Taylor - O Mal estar da Modernidade

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TAYLOR

O MAL ESTAR DA MODERNIDADE


O MAL ESTAR DA MODERNIDADE Quais seriam o “Mal Estar” da modernidade? Entende-se por isso o conjunto de traços característicos da cultura e da sociedade contemporâneas que as pessoas percebem como um recuo ou uma decadência apesar do “progresso” de nossa civilização1. Existe hoje uma certa convergência em relação ao tema da decadência. São variações a partir de alguns temas fundamentais.

INDIVIDUALISMO A

primeira

causa

do

mal

estar

é

o

individualismo

que,

aparentemente, parece ser a mais bonita conquista da modernidade. Vivemos num mundo em que as pessoas podem escolher seu modo de vida, agir em conformidade com suas convicções e dominar sua existência de vários modos, totalmente desconhecidos pelos nossos ancestrais. Um sistema judiciário protege esses direitos. Poucas pessoas renunciariam a essas conquistas: alguns acham que o processo não está totalmente acabado; outros permanecem perplexos porque conquistamos nossa liberdade moderna, afastando-nos dos nossos antigos horizontes morais. Nossos ancestrais acreditavam pertencer a uma ordem que os ultrapassava. A liberdade moderna acabou por desacreditar essa ordem. Ao mesmo tempo que essa ordem limitava, ela dava sentido ao mundo e à vida social. As coisas ao nosso redor não representavam simplesmente matérias primas ou instrumentos para a realização de nossos projetos: seu lugar na cadeia dos seres conferia para elas um sentido. Por isso se falou em “desencantamento do mundo” a propósito do descrédito que atingiu as hierarquias. Quais conseqüências para a vida humana e seu sentido? Alguns dizem que o individuo perdeu algo essencial. Segundo Nietzsche, os „” últimos homens” estariam na ultima fase do declínio, somente aspirando a um mesquinho conforto. Na realidade a face sombria do individualismo está num estreitamento da vida, que empobrece seu sentido e nos afasta do cuidado dos outros e da sociedade. O sentimento que a vida foi estreitada e nivelada por

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TAYLOR, Charles, Le malaise de la modernité, Paris, Les Éditions du Cerf, 2002


um cuidado desmedido em relação a si mesmo, reapareceu em formas especificas para a cultura contemporânea. O relativismo – “não se deve contestar os valores do outro” – era uma forma de individualismo cujo principio pode ser definido como segue: cada um tem o direito de organizar sua vida em função do que ele julga verdadeiramente importante e válido. É preciso ser sincero em relação a si mesmo e buscar em si mesmo a própria realização. É a ideologia da autorealização. Essa ideologia implica centrar-se em si mesmo e uma exclusão, uma inconsciência em relação aos grandes problemas ou preocupações que transcendem o eu, sejam eles religiosos, políticos ou históricos, o que implica um estreitamento e um nivelamento da vida. Isso, porém, pode ser visto como o desbotamento de um ideal moral poderoso que permanece escondido atrás dessa banalização: seria o busca da veracidade e da autenticidade. O que seria ideal moral? A imagem do que poderia ser uma existência melhor ou mais elevada, sendo isso definido não pelos nossos desejos ou nossas necessidades, mas pelo ideal para o qual devemos aspirar. Como a ideologia da autenticidade assume a forma de um relativismo sem consistência, torna-se quase impossível de defender com força qualquer ideal moral. O ideal afunda no nível de um axioma que ninguém contesta mas que nunca é formulado de um modo explícito. Assim, ele acaba sustentando um certo liberalismo, o liberalismo da neutralidade que não se posiciona sobre as questões que dizem respeito à natureza de uma vida boa. Isso é ajudado pelo subjetivismo moral de nossa cultura e pela voga das explicações dadas pelas ciências sociais. A principal força do subjetivismo no nosso universo filosófico e o poder do liberalismo neutro aumentam o sentimento de que não se pode mais falar dos problemas e das motivações que fazem as pessoas agir considerando os vínculos com qualquer ideal moral. As ciências sociais parecem dizer que para entender os fenômenos da cultura contemporânea da autenticidade, não se deveria considerar ideais morais mas sim como frutos de uma transformação recente nos modos de produção, ou em função dos novos modelos de consumo. Ora esse ideal moral da autenticidade, embora desgastado, permanece extremamente válido e é preciso reencontrar a fonte de sua validade.


