O andrógino

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Pedro Sena

O An drรณ gino



O An dró gino Não poderia deixar de observar aquela criatura. Uma

figura estranha. Não sei se homem vestido de mulher ou se mulher com feições de homem. Andava por demais desengonçado, retorcendo braços e pernas, fazendo caretas e fumando cigarro de palha. Houve um dia que, a caminho do trabalho, a vi largada no passeio, e em seus retorcidos movimentos, olhava para o céu como que suplicante, sabia-se lá pedindo o que, talvez pedisse para que parasse de se retorcer...

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Mais tarde, fazendo o mesmo caminho de volta, o vi fumando cigarro de palha sem olhar para o céu, então julguei que não ligasse muito para Deus, apenas queria fumo. Retorcia-se menos. Aquela criatura já fazia parte de minha rotina. Eu me indagava de como alguém podia viver naquela indecisão de existir. A loucura sempre chamou minha atenção. O tempo dos loucos é diferente e chega a não existir. Na verdade, nunca soube ao certo quanto ao seu estatuto de louco (coisa que não existe), mas aconteceu de um dia, ela, retorce aqui retorce acolá, olhar para mim fixamente. Será que desconfiou que eu a observava? Daí ele me lembrou Zeti, de lá do meu interior do estado, das casinhas, pedras, terra batida, baldeações e matagais fabulosos. Zeti andava pelas ruas com uma combuca de farinha nas mãos e uma porção de coisas inúteis. Bolsa rasgada, pente sem dente, rádio sem pilha, óculos sem lentes. Não bastando as inutilezas, vestia saia acima do umbigo, camisa-sei-lá, sandálias trocadas e com meias combinando com o cabelo que, amarrado atrás, não passava do pé. Eu não tinha medo de Zeti, mas todo mundo dizia que ela tinha as duas coisas, daí eu ficava curioso-com-medo, afinal, eu só tinha um, e minha mãe uma.


Ele andava por toda a cidadezinha e adjacências matagais. Os meninos maiores contavam que ela tinha uma casa no Monte da Ceia, que era onde a gente subia pra rezar na sextafeira da paixão e que já tinham ido lá e visto as duas coisas de Zeti. Um dia, tomei a decisão de ir até o Monte. Tinha vontade de encarar Zeti, conversar, sei lá. De que lhe serviam duas coisas? Eu peguei o badogue e a capanga, um lanchinho escondido e um boné inútil. Disse pra Mãe que eu ia caçar lá para os lados do Tanque Velho. Zeti devia de estar em casa. Nunca eu havia subido o Monte sem ser em dia santo. Engraçado é que


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eu gostei dele assim, sem gente, um silêncio de louco, só vento e canto. Juro que fiquei um tempo parado e até esqueci de Zeti. Depois me dei por mim e fui para a Ladeira do Escorrega que ia dar no caminhozinho de que os meninos tinham falado. Lá, eu encontraria uma grande porta de duas bandas devidamente caídas e dali a um pouco veria um casebre com um toco de pau na frente. Quando vi a casinha fiquei agitado. Não sabia se desistia do encontro não-marcado ou se ia. A porta


devidamente caída estava aberta e então achei que não devia voltar. Me aproximei da casinha, avistei o toco de pau (era lá mesmo!), mas parecia não ter ninguém. Pensei de novo em desistir, mas a ansiedade não deixou e eu tomei coragem e bati na porta. Às vezes o gosto da coragem é amargo por demais e proporciona sensações indescritíveis. Quando bati na porta pude ouvir uma zoada que vinha dos fundos da casa, então fui de ponta de pés pelos lados e ai cheguei nos fundos e vi. Duas coisas: Zeti e uma coisa. Ele estava tomando banho de cuia e cantando a Música do Monte em Mi Menor. Ai quando me viu, ela gritou e eu gritei, ele correu para o matagal e eu corri em direção a Ladeira do Escorrega e sai escorregando e fui parar em minha casa, debaixo de minha cama. Dois dias fiquei lá, sem sair nem pra beber água. Quando eu saí, minha mãe, nem um pouco boa com minha cara, na hora que estávamos tomando café, comentou que tinham visto um indivíduo correndo nu por umas estradas das cidades de lá de perto, “que absurdo”, ela disse, e eu pensei “Zeti”, então baixei a cabeça. Naquele dia não levei surra. Vi Zeti de perto

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e nunca mais me esqueci, vez ou outra pensando onde ele teria ido parar e porque correu de mim. Certo que eu também fugi, mas, sei lá. A criatura continuava se retorcendo e olhando fundo e de muito fundo em meus olhos eu não conseguia desviar o olhar e então pensei a coisa mais absurda que eu já pude pensar. Lembrei do gosto da coragem e a tomei, senti então que devia falar e a voz saiu dos pulmões da lembrança, passou pela garganta e olhei mais fundo e esperançoso, “Zeti, é você?”. Ele numa retorcida de rosto, deu as costas e depois se virou e veio com as mãos estendidas e o olhar pedinte, “tem fumo, me dá?!”, disse que não tinha e ela virou se retorcendo. Nesse dia, nem fumo e nem Zeti. Fui para o trabalho, atrasado.






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