitos aprimoramentos. Soros considera esta teoria não como uma hipótese científica mas como hipótese de trabalho porque funcionou bem nas suas atividades financeiras e no seu envolvimento com filantropia e assuntos internacionais. Ficou por ela estimulado a procurar as
falhas em todas as situações e beneficiar-se com elas. Embora reconhecesse no nível subjetivo distorções na sua visão, isto nunca o demoveu de ter uma visão. Ao contrário, sempre procurava situações em que sua interpretação se afastava da sabedoria convencional porque a descoberta do erro significava a oportunidade de auferir quaisquer lucros que tivessem decorrido de um insight inicialmente falho. 4 Ibid. p. 27 5 Ibid. p. 37 6 Ibid. p. 38-40 7 Ibid. p. 56 "Em contraste com a ciência, uma hipótese financeira não tem que ser verdadeira para ser lucrativa; basta que venha a desfrutar da aceitação geral8." Daí que todos os constructos humanos são falhos apenas se considerarmos que as teorias ou políticas tenham validade intemporal, como as leis da ciência. As teorias e políticas, às vezes, têm validade temporária. Soros chama elas de "falácias férteis"9 com efeitos iniciais benéficos, cuja duração depende do reconhecimento e da correção das falhas. Todavia, é improvável que qualquer falácia fértil dure para sempre. E Soros de acrescentar: "O que vou afirmar talvez seja uma falácia fértil, mas tenho a propensão de interpretar a história das idéias como um composto de falácias férteis. Outros talvez as chamem de paradigmas.10" Soros conclui com um testemunho pessoal: como administrador de fundos, depende em grande escala das suas emoções. Daí sua consciência das inadequações do conhecimento porque os sentimentos predominantes para operar eram a dúvida, a incerteza e o medo. Contudo, experimentava a verdadeira felicidade quando descobria que tinha algo com que preocupar-se: "Para mim, tinha tanto sentido o fato da descoberta de um erro no meu pensamento ou na minha posição ser uma fonte de alegria e não de tristeza, que imaginei que também era assim com as outras pessoas. Mas não é o caso. (...) Na verdade, as concepções errôneas e as más ações se
transformam em parte integrante da personalidade.11" reflexividade TEORIA DA REFLEXIVIDADE Este conceito exprime o fato que o pensamento influencia ativamente os eventos que participamos e que são o objeto do nosso pensamento. "Aqui há uma ligação de dois sentidos. De um lado, os participantes buscam compreender a situação de que estão participando. Procuram formar um quadro que corresponde à realidade. A essa atividade, dou o nome de função cognitiva ou passiva. De outro lado, querem exercer algum impacto, moldar a realidade de acordo com seus desejos. Chamo a isso de função participativa ou ativa. Quando ambas as funções atuam ao mesmo tempo, denomino a situação de reflexiva. Utilizo o termo na mesma acepção dos franceses ao se referirem ao verbo como reflexivo, quando o sujeito também é objeto: Je me lave (lavo-me). Quando ambas as funções estão em atividade simultaneamente, é possível a ocorrência de interferências mútuas. Por meio da função participativa, as pessoas influenciam a situação que deveria servir como variável independente para a função cognitiva. Assim, a compreensão dos participantes não se qualifica como conhecimento objetivo. E como as decisões não se baseiam em conhecimento objetivo, o resultado está sujeito a divergências em relação às expectativas.12" Os pensamentos presentes são capazes de influenciar os fatos futuros mas os fatos futuros não podem influenciar os fatos presentes porque se converterão numa experiência que pode alterar o pensamento dos participantes apenas numa data futura. Existe porém o papel das nossas expectativas sobre os fatos futuros que não esperam a própria ocorrência dos mesmos; são suscetíveis de mudanças a qualquer momento, alterando os resultados. O autor cita o mercado financeiro como exemplo na medida em que a essência dos investimentos consiste em antecipar ou "descontar" o futuro. Contudo, o preço que os investidores estão
dispostos a pagar pode influenciar a sorte da empresa: assim, as alterações nas expectativas do presente afetam o futuro descontado. Assim é a reflexividade que caracteriza um processo verdadeiramente histórico. Um evento histórico não se limita a mudar o mundo; transforma também nossa compreensão do mundo, o que exerce um efeito novo e imprevisível sobre o 8 Ibid. p. 59 9 Ibid. p. 60 10 Ibid. 11 Ibid. p. 61-62 12 Ibid. p. 41 próprio funcionamento do mundo. O efeito da reflexividade é muito mais difuso na percepção dos participantes do que seu impacto sobre o mundo externo. É em situações especiais que acontece esta interação reflexiva entre a visão dos participantes e o mundo exterior. INDETERMINAÇÃO Se as pessoas fossem dotadas do conhecimento perfeito, poderia-se ignorar a interação entre o pensamento e o mundo exterior: as visões refletiriam com perfeição o estado do mundo e o resultado das ações corresponderia perfeitamente às expectativas. A asserção de que as situações que envolvem participantes pensantes contêm um elemento de indeterminação encontra um forte apoio na observação cotidiana, conclusão não amplamente aceita em economia e ciências sociais. A idéia de indeterminação tem sido refutada pelos cientistas sociais que reafirmam sua capacidade de explicar os acontecimentos pelo método científico. A indeterminação, a falta de previsões firmes e de explicações satisfatórias representa uma ameaça para uma ciência. A reflexividade é um novo rótulo para a interação em dois sentidos entre o pensamento e a realidade que é percebida pelo senso comum: Alfred Schultz, segundo Soros, desenvolveu um conceito semelhante que chama de intersubjetividade13. REFLEXIVIDADE NA HISTÓRIA DAS IDÉIAS Depois de ter feito referência a Russel , Wittgenstein, Einstein e Heisenberg, Soros confessa sua dívida intelectual com Karl Popper. Compara seu conceito de reflexividade com a idéia de
auto-referência que atribui a Popper: "Os dois conceitos apresentam um a estreita relação, mas não devem ser confundidos. A autoreferência é uma propriedade das proposições; pertence inteiramente ao campo do pensamento. A reflexividade estabelece uma conexão entre pensamento e realidade e diz respeito a ambos os campos.14" Para ele, "o ponto comum entre reflexividade e auto-referência é o elemento de indeterminação.(...) Longe de ser desprovidas de sentido, sustento que as proposições cujo valor de verdade é indeterminado são ainda mais significativas do que aquelas cujo valor de verdade é conhecido. Essa última categoria de proposições constitui o conhecimento: ajudam-nos a compreender o mundo como tal. Mas as proposições do tipo anterior, expressões da nossa compreensão intrinsecamente imperfeita, ajudam-nos a moldar o mundo em que vivemos.15" Portanto, para Soros, a reflexividade leva a um novo conceito de verdade. UM CONCEITO REFLEXIVO DE VERDADE O positivismo lógico classificou as proposições em verdadeiras, falsas e sem sentido. Este esquema não é suficiente para a compreensão de um mundo de agentes pensantes que precisam de mais uma categoria: as proposições reflexivas cujo valor de verdade depende de seu impacto. As proposições reflexivas são indispensáveis pois não somos capazes de evitar as decisões que influenciam o nosso destino e é impossível tomar decisões sem confiar em idéias e teorias que talvez influenciem seu objeto. Todas as proposições de valor são reflexivas por natureza. O ponto crucial é que nas situações reflexivas os fatos não fornecem necessariamente um critério independente de verdade. 13 Ibid. p. 45-46 14 Ibid. p. 48 15 Ibid. p. 48 o grifo é do autor.