Teologia e profissionalização

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TEOLOGIA E PROFISSIONALIZAÇÃO


Teologia e Profissionalização

O teólogo como profissional

Jean Bartoli


O teólogo como profissional Num mundo que parece aceitar os dogmas da produtividade e da eficácia empresariais como critérios de realização pessoal e solução dos problemas do nosso tempo, por que refletir sobre a profissionalização da elaboração teológica ? Afinal, ver o teólogo como profissional com carteira assinada, filiado à Central Única dos Teólogos, reivindicando melhores condições de trabalho e, pior ainda, de remuneração, poderia parecer uma concessão descabida ao Príncipe deste mundo e ser um motivo suficiente para reanimar algumas fogueiras ainda não de todo apagadas ! Aceitei porém o desafio de pensar no assunto e partilhar algumas reflexões porque minha atuação profissional destes últimos anos como consultor de empresa está me levando cada vez mais a resgatar minha experiência de fé e de reflexão teológica. Esta começou na Ordem Dominicana, nunca foi abandonada e está sendo agora retomada com mais afinco num mestrado de ética teológica. Estas linhas são obviamente muito influenciadas pelo contexto empresarial onde estou atuando há mais de doze anos. Quis imaginar quais perguntas outros profissionais, curiosos e interessados na contribuição da T eologia para o encaminhamento de alguns problemas atuais poderiam fazer a um teólogo preocupado em oferecer sua colaboração. Eis algumas : Quais oportunidades e desafios está enxergando e gostaria de enfrentar no contexto atual ? Quais são as competências essenciais que poderiam dar a seu trabalho uma qualidade profissional ? Qual poderia ser o seu papel profissional dentro do mundo empresarial ? OPORTUNIDADES E DESAFIOS : Existe hoje uma busca crescente de “produtos” espirituais. Estes produtos espirituais, como os materiais, são destinados a satisfazer os desejos dos seus consumidores. Entre os desejos mais fortes : a paz de espírito contra toda espécie de insegurança ou angústia, a autorealização vista como a conquista do “sucesso” pessoal e profissional num contexto de selvageria competitiva, o status que garante a inclusão no sistema e a possibilidade de controle sobre todos os aspectos da própria existência para garantir uma convivência sem risco com os outros. Daí a grande oportunidade para quem anuncia a possibilidade de mudança de vida : que o digam todos os gurus com ou sem turbante que aparecem na rua, nas telas de televisão ou em retrato “grandeur nature” nas bancas de jornais. Prometem que tudo é possível, que os obstáculos são aparentes, que praticamente tudo pode ser conseguido sem grandes esforços, sob condição de seguir algumas receitas e de acreditar no sábio de plantão. Esta extensão da sociedade de consumo para os bens espirituais pode ser considerada como oportunidade para os teólogos ? Expressa de modo confuso uma necessidade real de pessoais reais e a teologia precisa ser elaborada a partir de pessoas reais e para elas.