as fontes da autenticidade A ética da autenticidade, relativamente recente, pertence à cultura moderna2. Ela procede do romantismo que condena o racionalismo livre e a atomização porque ele rompem os vínculos da comunidade. Para descrever sua evolução, precisamos encontrar sua origem na idéia do século XVIII segundo a qual os seres humanos são dotados de um senso moral, de uma intuição do que é um bem e do que é um mal. Essa doutrina visava, no inicio, a combater a tese rival segundo a qual o conhecimento do bem e do mal expressava um calculo dos efeitos, em particular das recompensas e dos castigos divinos. Assim o conhecimento do bem e do mal não procediam de um cálculo frio mas ancoravam-se nos nossos sentimentos. Significava dizer que a moral procede, num certo sentido, de uma voz interior. O

conceito

de

autenticidade

desenvolveu-se

a

partir

do

deslocamento do acento moral dentro dessa teoria. Na origem, a voz interior era julgada importante porque achava-se que ela prescrevia o bem e era importante estar em contato com nossos sentimentos morais para agir corretamente. O deslocamento do acento moral se dá quando o contato com os próprios sentimentos morais toma um significado moral autônomo e passa a definir o que devemos alcançar para ser verdadeiros e se realizar plenamente. A novidade dessa idéia aparece mais forte quando confrontada com as antigas morais em que o contato com uma fonte externa era considerado essencial. Essa é a virada subjetiva global da cultura moderna: uma forma nova de interioridade nos leva a conceber a nos mesmos como seres dotados de profundezas íntimas. Rousseau exercitou uma profunda influência porque deu um nome a esse contato íntimo consigo mesmo: “o sentimento da existência” 3. Rousseau formulou uma outra idéia próxima: a de liberdade autodeterminada: sou livre porque decido por mi mesmo o que me diz respeito em vez de me deixar modelar por influências exteriores. Isso exige que eu me desprenda de qualquer obrigação exterior e que eu decida tudo sozinho. Essa teoria não é essencial ao ideal da autenticidade: são ideais distintos mas se desenvolveram em paralelo, foram confundidos e levaram a deviações do ideal 2

Ibid. cap. 3 ROUSSEAU, Jean-Jacques, Les rêveries du promeneur solitaire, promenade V, Oeuvres completes, Paris, Gallimard, “Bibliothèque de la Plêiade”, tI, 1959, p. 1047 3


de autenticidade. Essa liberdade autodeterminada teve um papel fundamental na nossa vida política. Rousseau lhe deu uma forma política no conceito de contrato social fundado na vontade comum que, precisamente, porque expressa nossa liberdade comum, não sofre oposição alguma em nome da liberdade: é uma das origens intelectuais do totalitarismo moderno. Voltando ao ideal da autenticidade, Herder formula a idéia de que cada um de nos tem um modo particular de ser humano. Devo viver a vida desse jeito e não imitar a vida dos outros. Isso confere uma importância nova para a sinceridade que deve ter em relação a mi mesmo. Se eu não for sincero, fracasso em realizar o que representa para mim o fato de ser humano. Tal é o ideal moral tão poderoso que herdamos. Concede uma importância capital a um tipo de relação consigo mesmo, com nossa natureza intima que arrisco perder, em parte por causa das pressões do conformismo, em parte também por causa do fato de que, adotando um ponto de vista instrumental em relação a mi mesmo, perdi a capacidade de ouvir essa voz interior. Depois, aumenta a importância dessa relação consigo mesmo introduzindo o principio de originalidade: cada uma das nossas vozes pessoais tem algo diferente a dizer. Portanto, não posso encontrar um modelo de vida fora de mim: somente dentro de mim. Ser sincero comigo mesmo significa ser fiel à minha própria originalidade e realizar uma potencialidade que é propriamente minha. Esse é o fundamento do ideal moderno da autenticidade.

indispensáveis horizontes Podemos opor algo que seja fundamentado em razão aos que vivem nesse relativismo suave ou que parecem não aceitar nenhuma regra a não ser a da sua própria realização, por exemplo a própria carreira 4? Como raciocinamos? Raciocinar em questões morais, é sempre raciocinar com alguém. Tem se um interlocutor e se começa lá onde ele se encontra ou a partir da diferença que se aprofunda: não se raciocina a partir de nada como se falássemos a alguém que não reconheceria uma mínima exigência moral. Se discutirmos com os que pertencem à cultura contemporânea da autenticidade, significa que eles tentam modelar sua vida sobre esse ideal. Se

