MARANHÃO,
Enigmas, Desafios e Urgências
Aziz Santos Raimundo Palhano Jhonatan Almada Léo Costa
MARANHÃO,
Enigmas, Desafios e Urgências
São Luís Instituto Jackson Lago
Copyright 2016 INSTITUTO JACKSON LAGO Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida – em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocopia, gravação etc. – nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem expressa autorização da editora. Presidente Clay Lago Conselho Consultivo Célia Linhares Fábio Konder Comparato Igor Matos Lago João Pedro Stédile Luciana Matos Lago Lourdes Leitão Ludmila Matos Lago Marco Antonio Villa Maria José Latgé Maria Thereza Goulart Palmério Dória Theotônio dos Santos Fotos e Capa Felipe Neiva Diagramação Patrícia Régia Nicácio Freire
S231m Santos, Aziz, 2016 Maranhão, Enigmas, Desafios e Urgências / Aziz Santos. Jhonatan Almada; Léo Costa; Raimundo Palhano – São Luís: Instituto Jackson Lago, 2016. 176 p.; 15,5 x 21,5 cm ISBN 978-85-66903-02-7 1. Maranhão. 2. Enigma. 3. Desafios. 4.Urgências. I. Aziz, Santos. II. Almada, Jhonatan. III. Costa, Léo. IV. Palhano, Raimundo. V. Instituto Jackson Lago CDD:338
SUMÁRIO
9 PREFÁCIO Rossini Corrêa 18 O MARANHÃO COMO ENIGMA Aziz Santos 52 O MARANHÃO COMO DESAFIO Raimundo Palhano 130 O MARANHÃO COMO URGÊNCIA Jhonatan Almada 162 SOBRE AS PRIORIDADES PARA O DESENVOLVIMENTO DO MARANHÃO Léo Costa
“O que eles não sabem, o que jamais aprenderão, é que no meu lugar milhares se levantarão para combater o atraso e a mentira...” Jackson Lago
PREFÁCIO O MARANHÃO DE ALMA GRANDE: ENIGMAS, DESAFIOS E URGÊNCIAS, NO PENSAMENTO DE JHONATAN ALMADA, LÉO COSTA, AZIZ SANTOS E RAIMUNDO PALHANO Rossini Corrêa1
Constitui motivo de júbilo a publicação, pelo Instituto Jackson Lago, do livro Maranhão, Enigmas, Desafios e Urgências, de autoria do historiador Jhonatan Almada, do sociólogo Léo Costa e dos economistas Aziz Santos e Raimundo Palhano, que desdobram, neste século XXI, a capacidade de refletir sobre a realidade maranhense enquanto problema com solução. Refiro-me, neste particular, à superação do decantado fatalismo da decadência, da resignação com o condicionamento da miséria e da pobreza e à espera mirífica das dádivas do Poder Central como os únicos caminhos a ser ou não ser trilhados pela paisagem econômica, social e política estadual. Foi da tradição cultural maranhense a evasão de talentos, em busca de sua legitimação na esfera nacional, fato que, no século XX, vinculou a intelectualidade timbira às demandas relativas à civilização brasileira. Um substrato de significativa maranhen1 Advogado e Professor em Brasília. Filósofo do Direito, Rossini Corrêa é autor, entre outros títulos, de Saber Direito-Tratado de Filosofia Jurídica; Jusfilosofia de Deus; Crítica da Razão Legal; Bacharel, Bacharéis: Graça Aranha, discípulo de Tobias e companheiro de Nabuco; Teoria da Justiça no Antigo Testamento; Brasil Essencial: como conhecer o país em cinco minutos; e Sonetário do Quixote Vencedor. Pertence à Academia Brasiliense de Letras, ao Instituto dos Advogados Brasileiros, ao Instituto dos Advogados do Distrito Federal e é Membro Correspondente da Academia Maranhense de Letras Jurídicas. 9
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sidade ganhou presença, entretanto, no discurso literário de Josué Montello (Os Tambores de São Luís e A Noite sobre Alcântara), de Odylo Costa, filho (A Faca e o Rio e Histórias da Beira do Rio) e de José Sarney (O Dono do Mar e Norte das Águas). Na dimensão ensaística, contudo, só por exceção, o Maranhão foi objeto de conhecimento de outros luminares, como Franklin de Oliveira, Osvaldino Marques e Ferreira Gullar. Quem colocou a realidade estadual na sua reflexão nacional foi Ignácio Rangel, em escassos, mas significativos momentos, ao refletir, por exemplo, sobre o devassamento rodoviário da década de 50, a percorrer os brasis a caminho de Brasília. Quanto a Neiva Moreira, que se tornaria, uma vez exilado pela noite fascista de 1964, um homem do mundo, com os célebres Cadernos do Terceiro Mundo, enquanto proativo parlamentar vinculado ao Jornal do Povo manteve aceso o fogo sagrado, por meio da crônica política maranhense-brasileira, preservando a linhagem intelectual de João Lisboa. O fenômeno a que pretendo me reportar, todavia, é referente à capacidade autônoma dos que ficaram, em realimentar a tradição de pensamento sobre o Maranhão, que, no passado do século XX, encontrou ressonantes e definitivas contribuições, no pensamento de Antônio Lopes, Jerônimo de Viveiros e Bandeira Tribuzzi, entre outros. Neste sentido, o livro Maranhão, Enigmas, Desafios e Urgências, sem lugar a dúvida, vincula os seus quatro autores à renovação qualitativa da reflexão sobre a realidade maranhense, em consonância com a percepção critica e propositiva, voltada para um compromisso de mudança. Jhonatan Almada representa a certeza de que não haverá solução de continuidade na tradição de pensamento maranhense, por significar o futuro que já chegou acrescido pelo seu talento editorial, capacidade de reflexão e promessa em emergência de afirmação enquanto quadro administrativo diferenciado. Sublinho no testemunho de Almada o sentido republicano e democrático de sua percepção estruturante e longitudinal da realidade 10
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maranhense, cujo sentido finalístico exige que haja um compromisso com meios continuados de reforma e de mudança, para que o Estado, no gerúndio, venha mudando práticas e culturas estabelecidas, com a geração de um modelo de condução transformada e transformadora. Léo Costa é um ativista cívico histórico, com experiência administrativa vitoriosa, bafejado ainda por uma capacidade de análise da realidade envolvente, resultante de sua sólida formação sociológica. Costa enriquece o debate com a retomada do signo democrático como condição central para o Maranhão em mudança, segundo a definição do Governador Jackson Lago. Levanta ainda o Prefeito de Barreirinhas a bandeira do municipalismo como chave estruturante de um Maranhão transfigurado, que transite do combate à pobreza para a promoção da riqueza, elegendo a renovação da agricultura como sustentáculo proativo de um desenvolvimento inclusivo, ético e de promoção de todo homem e do homem todo. Quanto a Aziz Santos constitui um extraordinário exemplo de técnico dotado de visão política, refinada no custo de uma singular experiência de gestão privada e pública, que lhe permitiu gerenciar fomentos no Mercado e intervenções do Estado. Santos carregava consigo uma formação técnica robusta, enriquecida em seu confronto com o fado, por duvidar que o crescimento econômico nacional envolvesse o Maranhão e o transfigurasse, segundo a lógica racionalista do Mercado, estampada no milagre brasileiro e seu modelo de resultados concentracionários. AbdelazizAboud Santos perseguiu – como Gestor Municipal e Secretário de Estado – a afirmação de um modelo de desenvolvimento social referenciado por distinto paradigma, de que a sua reflexão é a autoconsciência, a lhe permitir indicar a dignidade da pessoa humana como o seu valor dos valores. Raimundo Palhano é o principal intérprete do Maranhão depois de Bandeira Tribuzzi. Economista com formação acadêmica plural – traço também visível em Jhonatan Almada, Léo 11
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Costa e AbedelazizAboud Santos – Palhano vem construindo, desde as décadas de 70 e 80 do século XX, um volume individual de estudos sistemáticos sobre a realidade maranhense, de superior significação. A ideia de coisa pública – relacionada ao espírito republicano e sua ausência no antigo modo de governar – na reflexão palhaniana ganhou a condição de categoria indicativa de caminhos de efetiva mudança, exigente e geradora de mobilização social e de redirecionamento das instituições estatais. O pensamento de Palhano tem a virtude de repensar o desenvolvimento maranhense à luz da desprivatização, da publicização do Estado, com o estabelecer de uma dialogia nova com a sociedade a conquistar cenários de afirmação da cidadania ativa. Esse livro – Maranhão, Enigmas, Desafios e Urgências – é um documento para a história maranhense, ao resgatar um processo de mudança social interrompido por um golpe de Estado judicial: o Governo Jackson Lago. Felicito a todos os quatros autores pela lucidez da reflexão, absolutamente impecável, referente à possibilidade de futuro de nossa pátria pequena, como dizia Joaquim Nabuco a respeito da Província que cada um de nós carrega para sempre na alma, como verdade primeira, de sua forma de ser e de sua maneira de estar no mundo. Lucidez, essa, revelada na capacidade de ponderação que já sublinhei – “Não há como fugir dessa convocação histórica. Há uma nova engenharia política a ser elaborada que vai além das comemorações e dos feitos que levaram à vitória nas urnas” – que constitui um chamamento indispensável à realidade e sua desafiante tarefa a ser cumprida. É a compreensão ampliada, em termos de percepção, na consciência da política de campo minado a ser herdada – “O Maranhão não deixou de ser um território marcado pelo acúmulo de erros e omissões, completamente impunes e mesmo não relevados, que foram construindo contextos paradoxais e assimétri12
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cos, tanto no corpo como na alma maranhense” – e suplantada. É a vontade de superação do legado que, a despeito de maldito, tem que ser transfigurado, sob a compreensão de que os canais e os oceanos são produtos de fontes que têm que ser regadas e protegidas, chegando-se aos macrossistemas de irrigação de uma multiplicidade empoderada de microssistemas. Assim poderia eu prosseguir, palmilhando a riqueza do território do texto, que já considero a Carta de Princípio do Maranhão a ser refundado – “O barco pode afundar muito cedo se não for conduzido para a grande viagem que não houve” – apenas se houver o estado de poesia, a consciência do momento mágico, o visionário pão de cada dia, em perseguição de horizontes vezes dez, ou cem, ou mil, para que se tenha algum, mas que seja digno e empreste um par de asas ao bicho da terra que o homem é, como recordou Luís de Camões. E o homem é bicho da terra universalmente, da rua mais simples, da mais esquecida aldeia do Maranhão, até a Quinta Avenida, em Nova York. Possuindo, entretanto, em seu substrato emocional – insuspeitada, e por despertar – capacidade de sonhar com os amanhãs que cantam as toadas de uma vida mais ética, compartilhada, emancipatória e solidária, de que o Maranhão precisa deixar de ser oligárquico e reiterado contratestemunho. Este é o desafio da viagem por haver, na direção do porto em que gente venha a ser tratada como gente em nossa terra comum: sem desprezo e com respeito, em um cuidar das pessoas que as liberte para a balaiada incessante e pacífica, da construção vertical de outro destino, que não o da reiterada “viagem que não houve”, na qual o senhor mais recente deixa saudades do donatário mais antigo, em ciclo merecedor de um ponto final, na vitória do compromisso democrático sobre a tradição oligárquica. É grande a viagem: têm Jhonatan Almada, Léo Costa, Aziz Santos e Raimundo Palhano, efetivamente, razão. E a travessia não pode, ultrapassando o Boqueirão, sucumbir no Baixo dos 13
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Atins, na Baia de Cumã, sumidouro de sonhos, que já engoliu o poeta Gonçalves Dias, e não pode e não deve, agora, senão ser passagem para o mar oceano da pergunta com resposta e da esperança rediviva. Meditemos e recordemos Fernando Pessoa: “Quem quiser passar além do Bojador / tem que passar além da dor”. E mais: “Deus ao mar o perigo e o abismo deu,/ mas nele é que espelhou o céu”. E finalmente: “Valeu a pena? Tudo vale a pena/ se a alma não é pequena”. Só de alma grande será possível avançar verdadeiramente, trocando a pré-política docontra pela política do a favor. Comungo dos votos de que a nova subjetividade, à qual se reportam os quatros pensadores gonçalvinos, ainda por ser esculpida no tecido social da história, tenha no timão maranhense a legenda heróica do bom combate a ser permanentemente travado: “Maranhão de alma grande!”
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APRESENTAÇÃO O presente livro dá continuidade ao plano editorial do Instituto Jackson Lago e resgata ideias-centrais que inspiraram as ações do Governo Jackson, algumas foram iniciadas e interrompidas, outras não puderam ser concretizadas. Os autores realizam genuíno esforço por decifrar os enigmas, desafios e urgências do Maranhão à luz da experiência vivenciada durante o Governo Jackson e ora atualizada ante à conjuntura. O Instituto Jackson Lago completa quatro anos de existência e mantém vivo e ativo programa de trabalho, com destaque para a Exposição Jackson 80 anos – “A Vida é Combate” que homenageia nosso patrono e já circulou por várias cidades. Temos certeza que este livro “Maranhão, enigmas, desafios e urgências” irá contribuir para o debate sobre nossa realidade e estimular aos nossos concidadãos à tarefa permanente de repensar e reinventar sua terra. Boa leitura a todos e todas!
Clay Lago Presidente do Instituto Jackson Lago
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O MARANHÃO COMO ENIGMA Abdelaziz Abouddos Santos2
Este ensaio, composto de seis artigos publicados pelo autor na imprensa e nas redes sociais, revistos e adaptados ao presente trabalho, insere-se no louvável esforço do Instituto Jackson Lago – IJL de manter viva uma linha editorial que ajude a formar e desenvolver uma massa crítica de pensamento a respeito do Maranhão e do seu futuro imediato. A iniciativa do Instituto, procurando ouvir atores que tiveram participação ativa no planejamento do desenvolvimento maranhense no governo interrompido do grande líder político é das mais louváveis, pois cada vez mais se precisa de intérpretes e interpretações fundamentadas sobre o Maranhão e o seu destino. Coube-me abordar os enigmas maranhenses numa perspectiva prática frente ao desafio do planejamento do desenvolvimento estadual, graças, sobretudo ao papel que exerci no governo como secretário de estado do planejamento e orçamento. Deparei-me inúmeras vezes com interlocuções marcadas fortemente por essa perspectiva mítica da formação inclusiva, fato que não apenas dificultava as iniciativas estruturantes, como também levava ao cometimento de equívocos. Ouviu-se a sociedade à exaustão, como era a característica do governador Jackson, para levantar proposições voltadas ao en-
2 Foi Secretário de Estado do Planejamento e Orçamento no Governo Jackson Lago (2007-2009). Economista formado pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e psicólogo formado pela Universidade CEUMA. Especialista em Metodologia do Ensino Superior e Filosofia Política pela UFMA. Foi gerente do Banco da Amazônia, presidente do Banco de Desenvolvimento do Maranhão (BDM), presidente do SEBRAE, presidente do Conselho Regional de Economia do Maranhão (COREN-MA), assessorchefe da Prefeitura Municipal de São Luís, vice-prefeito de São Luís e secretário municipal da Fazenda de São Luís. 18
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frentamento da pobreza, colocando na agenda política e na pauta das políticas públicas a questão do desenvolvimento maranhense. Em sentido histórico, o desenvolvimento do Estado do Maranhão se fez de um modo excludente para a maioria da população. As estatísticas sobre esse quadro são dramáticas e não há como negá-las. Continua pairando no ar a busca de um elo perdido e de um sonho distante. Em sua maioria, as políticas públicas implantadas não conseguiram e não conseguem superar esse desafio. Os resultados colhidos pelo governo interrompido arrolam medidas que poderão romper esse círculo vicioso e reescrever a história do Maranhão. O produto gerado pelo governo, a partir, sobretudo, da ótica da sociedade organizada, demonstra a importância de se mudar a forma de encarar o desenvolvimento, que se definirá na superação da lógica racionalista do mercado, por uma outra, fundada na dignidade humana e no respeito aos seus direitos fundamentais. A forma nova de conceber o desenvolvimento, resgatadas nos textos que se seguem, baseia-se no desenvolvimento em escala humana, sustentável, baseado na superação das necessidades e na construção de uma esfera pública democrática e livre. O momento histórico vivido pelo Maranhão, as indefinições sobre novos ciclos de desenvolvimento, não deixam dúvidas de que é preciso passar a limpo os desafios conjunturais e, principalmente, os estruturais. O conteúdo temático deste capítulo deixa claro que é urgente revelar os avessos do padrão de desenvolvimento dominante, enfrentar a razão patrimonialista e, sobretudo, produzir uma cosmovisão que coloque o povo como principal beneficiário do crescimento econômico. A visão que procuro destacar, para permanecer fiel ao que preconizava o governo Lago, é aquela que reconhece como inadi19
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ável construir estratégias consistentes e capazes de fortalecer e dinamizar as economias locais e territoriais, como alternativas à superação do modelo histórico, que pouco dialoga e quase nada internaliza em termos macroeconômicos. O que espero demonstrar nos textos a seguir é que se precisa superar radicalmente a visão mítica e enigmática a respeito do Maranhão e do seu desenvolvimento sustentável, escapando de uma vez por todas das armadilhas montadas pelas explicações oriundas dos grupos políticos e econômicos dominantes. Pode-se dizer, assim, que o arranjo político propugnado pela nova estratégia de desenvolvimento deverá contemplar a apreciação crítica da formação maranhense, da formação do poder estatal e da formação do poder oligárquico, com a verificação da influência que têm na constituição da cidadania restringida e na imposição de limites aos movimentos da sociedade, tendo como pano de fundo a dinâmica da formação social maranhense.