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Todavia nasce um paradoxo : ao mesmo tempo que essas pessoas buscam soluções espirituais, espiritualistas ou místicas para seus problemas, existe uma ojeriza a um esforço reflexivo desinteressado, que não ofereça resultado imediato. Podemos, então, vislumbrar três grandes desafios. O primeiro desafio é mostrar que a busca de respostas espirituais não pode acontecer só no nível emocional mas deve envolver a inteligência. O envolvimento da inteligência é possível a partir da aceitação de um processo reflexivo que comporta exigências de clareza e precisão da linguagem. Mais : é inseparável de uma constante autocrítica quanto à própria postura, os próprios preconceitos É um processo lento, sujeito a idas e vindas, desestabilizador e, muitas vezes, doloroso. Todo o contrário do que é prometido por uma certa literatura de auto-ajuda. O segundo desafio é mostrar que o processo de busca de algumas respostas não se confunde com o processo de busca de segurança que pode estar na raiz dessa corrida desenfreada atrás de gurus. O teólogo precisa desvencilhar-se daqueles que lhe farão esta proposta tentadora : aplaque meus medos e seguirei cegamente todos os seus ensinamentos! Convidar para a dúvida e o risco é inseparável de qualquer reflexão. Isso tem um preço : o abandono da segurança a qualquer custo. Para o próprio teólogo, o processo é ainda mais radical : sabe que o olhar de Deus é sempre diferente do nosso. Deve estar em estado de dúvida radical quanto à adequação do que ele diz com o que é : “Com efeito, os meus pensamentos não são os vossos pensamentos e os vossos caminhos não são os meus caminhos, oráculo de Iahweh. Quanto os céus estão acima da terra, tanto os meus caminhos estão acima de vossos caminhos e os meus pensamentos acima de vossos pensamentos.” (Is. 56, 8-9). O terceiro desafio é acreditar no potencial de mudança contido num discurso teológico e mostrar como isso pode acontecer concretamente. Nossa sociedade está ainda acostumada a considerar a teologia como aliada do status quo; daí as reações iradas contra aqueles cujas prática e reflexão ameaçam essa visão. Denunciar a precariedade do status quo apontando suas causas é o começo. Ficar nisto pode levar ao imobilismo da denúncia estéril. As discussões teológicas podem, hoje como nos tempos de Bizâncio, parecer excessivamente abstratas, e, não raro, intolerantes. Mais, os crentes das várias capelas envolvidas acabam se sentindo como massas de manobra engajadas numa guerra sem fim. Pior, a vitória de qualquer lado, provavelmente não vai significar uma mudança concreta nas condições de vida reais dos seus seguidores. Mostrar que o teólogo é uma pessoa inserida no mesmo mundo, confrontada aos mesmos problemas e às mesmas interrogações, que sofre, chora e também diz : “não sei”, pode ser o começo de uma mudança de olhar sobre a teologia e o início da liberação de seu potencial de mudança efetiva tanto do discurso como, sobretudo, da prática. A teologia precisa provar mais uma vez sua capacidade de responder à pergunta fundamental : “O que devemos fazer ?” (At. 2, 37).


O teólogo como profissional Instigado por esses pode pôr-se a caminho profissionais, produzindo uma pergunta importante elaboração teológica ?

desafios, ! Como algo que : como

o candidato à profissão de teólogo profissional conversando com outros ele quer útil para os outros, encontra avaliar a qualidade profissional de sua

QUALIDADE PROFISSIONAL DA ELABORAÇÃO TEOLÓGICA : Existem algumas palavras que acabam virando moda e chavões no ambiente empresarial. Correspondem, porém, a preocupações verdadeiras quanto a posturas que influem no desempenho das organizações e na administração de suas relações internas. Duas dessas palavras interessam a nossa reflexão : qualidade e profissionalismo. Como estas duas palavras podem interessar a nossa reflexão sobre o papel do teólogo ? Nas empresas, a expressão “ser profissional” tem conotação de competência, seriedade, dedicação e isenção. Quem se proclama um bom profissional quer resgatar uma certa dimensão de gratuidade e de amor à profissão que exerce, como manifestação de sua dignidade de pessoa. Encontra igualmente nessa consciência um antídoto contra certos tipos de manipulação. Consegue assim sair do imediatismo e planejar, confiando na sua capacidade de conduzir a própria vida profissional em função de objetivos e valores mais profundos e permanentes. O profissionalismo é certamente um valor a ser cultivado. A premência dos problemas a enfrentar, a consciência da miséria do mundo, a resposta ao que é percebido como um apelo de Deus não podem deixar esquecer : fazer teologia é antes de tudo um ato de fé, cuja gratuidade transcende seus resultados imediatos. Uma pequena dose de “sub specie eternitatis” não faz mal a ninguém, inclusive aos teólogos. A palavra “profissão” possui como primeiro significado, segundo o Aurélio, “ato ou efeito de professar”. Professar é reconhecer publicamente, confessar. Talvez, a caraterística própria da profissão de teólogo seja reconhecer publicamente e confessar que sua visão do mundo e das pessoas é diferente, porque ele tenta ver o contexto globalmente e pensa com paradigmas e com objetivos diferentes. Na análise do contexto, nenhum dos seus aspectos constitutivos é negado e o horizonte de compreensão teológico nunca pode ser excludente. O teólogo trabalha com a certeza de que sua condição de compreensão do universo é aceitar submeter seu saber e suas dúvidas ao crivo da Sabedoria de Deus “que para os judeus é escândalo, para os gentios é loucura” (1 Cor. 1,23). Daí o teólogo viver uma crise permanente de paradigmas. Seu modo de pensar, sentir e expressar seu pensamento e seus sentimentos está constantemente sendo desafiado. Ele está freqüentemente se surpreendendo no papel dos amigos de Jó ou de Nicodemos, ou da Samaritana ou de tantos