4

TAYLOR, Ibid. cap. 4


partirmos desse ideal, podemos perguntar: quais condições podem ajudar a realizar na vida humana tal ideal? O que ele exige se for corretamente entendido? O caráter geral da existência humana é seu caráter dialógico fundamental. Tornamo-nos agentes humanos integralmente, capazes de nos entender, e portanto de definir uma identidade graças a aquisição das grandes linguagens humanas de expressão. Somos iniciados a essas linguagens trocando com os outros. Ninguém adquire sozinho as linguagens necessárias à própria definição. Nesse sentido, a formação do espírito humano não se faz no monólogo, quer dizer de modo independente, mas no encontro com o outro. Não é simplesmente uma questão de formação que poderia ser negligenciada depois. Não é verdade que aprendemos as línguas pelo dialogo e que, depois, podemos utilizá-las para nosso único uso. Nos definimos sempre num diálogo, as vezes por oposição, com as identidades que “os outros que contam” querem reconhecer em nós. Essa conversa continua enquanto vivemos. O que se entende por identidade? O que define quem somos e de onde vimos. Nesse sentido, ela constitui o pano de fundo a partir do qual nossos gostos e nossos desejos, nossas opiniões e nossas aspirações adquirem seu significado. Se algumas das coisas para as quais eu dou maior valor só são acessíveis em relação com a pessoa que amo, essa pessoa tornase um elemento da minha identidade interior. A criação e o desenvolvimento de nossa identidade, na ausência de um esforço heróico para cortar-nos da existência comum, permanecem dialógicas no decorrer de toda nossa vida. Definir-me significa buscar o que é significativo na minha diferença com os outros. Posso ser a única pessoa a ter o mesmo tamanho precisamente do que uma árvore da Sibéria: o que isso significa? Em compensação, se eu me definir por minhas aptidões a formular verdades importantes, a tocar piano em virtuose ou a faze reviver as tradições dos meus ancestrais, eu me situo nas definições de si que fazem sentido. As coisas adquirem importância quando situadas num pano de fundo de inteligibilidade, num horizonte. Disso segue que devemos evitar, se quisermos definir nos de modo significativo, suprimir ou recusar os horizontes em relação aos quais essas coisas tomam um significado para nós. É esse tipo de gesto auto-destruidor que é muito praticado hoje. Mesmo o sentimento que o sentido de minha vida repousa na escolha pessoal que

fiz

depende

de

minha

tomada

de

consciência

que

existe,


independentemente de minha vontade, algo de nobre e corajoso, portanto de significativo, no fato de dar forma à minha própria vida. O ideal da livre escolha só faz sentido quando alguns critérios valem mais do que outros. Não sou eu quem determina quais questões contam. Esse ideal supõe que existem outros critérios de sentido além do simples fato de escolher. Esse ideal não vale por si só: ele exige um horizonte de critérios importantes que ajudem a definir em qual medida a autodeterminação é significante. O agente que busca o sentido da própria vida, que tenta definir-se de modo significativo, deve situar-se em relação a um horizonte de questões essenciais. É o que é auto-destruidor nas formas de cultura contemporânea que se fecham na auto-realização opondo-se às exigências da sociedade ou da natureza e tornando as costas à história e às exigências da solidariedade. A autenticidade não se opõe às exigências que transcendem o eu: ela as chama.

PRIMAZIA DA RAZÃO INSTRUMENTAL Por “razão instrumental”, entende-se a racionalidade que se usa quando se avalia os meios os mais simples para chegar a um fim determinado. A eficácia máxima e a maior produtividade medem seu sucesso. O desabamento das ordens antigas, sem dúvida, alargou o império da razão instrumental. Quando uma sociedade não tem mais estrutura sagrada, que os modos de ação não repousam mais sobre a ordem das coisas ou a vontade de Deus, ela vira uma selva! Tudo pode ser repensado em função da busca da felicidade e do bem estar dos indivíduos. A razão instrumental determina o padrão que prevalece daqui para frente. Paralelamente, uma vez que as criaturas que nos circundam perderam o significado dado pelo seu lugar na cadeia dos seres, elas se degradam em matérias primas ou em meios sujeitos aos nossos fins. Num certo sentido, essa transformação nos libertou. Contudo, ela suscitou também essa inquietude muito presente de que a razão instrumental não somente alargou seu campo próprio, mas que ela ameaça de tomar inteiramente posse das nossas vidas. Tememos que as decisões que deveriam ser submetidas a outros critérios somente sejam tomadas em termos de eficácia ou de relação custo beneficio, que os fins autônomos que deviam iluminar nossas vidas sejam eclipsados pelo desejo de aumentar ao máximo a