1 MARANHÃO: O ESTADO DA ESCASSEZ Não sou pessimista em relação ao Maranhão, como aparentemente pode parecer pelo subtítulo deste capítulo. Também não me incluo no grupo dos maranhotos, aqueles propagadores de ilusões e falsidades, que obtêm vantagens fomentando as supostas prodigalidades da terra. Inclino-me para o lado daqueles que acreditam que o Maranhão está mais para um enigma a ser decifrado do que uma reinvenção da terra prometida. Decifrá-lo significa passar a limpo o que esta formação social tem de mais pernicioso: a renúncia cívica de boa parte dos maranhenses, motivada por uma ininterrupta submissão forçada,
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até mesmo voluntária, para os que vivem em estado de privação, frente ao poder e à arrogância imperial de suas oligarquias. Pessoalmente carrego uma frustração histórica, assim como toda minha geração e tantas outras que vieram depois: integrar uma sociedade que teve o seu futuro negado, pelo predomínio de práticas políticas e sociais que se especializaram em sedimentar privilégios, concentrar poderes em poucas mãos, negar a meritocracia, roubar os sonhos mais variados. Vimos nascer e prosperar, de forma avassaladora, um complexo sistema de poder que se perpetuou à custa da negação de legados sociais, dissolvidos pelo rolo compressor dos mitos e das falsificações. Gerações e mais gerações que foram entorpecidas por falsos profetas, fabricadores de realidades imaginadas, responsáveis pela composição de contextos que jamais existiram ou poderiam existir, resultando na construção de uma mentalidade propensa à aceitação, à resignação ou até mesmo à indiferença. Recorro a esse trágico preâmbulo para destacar, com toda a ênfase, a relevância histórica dos dias 4 e 17 de abril/2009, datas que registram, respectivamente, o dia do falecimento e o dia do golpe judiciário que levou o Governador Jackson Lago a descer, de forma compulsória e dilacerante, as escadarias do Palácio dos Leões, deixando vazia a cadeira de principal magistrado do Maranhão, legitimamente conquistada pelo voto dos inconformados e dos que venceram o medo atávico. Vendo tudo isso pela lente do tempo, um tempo que aos poucos se afasta no horizonte, sinto um nó na garganta, não só pela saudade que normalmente tenho de sua presença humana e generosa, mas também por um forte sentimento de que a mentira crave na memória coletiva a ideia assombrosa de que o seu governo foi inoperante e incapaz de encarar as trevas do passado e as lides pela libertação do Maranhão.
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Tive a honra de ocupar uma posição destacada no comando do governo Jackson Lago, permanecendo inteiramente fiel às suas determinações e cumprindo da melhor maneira as decisões tomadas. Em pouco mais de dois anos e três meses, por mais complexa que tenha sido a coalizão no poder, que tolheu muito os movimentos do governante em sua capacidade de acelerar mudanças indispensáveis e inadiáveis, foi possível mobilizar vontades de segmentos de distintas extrações e gerações em torno da construção de uma agenda estratégica de planejamento do desenvolvimento estadual, capaz de abrir caminhos à libertação de uma sociedade mantida por décadas prisioneira do arbítrio, da prepotência e dos privilégios dos grupos dominantes e seus associados. Na luta travada com os donos do Maranhão, desde o primeiro dia de trabalho, estava evidente a disposição do senhorio em desconstruir os feitos do novo governo. Investiram nessa prática com esmerada dedicação e não encontraram naqueles que buscavam a contra-hegemonia a capacidade e os meios para superá-los. Buscaram não só desconstruir as realizações como apagar da memória o legado social do governo eleito legitimamente. Proclamo, sem a menor sombra de dúvida, que o Maranhão assistiu passivamente a perda do último estadista da recente geração de políticos deste Estado, podendo representar essa circunstância histórica, no mínimo, vinte anos de atraso em sua estrutura política, isto se a maneira de governar das elites permanecer no mesmo diapasão de sempre. Imediatamente após o retorno ao poder, os governantes abandonam imediatamente várias iniciativas. Deixa-se de falar no projeto de redenção da Baixada Maranhense, com recursos assegurados e em vias de iniciar as obras; esquece-se da política de regionalização e seus 32 Planos Populares de Desenvolvimento Sus-
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tentável, que seriam a marca mais forte da vocação municipalista de Jackson, opção estudada para inverter a lógica centralizadora do planejamento governamental, trazendo das comunidades acervos inéditos de demandas e possibilidades transformadoras; escapa da agenda do governo o tema da cooperação internacional, pensada como estratégia para incrementar o desenvolvimento científico, tecnológico e cultural do Maranhão, abrindo suas fronteiras provincianas para o intercâmbio econômico, comercial e técnico-financeiro, uma vez que convênios especiais com Cuba, Venezuela, França e China já estavam sendo celebrados e encaminhados. Não se priorizam mais os estudos das cadeias produtivas, então em franco processo de organização, com a parceria do SEBRAE e Banco do Brasil, contraponto aos grandes projetos que se instalaram e outros em vias de instalação, como forma de garantir a pesquisa, a produção e a comercialização dos pequenos produtores do Estado, que constituem a verdadeira riqueza e sustentabilidade do povo maranhense há séculos; a proposta de uma Escola de Saúde Pública se perdeu diante de outras prioridades duvidosas, vista como possibilidade de formação avançada de gestores, capazes de elevar os níveis de saúde da população, ao lado da imprescindível rede de hospitais de emergência, iniciada com o de Presidente Dutra e com recursos alocados para os de Imperatriz e Pinheiro; omite-se a proposta de um Sistema de Segurança Único, dos Conselhos de Segurança Cidadã, em que as pessoas começavam a participar da segurança de suas comunidades, das residências para os policiais, da redução dos índices de criminalidade. A relação dos feitos não se esgota aqui. Onde se escondem as iniciativas em favor da revitalização das bacias hidrográficas, começando pela do Itapecuru?; ou aquelas relativas ao zoneamento ecológico-econômico, para se definir com precisão o que e onde plantar no território maranhense, praticamente concluído no governo Jackson Lago?; ou no zoneamento agroecológico, vital para definir a diversidade de lavouras a serem incentivadas,
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com base em pesquisas da Embrapa, já contratada para esse fim, implicando, como consequência, na sua própria instalação aqui?. O Fumacop, fundo de combate à pobreza, passa por nova transfiguração, pois na época dispunha em caixa recursos da ordem de mais de 400 milhões, programados para a base econômica (arranjos produtivos), base tecnológica (incubadoras de empresas e inclusão digital) e base social (segurança nutricional e transferência direta de renda pela via da bolsa-trabalho)? Quem ainda se recorda do Comitê de Projetos Estruturantes, do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, com a participação da sociedade civil, ou do Conselho Consultivo do Porto do Itaqui, constituído com os Governadores do Corredor Centro/Norte? Outros projetos estratégicos foram abafados. O programa de erradicação do analfabetismo, o Paema; o Plano Maranhense de Logística e Transporte; o Consórcio Turístico Interestadual Rota das Emoções, agora finalmente lembrado; os Fóruns Sociais, nos quais o Governador acolhia as demandas das populações regionais; a política cultural, dos pontos de cultura, do mapeamento do patrimônio cultural; a política social efetiva, dos programas de transferência de renda com vistas a colocar os trabalhadores no mundo do trabalho; o Museu de Arte Contemporânea, concebido pelo grande Oscar Niemeyer; a recuperação dos Projetos Salangô e São Bernardo; o Banco da Gente, que financiava a criatividade dos mais pobres, principalmente das mulheres; o orçamento regionalizado para vigir em 2009, iniciativa pioneira no Brasil. O mais importante que se perdeu com a partida prematura do líder foi a sua visão de mundo, das possibilidades que antevia para um Maranhão sem donos, da paixão pelo empoderamento e soberania popular. Foi-se com Jackson a visão política de um Brasil insubmisso, integrado a uma comunidade latino-americana de nações livres e independentes, na qual estava ombreado a outros dirigentes regionais. Sem ele fica o vazio de ideias vigorosas e consisten24
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tes, aquelas que brotam das lutas emancipatórias e apontem para cenários de superação da pobreza e das iniquidades. O Maranhão dos maranhenses é muito mais escassez do que abundância. Os símbolos da riqueza maranhense têm donos: o capital imobiliário apetitoso e voraz, os centros comerciais e shopping centers, a rede hoteleira, as frotas de veículos reluzentes tops de linha são inacessíveis a mais de 90% dos timbiras perambulantes. O meu peito se comprime quando vejo que tais disparidades não representam o maior dos problemas. A escassez que me amargura a alma é a de lideranças, de dirigentes, de pastores. Sinto um tênue fio equilibrando as ovelhas acabadas de nascer. Pressinto que de um momento para outro o cordão se rompa e o rebanho se perca no emaranhado existencial de uma sociedade que necessita conquistar a capacidade de se autogovernar e não renunciar aos sonhos. Jackson Lago foi o último dos pastores confiáveis e o maior símbolo da resistência democrática no Maranhão. Ofereceu a própria vida para manter vivo os seus sonhos libertários. Deixou um legado que a história da sociedade maranhense, brasileira e latino-americana não deixará que se apague. A saída é despertar e convocar o povo à ação, sem medos, sem mentiras, sem falsas promessas e sem falsos profetas. A infâmia e a prepotência não vencerão para sempre. Ao lado disso, a capacidade de governar e de articular uma sociedade cansada de tantas quimeras.
2 MARANHÃO: O ESTADO DA FALSIDADE O ano de 2013 chegou trazendo esperanças e desconfianças ao mesmo tempo. O 13 é um número da cabala. Em alguns lugares não é nem pronunciado: prefere-se dizer ano 12 mais um.
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Para outros é um número mágico. Carrega a força dos sonhos impossíveis. Em fins de 2012 o polêmico historiador Villa, em texto provocativo, intitulado “Maranhão, O Estado do Medo”, colocou lenha na fogueira, antecipando quão enigmáticos serão o ano em curso e demais, ao afirmar que o Maranhão não faz parte do Brasil, razão que encontra para justificar o poder descomunal de suas oligarquias tradicionais, lideradas pelo senador José Sarney, sua família e grupos de interesse nacionais e locais, responsáveis pela façanha de recriação, em pleno século XXI, do sistema de capitanias hereditárias, iniciadas no período colonial, precisamente no reinado de D. João III, em 1534. Pelo que se pode deduzir do texto do professor da Universidade Federal de São Carlos, cujas ideias centrais são também compartilhadas por outros analistas conterrâneos, teria sido inculcado no imaginário maranhense um sentimento de aceitação resignada do processo de aprofundamento do domínio político oligárquico, que acabou conduzindo a mentalidade inclusiva a um estágio de servidão voluntária, fenômeno que teria levado o Brasil a esquecer do Maranhão, reforçado pelo posicionamento das elites locais, que, mesmo aquelas que não obtêm vantagens diretas, permanecem em uma espécie de eterno e respeitoso silêncio frente à dura e desafiadora realidade estadual, na qual se destaca a exasperante questão política. Como nos regimes fechados e plutocráticos, os que têm juízo são os primeiros a obedecer; no torrão timbira essa regra se amplia, virando medo cego das flechas voadoras que poderão levar ao desamparo, real ou figurado, dos insurgentes. Inspirado na magia do 13 e nas circunstâncias referidas, vinculo-me à tese de que o medo atávico que permeia a formação social maranhense tem na manipulação das consciências o seu principal fator de reforço e propagação. Medo e falsidade andando juntos significam uma carga genética de alto poder destrutivo, 26
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sobretudo pelos impactos negativos nos ainda precários vínculos de sociabilidade humana entre maranhenses, impeditivos do seu desenvolvimento político e civilizacional. Teço essas considerações como pano de fundo para homenagear a memória de Jackson Lago, já com seis anos após o golpe que levou à sua cassação; período este que se apresenta fortemente emblemático, sobretudo pela inexorabilidade da passagem da ampulheta do tempo, que coloca nos ombros das gerações atuais principalmente, seja maduras e juvenis, a responsabilidade histórica de (re) inventar o Maranhão. Impossível deixar de perceber que o período das capitanias hereditárias ensaia os primeiros passos rumo ao ocaso e, em paralelo, que é possível vislumbrar novos túneis do tempo se abrindo e em processo de gestação no território, que se espera sejam capazes de colocar o Maranhão em definitivo no século XXI. Por mais que adversários poderosos afirmem o contrário, Jackson foi um maranhense que colocou a sua vida de líder político a serviço de várias gerações, inclusive das muitas que hoje se apresentam como portadoras das mudanças, resistindo ao medo e à falsidade. Tirar o Maranhão do extravio significa passar a limpo as falsidades que turvam a memória maranhense. Acredito que se combate o medo com o primado da verdade. O compromisso com a desmistificação da realidade maranhense é um dever cívico que ultrapassa interesses partidários e de grupos. A condição de líder e símbolo da resistência política no Maranhão faz de Jackson Lago uma biografia indispensável para a construção do novo momento histórico. No momento em que um outro cenário político e cultural tende a se materializar, mesmo que não se materialize em curto prazo, seja para o bem ou para o mal, assoma, como dever histórico, a necessidade de que se clarifiquem as várias circunstâncias 27
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que levaram à queda do governo Jackson, que tinha como missão, entre outros desideratos, reduzir a longevidade do próprio poder oligárquico local. O imperativo do respeito à verdade exige que se revele às atuais e novas gerações a sórdida manipulação de consciências adotada pelo poder dominante, responsável pela cassação do seu mandato como chefe do poder executivo, fundamental para a reconciliação da biografia do líder político com os seus concidadãos-eleitores, os quais, por toda vida, viram em Jackson um exemplo a ser seguido no campo ético e político. O infortúnio de Jackson foi não dispor de armas e munições inteligentes no plano midiático e político, capazes de se contrapor e derrotar os seus ferozes e perigosos inimigos. O dilema de Jackson foi não contar com quadros que, mesmo em desvantagens flagrantes, não foram suficientemente engenhosos e inteligentes a ponto de promover dúvidas e incertezas entre as hostes inimigas e adversárias. O drama de Jackson foi não ter tido condições de vencer o medo e a mentira que estavam impregnados na mentalidade de ampla maioria dos maranhenses, que se calaram diante da infâmia e da ignomínia. Além de ter enfrentado a força e a fúria das oligarquias e seus grupos de interesse, daqui e alhures, Jackson e seus imperativos éticos bateram de frente com grupos econômicos poderosos, com interesses claros e adredemente definidos para o contexto local. A transferência dos recursos públicos do Bradesco para o Banco do Brasil, no início da gestão, é um bom exemplo. Tratava-se do maior conglomerado financeiro privado da América Latina, um dos acionistas da Vale, que aqui operava em flagrante descumprimento da Constituição do País, que exige a gestão dos recursos públicos em bancos públicos. A Diretoria do Bradesco 28
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para cá se deslocou e o Governador foi obrigado a expor os seus argumentos, subsidiado por pesquisa em que a quase totalidade dos servidores indicava a necessidade de que tal transferência acontecesse. Recordo-me de reunião reservada da então Ministra-Chefe da Casa Civil, que, em nome do Presidente da República, pediu ao Governador Jackson que repensasse a decisão da transferência dos recursos do Bradesco para o Banco do Brasil, levando-o a proferir a frase lapidar: “Ministra, eu fui eleito para defender os interesses da população do Maranhão!”. Não há dúvida que a severidade de tratamento dado ao Maranhão pelo Governo Federal inicia-se ali. O Projeto Rio Anil (PAC Rio Anil) ilustra bem. Enquanto a contrapartida dos recursos do PAC era de até 20% para os Estados mais pobres, o Maranhão teve que suportar uma contrapartida de 50%, metade-metade, para realizar o Projeto. E mais: toda a obra realizada até a cassação foi quase integralmente garantida com recursos do tesouro estadual, uma vez que a parte do Governo Federal era transferida a passos lentíssimos. É fácil deduzir o papel e a influência do Governo Federal nos desdobramentos políticos posteriores. Os tempos atuais exigem atenção redobrada e sobretudo atitudes firmes e corajosas. Precisa-se renunciar ao estatuto da servidão voluntária. Necessita-se abominar a praga de Vieira, que, em seu famoso Sermão da Quinta Dominga da Quaresma, em 1654, afirmava que no Maranhão não há verdade, e por isso até o sol e os céus mentem. Não creio que o Brasil tenha esquecido do Maranhão e que, por isso mesmo, a sua libertação esteja condicionada a esse reconhecimento. Na verdade, a única forma de se incorporar o Maranhão ao Brasil começa aqui e dependerá daqui. A construção de novos vínculos telúricos e antropológicos, necessários à ressignificação do sentimento de pertencimento do
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nosso povo à sua cultura, é o caminho mais eficaz para a reinvenção maranhense, esperada, desejada e sonhada por todos. Não é demais lembrar que no Maranhão a República permanece como uma dualidade que não termina: nunca se implanta e o domínio dos coronéis e oligarcas sempre permanece vivo. No período vitorinista, o Maranhão era conhecido no Brasil como a Universidade da Fraude. A herança é muito pesada. Muito mais para o mal do que para o bem. Muita sorte com o 13 ou inspiração com o 12 mais um.