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O teólogo como profissional outros que nunca conseguem chegar juntos com seu Interlocutor. Quanto aos objetivos, são diferentes porque o teólogo, no ato de sua profissão, nunca tem objetivo pessoal. Sua recompensa pessoal mais valiosa é ouvir seu Mestre dizer : “Assim também vós, quando tiverdes cumprido todas as ordens, dizei : Somos servos inúteis, fizemos apenas o que devíamos fazer.” (Lc. 17, 10). Como falar de qualidade da elaboração teológica ? Considerando o que diferencia a visão do teólogo em relação aos outros profissionais que tentam pensar o mundo, onde ele pode buscar os critérios que lhe permitam avaliar a qualidade do seu trabalho? O primeiro aspecto que parece importante é a relevância que uma obra teológica tem para as pessoas às quais se dirige. Nos processos de busca da qualidade total, as empresas buscam critérios de medição negativos (defeito zero) e positivos (correspondência a especificações predeterminadas), reconhecendo porém que, longe de determinar a qualidade, tais critérios são simples indicadores. Com efeito, a qualidade é atribuída ao produto pela satisfação do cliente, sendo o resultado da competência e do comprometimento das pessoas que participam dos processos de fabricação e entrega dos produtos ou serviços. Enquanto não toma consciência de seu poder real e de sua dignidade de sujeito da atividade econômica, o cliente é um belo objeto de manipulação. Quando começa a rejeitar o embuste, passa de simples mal necessário a fim da atividade empresarial. Obviamente esta preocupação com o cliente é parte da busca de um equilíbrio sempre precário com outras variáveis, mas está sendo cada vez mais real. Uma empresa que não consegue mais satisfazer seu cliente simplesmente desaparece ! Essa digressão sobre o processo de mudança de enfoque no mundo empresarial pode sugerir que refletir sobre a qualidade da elaboração teológica exige uma indagação prévia : para quem o teólogo estaria fazendo teologia ? Vejo três respostas possíveis : para si mesmo : os critérios de qualidade resumem-se à bemaventurança da auto-beatificação de quem está repimpando-se com o próprio ego, id e super-ego confundidos ! ad maiorem Dei gloriam ! Se for o Deus revelado por Jesus Cristo, Ele demonstra grande preocupação com os frutos que brotam da aceitação de Sua Palavra pelas pessoas que vivem numa história determinada. Isto nos remete ao universo concreto das pessoas que vão ter contato com a teologia elaborada. para seus .... “consumidores” : a palavra pode parecer chocante mas não deixa de fazer sentido. Afinal, escrevemos ou falamos para alguém que quer tirar algo de bom para a própria vida do que falamos e escrevemos.