produtividade. Muitos exemplos desse mal-estar: utilização das exigências do crescimento econômico para justificar a repartição muito desigual dos bens e da renda, ou o modo pelo qual essas exigências nos tornam insensíveis às necessidades do meio-ambiente, o que pode nos levar a um desastre. Pode se também pensar como a nossa planificação social, em campos tão críticos como a avaliação de riscos, está submetida a cálculos grotescos entre custos e benefícios, o que atribui um valor monetário à vida humana. A primazia da razão instrumental manifesta-se também no prestígio que aureola a tecnologia e nos faz buscar soluções tecnológicas a problemas que não têm nada a ver com tecnologia. E o domínio da tecnologia contribui para o estreitamento de nossas vidas. Hannah Arendt sublinhou o caráter cada vez mais efêmero dos objetos de uso corrente: “A realidade e a confiabilidade do mundo humano repousam basicamente no fato de que estamos rodeados de coisas mais permanentes que a atividade pela qual foram produzidas, e potencialmente ainda mais permanentes que a vida de seus autores. A vida humana, na medida em que é a criadora do mundo, está empenhada em constante processo de reificação; e o grau de mundanidade das coisas produzidas, cuja soma total constitui o artifício humano, depende de sua maior ou menor permanência neste mundo.”5 Essa permanência está ameaçada no mundo das comodidades modernas. A essa ameaça deve-se acrescentar a suspeita de que essa situação depende também de nós e que ela não é simplesmente uma fatalidade de nossa época que sofreríamos inconscientemente. Seria possível resistir, embora seja difícil combatê-la. É claro que os mecanismos poderosos da vida social nos empurram nessa direção. Na realidade, nossa margem de liberdade não é nula: importa refletir sobre o que deveriam ser nossos fins e perguntar a nós mesmos se a razão instrumental não deveria ter um papel menor na nossa vida. Essa mudança deveria acontecer também nas instituições, mesmo que as mudanças não possam ser tão radicais quanto os revolucionários gostariam!

5

ARENDT, Hannah, A condição humana, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1991, p. 106


CONSEQÜÊNCIAS POLÍTICAS DO INDIVIDUALISMO E DA RAZÃO INSTRUMENTAL As instituições e as estruturas da sociedade tecnico-industrial restringem consideravelmente nossas escolhas: forçam as sociedades tanto quanto os indivíduos a dar para a razão instrumental um peso que nunca concederíamos num debate moral sério e que poderia se revelar extremamente destruidor. Pode se pensar que uma sociedade fundada unicamente na razão instrumental ameaça as liberdades, tanto individuais quanto coletivas, porque essa não modela simplesmente nossas decisões sociais. É difícil manter um estilo de vida individual contra corrente. Por outro lado, numa sociedade formada por indivíduos fechados na solidão do próprio coração, poucas pessoas desejarão participara ativamente

da

vida

política.

Preferirão

permanecer em casa para usufruir das satisfações da vida privada enquanto o governo do momento assegurará os meios de prover essas satisfações e os distribuirá generosamente. É o que Tocqueville chamava de “despotismo suave”. Não se trata de uma tirania fundada como antigamente sobre o terror e a opressão. O governo continuará meigo e paternalista! Manterá mesmo as formas da democracia, organizando regularmente eleições. Na realidade, porém, tudo será regido por um “poder tutelar” sobre o qual as pessoas não terão muito controle6. Segundo Tocqueville, a única defesa contra esse poder consiste numa cultura política forte que valoriza a participação, tanto nos diferentes níveis de governo quanto nas associações livres. Mas a atomização dos indivíduos fechados em si mesmo milita contra essa atitude. Quando a participação enfraquece, o indivíduo-cidadão encontra-se sozinho frente ao grande Estado burocrático diante do qual ele se sente impotente. O cidadão encontra-se mais desprovido e o circulo vicioso do despotismo suave se fecha. Se tal for o caso, arriscamos perder o controle político do nosso destino que Tocqueville chamava de “liberdade política”. Os mecanismos impessoais citados antes podem restringir nossa margem de liberdade como sociedade, e a perda da liberdade política significaria que nem poderíamos mais fazer as