3 MARANHÃO: O ESTADO DAS INJUSTIÇAS O predomínio de injustiças escandalosas na sociedade é produto da engenharia política presente no contrato social. Casos recentes de trabalho escravo em obras públicas estarrecem. São contextos marcados por profundas diferenças entre os que formam o tecido social. Uma camada pequena que concentra e centraliza poderes e riquezas, individuais e sociais; e uma larga base que se mantem em estado de necessidade e de subordinação intelectual e cultural. Tudo sob ora sutis, ora explícitas formas de dominação, apoiadas, sobretudo nas modernas tecnologias de informação e comunicação. O Brasil é um país desigual desde quando começou a colonização europeia. E dentro do Brasil o Maranhão é o lado mais expandido desse fenômeno. O mais grave de tudo não se resume a isso. O drama se agiganta quando a sociedade aceita passivamente as desigualdades e reverencia os seus promotores, conformando-se com a situação dada, vista por muitos como destino inexorável. Em uma de suas narrativas, Saramago fala do camponês espoliado de sua pequena gleba de terra, que, depois de ter tenta30
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do, por todas as vias, reavê-la, sem sucesso, ingressara na Justiça e nada acontecera, pois, a justiça também sucumbira à ganância do senhor do lugar. Imagina o camponês, como saída, tocar um sino, pois replicaria, segundo sua crença, por todos os sinos do universo, de “aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e mares e que não se calariam até que a justiça fosse ressuscitada”, e a sua gleba, recuperada. E nada disso acontecera. O mais dramático em sociedades assimétricas, como a maranhense, é quando se tem a sensação de que a justiça se esvaiu, ensurdeceu-se. Aquela justiça que o sineiro procurou em vão. Justiça que, se existisse, impediria a condenação de boa parte dos maranhenses à fome, às doenças e à pobreza. O personagem do escritor português acreditava que poderia despertar a justiça com o badalo do sino. “Por quem os sinos dobram” é o título de um romance de Ernest Hemingway, uma de suas obras primas, publicado em 1940, fruto do seu trabalho jornalístico, cobrindo a guerra civil espanhola. Conta o drama do personagem central que recebe a missão de explodir uma ponte e isolar as tropas fascistas. No trajeto até o alvo o jovem norte-americano conhece outros tipos humanos e até se apaixona por uma mulher, desesperando-se ao procurar o sentido da guerra frente à condição humana. Para a composição da obra, Hemingway inspirou-se em um poema de John Donne, poeta inglês do século XVII, para quem”...a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.” No Maranhão os acordes do sino do camponês espoliado não são ouvidos porque há uma surdez no ar que enrijece e torna os corações partidos. Há um medo sombrio que fecha o peito 31
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para ouvir e sentir o cântico dos oprimidos e espoliados. Medo que leva a maioria a se proteger em casulos fortificados, inclusive soldados valorosos que se comprometeram em explodir as pontes por onde o atraso político deveria ser impedido de passar. Com efeito, além de refletir sobre o comportamento humano em situações extremas, “os sinos dobram”, tanto em Saramago, como em Hemingway, para realçar a importância da luta contra a apatia, a indiferença, a neutralidade, a passividade. No Maranhão os sinos deverão voltar a tocar. Nada condena o povo maranhense a permanecer para sempre alienado dos seus direitos políticos fundamentais. Os sinos espalhados pelo estado afora, aguardam os sineiros da liberdade e da justiça. Seus sons cobrirão rios, estradas e todo o território na luta pela democratização do Estado, com o consequente fortalecimento da cidadania, pela garantia dos direitos humanos e transparência do poder público, pelo controle social, no contexto de um planejamento participativo. A supremacia da justiça e da democracia, tanto na ficção como na realidade, sempre será decorrência de atitudes firmes, corajosas e idealistas, como a do agricultor espoliado ou a do soldado que ofereceu a própria vida para que a opressão e a tirania do fascismo e do nazismo não prosperassem. Além do inconformismo e da vitória sobre a indiferença, os sinos no Maranhão dobrarão quando o fascínio enlouquecedor pelo poder for superado e aqueles que se colocam como vanguarda estiverem ética, moral e tecnicamente em condições de fazerem os sinos dobrarem em sinfonias harmoniosas, que favoreçam a confiança popular em novas formas de conceber e realizar a política, referida à sua identidade cultural e à valorização da diversidade do patrimônio material e imaterial do povo
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gonçalvino, sob a inspiração luminosa da justiça e da democracia para todos e cada um. O futuro do Maranhão não pode ser adiado outra vez. Inaceitável que a lógica e a dinâmica de um sistema de dominação política que atirou ao lixo os sonhos de várias gerações permaneça incólume por todo o sempre e continue engendrando estratagemas para manter em funcionamento suas armadilhas contra a democracia e a liberdade. Que se ergam os sineiros e que os sinos voltem a dobrar em favor da justiça. Para desmontar as armadilhas espalhadas pelo caminho e colocar o Estado nas mãos do povo é preciso não só coragem e determinação: sem competência e inteligência política o risco de os sinos continuarem mudos é muito grande.
4 MARANHÃO: O ESTADO DA HIPOCRISIA Os grupos políticos hegemônicos, de extração plutocrática e oligárquica, que se apoderaram do governo no Maranhão nas últimas décadas, alicerçaram seus poderes na invenção de um complexo sistema de imposturas, que se manifesta como charlatanice, fingimento, falsa devoção e cinismo. Os donos do poder se consagram e se fortalecem não por suas virtudes éticas ou por suas contribuições ao desenvolvimento da democracia e da sociedade, mas, sobretudo, pela capacidade de tapear a maior parte da população com falsos e irrealizáveis projetos de desenvolvimento. Não precisa ir muito longe para comprovar o que se diz. Estereótipos como Maranhão Novo, Terra da Promissão, Maranhão: Meu Torrão, Minha Paixão são alegorias clássicas dessa peculiar maneira de incutir no imaginário popular a ideia de um Maranhão amado e fadado ao paraíso. 33
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Falsidades e cinismos que se baseiam em imagens interpostas entre o indivíduo e a realidade, com caráter totalmente subjetivo e pessoal, que se integram no sistema de valores das pessoas. Tratam-se de generalizações falsas e reveladoras de manipulações burlescas da desinformação e baixo conhecimento das pessoas, cuja realidade não se esforçam em modificar, posto que é nesse terreno que fertilizam suas estratégias de dominação. A consequência do aludido processo vem sendo o fortalecimento de uma cultura política que engendra uma devastadora alienação social em termos de acesso e usufruto dos benefícios gerados pelo crescimento econômico e pelas melhorias das condições de vida no seio da sociedade, que acabam canalizadas quase sempre na direção de poucos privilegiados. Produz-se então um mundo fantasioso, no qual pontificam, de um lado, bacamartes enlouquecidos pelo poder e, de outro, policarpos-quaresmas totalmente ingênuos diante do ilusionismo dominante, prisioneiros de utopias distantes, que ora se manifestam às avessas nas oposições pulverizadas, ora na intelectualidade orgânica delirante. A questão posta na arena política atrela-se a uma indagação crucial: até onde vai e quando se dará a dissolução do sistema de imposturas reinante? Simão Bacamarte, médico conceituado que decidiu transformar-se em psiquiatra por livre e espontânea vontade é personagem de Machado de Assis, em o Alienista, longo conto escrito em 1882, que se ampara em argumentos pretensamente científicos e de teorias que formula ao sabor da evolução dos acontecimentos, para atuar como ditador e déspota esclarecido, ao rotular de loucos aqueles que lhe desagradam. Seu poder imperativo tem a ‘ciência’ como fonte, da qual se considera representante legítimo, juiz e executor na pequena cidade de Itaguaí.
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O romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, publicado por Lima Barreto em 1911, discute a identidade nacional e o nacionalismo, abordando o abismo existente entre as pessoas idealistas e as oportunistas. No contexto da Revolta da Armada, Quaresma escreve uma carta a Floriano Peixoto denunciando a situação de abuso de poder e violação dos direitos humanos, no que acaba sendo injustamente preso, acusado de traição e condenado ao fuzilamento. No final, Policarpo conclui que a pátria dos seus sonhos e sacrifícios não passava de uma triste ilusão. As duas obras ficcionais tratam de forma tragicômica das especificidades da brasilidade em construção, das quais a maranhensidade é caudatária, sedimentadas sem tradições populares ancestrais, diferentemente do que aconteceu em países europeus. Não são poucos os estudos reveladores de uma identidade nacional concebida no bojo de um passado inventado pelos escritores do Romantismo e reforçada pelo poder político, no que também a maranhensidade não foge à regra. No Maranhão, induzidos pela dinâmica política nacional recente e pela experiência histórica nefasta do sistema oligárquico local é possível vislumbrar-se outro Quaresma, mais conectado com a realidade, que levará fatalmente ao ocaso o bacamartismo alienante que imperou por décadas. Se a força das ruas se instituir como poder social, quem aqui ousará se julgar acima do bem e do mal, separará pessoas, grupos, rotulando a uns de incompetentes, a outros de débeis ou ultrapassados? Quem disporá de poder absoluto, acima do bem e do mal? Quais pessoas ou grupos farão a Justiça se vergar, julgar e condenar fora dos autos? Quem terá o poder de atropelar o Judiciário, obrigando-o a amordaçar a liberdade de imprensa? Quem mandará no Congresso, no Executivo, no Judiciário e nas Comunicações brasileiras sem dó nem pena, como uma espécie de Alienista tardio? Quem deterá o poder da comunicação para condicionar a população a ver e ouvir apenas o que lhe interessa? Quem desinformará a população diariamente, com o poder de 35
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fogo de dezenas de TVs, rádios e jornais, por conta de uma comunicação verticalizada, arbitrária e antidemocrática, que diz e esconde o que quer? O longo período de dominação oligárquica do governo produziu um poder estatal cada vez mais incapaz de atender satisfatoriamente às demandas da sociedade por serviços públicos básicos de qualidade para todos. As prioridades dos governantes no poder sempre foram com o fortalecimento de alianças oportunistas com o governo federal, controle do poder municipal, cooptação de lideranças e intelectuais orgânicos e estabelecimento de parcerias estratégicas com grandes empresas nacionais e internacionais. Os direitos de cidadania, aqueles que garantiriam o equilíbrio da balança, sobretudo nas dimensões sociais e políticas, foram inapelavelmente relegados a décimo plano, ou a plano nenhum. Se para o Brasil é este o nó górdio da política, na medida em que os interesses econômicos sobrepujaram o atendimento às necessidades sociais, para o Maranhão uma pressão organizada sobre esses déficits sociais acumulados poderá fazer o império tremer, abrindo oportunidades concretas de renovação política. As ruas estão reagindo às imposturas e tendem a ser implacáveis com os tiranos e déspotas que manipulam a história recente do país. O que se anuncia é o fim de uma passividade tolerante, ainda que o cenário aparente não se revele na sua inteireza. Muita água deverá passar por debaixo da ponte até que as nuvens clareiem o horizonte do porvir. Nem muito próximo, como professam alguns, mais por desejo do que por análise da história; nem muito longe, como preveem outros, que, por covardia e medo, gostariam de ver eternizado o reino da hipocrisia.
5 MARANHÃO: UM PROJETO NEGADO Relembro que os indicativos da conjuntura política nacional e suas imbricações com a conjuntura política maranhense sinalizavam que as eleições majoritárias de 2014 seriam as maiores 36
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de todos os tempos, principalmente em função do seu evidente caráter plebiscitário. A população foi chamada a decidir sobre a condução política dos negócios públicos, optando entre a continuidade de um sistema de poder controlado por um grupo político oligárquico, que detém o domínio por décadas, e uma frente de oposição que resiste ao grupo, por igual tempo, renovada e ampliada pela participação de novos atores, inconformados com a situação reinante. Pelas evidências expostas na sociedade inclusiva foi uma luta de foices. Nunca se viu tantas obras públicas sendo incrementadas como naquele período, chegando-se ao cúmulo de algumas delas estarem sendo feitas em duplicidade, como a MA/BR 402, que liga São Luís a Barreirinhas, que continuava sendo asfaltada por mero luxo. No ambiente midiático e nas redes sociais os grupos dominantes usaram e abusaram do poder que ostentam, e iam além das sutilezas em suas estratégias de marketing eleitoral, executadas antes do tempo permitido pela legislação em vigor. Tudo aparentemente estaria transcorrendo conforme o esperado, a não ser por um detalhe altamente preocupante: a total omissão quanto à explicitação de um novo projeto para o Maranhão, capaz de equacionar a transição política e indicar os novos rumos a serem seguidos para garantir o desenvolvimento sustentável e a superação de suas cada vez mais insuportáveis assimetrias sociais e econômicas. O que asseveravam sobre o assunto não passava de lugarescomuns e palavras-de-ordem, fragilíssimos quando se referiam à explicitação de questões operacionais, envolvendo o que fazer e o como fazer, fundamentais para uma nova contextura política que nasceria da superação das armadilhas postas pela realidade ao longo de décadas. Um dos pioneiros a trabalhar a ideia de projetos de nação no país foi José Bonifácio de Andrada e Silva, o chamado “Patriarca da Independência”.
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Em iniciativa conjunta da Publifolha e da Companhia das Letras, pode-se encontrar as propostas de Bonifácio, organizadas por Miriam Dolhnikoff, denominadas de “Projetos para o Brasil”, obra esta publicada em 2000. Nome importante no pensamento brasileiro, de grande valor histórico, não conseguiu escapar, todavia das influências da época e o seu projeto reformista esteve sempre referido a uma visão de nacionalidade que fosse semelhante à civilização europeia, onde passou a maior parte de sua vida. Os economistas sempre defenderam a ideia de um projeto nacional de desenvolvimento. O autor mais consagrado quanto a isso é Celso Furtado e o seu clássico Um Projeto para o Brasil, escrito em 1968, sem ter sido o único a se aventurar nessa matéria. No mesmo quadrante, a obra do maranhense Ignacio Rangel, que passou a vida toda compondo a partitura de um projeto de desenvolvimento para o país. No Maranhão, sem dúvida, foi Bandeira Tribuzi quem mais contribuiu nessa direção, trazendo uma visão mais moderna, em um momento em que a economia maranhense passava a inserir-se, de modo diferenciado, na nova divisão do trabalho em curso no país, sob hegemonia econômica do centro-sul brasileiro. Desde que me dei conta como economista que ouço os mais antigos dizerem que é preciso escrever um projeto para o Maranhão. Hoje pouco se fala nisso, talvez pelo esvaziamento da ideia face às novas prioridades dos contemporâneos, que não se empolgam tanto com reflexões e subjetividades e se preocupam exclusivamente com o imediatismo. Praticamente desde a segunda metade do século anterior até hoje os governos estaduais e municipais pouca bola deram para o tema. Embora os órgãos de planejamento governamentais, a partir do governo federal, tenham experimentado a fase de modernização, marcada pela priorização de planos e projetos de de-
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senvolvimento, tanto na época do desenvolvimentismo, como no período do regime militar, os referidos planos estiveram sempre atrelados a ideias nacionais do que a propósitos regionais e muito menos estaduais e locais. No plano estadual, por vários anos, prevaleceu a prática dos planos de governo, que mobilizavam os quadros técnicos existentes, mas que, a rigor, não tinham sentido prático, pois não saiam do papel. No caso maranhense, o fortalecimento do planejamento teve a ver com a criação da Sudema e depois do Ipei-Fipes-Ipes, institutos de pesquisa interrompidos por longo período, retomado no governo Jackson Lago, recentemente, com a criação do Imesc. Para assumir a liderança desse novo processo de desenvolvimento estadual, tenho refletido ultimamente e deixado escrito em minhas análises sobre o Maranhão, o setor governamental necessitará de um planejamento norteador e, ao mesmo tempo gerencial, capacitado para resolver problemas, competindo-lhe sobretudo garantir a eficácia das políticas públicas que estarão sob sua responsabilidade, não sendo possível cumprir esse papel estratégico adotando um sistema de gestão pública centralizada e hipertrofiada, como tem sido a marca das experiências passadas, que resultaram na perda de confiança do povo maranhense na capacidade dos governos de administrarem os graves problemas sociais e econômicos que imperam nas cidades e no interior. Escapar das armadilhas que foram espalhadas pelo Maranhão afora não será tarefa de amadores e muito menos de oportunistas. Os maranhenses carregam em seu imaginário uma ambiguidade irresoluta: o complexo de vira-lata e a ideia de superioridade cultural, ambas, essencialmente, fruto de mitos manipulados pelas camadas dominantes. Desapontados consigo mesmos, pela incapacidade real de resolverem esse impasse artificialmente criado, preferem buscar em terceiros a solução dos seus problemas existenciais e das instituições às quais se vinculam. 39
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Colocar o Maranhão pelo avesso passará inexoravelmente pelo desafio de dar vida a um projeto orgânico de inclusão social para o povo maranhense. Talvez seja a forma de finalmente escapar dos fantasmas e dos pesadelos que atormentam a autoestima do povo e enfraquecem a sua disposição de lutar por um futuro melhor.
6 MARANHÃO: O DESASTRE DA DÍVIDA PÚBLICA Conforme estudo de Lúcia Fatorelli, da previsão orçamentária para 2014, equivalente a 2,4 trilhões, 42,42% do referido Orçamento da União serão para pagamento de juros e serviços da dívida pública. Nenhuma política governamental disporá de recursos que, minimamente, se aproximem desse patamar: na saúde não chegará a 4%, na educação a pouco mais de 3%, nos transportes ao redor de 1% e na segurança pública a ridículos 0,35%, apenas para citar aquelas políticas públicas supostamente consideradas mais que prioritárias pelos que governam o país, dados os clamores sociais. Se no plano federal a situação possui esse contorno paradoxal e desafiador, na esfera dos estados, em muitos casos, o panorama é desastroso, como a situação maranhense, em particular. As dificuldades começam pelo fato de que algumas unidades federadas não contam com equipes técnicas capazes de discutir a sua dívida fundada com o Governo Central. Limitam-se, tão somente, a contabilizar a amortização do capital e pagar os juros e acessórios incidentes sobre a dívida, pagamentos que, de resto, já vêm devidamente subtraídos das receitas do Fundo de Participação dos Estados, pelo fato da União ser a fiadora dos empréstimos internacionais que os estados contraem. Raríssimas exceções à parte é precisamente este o caso do Estado do Maranhão, que exerce apenas o controle contábil do montante da dívida pública.