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O teólogo como profissional Considerando que a terceira resposta parece a mais sensata, é urgente sair da torre de marfim e começar a escutar, não apenas ouvir, o que as pessoas têm a dizer sobre a teologia produzida. O segundo aspecto pelo qual podemos analisar a qualidade da elaboração teológica diz respeito ao comprometimento e à competência de quem faz teologia. A questão do comprometimento é algo de pessoal e eclesial. A responsabilidade do teólogo vivendo neste mundo e nesta época aumenta na medida em que cresce nas pessoas o afastamento da atitude passiva de pura aceitação da palavra de uma autoridade que se autoproclama magisterial. Ao mesmo tempo, existe uma tendência à submissão indiscriminada a quem exercita o magistério dissimulado do conformismo aos vários pensamentos únicos existentes neste momento. O teólogo não pode nem quer mais ser o mero tradutor de quem se considera o arauto dos ukases vindos do alto. Deve porém tomar o cuidado de não se apropriar do próprio papel, tornando-se simplesmente a fonte dos novos oráculos ! É um dos interlocutores possíveis de quem busca o sentido da própria vida e dos próprios compromissos com os outros seres humanos. Quanto à competência, o maior problema está na sua definição. As organizações empresariais estão em busca de quadros de referências que permitam melhor avaliá-la num contexto de mudanças onde os métiers e as qualificações profissionais não obedecem mais a critérios rígidos de funções definidas. As consultorias que ajudam as empresas na tarefa de definir melhor as contribuições oferecidas pelos profissionais tendem a analisar a competência por três pontos de vista : os conhecimentos, as habilidades e a postura. Existe talvez uma possível analogia com a profissão de teólogo. Se quiser pensar o seu próprio papel como protagonista na construção de uma visão da realidade em que está envolvido e que quer ajudar a transformar dialogando com outras pessoas e com outros profissionais engajados no mesmo esforço mas provenientes de outro horizonte de compreensão, ele terá de submeter-se à avaliação da própria competência. Será cobrado quanto à relevância dos seus conhecimentos; suas habilidades e, principalmente, sua postura estarão sempre sendo analisadas e questionadas. As cobranças quanto ao conhecimento podem ocorrer em relação a dois objetos : sua visão do mundo e sua visão de Deus. Visão do mundo : existe uma busca de instrumentos que permitam uma visão mais sistêmica da complexidade da realidade devido a uma tomada de consciência da limitação das tentativas de explicação mais lineares e unívocas. Embora devendo lutar contra o preconceito de ser visto como portador de uma visão sistemática, predeterminada e fechada, o teólogo aparece, também, como tendo chaves de interpretação que permitem considerar variáveis importantes na definição do sentido da vida pessoal e social. As

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O teólogo como profissional abordagens comportamentais atualmente usadas nos estudos organizacionais revelam-se insuficientes para enfrentar a complexidade maior do tecido de relações em que estão inseridas as empresas. Visão de Deus : a busca do sagrado, da dimensão espiritual da vida, dentro de um contexto reconhecido como complexo, é real. Procura-se uma presença à qual se pede segurança, bem-estar, sucesso e afastamento de qualquer tipo de mal. Esta busca é individual e, embora envolva uma certa preocupação com os outros, não chega a despertar a consciência de que Deus está presente e atuante em todas as dimensões da história de cada homem bem como da humanidade. O teólogo vai contribuir explicitando todas as conseqüências do anúncio evangélico no âmbito individual e social. Mais, deve ajudar a desmascarar as restrições mentais suscetíveis de afetar a profissão de fé que pretende ser adesão a este anúncio. Em relação às habilidades, parece que se reconhece ao teólogo uma espécie de delegação da tarefa de reflexão. A problemática que ele traz à tona está presente em todo ser humano, de um modo mais ou menos consciente e premente. Como não se sabe bem o que fazer com isso, passa-se ao teólogo a incumbência de levar adiante a tarefa de esclarecer a misteriosa realidade, tornando-a acessível com uma linguagem mais clara. Para isto podem contribuir algumas habilidades chaves : hermenêutica : interpretar os vários aspectos de uma mesma realidade através de uma referência evangélica explícita. É o diferencial que deve ser assumido para poder entabular um diálogo eficaz, embora... tenso, com os outros protagonistas sobre as reconhecidas contradições e ambigüidades cada vez mais percebidas na sociedade e no mundo empresarial. É abrir a possibilidade de sair de alguns impasses que impedem mudanças de comportamento e de ação. dialética : a dificuldade é passar da interpretação que deve ser global à praxis empresarial que acontece na ambigüidade e na precariedade de um contexto de muitas variáveis. O desafio do teólogo é ao mesmo tempo desenvolver seu trabalho de interpretação e reconhecer a autonomia de decisão de quem tem responsabilidade de conduzir a ação empresarial. A partir das decisões tomadas, recomeça seu trabalho de interpretação e avaliação das decisões tomadas e da ação decorrente. A convivência não será fácil ! discernimento : talvez seja a competência mais desejada e invejada por quem tem responsabilidades no mundo econômico empresarial. O discernimento dos espíritos tem um vasto campo de aplicação, desde as escolhas estratégicas fundamentais até a avaliação de muitos