6

As citações de Tocqueville, usadas por Taylor, são tiradas de TOCQUEVILLE, Aléxis de, De la démocratie en Amérique, Paris, Garnier-Flammarion, 1981, p.385


escolhas que sobram para nós como cidadãos e que um poder tutelar irresponsável escolheria no nosso lugar. Tais são os três componentes do Mal-Estar da Modernidade: o primeiro diz respeito a uma perda do sentido: o desaparecimentos dos horizontes morais. O segundo diz respeito ao eclipse dos fins, frente a uma razão instrumental frenética. O terceiro diz respeito à perda da liberdade.

NOVA VERSÃO COM CITAÇÕES: O MAL ESTAR DA MODERNIDADE Segundo Taylor, entende-se por essa expressão o conjunto de alicerces

característicos da

cultura

e da

sociedade contemporâneas,

percebidos como um recuo ou uma decadência apesar do “progresso” de nossa civilização. Esses alicerces são o individualismo, a primazia da razão instrumental, com as conseqüências políticas que decorrem: vamos a eles.

INDIVIDUALISMO Assim, Taylor descreve o individualismo, “A primeira causa do mal estar é o individualismo. Evidentemente, o individualismo designa também o que muitos consideram a mais bela conquista da modernidade. Vivemos num mundo onde as pessoas podem escolher seu modo de vida, agir em conformidade com suas convicções, em suma, dominar sua existência de vários modos, totalmente desconhecidos pelos nossos ancestrais. Hoje, um sistema judiciário protege esses direitos. Em princípio, as pessoas não são mais sacrificadas no altar de valores pretensamente sagrados que os transcendem Poucas pessoas renunciariam a essas conquistas: alguns acham que o processo não está totalmente acabado (...); outros permanecem perplexos. Conquistamos nossa liberdade moderna, afastando-nos dos nossos antigos horizontes morais.”7 Nessa descrição do individualismo, encontramos, embora expressa de um modo menos polêmico e mais sereno, a mesma ambigüidade já expressa

por

Dany-Robert

Dufour

em

relação

aos

processos

de

individualização e de individuação8. Taylor coloca na origem do individualismo

7 8

Ibid p. 10. Tradução nossa. Cf. capítulo anterior desse trabalho.


o relativismo. Segundo ele, o relativismo – “não se deve contestar os valores do outro” – é uma forma de individualismo cujo principio pode ser definido como segue: cada um tem o direito de organizar sua vida em função do que ele julga verdadeiramente importante e válido. É preciso ser sincero em relação a si mesmo e buscar em si mesmo a própria realização. É a ideologia da autorealização. Essa ideologia implica centrar-se em si mesmo e excluir, com uma certa inconsciência, os grandes problemas ou preocupações que transcendem o “eu”, sejam eles religiosos, políticos ou históricos. Isso se parece com um egoísmo absoluto! Talvez, segundo muitos autores! Segundo Taylor, “Eles podem não reconhecer o ideal moral poderoso que esteja atuando aqui, por mais degradada e travestida que seja sua expressão. O ideal moral, que se revela por trás da busca da realização se si, é da veracidade em relação a si mesmo, na aceitação moderna desse termo.(...) O que se deve entender por ideal moral? Entende-se por ideal moral a imagem do que poderia ser uma existência melhor ou mais elevada, e não definida unicamente pelos nossos desejos ou nossas necessidades, mas em relação a um ideal pelo qual devemos aspirar.”9 Quando esse ideal moral vira uma ideologia da autenticidade e assume a forma de um relativismo sem consistência, o ideal afunda no nível de um axioma que ninguém contesta mas que nunca é formulado de um modo explícito. Assim, ele acaba sustentando um certo liberalismo, o liberalismo da neutralidade que não se posiciona sobre as questões que dizem respeito à natureza de uma vida boa. Isso é ajudado pelo subjetivismo moral de nossa cultura e pelo sucesso das explicações dadas pelas ciências sociais. A principal força do subjetivismo no nosso universo filosófico e o poder do liberalismo neutro aumentam o sentimento de que não se pode mais falar dos problemas e das motivações que fazem as pessoas agir considerando os vínculos com qualquer ideal moral. As ciências sociais parecem dizer que os fenômenos da cultura contemporânea da autenticidade não dizem respeito a ideais morais porque são frutos de uma transformação recente nos modos de produção e/ou de novos modelos de consumo. Ora esse ideal moral da autenticidade, embora desgastado, permanece extremamente válido e Taylor nos ajuda a reencontrar as fontes de sua validade10. A ética da autenticidade, relativamente recente, procede do 9