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Ao tempo do governo Jackson Lago, e por decisão do Governador, que queria pôr a limpo a natureza e o montante da dívida contraída ao longo das administrações anteriores, contratou-se consultoria especializada para auditar a dívida fundada do Estado, com cláusula de sucesso, tarefa que consumiu muitas horas de trabalho e propiciou oportunidade única de reflexão crítica da parte da SEPLAN. Os resultados preliminares da auditoria deixavam claro que a União sobrecarregava o Tesouro Estadual com acessórios financeiros não previstos nos contratos originais, além de terem sido identificados pagamentos em duplicidade, tanto de encargos, como de prestações. O trabalho de auditagem ficou inconcluso em virtude da cassação do governador, mas até onde a investigação pode ir, já se antevia o ressarcimento de centenas de milhões de reais, pagos indevidamente aos cofres da União. A dificuldade inicial consistia na conciliação de contas com o Banco do Brasil, na qualidade de agente financeiro do Tesouro Nacional. Desacostumado a ser interpelado sobre a justeza dos encargos que cobrava, referida Instituição relutava em consentir que houvesse incorrido em erro nos juros incidentes, quanto mais na duplicidade de prestações. O argumento de poder era que, somente fundamentada na análise de uma auditoria do mais alto nível de especialização e competência, o governo Jackson poderia intimar o BB a provar a justeza dos seus cálculos, para assim confirmar o que cobrava, situação que poderia levar o Banco a ressarcir o Tesouro Estadual dos recursos que haviam sido subtraídos ao longo de muitos anos. Nesse meio tempo, o governo Jackson Lago tomou a decisão histórica e corajosa de transferir do Bradesco para o Banco do Brasil todos os recursos do Tesouro – recursos em bancos públicos é a regra constitucional que não era observada pelos governos
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anteriores, vindo, em seguida, a transferir também a folha de pagamento dos funcionários do Estado, tendo se baseado em pesquisa de preferência, na qual mais de 90% dos servidores optaram pelo BB. Essa medida criou um ambiente propício às discussões sobre a justeza dos números da dívida pelo BB, mas fez com que se voltasse contra o governo a ira do BRADESCO e da VALE, em cujo capital aparece o Fundo de Previdência daquele banco, levando também a que perdesse rápida e surpreendentemente a simpatia do Governo Federal. Tudo isso era pouco. O Estado precisava, de fato, elevar a sua capacidade de investimento, o que só seria possível pelo alongamento do perfil da dívida pública. A estratégia para isso era chamar o Banco do Brasil à responsabilidade conjunta pela renegociação da dívida junto ao Tesouro Nacional, com o lançamento de títulos públicos no mercado internacional, avalizados pela União. Essa era a negociação madura que iria destravar o investimento público, negociação de resto frustrada com a cassação imoral do ex-governador Jackson Lago. Além da paralisia dessas negociações, essenciais para restabelecer o fluxo de investimentos públicos, vem agora a informação de que o Estado do Maranhão celebra (ou celebrou) operação de crédito externa com o Bank ofAmerica e a Merril Lynch (BofaML), no valor de US$ 661.967.121,34, para quitação dos “resíduos” das Leis 8727 e 9496 (Parecer PGFN/COF/Nº 1224/2013, de 24.06.2013). Vale lembrar que tais dívidas são remanescentes da CAEMA e da COHAB, além de outras do próprio Governo, constituídas nas décadas dos anos 1980 e 1990, justamente dívidas que estavam sendo contestadas, por estarem eivadas de erros e inconsistências. No caso específico da Lei 8727/93, da qual a maior devedora é a CAEMA, os devedores podiam optar por pagar 60%, inicialmente, já que os 40% restantes ganharam carência parcial, nos exatos termos do art. 13 e seus parágrafos da lei em comento.
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O Banco do Brasil, equivocadamente, considerou toda a dívida inadimplente, aumentando artificialmente o seu valor. Basta questionar e demonstrar os dados, como estava sendo feito, a despeito da má vontade da Secretaria do Tesouro Nacional com a qual se travou duro diálogo, para requerer o ressarcimento ao Tesouro Estadual dos valores cobrados indevidamente. Refinanciá-las, como fez equivocadamente o governo de então, por se tratar de dívida parcialmente inexistente, é tornar quase impossível o seu questionamento futuro. A propósito, tais dívidas estão sendo refinanciadas pela Merrill Linch, exatamente a mesma casa bancária que recebeu a confissão de inúmeras dívidas externas do primeiro governo de Roseana Sarney. Coincidência, não? Uma análise sumária da dívida do Estado, a partir do Relatório de Gestão Fiscal enviado à Secretaria do Tesouro Nacional, por exigência da Lei de Responsabilidade Fiscal, com base em 31 de agosto de 2013, revela que o governo de então omitia a dívida com a Previdência do Estado. E mais: se o Estado tem uma Receita Corrente Líquida (RCL) de R$ 9.135 bilhões; gastos de pessoal de R$ 3.914 bilhões; uma dívida consolidada líquida de R$ 4.501 bilhões; se o limite de comprometimento com o pagamento das dívidas gira entre 13% da RCL, portanto da ordem de R$ 1,2 bilhão, vale perguntar: em quais projetos foram gastos os R$ 4,0 bilhões, pois esse é o valor disponível, depois de deduzidas as despesas com pessoal e somados aos gastos com o pagamento da dívida, conforme os números oficiais acima. Interessante, não? No sistema penitenciário do Estado, com certeza, não foi. O Governo de Roseana Sarney pagou R$ 1,2 bilhão em 2012 e R$ 2,2 bilhões em 2013 de amortizações e encargos da dívida fundada ou consolidada, como é também chamada. É muito dinheiro subtraído das prementes necessidades da população. Que necessidade tem agora o Governo de endividar ainda mais o povo maranhense, contraindo novos empréstimos de bilhões 43
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de reais junto ao BNDES, sem qualquer projeto estruturante com capacidade de dinamizar e empurrar a economia do Estado pra diante? Asfalto em áreas urbanas, de cunho puramente eleitoreiro, como é o propósito anunciado pode justificar tamanha irresponsabilidade com a coisa pública? Quando se planejou, no governo Jackson, encaminhar carta consulta ao Banco Mundial para um financiamento de U$ 300 milhões, a destinação era para os estudos da montagem da infraestrutura necessária ao transporte de massa e de carga, energia, água e lixo industrial da Grande São Luís (Bacabeira, Rosário, Santa Rita, etc), em vista da possibilidade de implantação da Refinaria Premium, da Siderúrgica do Mearim e de um novo Porto de recepção de insumos e escoamento da produção. Quer dizer, projetos estruturantes em que não se deixava de lado a preocupação com os impactos ambientais. Além disso, deve-se atentar para a existência do passivo financeiro de bilhões de reais, por dívidas ajuizadas contra o Tesouro Estadual, algumas delas com trânsito em julgado e prestes a constituírem-se em precatórios, e que são remanescentes, predominantemente, da CAEMA e da extinta CODERMA, tendo como credores a Mendes Junior, a Andrade Gutierrez, a Constran e outras. Pobre Maranhão! Lições a se tirar de tudo isso: as oligarquias que se apossaram do Maranhão descomprometeram-se com a integridade do tesouro estadual, das finanças e recursos públicos, fato que tem levado o Estado a renunciar a receitas volumosas que poderiam mitigar os déficits sociais gritantes, presentes em todos os seus rincões; faltou à máquina governamental competência técnica específica para planejar e gerir suas finanças, dificultando plenamente a tomada de decisões acertadas; continuou-se sendo vitimas do imediatismo político, o que levou o planejamento do desenvolvimento local a uma preocupante falta de foco nos problemas e necessidades do desenvolvimento sustentável. 44
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O assunto da dívida pública continua mantido a sete chaves. Não entra em pauta por varias razões, principalmente pelo fato de que, se entrasse, levaria fatalmente ao desnudamento do poderoso jogo de interesses econômicos subjacentes e à revelação da incompetência dos grupos políticos dominantes na matéria, que omitem os problemas por total incapacidade e vontade de enfrentá-los, optando sempre pelos caminhos do marketing, a melhor estratégia para o continuísmo e para esconder a verdade. Há uma ameaça cada vez maior de explosão em decorrência da irresponsabilidade pública dos governantes que continuam desencadeando novos processos de endividamento e refinanciamento da dívida fundada maranhense, ampliando o volume de ativos financeiros falsos e indevidos, que já foram pagos em decorrência da incapacidade técnica e da omissão política das oligarquias. Os recursos abundantes que sobram para o pagamento da dívida são os responsáveis pelos recursos minguantes que faltam para o financiamento dos serviços públicos de consumo coletivo, como saúde, educação, mobilidade urbana e segurança. Aí estão as causas da precarização dos serviços de saúde, dos últimos lugares em analfabetismo, do caos no trânsito e das barbaridades em Pedrinhas. A principal lição aprendida em decorrência do longo período de domínio das oligarquias tradicionais no Maranhão, que agora se encontram sem projetos e sem credibilidade, é que, entre tantos outros erros e equívocos estruturais cometidos na condução dos negócios públicos, também não souberam preservar, desenvolver e proteger o Tesouro Estadual, sendo esta uma das principais razões da negação dos direitos humanos no Maranhão e das aviltantes desigualdades sociais que marcam a realidade maranhense no presente.
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Auditoria na dívida pública do Maranhão: uma prioridade Os números da dívida pública são alucinantes. O pagamento que o Brasil faz anualmente, relacionado a juros e amortização da dívida, consome, em média, 45,11% do orçamento federal. Percentual algumas vezes superior ao dispêndio com transferências a Estados e Municípios (9,19%); Saúde (3,98%) e Educação (3,73%). Em artigo publicado no “Jornal Pequeno”, em 2014, referime aos estudos de Lúcia Fattorelli, em que ela demonstrava que nada menos de 42,42% da previsão orçamentária federal daquele ano destinavam-se ao pagamento de juros e serviços da dívida pública. Em 2015, já sabemos que a conta junto aos credores chegará ao redor de 47%, justamente em razão do refinanciamento da dívida (troca de títulos do Tesouro Nacional por outros títulos), o que se traduz na prática de juros sobre juros, constitucionalmente proibidos, bastando compulsar a Súmula 121 do STF, que diz, taxativamente, “ainda que tenha se estabelecido em contrato, não pode”. Fattorelli foi convidada recentemente para examinar a dívida pública da Grécia, após ter prestado excelente serviço ao Equador (onde reduziu a dívida em 70%), mostrando que grande parte da dívida era inconsistente, muitas das quais já quitadas. A mesma coisa a auditora identificou na Grécia, fortalecendo sua convicção de que existe um “sistema da dívida”, baseado na utilização da dívida pública como veículo para desviar recursos públicos em direção ao sistema financeiro das grandes corporações. Seus estudos sobre a dívida brasileira são bem precisos e claramente descritos:que isso vem desde o governo Fernando Henrique, passando pelo de Lula e, agora, pelo da Dilma; elucida a balela do pagamento da dívida externa em 2005, de 15 bilhões de dólares (Governo Lula), mostrando que o Brasil trocou uma 46
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dívida com juros de 4% por outra de 19% ao ano, ao leiloar títulos do Tesouro Nacional para esse fim; demonstra que, no mínimo, mais de 50% da dívida pública brasileira é inconsistente e inconstitucional. O “sistema da dívida” é uma das mais eficientes estratégias de manutenção e fortalecimento do poder do capital financeiro na ordem global. Seu objetivo é manter o controle sobre estados nacionais a partir das ramificações de seu poder na vida política e na estrutura econômica. O contínuo processo de privatização (entrega de patrimônio estratégico) no Brasil, a exemplo da Vale do Rio Doce, Usiminas, telefônicas, empresas de energia elétrica, hidrelétricas, siderúrgicas, e mais recentemente aeroportos, além dos mecanismos condenáveis de financiamento privado de campanhas eleitorais, comprovam a tese. Não há nada mais explosivo no Brasil hoje do que a epidemia da dívida, bem mais devastadora que a do mosquito, permanecendo, contudo, soterrada, “invisível”. A mídia está repleta de problemas, como inflação, saúde, educação, ajuste fiscal, corrupção, violência, e, ao mesmo tempo, fecha os olhos a fatos criminosos como o de pagarmos, todo ano, 962 bilhões de reais, referentes a uma dívida pública repleta de inconsistências, inconstitucionalidades e, incrível, sem evidenciação de contrapartidas para a população. Porque a política de transparência pública não chega lá? Pelos grandes números, o Brasil paga, por dia, pasmem, nada menos do que 2,63 bilhões de reais de juros aos credores. O estoque da dívida interna, no final de 2015, era de 3,9 trilhões de reais e da dívida externa de 545,3 bilhões de dólares. Impossível sair da crise e garantir o futuro do Brasil sem enfrentar esse desastre e os seus horrores. Como poderemos crescer e desenvolver nossa economiaconsumindo 50% do orçamento da União em pagamento dos juros e serviços da dívida, sem comprometermos irremediavel47
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mente o presente e o futuro das gerações mais novas? A recente história política do País mostra a talante que PSDB e PT mostraram-se impotentes para enfrentar e resolver essa questão, permanecendo subjugados às grandes corporações. Assim como aUnião, o Estado do Maranhão precisa auditar a sua dívida pública. A isto já me referi em 2014, em artigo com o título: Maranhão: o desastre da dívida pública. Considero-o ainda atualíssimo. O governo estadual não só deseja, como precisa, urgentemente, aumentar a sua capacidade de investimento, o que significa adotar essa medida com a máxima prioridade. Volto aos pontos cruciais da questão, destacados em manifestações anteriores: os resultados preliminares da auditoria que mandáramos fazer, no governo interrompido de Jackson Lago, deixavam claro que a União sobrecarregava o Tesouro Estadual com acessórios financeiros não previstos nos contratos originais, além de terem sido identificados pagamentos em duplicidade de encargos e prestações; que o Banco do Brasil, na qualidade de agente financeiro do Tesouro Nacional, relutava em consentir que houvesse incorrido em erro nos juros incidentes sobre a dívida, pois estava desacostumado a ser interpelado sobre a justeza dos encargos que cobrava; que o Estado estaria celebrando operação de crédito externa com o Bank of America e a Merril Lynch (BofaML), no valor de US$ 661.967.121,34, para quitação dos “resíduos” das Leis 8727 e 9496 (Parecer PGFN/COF/Nº 1224/2013, de 24.06.2013), e que isto se tratava de refinanciamento de uma dívida parcial ou totalmente já quitada. Ao ler a entrevista do senhor Governador do Estado, recentemente concedida ao “Jornal Pequeno”, em que mostrava o que foi possível realizar em 2015, o que pretendia realizar em 2016, e quais as dificuldades financeiras por que passam as finanças públicas estaduais – só de precatórios atrasados o Estado deve R$ 858.947.026,82 - resolvi voltar à esta questão da necessidade de auditar a dívida pública, como sugestão ao Governo, pois en48
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tendo que esse caminho, a médio prazo, poderá não só alargar a minguada capacidade de investimento público, como garantir ao poder público a centralidade no processo de desenvolvimento sustentável do Maranhão. A auditoria da dívida não se resume a uma mera bandeira político-ideológica. Não se trata da questão já superada de aplicar um calote nas finanças da “burguesia financeira”. Auditoria, em termos contemporâneos, é uma política de estado e uma estratégia de defesa da soberania nacional, feita com todo o rigor técnico. Precisamos mirar o amanhã sem tirar os pés do chão. Governar um estado tão complexo como o Maranhão requer capacidade e competência para resolver problemas, separando os falsos dos verdadeiros. Geração de competências, conhecimentos, emprego, trabalho e renda são desafios maiores que qualquer engenharia de poder. Não há mais como atribuir aos demônios a nossa incapacidade de enfrentamento dos problemas estruturais maranhenses. A esperança está viva, mesmo com tantas nuvens carregadas de tempestades. O nosso atraso é de mais de cinco décadas, em um país desnorteado. A instalação do novo governo estadual e dos 217 novos que se instalarão em menos de um ano representam a oportunidade de saltos de qualidade. O governo estadual assumiu em 2015 a responsabilidade histórica, política e cultural de liderar o novo momento que se abrirá. Só o conseguirá, todavia, se for capaz de trabalhar muito e com afinco, ousar pensar e desconstruir a engenharia de poder que alimentou e continua alimentando o atraso maranhense. Não há como superar os obstáculos sem tentar tirar leite das pedras e sem afastar definitivamente os nós cegos dados a favor dos privilégios e dos privilegiados. Auditar a dívida maranhense é o começo do exorcismo.
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O MARANHÃO COMO DESAFIO Raimundo Palhano3
Implementar políticas públicas que sejam capazes de distribuir de forma equitativa os frutos ampliados do crescimento econômico, numa perspectiva de materialização do bem comum do povo é o maior e mais antigo desafio colocado à inteligência maranhense e à capacidade de governar dos seus quadros políticos. Perseguindo o objetivo a que se propuseram os autores deste trabalho, qual seja o de situar analiticamente os conteúdos presentes nas políticas públicas emanadas do governo interrompido de Jackson Lago, no contexto da trilogia temática que serve de pano de fundo deste livro, no caso enigmas, desafios e urgências, cabe-me a responsabilidade de dar ênfase à segunda dimensão desta obra, a qual compreende os desafios colocados à época e que continuam projetados para o futuro imediato da formação social.
3 Foi Presidente do Instituto Maranhense de Estudos Socioeconômicos e Cartográficos (IMESC) no Governo Jackson Lago (2007-2009). Atualmente é consultor para educação junto ao Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), diretor da Escola de Formação de Governantes, membro da Academia Caxiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão.Economista formado pela Universidade Federal do Maranhão (1972), especialista em Planejamento do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Pará (1982), mestre em História Econômica pela Universidade Federal Fluminense (1987), com intercâmbio na área de planejamento educacional na Iowa StateUniversity (1977) e na Universidad Central de Las Villas (Cuba, 1987). Foi Diretor de Pesquisas do Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (Ipes), Pró-Reitor de Administração da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Presidente do Conselho Regional de Economia do Maranhão (CORECON-MA), Diretor Estadual da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae-MA), Presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime-MA) no Maranhão, secretário nacional de assuntos jurídicos da Undime Nacional, coordenador do Programa de Fortalecimento das Secretarias Municipais de Educação do Semi-árido do Ministério da Educação (MEC) e secretário municipal de Educação de Caxias-MA. Atualmente é consultor para educação junto ao Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), diretor da Escola de Formação de Governantes, membro da Academia Caxiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão. 52
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Escolhi textos publicados originalmente durante o período governamental (2007-2009) ou imediatamente após, numa tentativa de estimular o debate público à época e agora de comprovação empírica, embora tenham passado por revisões e atualizações necessárias aos objetivos da presente contribuição interpretativa. São desafios que evidenciam a vinculação com a temática e demonstram a necessidade de serem enfrentados na contemporaneidade, por continuarem desafiadores e requerendo superação efetiva. Procurei organizar a intervenção analítica sobre os desafios postos, tanto no passado recente, quanto no futuro imediato, tendo como estratégia de catalogação os próprios títulos que informam cada um dos tópicos desta seção, explorados, sobretudo numa perspectiva ensaística, a fim de assegurar maior força sanguínea ao esforço criador e interpretativo. Compreendem dez macros desafios que clamam por soluções que, certamente, poderão tirar o Maranhão do extravio, expressão que utilizo para homenagear a grande educadora maranhense Célia Linhares, de onde provém.