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problemas intra-empresariais. Muitos conflitos têm de ser colocados no seu verdadeiro enfoque : o choque entre egoísmos antagônicos que se recusam a ceder em função de um bem comum para todos os membros da organização ou da sociedade. As explicações psicológicas, sociológicas ou econômicas são cada vez mais percebidas como insuficientes para a avaliação de certas situações ou de certas orientações. A interpretação teológica de uma determinada situação deve permitir maior conscientização das responsabilidade de cada ator. A grande questão é aceitar pagar o preço da mudança de um discurso escamoteador para um discurso mais responsabilizador. rigor : substitui o “achismo” por um saber consistente e elaborado, permitindo perceber o que é essencial à revisão de paradigmas. Propicia a busca de instrumentos mais adequados para agir em conformidade com o sentido descoberto. É fácil e tentador refugiar-se em algumas considerações gerais e inócuas sobre os insondáveis desígnios de Deus, fugindo das perguntas existenciais e concretas sobre as contradições aparentes mas questionadoras desta “providência”, à primeira vista tão esquisita. O rigor, nesse caso, consiste em estimular as pessoas a não se contentarem com falsas respostas genéricas e indicar alguns caminhos pelos quais se pode achar uma ação mais coerente com o Evangelho. simplicidade e prudência. “Eis que eu vos envio como ovelhas entre lobos. Por isso, sede prudentes como as serpentes e sem malícia como as pombas.” (Mt. 10, 16). O ambiente empresarial preza muito as feras (palavra aliás muito usada para qualificar e elogiar o perfil de alguns executivos !). Portanto a prudência é necessária para não prejudicar um possível diálogo em nome de uma ingenuidade despropositada. autenticidade. “Seja o vosso „sim‟, sim, e o vosso „não‟, não. O que passa disso vem do Maligno.” (Mt. 5, 37). A prudência de esperar o momento mais propício para uma tentativa de diálogo ou de intervenção não significa instalarse numa postura dúbia. As soluções concretas podem não escapar da ambigüidade. No meio das feras, porém, a integridade do propósito e da postura é esperado e será respeitado, o que não significa que as intervenções serão sempre bem recebidas ! Enfim,