TAYLOR, ibid. p. 23-24. Tradução nossa. Ibid. cap. 3

10


romantismo que condena o racionalismo livre e a atomização porque eles rompem os vínculos da comunidade. Sua origem está na idéia do século XVIII segundo a qual os seres humanos são dotados de um senso moral, de uma intuição do que é um bem e do que é um mal. Essa doutrina visava a combater a tese rival segundo a qual o conhecimento do bem e do mal expressava um calculo dos efeitos, em particular das recompensas e dos castigos divinos. Assim o conhecimento do bem e do mal não procediam de um cálculo frio mas ancoravam-se nos nossos sentimentos. Significava dizer que a moral procede, num certo sentido, de uma voz interior. A novidade dessa idéia aparece quando confrontada com as antigas morais em que o contato com uma fonte externa era considerado essencial. Rousseau exercitou uma profunda influência porque deu um nome a esse contato íntimo consigo mesmo: “o sentimento da existência”11. Herder acrescenta a idéia de que cada um de nos tem um modo particular de ser humano: devo viver a vida desse jeito e não imitar a vida dos outros. Isso confere uma importância nova para a sinceridade que deve ter em relação a mi mesmo. Se eu não for sincero, fracasso em realizar o que representa para mim o fato de ser humano. “Tal é o ideal moral tão poderoso que herdamos. Concede uma importância capital ao contato íntimo consigo mesmo que pode ser perdido em parte por causa das pressões do conformismo, em parte também por causa do fato de que, adotando um ponto de vista instrumental em relação a mi mesmo, talvez eu tenha perdido a capacidade de ouvir essa voz interior.(...) Ser sincero comigo mesmo significa ser fiel à minha própria originalidade e realizar uma potencialidade que é propriamente minha. Esse é o fundamento do ideal moderno da autenticidade.”12

PRIMAZIA DA RAZÃO INSTRUMENTAL Por “razão instrumental”, entende-se a capacidade de avaliar os meios os mais simples para chegar a um fim determinado. A eficácia máxima e a maior produtividade medem seu sucesso. O desabamento das ordens antigas, sem dúvida, alargou o império da razão instrumental. Quando uma sociedade não tem mais estrutura sagrada, que os modos de ação não repousam mais sobre a ordem das coisas ou a vontade de Deus, ela vira uma selva! 11

ROUSSEAU, Jean-Jacques, Les rêveries du promeneur solitaire, promenade V, Oeuvres completes, Paris, Gallimard, “Bibliothèque de la Plêiade”, tI, 1959, p. 1047 12 TAYLOR, ibid. p. 37. Tradução nossa.


“Tudo pode ser repensado em função da busca da felicidade e do bem estar dos indivíduos. A razão instrumental determina o padrão que prevalece daqui para frente. Paralelamente, uma vez que as criaturas que nos circundam perdem o significado dado pelo seu lugar na cadeia dos seres, elas se degradam em matérias primas ou em meios submissos aos nossos fins.”13 Num certo sentido, essa transformação nos libertou. Contudo, ela suscitou a inquietude de que a razão instrumental possa tomar inteiramente posse das nossas vidas. Tememos que as decisões que deveriam ser submetidas a outros critérios acabem sendo tomadas unicamente em termos de eficácia ou de relação custo beneficio, e que os fins autônomos que deviam iluminar nossas vidas sejam eclipsados pelo desejo de aumentar ao máximo a produtividade. Alguns exemplos desse mal-estar: utilização das exigências do crescimento econômico para justificar a repartição muito desigual dos bens e da renda, ou o modo pelo qual essas exigências nos tornam insensíveis às necessidades do meio-ambiente, o que pode nos levar a um desastre. Pode se também pensar como a nossa planificação social, em campos tão críticos como a avaliação de riscos, está submetida a cálculos grotescos entre custos e benefícios, o que atribui um valor monetário à vida humana. A primazia da razão instrumental manifesta-se também no prestígio que aureola a tecnologia e nos faz buscar soluções tecnológicas a problemas que não têm nada a ver com ela. Isso contribui para o estreitamento de nossas vidas. Hannah Arendt sublinhou o caráter cada vez mais efêmero dos objetos de uso corrente: “A realidade e a confiabilidade do mundo humano repousam basicamente no fato de que estamos rodeados de coisas mais permanentes que a atividade pela qual foram produzidas, e potencialmente ainda mais permanentes que a vida de seus autores. A vida humana, na medida em que é a criadora do mundo, está empenhada em constante processo de reificação; e o grau de mundanidade das coisas produzidas, cuja soma total constitui o artifício humano, depende de sua maior ou menor permanência neste mundo.”14 Essa