1 ESPÍRITO REPUBLICANO E DESENVOLVIMENTO HUMANO EFETIVO República e desenvolvimento humano são também duas das mais desafiadoras subjetividades do mundo ocidental. Cada vez mais nossos olhos são desafiados pelos encantos tentadores da liberdade e da democracia, fundamentais para se atingir o espírito republicano e o desenvolvimento harmônico e sustentável. O subproduto disso tudo se resume em duas estratégias de governo presentes o tempo todo no imaginário governamental, como transversalidade:libertar o Maranhão e construir uma sociedade democrática efetiva.
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Com certeza um binômio que estimulava um melhor aproveitamento das surpresas políticas na direção de outros renascimentos, muito embora as brechas fossem pequenas, sobretudo porque a democracia política sempre foi ambivalente e contraditória e a democracia econômica nunca existiu. A ordem mundial continua cada vez mais dirigida pelo mercado e por sistemas de comunicação e informação que neutralizam quaisquer formas de regulação e controle político de âmbito nacional ou local, ainda que também continue ambivalente e contraditória, sobretudo com a presença crescente das redes sociais e da internet. Tudo isso faz com que a questão do planejamento do desenvolvimento sustentável dos territórios e das regiões esteja crescentemente integrada às agendas nacional e mundial, posto que a necessidade de se instituírem novas formas de regulação política e econômica é urgentíssima, pois há que se resolver a questão crucial sobre como incluir na vida social ativa mais de dois terços de homens e mulheres excluídos de tudo, inclusive do próprio mercado. A atual crise dos refugiados fala por si. A quem compete o poder e a autoridade na vida social para enfrentar de modo positivo essa questão? Enquanto essa resposta não for dada, prevalecerão procedimentos de polícia sobre os de política, de coação sobre aqueles de coesão e de competição sobre os de cooperação. Nossos corações e mentes deverão se dirigir cada vez mais para o poder local, examinar-lhe o governo, o controle da sociedade e as ações contra a corrupção. As exclusões e desigualdades existentes no Maranhão comprovam que os governos não souberam defender os interesses da população. Todos agora deverão fazer o exame de consciência socrático: conhecerem-se a si mesmos para não se desviarem do caminho.
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A primeira das atitudes é aprender a respeitar como iguais àqueles que foram lançados nos porões da inferioridade, sabendo inclusive que muitos desses necessitam não só de reconhecimento,mas,sobretudo,de proteção e solidariedade. A segunda é a preparação para resistir quando, por vezes, o chão fugir aos pés e se ter que aprender a voar cada vez mais alto. O ponto de partida deverá ser a realidade local para que se criem raízes capazes de sustentar o desenvolvimento. Precisa-se ajudar a instituir mecanismos de participação para que a comunidade possa não só fiscalizar, mas também orientar as ações dos governos locais. Para isso necessita-se produzir um novo cenário de correlação de forças, única maneira de deter o processo de satanização da política junto ao imaginário popular. Sabe-se que as duas palavras do ideograma chinês para crise são risco e perspectiva. É assim que se deve tratar a crise atual. Minimizam-se os riscos aprofundando conhecimentos sobre o contexto. Será o ponto de partida para gerar novas perspectivas. Muitos governos locais não sabem (ou não querem) superar as crises porque poucos conhecem de si mesmos. Não se pode mais dar-se ao luxo de cruzar os braços diante desses casos. Os cofres estão cada vez mais vazios. Muitos secaram pela ação deletéria de corruptos criminosos, que fizeram da corrupção não um fenômeno episódico, mas uma ação metódica. Eis porque ocorre a valorização e a imprescindibilidade de atitudes e comportamentos éticos que deverão ir além do meramente formal, a ponto de se alojarem firmes e definitivamente no coração da humanidade, no coração timbira e africano. O núcleo orgânico do governo Jackson envolveu-se crescentemente com essas questões de alta filosofia política. Mergulhos e imersões recorrentes abriram corações e mentes para a ousadia de 55
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pensar e agir de uma forma nova. Com as almas cheias de valores e de muita metafísica um novo mapa se delineava para fazer a ponte entre o deserto árido e deserto fértil que se descortinava. Entre a república que não houve, mas que será e um desenvolvimento que não ia além dos meios de produção e acumulação, bem distante do foco na condição humana.O desafio mora no termo “efetivo”. Precisa ser tratado como concretude, longe das formas promocionais, efêmeras como tudo que sai na mídia.
2 CONSTRUIR UM NOVO MODO DE GOVERNAR O Plano Plurianual-PPA representa um dos principais instrumentos de planejamento dos governos, em seus vários níveis – da união, dos estados e dos municípios, sendo uma obrigação constitucional a que os referidos entes da federação têm que cumprir no primeiro ano de gestão, com validade até o primeiro anuênio do governo seguinte, em nome do princípio da continuidade. No Governo Jackson assumiu a condição de repositório dos sonhos por um novo modo de governar o Maranhão, engenho e arte voltados a empoderar o planejamento governamental como instância dotada de competência real para garantir a efetivação de políticas públicas comprometidas com o bem comum do povo. Houve margem para sonhar com ideias como as defendidas por Fábio Comparato de um planejamento autônomo para eleger e implementar prioridades públicas democraticamente definidas. O PPA do Governo partiu de uma visão de futuro para ospróximos quatro anos, inspirado nas diretrizes estratégicas definidas a partir de ampla participação da sociedade civil e organizações não-governamentais das várias regiões de planejamento do Estado. Foi trabalhado como o instrumento inaugural da nova cultura política posta como desafio maior. 56
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O PPA como peça eficiente da racionalidade administrativa compõe-se de Programas e Ações a serem implementadas ao longo do seu prazo de vigência. Contempla indicadores para cada um dos programas e metas de cada uma das ações previstas, mecanismos esses necessários para a efetivação do seu monitoramento permanente. O PPA 2008-2011, produzido pelo Governo, para vigorar no referido horizonte, foi elaborado em 2007, conforme a legislação específica. Mantém articulações próximas com a Lei de Diretrizes Orçamentárias-LDO, que envolve as metas e prioridades para o exercício financeiro subsequente, e orienta a elaboração da Lei Orçamentária Anual- LOA,que supre os recursos previstos e necessários para cada uma das ações contempladas na LDO. O objetivo focal deste PPA forte era a definição de metas e prioridades para a administração pública, dentro de um leque temporal, no caso um quadriênio, numa perspectiva de transformação social. Para isso, buscou organizar e sistematizar em programas, as ações necessárias ao atendimento das aspirações da sociedade, sem descuidar do estabelecimento das conexões entre os programas e as orientações estratégicas do governo. Tudo isso para garantir uma maior e melhor integração entre as ações desenvolvidas pelos entes federativos da nação, potencializando o objetivo estratégico de tirar o Maranhão do atraso e do isolamento. Dentre os seus objetivos operacionais merecem iluminação a busca da transparência quanto às aplicações de recursos e aos resultados obtidos, as orientações a respeito da alocação de recursos nos orçamentos anuais, as melhorias quanto ao gerenciamento das ações governamentais, além dos estímulos adequados ao incremento das parcerias com entidades privadas, o setor empresarial e as organizações não governamentais.
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O ano de 2008 representou o segundo momento do ciclo de gestão do PPA, no caso o início da execução do Plano; em 2007 cumpriu-se a primeira etapa, a da elaboração e executou-se o último ano do Plano deixado pelo governo anterior. As etapas seguintes são o monitoramento e a avaliação, que a partir de então deveriam estar sempre presentes no seu processo de implementação. A elaboração do aludido instrumento de planejamento exige participação ativa da sociedade e suas forças vivas e de todos os órgãos do governo, tanto da administração direta, como da administração indireta. O Plano passou por vários momentos. Partindo sempre da situação atual para um futuro desejado. Suas metas foram regionalizadas para garantir a descentralização da gestão e ao mesmo tempo melhorar as articulações entre as políticas públicas da união, estado e municípios, representando uma inovação gerencial e política dado o ineditismo da iniciativa. Um dos passos iniciais para a construção do processo de mobilização para a elaboração do PPA diz respeito à identificação das ações em andamento com vistas à definição de propostas de novas ações e com que parcerias serão realizadas. Aqui procurouse estimular ao máximo a participação popular. Combinando a realidade observada e as propostas novas, chegou-se à projeção de receitas e às restrições legais que condicionam as despesas. Nesse ponto as orientações estratégicas do governo assumiram papel decisivo. Entre as orientações estratégicas e o documento final do PPA, processam-se etapas importantes, tais como, limites de recursos por órgãos e entidades, diretrizes dos órgãos e entidades, propostas de programas setoriais e as formas de consolidação dos programas. 58
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A revisão inicial coordenada pelo Governo Jackson do PPA 2008-2011, focada no período 2009-2012, não modificou a essência da programação original. Sua razão de ser fundamentava-se no cumprimento de uma exigência legal e na necessidade de se proceder aos devidos alinhamentos e refinamentos para uma melhor adequação do Plano à realidade, sendo uma delas a inclusão das modificações introduzidas pela Assembleia Legislativa quando da apreciação e aprovação do referido instrumento. O sentido maior da revisão residia no compromisso com a garantia de qualidade do Plano. A mobilização dos vários órgãos de governo teve como objetivo aperfeiçoar os conteúdos dos programas finalísticos e ações correspondentes, a fim de que os macroobjetivos traçados viessem a ser cumpridos com mais eficácia e maior efetividade social. Garantia de qualidade que se manifestava em assegurar maior transparência quanto à aplicação dos recursos públicos; maior controle do orçamento, tanto por parte do governo, como da sociedade; melhor integração e compatibilização dos instrumentos básicos de planejamento e orçamento. Um dos principais resultados do processo de elaboração PPA 2008-2011 foi a efetivação de um trabalho instituinte de base, responsável pela construção dos novos marcos referenciais do sistema de planejamento estadual. O quadro encontrado demonstrava claramente as insuficiências do aludido sistema, quase todo voltado a atividades burocráticas de natureza orçamentário-financeiras. Passados os primeiros meses de trabalho, o sistema estadual de planejamento cada vez mais se organizaria para o fiel cumprimento do seu mandato institucional, principalmente aquele vinculado à missão do novo governo, que era a de instituir uma governança que fosse capaz de tomar decisões próprias e devolver o próprio governo ao povo soberano.
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A interrupção prematura do mandato do Governador, por conta do jogo sujo de poder predominante no Maranhão Noturno de décadas de oligarquismo, impediu que o ciclo de planejamento se manifestasse de forma virtuosa, deixando inconclusas relevantes dimensões, que se encontravam em pleno dinamismo, quais sejam, a de monitoramento e avaliação, a partir de indicadores de desempenho testados e referendados; o sistema de estudos e pesquisas e o sistema de informações e análise de dados, a cargo do IMESC e de seu banco de dados; o sistema de tecnologias da comunicação e da informação; o programa de descentralização administrativa e de regionalização do planejamento do desenvolvimento; o fundo de combate à pobreza; os comitês de bacias hidrográficas e de relações internacionais; a modernização do sistema orçamentário; os zoneamentos agroecológico e econômico; além de outras iniciativas estratégicas, como o conselho editorial e a política de capacitação e formação de recursos humanos e de planejadores do setor público. O governo que assumiu a direção política do Estado do Maranhão em 2007, demarcando um fato histórico resultante da luta das forças oposicionistas ao sistema de dominação oligárquica, imperante por quase cinco décadas ininterruptas, não se equivocou ao eleger o planejamento democrático do desenvolvimento local como estratégia para instituir a nova forma de governar, sonhada e aspirada pelos maranhenses desde muito. Na linha defendida por Fábio Comparato e alguns outros estudiosos da realidade brasileira, o planejamento autônomo constitui-se em uma das saídas para que o país se desenvolva de forma sustentável. A ineficiência e ineficácia das políticas públicas no Brasil, e, por extensão no Maranhão, muito se deve à falta de planejamento ou à predominância de sistemas de planejamento puramente burocráticos e sem poderes para implementarem os planos de desenvolvimento elaborados. 60
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Vistos como os demais órgãos da burocracia governamental, os órgãos de planejamento mantêm-se prisioneiros e tutelados pelos interesses imediatistas do jogo político. Sujeitos a todo tipo de pressão e demandas as mais variadas e oportunistas os órgãos governamentais de planejamento perdem a direção técnica do processo e se atrelam às forças sociais dominantes, deixando de lado programas e projetos que poderiam reduzir as desigualdades sociais e as concentrações econômicas. Além disso, a interrupção imerecida, prejudicou os efeitos benéficos da nova cultura em gestação pois teve que lidar com uma realidade marcada por contradições internas presentes no Governo, por força do sistema de coalizões, tendo que enfrentar reações do próprio tecido em transformação. Em pouco mais de dois anos pode-se levar a cabo uma experiência inovadora em suas diferentes nuances. Instigante e sedutora e, ao mesmo tempo, infernal e desesperadora. Ousar seguir a linha tênue das relações internacionais, por exemplo, situados em um aparelho de estado mais figurativo do que real, foi, indubitavelmente, um gesto quase tresloucado, próximo de atingir os imperativos da responsabilidade. Mas valeu. A brecha da cooperação subnacional, que será trabalhada mais adiante, em seção própria, estimulou ousadias, criando-se Comitê especial para tal fim e promoveram-se articulações concretas com países com Venezuela, Argentina, Cuba, França e China, sem contar o mapa de possibilidades que estava sendo desenhado na direção de alguns países africanos e árabes. Hoje o Brasil paga um preço muito alto por não ter modernizado e evoluído o seu modo de governar. Os novos grupos políticos que chegaram ao poder não conseguiram se libertar das formas tradicionais do antigo regime, preocupando-se mais em se reproduzir no poder do que de fato fazer as mudanças estruturais 61
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que o país tanto reclama. Em muitos estados da federação as forças que ascenderam ao comando do poder público ainda patinam frente ao desafio de sair do palanque e começar a governar de fato.
3 DESENVOLVIMENTO SOCIOECONÔMICO BASEADO NA DESCENTRALIZAÇÃO DO GOVERNO O governo estadual, mais do que no passado, deverá assumir o papel de principal indutor do desenvolvimento maranhense. Digo indutor, protagonista privilegiado e ativo; não condutor monopolista. Primeiro porque não está preparado para tal e talvez nunca venha a estar. O desenvolvimento para ser sustentável exige envolvimento da cidadania e dos agentes sociais, políticos e econômicos. O desenvolvimento nasce e se reproduz em um ecossistema cultural. O modo como o Maranhão tem crescido tem sido marcado pela incapacidade dos governos resolverem os problemas estruturais e sociais sob sua responsabilidade. O crescimento econômico permanece atrelado aos investimentos em grandes projetos. O poder público apresenta fraca capacidade de gerar ou estimular emprego e renda para o mercado de trabalho, sobretudo pelo crescente processo de endividamento do setor público, configurando uma situação macroeconômica em que a capacidade de investimento do estado manteve-se cada vez menor, à época entre 3 e 5% do orçamento estadual, portanto insuficientes para provocar o crescimento sustentado da economia local. A realidade apresentada deixava patente a indispensabilidade do investimento privado, induzido e, ao mesmo tempo, ativamente supervisionado pelo estado, para alavancar as forças produtivas dos vários setores da economia, nos padrões que assegurassem mais empregos, mais inclusão social e mais recursos públicos para elevar a capacidade de investimento governamental
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em programas de educação, saúde e geração de infraestruturas, entre os principais. Para assumir a liderança desse novo processo de desenvolvimento estadual, o Governo Lago optou por um planejamento norteador e, ao mesmo tempo, gerencial quanto a resultados. Capacitado para resolver problemas, competindo-lhe, sobretudo garantir a eficácia das políticas públicas sob sua responsabilidade, não sendo possível cumprir esse papel estratégico adotando um sistema de gestão pública centralizada e hipertrofiada, como foi a marca das experiências passadas, que resultaram na perda de confiança do povo maranhense na capacidade dos governos de administrarem os graves problemas sociais e econômicos que imperam nas cidades e no interior. Por não ter enfrentado com a devida atenção o planejamento descentralizado do desenvolvimento de médio e longo prazo, sabia-se e sabe-se muito pouco sobre o que será o Maranhão quando for um estado grande, objetivo central do novo planejamento em construção à época. A preocupação com o imediato, com o prazo curto, tem feito com que os governos estaduais e municipais descuidem dos termos de pactuação com as empresas que se instalaram e continuam se instalando no território maranhense, sejam multinacionais ou nacionais, levando a que, até o presente momento, poucos ganhos resultassem para a pequena economia local e para as finanças públicas municipais, a partir de suas presenças físicas no Maranhão. Evidencia-se assim que houve uma íntima relação entre o imediatismo dos governos e as formas inorgânicas e centralizadas de gestão da administração pública. Um sistema de governo altamente imediatista não precisa de planejamento global e permanente, pois se baseia em decisões pontuais e fechadas, sem a audiência da sociedade.
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Um governo que não governa para a sociedade pode se dar ao luxo de planejar o Maranhão das coberturas de suas sedes em São Luís, sem ter que ouvir as ruas, os bairros, os povoados, os municípios ou as suas regiões. A consequência desse processo tem sido o atraso relativo e absoluto da economia, da educação, da saúde, da cultura e da política local, a ponto do Maranhão, quando visto sob a ótica dos números, ostentar os piores desempenhos entre as 27 unidades da federação brasileira. A ideia do desenvolvimento socioeconômico baseado na descentralização do governo decorreu da sensibilidade política de Jackson Lago, o governador. Sua biografia política caracterizava-se pela presença de uma ideia-força: o municipalismo. Nas formulações do dirigente sobre o desenvolvimento maranhense sempre ocuparam lugar de destaque a subsunção da ordem centralizada por uma outra, plástica e valorizadora do poder local, autônomo e livre. A palavra de ordem do planejamento do desenvolvimento era, portanto descentralizar para promover o bem estar de todos e levar à população os benefícios oriundos da riqueza socialmente produzida. A estratégia para a conquista do desenvolvimento estava sob a liderança de um planejamento governamental forte. O PPA exprimia com clareza a influência dessas fortalezas: a força da economia; a força da educação; a força da política e a força da cultura. Sempre esteve claro que só o crescimento da economia não resolveria o problema em seu sentido amplo, a começar pelo problema do emprego. Sem esquecer a necessidade insubstituível da materialização do crescimento do produto. O desafio posto passava por uma engenhosa e conhecida fórmula: combinar, no processo de desenvolvimento, o cresci64
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mento econômico, com o crescimento do emprego e com uma nova maneira de governar. Sem isso não haveria possibilidade de desenvolvimento sustentável harmonioso. No bojo da estratégia a crença no poder das pequenas economias locais, a rigor, aquelas que, em última análise, caracterizavam a história da economia maranhense e suas bases estruturais. O dilema era vencer o profundo hiato existente que separava em mundos distintos as pequenas economias locais das economias fortes decorrentes dos grandes projetos nacionais e multinacionais, tidos como salvacionistas, as quais quase nunca dialogavam e, por isso, sempre caminhavam em direções opostas. Ficava óbvio que o planejamento do desenvolvimento deveria, de um lado, criar as condições de uma melhor integração entre os sistemas de produção e, ao mesmo tempo, fortalecer as pequenas economias, focando, sobretudo na produção de bens não-comerciais, ou seja, que não estivessem sujeitos à competição internacional, abrindo-se a oportunidade de se eleger tecnologias de menor intensidade de capitais, em uma perspectiva de geração de mais empregos e de elevação de rendas. A saída estratégica, portanto era descentralizar para estimular um novo ciclo econômico, principalmente o desenvolvimento rural. Vantagens locais existentes: biodiversidade, reservas de terras cultiváveis, potencial de elevação da produtividade primária de biomassa, sem esquecer a variedade de ecossistemas, de recursos hídricos e a revalorização, em curso, da pesquisa agronômica e biológica, esperada a partir da parceria em andamento com a Embrapa e Universidades locais, nacionais e mesmo internacionais. A falta de um projeto de desenvolvimento para o Maranhão sempre foi uma limitação a que o processo de mudança se acelerasse em maior intensidade.