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“Não deis aos cães o que é santo, nem atireis as vossas pérolas aos porcos, para que não as pisem e, voltando-se contra vós, vos estraçalhem.” (Mt. 7, 6). Há momentos em que essa frase se aplica perfeitamente. É preciso ter o discernimento de percebê-los. Contudo, é preciso, também, resistir à vaidade de considerar que esse momento chegou simplesmente porque nossa inteligência recusou o esforço de ouvir e nossa impaciência rejeita a humildade e a abnegação do diálogo. Os conhecimentos, como as habilidades, são apenas a ponta do iceberg. O que está por baixo da linha de água ? Ante a importância do que será dito pelo teólogo, seus leitores ou ouvintes vão sempre analisar e questionar sua postura para validar suas afirmações ou para se defender delas. Assim, a postura de solidariedade e engajamento em relação ao mundo e de testemunho da Presença e da Compaixão de Deus pode ser a marca própria de sua abordagem. Solidariedade e engajamento no mundo : deve existir uma familiaridade com os anseios, as angústias, as alegrias e os sofrimentos mais profundos do homem e das comunidades onde vive. Ninguém mais está disposto a aceitar um discurso solidário e engajado proferido por alguém que se apresenta concretamente desligado da vida real. Procuram-se teólogos que compartilhem a precariedade da condição e das certezas humanas, a fragilidade da sociedade na qual estão inseridos, a luta do dia a dia para conseguir o pão e a alegria de descobrir junto com os outros um pouco da luz que lhes ilumina o caminho e a esperança. Testemunho da Presença e da Compaixão de Deus : por mais descrente e gozador que possa parecer o possível consumidor da produção teológica, ele espera algo de diferente da pessoa que se apresenta como teólogo. É até difícil definir isto. De quem se atreve a falar sobre Deus e Suas relações com os homens, não se espera a mesmice dos discursos cheios de boas intenções e demagogia, das oposições simplistas, dos chavões surrados e da adesão acrítica às penúltimas modas (a última sendo sempre penúltima) provindas de qualquer horizonte ideológico. No fundo, espera-se alguém que testemunhe a realidade de uma experiência de fé na Compaixão de Deus presente em Jesus Cristo. Quem aceitará trilhar novos caminhos sem a credibilidade de um testemunho enraizado em maior familiaridade com a Presença de Deus adquirida numa experiência constante de contemplação, de diálogo com o mundo e de reflexão sobre a leitura dos acontecimentos históricos, dos mais globais aos mais singelos.


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QUAL PODERIA SER O PAPEL DO TEÓLOGO NO MUNDO EMPRESARIAL ? Por experiência profissional, esta é uma pergunta com a qual estou sendo confrontado diariamente. Devo confessar que até agora não tenho uma resposta clara. É uma indagação que considero importante para aqueles que sentem a empresa como um dos lugares mais importantes para o destino dos seres humanos que nela transacionam e da humanidade em geral. As decisões empresariais afetam a economia, o meio-ambiente, a política e outras dimensões da vida pessoal, familiar e social. Tento avançar na reflexão a partir da análise de algumas atitudes possíveis frente ao mundo empresarial. A primeira poderia ser a recusa categórica do contato com o mundo empresarial, analisando-o de fora e ignorando sua lógica própria. Considerá-lo simplesmente como a parte do sistema econômico/social geradora da opressão e da exclusão a serem combatidas. A segunda seria considerar que as empresas são formadas de seres humanos; que os empresários são seres humanos; que como nos outros setores da sociedade, existem bons e maus empresários. Consequentemente, as empresas conduzidas por empresários bons cristãos podem ser uma antecipação do paraíso na terra enquanto as outras, conduzidas por empresários pagãos e gananciosos, são a antecâmara do inferno. Estas duas atitudes pecam pelo simplismo e pela ingenuidade. Seus defensores serão ótimos alvos de manipulação para os interessados em não aprofundar a reflexão sobre o fenômeno empresarial. Este merece pelo menos um pouco de atenção dos teólogos já que uma parcela significativa da população brasileira e mundial, por bem ou por mal, gasta de oito a dez horas do seu dia trabalhando nas empresas. A terceira atitude poderia partir do princípio de que as empresas são parte de um sistema com regras e objetivos próprios, independentemente do credo e das intenções de tal ou tal empresário. Ao mesmo tempo é um sistema operado por pessoas, para pessoas e em função de pessoas; portanto, é e deve ser objeto de uma reflexão teológica como qualquer outra realidade humana. Afinal, acreditamos que Deus continua presente nas pessoas mesmo quando adentram o portão de uma fábrica ou entram no elevador de um prédio de escritórios ! A partir dessa constatação banal, o teólogo que quiser começar a pôr a mão na massa logo perceberá que nunca pertencerá ao sistema, mesmo que consiga penetrá-lo. O sistema empresarial nacional ou transnacional se parece com a aristocracia de antes da Revolução Francesa. As cortes estão radicadas em países mas criam entre si uma rede de relações, de valores, de objetivos e de poder que transcende as fronteiras nacionais. Existem alianças e casamentos que lembram as alianças e os casamentos reais. De vez em quando, surgem conspirações que parecem ter sido urdidas por alguns sucessores dos Médici. Os novos condottieri são mais conhecidos por seus sobrenomes prestigiosos (IBM, Unilever etc...) do que por seus próprios nomes.