permanência

está

ameaçada

no

mundo

do

conforto

descartável moderno. A essa ameaça deve-se acrescentar a suspeita de que essa situação depende também de nós e que ela não é simplesmente uma fatalidade de nossa época que sofreríamos inconscientemente. Nossa margem 13 14

Ibid. p. 13. Tradução nossa. ARENDT, Hannah, A condição humana, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1991, p. 106


de liberdade não é nula: importa refletir sobre o que deveriam ser nossos fins e perguntar a nós mesmos se a razão instrumental não deveria ter um papel menor na nossa vida. Essa mudança deveria acontecer também nas instituições, mesmo que as mudanças não possam ser tão radicais quanto os revolucionários gostariam!

CONSEQÜÊNCIAS POLÍTICAS DO INDIVIDUALISMO E DA RAZÃO INSTRUMENTAL As instituições e as estruturas da sociedade tecnico-industrial restringem consideravelmente nossas escolhas: forçam as sociedades tanto quanto os indivíduos a dar para a razão instrumental um peso que nunca concederíamos num debate moral sério e que poderia se revelar extremamente destruidor. “Pode se pensar que uma sociedade fundada unicamente na razão instrumental ameaça as liberdades, tanto individuais quanto coletivas, porque essa não modela simplesmente nossas decisões sociais. É difícil manter um estilo de vida individual contra corrente. (...) Numa sociedade formada por indivíduos fechados na solidão do próprio coração, poucas pessoas desejarão participar ativamente da vida política. Preferirão permanecer em casa para usufruir das satisfações da vida privada enquanto o governo do momento assegurará os meios de prover essas satisfações e os distribuirá generosamente.”15 É o que Tocqueville chamava de “despotismo suave”. Não se trata de uma tirania fundada como antigamente sobre o terror e a opressão. O governo continuará meigo e paternalista! Manterá mesmo as formas da democracia, organizando regularmente eleições. Na realidade, porém, tudo será regido por um “poder tutelar” sobre o qual as pessoas não terão muito controle16. Segundo Tocqueville, a única defesa contra esse poder consiste numa cultura política forte que valoriza a participação, tanto nos diferentes níveis de governo quanto nas associações livres. Mas a atomização dos indivíduos fechados em si mesmo milita contra essa atitude. Quando a participação enfraquece, o indivíduo-cidadão encontra-se sozinho frente ao grande Estado burocrático diante do qual ele se sente impotente. O cidadão encontra-se mais desprovido e o circulo vicioso do despotismo suave se fecha. 15

TAYLOR, ibid. p. 16-17. Tradução nossa. As citações de Tocqueville, usadas por Taylor, são tiradas de TOCQUEVILLE, Aléxis de, De la démocratie en Amérique, Paris, Garnier-Flammarion, 1981, p.385 16


Se tal for o caso, arriscamos perder o controle político do nosso destino que Tocqueville chamava de “liberdade política”. Os mecanismos impessoais citados antes podem restringir nossa margem de liberdade como sociedade, e a perda da liberdade política significaria que nem poderíamos mais fazer as escolhas que sobram para nós como cidadãos e que um poder tutelar irresponsável escolheria no nosso lugar. Resumindo, segundo Taylor, são três os componentes do Mal-Estar da Modernidade: o primeiro diz respeito a uma perda do sentido: o desaparecimentos dos horizontes morais. O segundo diz respeito ao eclipse dos fins, frente a uma razão instrumental frenética. O terceiro diz respeito à perda da liberdade.


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