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O padrão tradicional era atrair grandes empresas, numa perspectiva de desenvolvimento econômico orientado pela lógica do mercado nacional e internacional. Nunca foram fartos os conhecimentos a respeito de qual deveria ser o padrão de desenvolvimento local. Precisava-se definir o novo desenvolvimento a partir das singularidades, dos planos dispersos, dos problemas à solta e das potencialidades não plenamente identificadas. Necessitava-se criar raízes locais para o projeto de desenvolvimento harmônico. Convinha que se apoiasse em lideranças confiáveis e adequadas, dentro de um clima empreendedor. Devia-se partir das realidades locais e não das realidades mercadológicas. A pergunta que permanecia no ar, sempre: qual deveria ser a espinha dorsal do desenvolvimento sustentável local? O leque de respostas sempre foi enorme, indo da visão messiânica e ao mesmo tempo genérica,ligada ao comprometimento com a dignidade humana, ao mais cru imediatismo econômico e político. Sem esperança não há mudança. Victor Asselin, religioso canadense que assumiu como poucos a identidade local, afirmava que para manter a esperança era indispensável a fé e a mística, que seriam forças poderosas para o engajamento coletivo no projeto de transformação. Havia também o aprofundamento da crítica aos resultados do modelo de desenvolvimento predominante, baseado no peso dos grandes projetos de desenvolvimento. O simples comparativo entre o volume de investimentos realizados e os resultados sociais para largas frações da população comprovavam a sua baixa efetividade. O que o Maranhão efetivamente ganhou com os bilhões de dólares do Programa Carajás? O que mudou? Sempre foram 66
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questões que pairavam nas cabeças engajadas na luta transformadora. Sobretudo na cabeça de Jackson Lago. A mais contundente das respostas atribuía uma responsabilidade muito grande ao poder público e seus agentes na configuração do quadro existente. Por que os projetos locais não impactaram efetivamente no desenvolvimento das economias tradicionais? As instituições públicas certamente não tiveram capacidade de responder as demandas internas, principalmente por serem despreparadas, descomprometidas socialmente incapazes de uma gestão pública eficaz para esse fim. Visto à distância não há como deixar de reconhecer que a estratégia de desenvolvimento baseada na descentralização do governo acabou sendo um esboço de projeto governamental, abatido antes do tempo, portanto sem que tivesse suas bases constituintes realmente efetivadas. O fato de sua interrupção abrupta não lhe retira o valor intrínseco. Pelo contrário: estimula a que se continue o experimento, com mais disposição, empolgação e realismo. O processo indicava com total clareza a necessidade de se criarem redes de interesse entre os municípios, na linha de experiências relevantes como o Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável – DLIS, Agenda 21, por exemplo, com o objetivo de mobilização e identificação dos problemas recorrentes e desafiadores, a fim de que as redes de interesse dialogassem com os grandes conselhos estaduais, entre outros. Para tanto era preciso não negligenciar na mobilização da cidadania e o povo em geral. A efetivação das estratégias em construção exigiam também que se instituísse uma nova regulação política para reconstruir e ampliar o espaço público e a legitimidade do mandato 67
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político, daí o imperativo de serem adotados mecanismos como planejamento participativo das ações estratégicas; construção de esferas não-estatais; valorização e fortalecimento dos conselhos de co-gestão, a exemplo dos futuros conselhos de desenvolvimento regional; conselhos de acompanhamento do orçamento; conselhos de elaboração de políticas setoriais; conselhos de capacitação para gestão e proposição de políticas públicas, entre outros cogitados e em processo de maturação. Mais do que nunca tornava-se imprescindível rever a geopolítica interna. Ao redor de 80% dos municípios tinham menos de 20.000 habitantes. Em contextos com essa conformação, os municípios precisam de uma nova pactuação geopolítica a fim de superem suas dramáticas dificuldades em termos de capacidades técnicas ampliadas, de planejamento empoderado e de gestão competente. Como os desafios evidenciados não foram superados e continuam vivos na maioria dos territórios, a política de descentralização do governo poderia reduzir a força das elites tradicionais do meio rural que ainda hoje dominam o poder local. A gestão do Estado,numa perspectiva municipal e regional,precisa acontecer efetivamente. Continuam mínimos e ineficazes os canais de interlocução entre o estado e a sociedade no contexto maranhense. Quando acionados não perdem o seu caráter elitista. Fábio Comparato defende a importância de se desenvolver o controle público sobre o Estado, instituindo-se o “contra-poder popular”, capaz de promover novos estágios de sociabilidade, como o controle social sobre as tarifas públicas, sobre o transporte público, o que, de certa forma, começa a se desenhar no país, em seus grandes centros urbanos. Para o Maranhão é urgentíssimo um novo “modus operandi” do Poder Público, promotor de oportunidades de refundição 68
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democrática do Estado, cuja expressão maior traduz-se no envolvimento dos cidadãos na gestão da coisa pública. O desafio exige que se amplie o legado de conquistas democráticas,presente em experiências de democracia direta, como audiências públicas, acesso a informações públicas, conselhos de gestão, orçamentos participativos, consórcios, pactos territoriais, ouvidorias, plebiscitos, entre outros tantos a explorar. A experiência interrompida maranhense, em um prazo muito curto, deixou um rico legado, acessível na internet e nos arquivos oficiais. Mobilização social e pletora de estudos comprovam a afirmação. Os Planos Populares de Desenvolvimento Regional – PPDRs são fontes de grande valor para a memória histórica do feito.
4 PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO LOCAL EM UMA ORDEM INTERNACIONAL GLOBALIZADA O município, lugar privilegiado para a manifestação do poder local, visto como unidade política e administrativa, remonta ao período áureo do império romano. Foi esse tipo de organização municipal que o Brasil Colônia herdou de Portugal, na conformidade das Ordenações do Reino, conhecidas pelas denominações de Afonsinas, Manuelinas e Filipinas. A verdadeira autonomia municipal no Brasil nasceu com a promulgação da vigente constituição, que dispõe no art. 29 sobre a competência auto-organizadora do município, pela promulgação de sua Lei Orgânica, espécie de Constituição Municipal. Claro que o verdadeiro aqui referido ainda se dá no plano formal. Grande parte dos municípios brasileiros dependem das transferências federais, decorrência de um pacto federativo reple69
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to de inconsistências político-institucionais. É o elo mais fraco de uma cadeia formada por instâncias financeiras, técnicas e políticas que formam o país. A luta pela autonomia dos municípios é antiga no Brasil. Começou no período colonial. Uma refrega apoiada pela igreja católica, sem o apoio dos donatários das capitanias. Os municípios passaram muito tempo subjugados pelas capitanias.As Câmaras municipais tiveram uma participação ativa no movimento de independência e autonomia dos municípios, juntamente com a igreja católica. O período do império neutralizou o papel das Câmaras. Seus poderes foram restringidos, ficando quase sem poderes. Como afirmam fontes históricas, o império fez predominar o centralismo e o imobilismo. Pode-se dizer que congelou as instituições municipais, impedindo-lhes a dinâmica e a ação. Durante a República Velha o município era instrumento do coronelismo estadual. O poder político estava com as oligarquias estaduais. Foi o período das intervenções estaduais em municípios. Na Constituição de 1946 o municipalismo ganha mais músculos. Pode-se dizer que se trata do início de mudanças mais efetivas. A Constituição de 1988 coloca o Município como ente da Federação. Isto posto, pode-se afirmar que o mundo hoje se divide entre duas grandes ordens: uma global, poderosa; e uma ordem local, marcada por poderes locais os mais variados, pequenos poderes, mas fortes pelos conteúdos de identidade cultural, com vários matizes ideológicos e políticos, lugares que guardam os traços culturais dos povos, comunidades, por exemplo. A diversidade é local.
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Em termos políticos, no caso brasileiro e maranhense em especial, o poder local se caracteriza pela renúncia cívica à autonomia e pela capitulação aos interesses maiores dos núcleos que controlam o poder regional e nacional. A política conservadora nunca teve e não tem interesse em quebrar essa dinâmica. O poder nacional se reproduz tendo-a como parceira, desde priscas eras, bastando olhar a obra de Víctor Nunes Leal sobre coronelismo no Brasil. Em estados como o Maranhão, o fenômeno se manifesta de forma muito mais acendrada. Em sua biografia, Jackson ostenta o título, para ele extremamente honroso, de municipalista. Esta marca ele trouxe para o governo e vai inspirar todo o processo em favor de uma nova cultura político-territorial, baseada no fortalecimento do poder local, reforçada pelas dominâncias de uma ordem econômica globalizada hegemônica. No contexto local, a continuidade histórica deste quadro vai ampliar o fosso das desigualdades, em todos os sentidos, entre o urbano e o rural, entre a cidade e o campo, os municípios, as populações. As desigualdades profundas, poucos têm tudo, muitos quase nada, revigoram a centralização, fazendo com que o crescimento da economia, da educação, da sociedade se dê de forma concentrada e centralizada. O enfrentamento do desafio de promover o desenvolvimento local sustentável em uma ordem global hegemônica requer uma outra engenharia política, diferente da realidade prevalecente e de suas raízes históricas. O governo Lago percebeu isso e agiu, mesmo sabendo que mexeria em uma das pilastras do sistema de dominação política. A interrupção do processo, por causas já conhecidas, não permite demoras no enfrentamento da situação, que permanece, desafiando a capacidade técnica e política do governo que derrotou o
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antigo regime e que luta desesperadamente para encontrar caminhos seguros para a construção de hegemonias. A pedra de toque de tudo isso reside na necessidade inquestionável de tomar iniciativas de políticas públicas capazes de equalizações efetivas quanto à produção de infraestruturas em todo o território, compreendendo serviços de consumo coletivo, forças produtivas materiais, tecnologia, ciência, educação e cultura. Uma estratégia insubstituível para a implementação desse novo processo, paradigmático frente aos procedimentos obsoletos renitentes, diz respeito à capacidade de saber distribuir as competências disponíveis no ordenamento dos territórios, para que se desenvolvam em outros moldes. O acúmulo de problemas, estimulados pela crise nacional, tem feito com que os municípios enfrentem desafios cada vez mais complexos, devido também à dinâmica demográfica, que gera aglomerações improvisadas e mal dimensionadas, despovoamentos, e outras situações que desequilibram as estruturas territoriais. É indispensável, para atenuar os problemas, a participação cívica organizada na tomada de decisões territoriais. O governo interrompido levou ao extremo esta convicção. Escutas regionais, levantamentos de aspirações e de prioridades de serviços públicos foram feitos constantemente e serviram de orientação efetiva ao PPA 2008-2011 e ao planejamento do desenvolvimento regional, materializados inclusive na regionalização orçamentária, feito ímpar na história da administração pública maranhense. O processo de desenvolvimento local e territorial pressupõe, portanto a inexistência de profundas dicotomias entre o urbano e o rural. A aplicação de instrumentos para a sustentabilidade ambiental deve acompanhar necessariamente todo o processo. A efetivação de medidas é imprescindível pois o desenvolvimento local está intimamente relacionado com uma boa 72
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qualidade dos serviços públicos e sua gestão eficaz, situações que impactam concretamente no cotidiano das comunidades e dos munícipes. Esse conjunto de iniciativas e de coisas práticas são a base para a dinamização das várias economias locais e territoriais existentes, que se potencializam ainda mais na medida em que se integrem como sistemas produtivos eficazes. Para tudo isso acontecer é fundamental a democratização do poder local. A experiência histórica deixa claro que as melhorias de qualidade nas estruturas locais dependem de uma ação política decidida e por um compromisso democrático concreto, fora do mundo dos marqueteiros e das panfletagens vazias. Sem desenvolvimento local é impossível atingir-se o desenvolvimento sustentável. O desenvolvimento concentrado só beneficia poucos. As desigualdades afetam fortemente os padrões de distribuição da renda e das oportunidades. O local, portanto, é uma condição para o desenvolvimento sustentável. A ação local é chave para a sustentabilidade, ao lado da participação ativa da sociedade civil. A nova forma de conceber e de agir deve buscar a complementaridade entre o global e o local. Pode parecer ingênuo. Mas não tem saída se não for assim. Desenvolvimento não é só transbordamento econômico. Em síntese, a globalização, como fenômeno econômico, nasce e se caracteriza com um movimento de valorização do capital financeiro em escala planetária. Suas origens remontam a Bretton Woods, em 1944, nos EUA, quando foram lançadas as bases do sistema financeiro internacional. Alguns afirmam que local e global são a mesma coisa. Não há global sem local e vice-versa. Pode ser. Mas isso não basta. Entre um mundo ordenado por poucos que controlam a economia e a política e outro, mesmo que utópico, que opere de forma contrária, não há como desprezar a importância do desenvolvimento sustentável local de modo expansivo. 73
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Há uma questão complexa e muito difícil. A questão básica dos limites e desafios da participação cidadã. Em realidades desiguais em termos de escolarização e acesso cultural a participação cidadã fica mais difícil de ocorrer. O fascínio da cooptação direta ou indireta é muito forte. Poucos governantes resistem. A maioria pode ser manipulada. Os donos do poder podem se encantar com o trono com mais facilidade. O outro foco é compreender que a globalização é sobretudo um fenômeno sociológico e político. Se assim compreendida, abre-se um outro canal que é o que demonstra que o local afeta também o global. Não tem com evitar a leitura de Milton Santos. É meia verdade entender a globalização como um fenômeno mundial que se aplica a diferentes realidades locais, forçando a sua adequação. É preciso usar lentes de aumento e perceber que também os fenômenos locais podem se universalizar segundo suas próprias lógicas, às vezes contraditórias, em relação a outras lógicas locais. A internet torna tudo local e global ao mesmo tempo. É uma coisa séria tudo isso. Não se pode brincar de faz de conta, querendo ser o que não é e sendo o que nunca foi. Sobretudo quando se tem a responsabilidade social de governar a coisa pública. No caso maranhense é preciso retomar o fio da meada. Considero que a filosofia política do planejamento do governo Jackson Lago, expressa transversalmente em suas iniciativas instituintes, como planejamento regional, cooperação internacional, descentralização administrativa, alfabetização educadora, por exemplo, estavam impregnadas com a ideia de repartir o poder do trono com os municípios e assim romper com o imobilismo histórico que colocou o Maranhão na periferia do desenvolvimento nacional. Creio que ainda não se quebrou a dinâmica do coronelismo como maneira de fazer política e de governar. Requer sabedoria e competência para colocar um sistema novo em seu lugar. Só na 74
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aparência é possível continuar governando com as mesmas práticas do antigo regime. A continuidade do processo mantem-se eficaz como forma de acumulação e ampliação de poderes políticos nesta terra. Ainda tem fôlego nas veias. No entanto, mesmo com toda sua eficiência e eficácia eleitoral, só adia a verdadeira mudança, que virá para valer no momento em que as forças políticas locais começarem a implodir, por incapacidade de se desfazerem do atrasado e do obsoleto transfigurados.
5 CONQUISTAR A SUSTENTABILIDADE DO DESENVOLVIMENTO A visão do planejamento público presente no PPA 20082011 consubstanciava-se na busca do desenvolvimento com democracia e sustentabilidade. Não se tratava de retórica de governo, como era comum nos planos de governo do antigo regime. É como se já tivesse havido o fim das oligarquias no Maranhão, o poder público deixado de ser “privado”, os municípios fossem autônomos, os grandes projetos rurais e urbanos substituídos por uma economia local sustentável e o povo tivesse acesso a uma educação de qualidade... É como se já tivesse havido a reinvenção do Maranhão e o apodrecido torrão timbira estivesse em definitivo morto e sepultado, juntamente com suas mazelas sociais, seus mitos alienadores, suas injustiças e concentrações abomináveis de poderes e riquezas... É essa a impressão que tinha toda vez que ouvia o discurso dos gestores governamentais e dos donos do poder ao exporem sobre as diretrizes do planejamento estratégico do Estado do Maranhão.