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O teólogo, porém, pode começar a ser acolhido quando uma empresa percebe que alguns conflitos organizacionais não conseguem ser solucionados pelo arsenal das medidas comportamentais e motivacionais convencionais e que os psicólogos e sociólogos de plantão começam a baixar os braços. A porta de entrada será o exercício de discernimento da última chance para entender o que está podre no reino da Dinamarca! Nesse contexto, o teólogo poderia começar a atuar como... o bobo da corte ! Não é nem vai ser considerado membro da corte : seus objetivos não estão situados no mesmo horizonte que aqueles dos membros plenos da corte; não faz parte dos profissionais que se dedicam diretamente ao crescimento e à perpetuação do sistema produtivo. No início, poderá ser simplesmente tolerado para dizer alto o que muitos pensam baixo, mas não querem ou não conseguem dizer por estarem demais envolvidos. Se permanecer neste papel por muito tempo, corre o risco de se esvaziar porque, nesse ambiente, a denúncia de problemas só pode ser encarada como primeiro passo para a apresentação de soluções. O desafio é mostrar que as soluções habituais, até então usadas com relativo sucesso, não funcionam mais porque estão sendo geradas a partir de um paradigma empresarial tradicional, elaborado dentro de uma lógica liberal, revista e corrigida pelo neo-liberalismo e que, reconhecidamente, está perdendo fôlego. A briga começa a esquentar quando as premissas de possíveis saídas são enunciadas e confrontadas aos padrões tradicionais de análise. Propor, por exemplo, uma hermenêutica abrangente do dogma empresarial da competitividade, mostrando todas suas implicações internas e externas na vida das empresas promete alguns bons embates ! Infelizmente, não dá para “construir e plantar” sem antes “arrancar e destruir, exterminar e demolir” (Jr. 1, 10). Dizer que os questionamentos não serão facilmente aceitos não significa que serão recusados para sempre, principalmente porque os impasses são cada vez mais freqüentes e graves. Passada essa etapa, cada protagonista deve, ao mesmo tempo, ter consciência das próprias competências e de suas limitações. Trata-se de evoluir juntos, numa reflexão que parte da complexidade da realidade e de todas as suas variáveis, para que o teólogo juntamente com os outros participantes, tente arquitetar abordagens sistêmicas que possam levar a soluções mais duradouras. A consciência dos vários horizontes de tempo e de compreensão com os quais cada um trabalha pode ajudar a relativizar conflitos de compreensão e de interpretação. Para tanto, é preciso que o teólogo saia de uma postura de puro pesquisador dedicado unicamente à elaboração dos considerandos para aceitar pensar a relação entre idealismo e realismo, realidade e utopia, o ideal e o possível. Essa tentativa será feita a partir de um ponto de referência que é a Palavra de Deus, sempre imperfeitamente realizada na nossa realidade mas absoluta na sua exigência : “Portanto, deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito.” (Mt. 5,48).