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Sempre organizaram suas ideias de modo tão solenemente intangíveis que os argumentos mais pareciam celebrações litúrgicas que propostas a serem discutidas e aprovadas pela sociedade. Nada contra os sonhadores renitentes. A reação é contra as manipulações, tanto por infância de ideias, como por má fé. O planejamento do desenvolvimento do Maranhão pelo governo Jackson partia do ponto de vista de que o Maranhão deve ser visto como uma utopia viável, onde injustiças e desigualdades, riqueza e pobreza, governantes e governados fossem dicotomias a serem superadas por formas novas de sociabilidade, pautadas na equidade e na inexistência de assimetrias sociais infames. Para tanto se necessita de rigor nas formulações e propostas de saídas. Nos últimos anos não se observa profundidade nas formulações de projetos de desenvolvimento para esta terra. Os desafios exigem aprofundamentos sobre a história local, conhecimentos sobre a identidade cultural do povo e novas teorias e técnicas, os mais consistentes possíveis, para referendar sonhos e utopias. Muitos “desenvolvimentistas” de hoje ritualizam ideias muito pontuais e de eficácia duvidosa, a ponto de banalizarem as soluções para o atraso e o subdesenvolvimento maranhense. É preocupante atribuir ao Índice de Desenvolvimento Humano – IDH poderes que estão acima das suas possibilidades reais. O IDH é muito importante como recurso para aferir a qualidade do processo de desenvolvimento, mais plástico que o PIB, por exemplo, mas tem limites que necessitam de explicitação. Creio ser um exagero planejar o desenvolvimento sustentável do Maranhão focando apenas no desempenho das variáveis que compõem o referido índice, no caso a esperança de vida ao nascer, as matrículas escolares e a renda per-capita, sobretudo em territórios os mais desestruturados. 76
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Enquanto os planejadores orientam suas estratégias na melhoria do IDH, priorizando finalidades com baixa capacidade de resposta econômica, mesmo dando ênfase na produção de meios necessários à internalização dos processos produtivos, os efeitos dos ciclos de grandes projetos tomam vulto, reforçando as características da acumulação no passado, baseadas na ampliação de densidades dos fatores produtivos. O que se viabiliza dessas iniciativas vai formando os acumulados econômicos que dão forma à modernização do Estado,indo do agronegócio da soja, da construção civil a polos mínero-metalúrgicos, entre outros, todos,em grande parte, próximos do Porto do Itaqui e da Capital. Impossível permanecer indiferentes ao fato de que a ordem mundial é cada vez mais dominada por princípios e práticas que desafiam a regulação e o controle das nações, das regiões e dos estados federados, no que condenam a antiquíssima Palmátria, o Maranhão alegórico dos poetas,a continuar perseguindo o insólito objetivo de reinventar a roda. Não há como planejar e efetivar o desenvolvimento sustentável do Maranhão sem considerar o papel decisivo dos municípios nesse processo, sobretudo pelo fato da elevada municipalização das políticas públicas. Os resultados das pesquisas feitas pelo IBGE e outros, revelam o quadro de insustentabilidade da grande maioria dessas comunas. Quase 60% de todo o PIB estadual é gerado por apenas 10 dos seus 217 municípios. Não há uma produção local que sustente as economias municipais maranhenses, em sua esmagadora maioria: dependem quase plenamente das transferências constitucionais, das aposentadorias da previdência social, da bolsa família. Só existem, basicamente dois polos que geram produto e renda: o da grande São Luís, centrado nos serviços, turismo, comércio, indústria e na infraestrutura para o complexo portuário
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do Itaqui; e o do Sul, baseado na agropecuária e no agronegócio, em especial da soja, madeireiras e alguns mais. No lugar de focar em metas pontuais, por que não investir o fundo público, mesmo reduzido pelos encargos do endividamento expressivo, em serviços de utilidade pública, obras públicas, agricultura familiar, agroecologia, agroindústria? Por que não estimular a produção de novas tecnologias sociais que se voltem para o desenvolvimento sustentável dos municípios, tanto para as áreas urbanas, como para as áreas rurais? Os que buscam equacionar o desenvolvimento do Maranhão devem saber que apenas elevar o IDH não garante a sustentabilidade do desenvolvimento em estados como o Maranhão, marcados por deficiências estruturais em seu sistema produtivo, comercial e de serviços. Precisa-se mais do que nunca de um pensamento novo e várias estratégias para equacionar as múltiplas e complexas questões estaduais de cunho estrutural. A chamada invasão capitalista é cada vez mais voraz no Maranhão, reduzida agora pela crise econômica, precisando ser enfrentada em favor da superação da pobreza e do subdesenvolvimento. Caso contrário condenará o Maranhão a posições subalternas na ordem econômica nacional. Este foi o quadro conceitual com o qual se deparou e debruçou a inteligência do governo interrompido. Uma questão extremamente difícil de resolver pois o seu formato original decorre de um padrão histórico praticado pelas camadas que dominam a economia e a política. Além disso, tais práticas recorrentes, formataram cabeças e mentalidades que se alimentaram e alimentavam da sua existência inexorável. A engenharia para tanto deveria partir da leitura correta da realidade e de escolhas inteligentes capazes de mudar a cultura dos agentes políticos, econômicos e sociais. Com certeza uma ação que exigiria tempo bem aplicado para começar a surtir efeito no médio prazo. 78
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Quem deveria liderar esse processo? O que se observava na história recente do Estado era a confirmação cotidiana da ignorância dos governos, em todos os níveis, sobre os perigos e ameaças a que estavam submetidos e submetiam a todos, pela falta de iniciativas responsáveis, competentes e éticas em relação ao processo estadual de desenvolvimento numa perspectiva de sustentabilidade. Muitas lições foram aprendidas, decorrência de uma interrupção indesejada do governo. Nada é sempre e plenamente linear na vida social e muito menos nos processos históricos. A história das sociedades não se constrói como um sistema integrado, interligado e muito menos coeso. O inaudito, os sonhos e as utopias fazem parte também desse movimento e, em alguns casos, chegam a ser até mesmo definidores de destinos. Sem esquecer que a história dos vencedores jamais representa a vitória do bem sobre o mal, mas, também, a vitória da infâmia, tão bem retratada nos contos de Borges. Em Palmátria, o Maranhão alegórico de Tribuzzi e dos poetas, parece que o aristotelismo escolástico ainda não foi superado, principalmente quando ainda se insiste em adotar metas salvacionistas. O mundo dos escolásticos, como se sabe, era uma enorme hierarquia, um imenso Portugal no caso colonial brasileiro. No escolasticismo a realidade é algo considerado inato, portanto não pode ser mudado, a não ser por vontade divina, o que obviamente não se aplica mais nos dias de hoje. Sobretudo pelo fato do Estado no mundo todo viver uma crise de hegemonia e permanecer em situação de erosão. Para se desenvolver o Maranhão precisa gerar e incrementar políticas públicas que respondam satisfatoriamente as demandas sociais e estimulem concretamente a economia, principalmente os seus agentes locais e regionais. 79
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Para tanto,se torna urgente produzir formas justas e adequadas de repartição do fundo público, a partir da União, sem o que não se resolverão os conflitos inadiáveis e, menos ainda, se equacionarão os problemas que impedem o processo de consolidação dos meios necessários à efetivação do desenvolvimento sustentável que impacte positivamente no padrão de vida do povo maranhense.
6 CAPACIDADE DE PRODUZIR E GERIR A COISA PÚBLICA Ser um dirigente público no atual contexto maranhense, brasileiro e mesmo internacional é uma das mais desafiadoras missões. Este ponto de vista se aplica não só para o dirigente dos médios e grandes municípios, mas também para os mini e pequenos, sejam ricos ou pobres, do primeiro mundo ou dos países emergentes. Além da brutal crise de credibilidade, há a questão da falta de capacidade de governar, que aumenta exponencialmente no Brasil, sendo também um problema de governança internacional. Hoje em dia a boa gestão pública é a principal agenda para qualquer povo que aspire atingir o desenvolvimento humano e queira se libertar do domínio de um modelo de desenvolvimento econômico que vem mantendo mais de dois terços da humanidade completamente excluída dos bens e serviços produzidos e que se alimentam roendo a unha enquanto esperam as outras crescerem, segundo adágios. Não é que o administrador público tenha o poder da cura e opere milagres em passes de mágica. Longe a visão ingênua e equivocada dos pregoeiros e messiânicos de todas as latitudes.Na verdade isto se refere a capacidade. 80
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A gestão pública, por razões de fundo e pelo seu sentido histórico, continua sendo e será sempre um meio e não um fim último em si mesma. Todavia, no mundo moderno, onde o gestor competente corresponde a um dos maiores recursos produtivos, a condição instrumental passou a ser tão relevante quanto a condição finalística, porque os processos produtivos não mais operam em linhas hierarquizadas e sim em círculos integrados onde meios e fins deixam de ser etapas bem definidas e se misturam para formar um novo círculo na cadeia produtiva. Isto significa que os povos que não forem capazes de se realizar como civilização “desaparecerão” da face da terra ou viverão acorrentados como servos voluntários daqueles que melhor se inseriram na sociedade do conhecimento. Um dirigente público em um país como o Brasil, ou em um estado como o Maranhão, só honrará o cargo que ocupa se se dispuser a oferecer, além de sua força de trabalho, uma cota de sacrifício pessoal à causa que abraçou. Em suas mãos e sob seus ombros recairão os pesos de anos de atraso de um setor que foi historicamente negligenciado e mesmo desprezado pelas elites do país, que dele se utilizaram principalmente como trampolim para projetos privados e de poder. Ele terá que dar tudo de si para fazer com que a sua ação, de algum modo, contribua para reduzir as mazelas de um sistema público de governo deficiente e ineficaz para o desenvolvimento da nação e, sobretudo para a maior parte do povo, originário das classes trabalhadoras. Jackson Lago tinha nítida consciência de tudo isso e por isso apoiou as ousadias dos cultivadores de sonhos que estivem do seu lado. O dirigente público, principalmente aquele que atua nas regiões mais pobres, ao lado dos atributos intelectuais e éticos 81
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que precisa ter, será também um verdadeiro agente civilizador, pois será sempre desafiado a prover humanidade em muitos lugares onde os seres humanos ainda vivem em comunidades primitivas e subordinados completamente aos grilhões do servilismo. Lamentavelmente ainda não se chegou ao estágio em que essa condição tenha sido atingida de modo generalizado. Na verdade, a despeito dos exemplos positivos existentes no país, muito terá que ser feito para que essa questão seja resolvida a contento. A questão é: o que fazer para aumentar o número de Dirigentes Públicos que estejam aptos a promover a mudança do atual cenário de exclusão social, a ponto de serem capazes de contribuir para a construção de um poder público autônomo e sustentável? Produzir e desenvolver a chamada coisa pública sempre foi um desafio na trajetória da chamada civilização ocidental e nos novos países decorrentes da expansão colonial europeia na América, principalmente. Em sentido teórico, a produção da “coisa pública” significa a “produção”, manutenção e conservação, pelo poder público, de serviços de infraestrutura coletiva básicos; o saber, água e esgoto, transporte público, iluminação pública, logradouros públicos, limpeza pública e a própria “produção do público” no processo de desenvolvimento da sociedade, onde são tomadas as decisões sobre a existência desses bens e serviços. Compreende, portanto os serviços básicos que o Estado tem a obrigação de suprir, seja produzindo-os diretamente,seja transferindo esta responsabilidade, concedendo-a terceiros. É costume utilizar-se a expressão “coisa pública” para designar, de um lado, tudo aquilo que esteja afeito ao poder público ou depende dele e, de outro, para explicar a crença coletiva de que o “poder público” pertence ao “público”, é patrimônio da coletividade.
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Nesta categoria enquadra-se praticamente tudo que decorre da ação do poder público, seja a sede da prefeitura, o automóvel de representação do secretário, um busto do fundador da cidade, a praça de um bairro rico, a implantação de um posto de saúde, a manutenção de uma escola ou tudo aquilo que disser respeito à execução do orçamento em obras ou em serviços. Não existe público sem cidadãos. Quanto mais ativos forem os cidadãos mais o espaço público se expande. Cidadania é uma categoria histórica. A sociedade nascida do capitalismo pôs abaixo o principal fundamento liberal clássico: o de que a sociedade civil é decorrência de contratuações livres entre homens livres. A nova ordem social revelou a sociedade civil como lugar da inconciliação de interesses privados, o que obrigou a uma redefinição da doutrina liberal, materializada em uma nova concepção de Estado, cuja característica fundamental é o seu novo papel de definidor do âmbito dos “interesses públicos”, aqueles considerados acima dos “ interesses privados” e, por esta razão, comuns e universais. Este é um processo que vem ocorrendo desde o século passado, justificava-se pela própria necessidade de reprodução da sociedade capitalista e não representa, como aparentemente poderia parecer, que o “público” e que o “privado” tenham deixado de coexistir sob tensão. Na verdade, é a partir desse processo de “publicização” do privado, gerado pelo avanço das sociedades liberais democráticas evoluídas, que se fortalecem e consolidam os chamados direitos de cidadania, expressos no reconhecimento pelo Estado dos seus três grandes elementos, segundo os estudos de Marshall: os elementos civis, político e social. Pode-se afirmar, de certo modo, que o conceito original de cidadania oriundo do trabalho de Marshall, reconhece como 83
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cidadãos ao conjunto dos membros de uma nação. Depreende-se também que o Estado ideal para atuar numa situação semelhante a essa é aquele capaz de promover uma justa distribuição de poder e de bens entre todos os cidadãos,assegurando-lhes igualdade de oportunidades e de condições de participação. Isto se justifica, na verdade, pelo fato de que a noção de cidadania como reconhecimento da igualdade de direitos passa a ter sentido pleno na luta política das camadas subalternas da sociedade pela sua emancipação, concretizável justamente através da aquisição plena de direitos de cidadania. Não há dúvida que a concepção moderna de cidadania, por força de um longo percurso histórico, vincula-se à ideia de luta contra os privilégios e contra a obstrução do indivíduo como integrante pleno da sociedade onde vive e produz que, dito de outra maneira, é a própria justificativa da luta pela consolidação do Estado de Direito, que é o nome da luta pela democratização. Para avançar na direção almejada torna-se imprescindível recuperar a confiança pública na capacidade dos governos e nas lideranças e dirigentes políticos. Jackson talvez tenha sido a mais confiável liderança política e o dirigente público com mais capacidade de governar o Maranhão das últimas décadas. Capacidade de governar não é um simples atributo pessoal e individual. É também capacidade de fazer alianças e implementar articulações pela melhor governança. Jackson enfrentou muitas dificuldades para operar tais processos em seu governo. Não há como negar evidências de uma colcha de retalhos políticos em áreas do poder governamental. Fez um esforço enorme para colocar o barco em uma maré de maiores possibilidades de alcançar o porto das mudanças. Estava conseguindo. Ia conseguir.
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7 DESPERTAR MENTES QUIETAS Em muitos passos ousados do governo Jackson Lago as mentes eram banhadas de maturidade e os corações plenamente vestidos de estudantes. “E há que se cuidar da vida e há que se cuidar do mundo. Tomar conta da amizade, alegria e muito sonho, espalhados no caminho”. Talvez tenha sido uma derradeira oportunidade para muitos a reinvenção dos sonhos e das utopias sobre a questão maranhense. Falando do coração e sobre o coração Milton Nascimento lamenta em sua canção as podas que tem sofrido, os desvios de destino que lhes foram impostos e o sorriso de menino que tantas vezes teve que esconder. O poeta, no entanto, não desiste e renova as suas (e de muitos) esperanças, lembrando as novas auroras de cada dia, chamando a atenção de que há que se cuidar do broto para que a vida dê flor e fruto. Mente inquieta e coração de estudante são, pois, a possibilidade do encontro de dois olhares perscrutadores do sentido da vida e dos seus desafios concretos e existenciais. Um encontro que, para ser grandioso e fecundo, precisa da paixão, condição para que se abram, sem garantias e certezas algumas, um ao outro. Um encontro que certamente levará aos recantos mais profundos do espírito. Porquê olhares que se cruzam levam sempre a profundezas insondáveis. Para falar da mente e da necessidade que permaneça inquieta nada melhor do que ouvir Boaventura Santos e sua metáfora da cartografia, como imagem de um novo mundo, onde o essencial é o viajante e o mapa e não o falso porto seguro de uma
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sociedade mercadocêntrica, na qual a essência de tudo se define a partir do consumo e no supérfluo. Para construir os novos mapas da emancipação social precisamos de mentes inquietas e não de mentes ou razões indolentes, que vitimizam vastos contingentes de adultos e jovens, tornando-os cegos, apáticos, impotentes e reducionistas, portanto impedidos de ver o mundo plenamente. Esta situação se agrava mais ainda em razão da perda de confiabilidade nos mapas cognitivos, nos mapas interacionais e nos mapas societais, representados simbolicamente pelos paradigmas do conhecimento, da participação e da democracia Os círculos do pensamento inquieto,criados metaforicamente pela experiência de reinventar o planejamento do desenvolvimento do Maranhão durante o governo Jackson Lago, nasceram do desejo e da vontade de unir maturidade e juventude em mapas que levassem a mundos novos, capazes de produzir respostas plausíveis na busca de ressignificações sociais e humanas, onde sonhos e utopias emergissem como possibilidades e, sobretudo, como novas formas de vontade, gerando um novo senso-comum, expresso, conforme Boaventura, em três planos: o ético, baseado na solidariedade; o político, centrado na participação ativa e o estético, pautado no reencantamento. Ainda foi possível falar de flores, mesmo em um mundo circundante pastoso e muitas vezes inorgânico. Um mundo, que não desapareceu, pelo contrário, fez recrudescer a produção da violência, hoje não mais episódica, posto que metódica, justamente por integrar o que se chama de racionalidade moderna. Não saberia responder muita coisa sobre a arte de viver e de ser se mãos musculosas me fechassem a garganta. Poderia até mesmo descrer de tudo se o meu olhar se voltasse apenas para o que vejo fora de mim. Olhando para dentro do meu ser, como
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o faço sempre, vejo sim que a paz e o coração vencerão a força bruta, a intolerância e a ignorância. Dirigindo-se ao jovem poeta Kappus, em cartas do início dos anos 1900, Rilke disse coisas que permanecem vivas: para ser gente é necessário um mundo interior, ter um gosto maduro pela solidão, possuir uma visão diversa do amor, ser terno frente aos mínimos detalhes das coisas, sempre que possível ter uma paciência interminável, aceitar lealmente todas as dificuldades e jamais deixar de ser fiel à infância da vida de cada um. A transformação do mundo e também a do Maranhão, não se resume a um mero salto sobre o riacho, como filosofava Paulo Freire. Para se aproximar dos sonhos, das ressignificações, para fazer a travessia, em muitos casos, há vedações e não se pode ir além de suas margens. É preciso aprender a olhar para trás para tentar compreender a vida e, se se quiser ir além, se se quiser realmente vivê-la é preciso que o olhar mire o horizonte, enxergue para frente. Como já ouvi ou já senti, em vez de sinal fechado, olhos em cruz. A necessidade de organizar círculos do pensamento inquieto continua, a fim de que se atinjam novos hemisférios e longitudes. Pontos de encontro nos quais pensamentos inquietos e corações vicejantes se entrecruzem, com poderes de sepultar ou ressuscitar sonhos nos espíritos que se descobrem e se fundem. Octavio Paz, o grande poeta latino-americano, em extraordinário momento de inspiração, lembra sempre que tudo está banhado por uma luz antiquíssima e, ao mesmo tempo, acabada de nascer. Esse estado de espírito só é possível quando corações e mentes se fundem e vão fundo rasgando as zonas indizíveis e invisíveis das existências humanas.