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A posição cômoda mas estéril de quem lembra ou dita os grandes princípios gerais e deixa aos envolvidos na prática social do dia a dia a elaboração de soluções concretas, nunca abdicando porém do seu papel de preposto à antecipação do Juiz Universal, precisa ser abandonada porque não é mais levada a sério. Renunciar ao conforto do ex catedra e mergulhar na batalha significa participar da elaboração de soluções imperfeitas, limitadas, criticáveis e, às vezes, ambíguas. Manter as mãos puras pode significar que já foram perdidas há muito tempo por falta de uso ! Este seria um possível roteiro de atuação do teólogo dentro da organização empresarial. Tenho encontrado alguns executivos interessados em estudar teologia. Não vi ainda empresários ou executivos contratarem teólogos como tais. Não desisto de ver isto acontecer um dia, talvez não tão distante ! QUE PERSPECTIVAS SE ABREM NO BRASIL PARA A TEOLOGIA COMO PROFISSÃO ? Podemos tentar responder a esta questão considerando dois pontos de vista : o ponto de vista eclesial e o ponto de vista da sociedade civil. Do ponto de vista eclesial, será que nossos pastores consideram com a clareza necessária e suficiente os teólogos como parceiros no trabalho pastoral ? Talvez sejam considerados mais como subordinados encarregados de explicitar ordens e diretrizes. Em muitos ambientes sociais (inclusive nas empresas), está cada vez mais claro que uma relação hierárquica não impede a parceria entre o superior e o subordinado, porque se percebe que a onisciência só existe em Deus : consequentemente não pode ser transmitida por via hierárquica ! Se essa parceria for valiosa e importante para que a Igreja possa corresponder mais plenamente à missão recebida, deve ser valorizada como um ministério e uma profissão. Já que a escravidão foi abolida, deve ser bem remunerada, permitindo que mais leigos possam exercê-la de modo digno e eficaz. A pergunta talvez seja : será que se quer que a reflexão teológica seja exercida por leigos ou prefere-se que continue fundamentalmente nas mãos do clero, dos religiosos e das religiosas ? Do ponto de vista da sociedade civil e das empresas, o teólogo continua visto como um estranho no ninho, gozando de uma certa simpatia por causa de um reconhecido background intelectual. Não enfrenta tantos preconceitos. Existe uma consciência mais forte da necessidade de analisar os cenários a partir de todas as variáveis possíveis e o teólogo pode passar a ser considerado um interlocutor reconhecido nesse esforço comum. A grande questão é estabelecer pontos de contato com o mundo empresarial para que o teólogo possa passar a atuar. Aí começará a caminhada que tentamos analisar neste trabalho. Não imagino porém, nem desejo, que o teólogo seja empregado com vínculo fixo pelas empresas. Seu status seria de um consultor, remunerado em função do trabalho produzido.


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Terminando, tenho plena consciência de quanto estas reflexões são incipientes. O que me encoraja a propô-las é a certeza do que vale a pena tentar encontrar caminhos para que o teólogo possa desempenhar seu papel, perscrutar com a inteligência e o coração a presença atuante de Deus num dos ambientes onde a nossa história se constrói quotidianamente dentro de paradigmas e a partir de decisões que precisam ser confrontadas com a Palavra. E que possa fazê-lo sendo presente e atuante no ambiente empresarial.

BIBLIOGRAFIA : livros de análise dos problemas de management que estimularam a minha reflexão. • Décider ou ne pas décider Bruno Jorrosson Maxima Laurent du Mesnil Éditeur, 1994 • A ciência e a arte de ser dirigente Paulo Roberto Motta Record, 1991 • Competindo pelo futuro Gary Hamel, C.K. Prahalad Editora Campus, 1995

• Manager dans la complexité Dominique Genelot INSEP Éditions, 1992


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