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Os novos círculos poderão ser oportunidades de colheita dos feitos do passado, do presente e do futuro, estes ainda por acontecer. Se governos colhessem os dias, mesmo que nada fosse acrescentado, os olhares seriam diferentes. E aí a inquietação não será mais um tormento. Será estudante. Há uma verdade muito forte sobre a cabeça do maranhense, tida como acomodada e subserviente. Haveria no ethos timbira uma certa inclinação para a servidão voluntária. Essa mentalidade quieta, quase indolente, apática seria uma das causas do predomínio e da longevidade do atraso político, social e econômico. Seria uma espécie de fermento para a reprodução e manutenção dos sistemas oligárquicos, tão presentes na cultura política local e regional. A maneira quase indiferente com que reagiu a maioria do povo maranhense ao chamado golpe judicial que derrubou o governo Jackson Lago do poder não deixa de provocar perplexidade. Assistir-se à chamada ilha rebelde passar surda e muda ao lado do acampamento balaiada, postado em frente ao Palácio dos Leões, vendo as figuras luminares de Jackson e Clay altivamente sentadas para participar das manifestações de resistência, apoio e solidariedade, produz um sentimento de profundo pesar pela falta de civismo e de coragem de muitos conterrâneos. Alguém disse em voz bem alta: não desistam!
8 CIDADANIA RESTRINGIDA Em postagem instigante, o inquieto historiador Jhonatan Almada, um dos colegas com quem compartilho a presente edição, intitulado “São Luís precisa de outro caminho”, fez-me voltar ao túnel do tempo e lembrar o heroico período em que estive 88
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dedicado à pesquisa sobre a história da urbanização de São Luís, publicada em 1988, sob o título de “Coisa Pública: Serviços Públicos e Cidadania”, cujo recorte temporal prendia-se ao período de 1889-1930 e seu entorno, também identificado como “Primeira República”. No provocativo texto, defende a necessidade de uma “quarta via” para tirar a quadricentenária Capital do Maranhão do descaminho, uma vez que, a seu juízo, as três presumidas maneiras atuais de governação, pensadas e praticadas, não seriam capazes de encontrar a saída desse tortuoso e complexo labirinto. Com efeito, segundo o arguto historiador, na arena política que informa o futuro imediato da aludida cidade, coexistiriam três estratégias em disputa: uma primeira, que situo como originária da ideologia dominante no Estado há algumas décadas, que congela a história e reinventa o sebastianismo restaurador, segundo a qual tudo o que se fez do fim da era de ouro até hoje não serviu para nada; uma segunda, localizada no então governo Roseana Sarney, baseada em uma espécie de visionarismo ilusório e ciclópico, inteiramente pautado na virtualidade de obras públicas faraônicas e suntuárias, mas de baixíssima efetividade social; e uma terceira vertente, emanada do governo municipal, que se utiliza dos meios de comunicação de massa para revelar, de forma sequenciada e programada, a cada dia, uma miríade de obras públicas importantíssimas, mas que, por força provavelmente do sobrenatural, permanecem “invisíveis” aos olhares pouco atentos dos cidadãos ludovicenses. Na pesquisa a que me referi acima, que tinha como um dos objetivos verificar o tipo de cidadania que o processo de urbanização de São Luís reconhecia, ao se implantar o regime republicano, o dado mais marcante, recolhido do estudo, foi que a “primeira república” nunca aconteceu em São Luís, assim como as demais repúblicas proclamadas.
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A República Ludovicense foi, na verdade, mais uma das várias repúblicas que não houve neste país. São Luís, com toda a certeza, simboliza uma das últimas capitais, senão a última, a fazer a reforma urbana, conforme demonstrado no estudo. Em sua totalidade, a modernização dos serviços de consumo coletivo, como água, esgoto, limpeza pública, melhoramentos de logradouros públicos, luz elétrica, transporte público ocorreram de forma tardia e sob intensa incapacidade de oferta, potencializadoras de crises políticas agudíssimas. O conhecido panegírico que a distingue carinhosamente como “la petite ville aux palais de porcelaine” não passa de uma metáfora vazia, pois, longe disso, sempre foi uma cidade escancaradamente cindida entre o palácio e a palafita e profundamente marcada por desigualdades abissais entre os seus habitantes. A cidade sempre teve uma “área nobre” e outra representativa de sua decadência urbana, revelada na falta de higiene e conforto; no predomínio da escuridão das lanternas; no ar viciado de milhares de fossas; na água escassa e de péssima qualidade, repleta de gérmens nocivos; na anacrônica viação urbana, a ponto de serem alvo de pilhérias. Antes e depois da proclamação da república, os serviços de infraestrutura urbana sempre foram inacessíveis à maioria da população. O irreverente jornal “A Flecha” dizia, jocosamente, em 1879 que em São Luís “a gente anda na rua sem enxergar três dedos na frente do nariz”. Em trabalho dedicado à história das suas ruas e praças Domingos Vieira Filho afirma que na cidade, por séculos, os grandes higienistas eram o “vento amigo”, que exercia a função de gari e a água abundante da chuva, que lavava as ruas da urbe. Sem falar nas grandes epidemias, que, desde as mais remotas eras, dizima-
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vam sua população, que, sem ter a quem recorrer, apelava a São Sebastião ou a piedosas procissões à espera do milagre divino. A tardia reforma urbana de São Luís, que vai ocorrer mais de vinte anos depois da maioria das capitais brasileiras, se deu tendo como referência uma miragem, no caso o contrato com a empresa norte-americana The Ullen Company, símbolo da renúncia cívica das elites políticas locais, incompetentes para resolver os problemas urbanos e de insalubridade cada vez mais danosos, que, para tanto, tiveram que aceitar contratos leoninos, que escravizaram as finanças públicas locais em função das absurdas garantias que tiveram de oferecer à concessionária estrangeira. Um tormento que durará vários anos, indo praticamente de 1923 a 1946. Como se vê são muito antigos os problemas relacionados à capacidade dos governantes da cidade em darem conta dos desafios colocados ao seu desenvolvimento. Além da falta de imaginação e criatividade, percebe-se, com muita clareza, a ausência de compromissos efetivos com o desenvolvimento ampliado da cidadania e o acesso democrático à coisa pública. A esse respeito, pelo menos três fatos históricos podem ser lembrados, inclusive por já fazerem parte do anedotário local. O exemplo do Cais da Sagração é o primeiro. Pensado para promover melhorias urbanas, iniciado em 1841, além de ser a maior e mais destacada obra da cidade, passou 68 anos até ser plenamente concluído, isto em 1909. Rios de dinheiro, com certeza, foram lançados à beira-mar durante esse tempo todo. O Canal do Arapapaí, projetado inicialmente em 1742 para comunicar as águas da Baía de São Marcos com as do Rio do mesmo nome, nunca efetivamente foi finalizado, muito embora, no dizer de André Rebouças, “o escândalo chegou ao ponto de se desfazer à noite o trabalho executado durante o dia”. O grande João Lisboa, indignado, reverberava sobre o nefando Canal, des-
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tacando que se tratava da prova mais eloquente da “ignorância, incúria, corrupção, desleixo e concussão” dos governantes. O último episódio a servir de exemplo é o da construção do Porto de São Luís: as discussões sobre a transferência do Porto do Cais para o Itaqui foram iniciadas em 1911 e só na década dos anos 1960 começam a se concretizar. Em seu laborioso “Dicionário”, de 1870, César Marques escreveu um verbete sobre o calçamento das artérias de São Luís no qual remete o leitor ao Tormento de Tântalo, afirmando: “terminada uma rua, quase nunca são reparados os seus estragos e dentro de pouco tempo acha-se toda inutilizada”. Tântalo foi um célebre personagem da mitologia grega. Admirado entre os deuses do Olimpo resolveu convidá-los a um banquete no qual a carne do próprio filho foi servida. Queria testá-los. Como eram oniscientes, descobriram e, escandalizados, rejeitaram o festim. Zeus, o deus dos deuses e dos homens, restabelece a vida do filho ministrando-lhe uma punição severa: a eterna insatisfação. Condenado a vagar em um vale rico em vegetação e água, não podia, no entanto utilizá-las. Toda vez que se aproximava da água, ela escorria ou se tentava pegar um fruto, a vegetação movia-se para distante. Por que o caminho de São Luís é tão difícil de encontrar? Por que até hoje prevalece o sentimento de incompletude diante de algo aparentemente muito próximo, mas que não se consegue achar? Será o destino da cidade o destino de Tântalo? Reporto-me a estes episódios para compor mais um dos grandes desafios do governo interrompido, que foi o de buscar um padrão de governação que não se baseasse na tutela da sociedade organizada, como sempre foi feito, a partir de práticas e 92
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pedagogias que fossem capazes de superar o quadro de cidanidização restringida, por um outro que fosse ampliado e plural. Uma tarefa difícil, sem dúvida, pois para tanto era preciso ajudar a desconstruir os vários mitos que povoam a história do Maranhão. Assim como São Luís é uma cidade de carne e osso e tem uma história de vida marcada por grandes contrastes sociais, culturais e políticos, o Maranhão enquanto formação social apresenta-se com muito maior grau de complexidade. Governar o Maranhão e São Luís não é só decantar valores culturais mitificados é, sobretudo exercer a liderança espiritual e política de uma nova identidade que reconheça e legitime sua diversidade étnico-racial, de gênero e cultura, identidades essas omitidas e negadas pela história dos vencedores. Por que então era uma ação estratégica para o desenvolvimento local que se lutasse pela ampliação da cidadania do povo maranhense? Marshall cunhou uma frase emblemática sobre o significado da cidadania no processo de desenvolvimento político: cidadania “é um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade... todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status”.Este conceito está em seu livro clássico “Cidadania, Classe Social e Status, publicado no Brasil, em 1967, pela Zahar. O dilema que o referido conceito impões aos estados nacionais, sobretudo de orientação liberal, é o de como compatibilizar a igualdade doutrinária com as desigualdades reais de oportunidades políticas, econômicas e sociais, cuja compatibilização, aliás, não se daria de uma só vez. No seu famoso ensaio, revela como e porque o primeiro elemento da cidadania a se expandir foi o direito civil, segundo, anos depois, pela expansão do direito político e, por último, pela 93
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expansão do direito social, este último muito mais a partir do presente século. Na verdade, o dilema continua resistindo ao tempo e, se de todo atenuou-se nas sociedades capitalistas avançadas, o mesmo não se pode dizer para sociedades de capitalismo tardio, como a maranhense e também a brasileira como um todo. Pode-se afirmar que o conceito clássico de cidadania, nutrido pelas ideias do liberalismo e do pensamento setecentista, reconhece como cidadãos ao conjunto dos membros de um Estado ou Nação. O Estado ideal para atuar numa situação igual a esta é aquele capaz de promover uma justa distribuição de poder e de bens entre todos os cidadãos, assegurando-lhes igualdade de oportunidade e de condições de participação. Evidentemente, este Estado ainda não existe e nunca existiu. Mesmo que esta questão seja entendida como estratégia das camadas dominantes da sociedade para chegar mais rápido ao controle do Estado, não sobram dúvidas de que ela traz em si mesma um caráter antitético, pois na noção de cidadania como reconhecimento da igualdade de direitos, passa a ter sentido pleno na luta política das camadas subalternas da sociedade. Por isso mesmo é que a concepção atual que informa o conceito de cidadania, vincula-se à ideia de luta contra os privilégios e contra a obstrução do indivíduo como integrante pleno da sociedade onde atua e produz; que, dito de outra maneira, é a própria justificativa da luta pela consolidação do Estado de Direito, que é a luta pelo avanço da democracia, como já referido anteriormente. A experiência liberal do Estado brasileiro percorre um caminho bem diferente do caso inglês. Sociedade caudatária dos valores europeus, o liberalismo daqui foi sobretudo uma “importação ideológica”, conforme expressão de José Murilo de Carva94
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lho. Para este autor as reformas políticas antecederam as reformas sociais. A Constituição de 1824, por exemplo, de uma só vez, formaliza uma série de direitos civis e políticos parecidos aos da Inglaterra à época, só que aqui nasciam sem as lutas que lá os antecedera. Para Carvalho, esta simultaneidade, que evidencia o descompasso entre a ordem social e a ordem política, cria um conjunto de problemas teóricos e práticos que dificultam a compreensão da cidadania no Brasil. Por esta razão, sem dúvida, torna-se problemático o reconhecimento do cidadão brasileiro apenas pelo artifício jurídicoformal que enumera direitos e deveres do estado e do cidadão. Para se fazer com maior precisão este reconhecimento convém, sobretudo, realizar a identificação das formas assumidas pela desigualdade social no país e o papel que o Estado vem assumindo, ou como criador, ou como mantenedor, ou mesmo transformador, dessas desigualdades. Como afirmava Carvalho, Victor Valla e outros autores competentes, aos sub-cidadãos, aqueles das camadas subalternas, só resta o recurso da reivindicação coletiva para viabilizar suas demandas. Eis porque acha que no Brasil a cidadania deve ser conseguida coletivamente, deve materializar-se em um ser coletivo que luta por sua cidadania. Por não poder resolver todas as carências sociais, o Estado brasileiro tem engendrado, sem mesmo o querer, um tipo de cidadania que só se viabiliza pelo avanço da população sobre este mesmo Estado, que é, na verdade, a sua maneira de requerer direitos sociais obstruídos.
9 REINVENÇÃO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA A PARTIR DOS SISTEMAS MUNICIPAIS As estatísticas são eloquentes: no Maranhão o percentual de atendimento das matrículas por dependência administrativa
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é majoritariamente municipal. O índice de municipalização gravita ao redor de 70% do total levantado pelos mapeamentos mais recentes. A questão-chave é saber se esse processo acelerado de municipalização compulsória reúne os meios e as condições necessárias a um franco processo de desenvolvimento educacional, centrado no direito de aprender das crianças, adolescentes, adultos e idosos que frequentam suas redes escolares. Outra questão é discernir se o processo de municipalização não corre o risco de contribuir para fragmentar, e mesmo desestruturar, o modelo educacional em vigor, reconhecidamente cheio de problemas e de desempenho medíocre, se se considerar, por exemplo, o rendimento dos alunos, refletidos nos resultados das avaliações, locais, estaduais, nacionais e mesmo internacionais, como o IDEB, PISA, por exemplo. O sentido principal desta seção é refletir e problematizar sobre os desafios educacionais postos à inteligência e capacidade local,tendo como pano de fundo a importância de um projeto instituinte de educação para o Maranhão, sobretudo o do interior, e a efetividade do planejamento e gestão das ações de políticas públicas para a área, numa perspectiva de promover o desenvolvimento sustentável dos sistemas municipais de ensino e de educação, alvos principais da política educacional esboçada e iniciada em termos práticos no governo descontinuado de Jackson Lago. Referendados pela legislação em vigor, a partir da Carta Magna e da LDB em vigor, os municípios são entes federativos autônomos, onde se inclui o planejamento e gestão educacional. A eles são transferidas, em muitos casos de forma intempestiva, uma série de responsabilidades quanto à condução das políticas públicas vinculadas aos serviços de consumo coletivo, merecendo especial destaque a gestão da educação básica, envol-
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vendo a educação infantil e o ensino fundamental, além de outras responsabilidades em termos de ensino médio, educação de jovens e adultos e educação especial, entre as principais. Acreditava-se na força e na recorrência ao planejamento educacional, em nível local, como um dos recursos essenciais a que o dirigente municipal da educação deveria utilizar para evitar que a municipalização do ensino desse errado e pudesse se desenvolver de modo controlado e efetivo. Com efeito, o planejamento como ferramenta da organização dos sistemas educacionais precisava assumir um grande destaque, tanto pela ênfase dada pelo sistema federal, preocupado com a baixa qualidade do ensino no país; como por gestores estaduais e locais, que sentem na pele a necessidade de recorrer a formas mais científicas e técnicas de administração e gestão dos seus programas, planos e projetos educacionais, sob pena de não darem conta das novas e desafiadoras exigências impostas pelo modelo em vigor. Sabe-se não ser fácil atingir este propósito, na medida em que a grande maioria dos mais de 5.500 municípios brasileiros ainda carece de experiências na área do planejamento de políticas públicas e, sobretudo, não dispõem de recursos humanos, materiais e financeiros para começar uma ação imediata eficaz. Todavia, a realidade presente obriga os administradores públicos municipais a encontrarem alternativas criativas que possam concretamente contribuir para a superação dos desafios existentes, principalmente os ligados à construção de uma escola pública de qualidade para todos. Havia a convicção de que seria impossível atingir-se a qualidade efetiva da educação sem que se adotasse o planejamento democrático e participativo em sua plenitude e em todos os níveis da gestão, tanto no micro, referido ao ambiente da escola, como no macro, relacionado ao campo da gestão e operação dos sistemas municipais de ensino. 97
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Procurou-se à época trazer para o debate e para a reflexão questões consideradas relevantes no contexto do processo de municipalização da educação básica no Brasil e no Maranhão, procurando situar o papel do planejamento educacional como estratégia de peso decisivo para o avanço e o amadurecimento dos sistemas municipais de ensino. A construção da qualidade educacional de forma planejada foi o maior desafio posto à inteligência estratégica governamental, cujas iniciativas foram marcadas por altos e baixos acentuados. Não se tratava apenas de um planejamento técnico e burocrático, houve a busca de um planejamento plástico, inovador, criativo e democrático, baseado no direito de aprender de crianças, jovens, adultos; planejamento educacional de base local, tendo como uma das lideranças intelectuais a Profa. Célia Linhares e de outras educadoras reconhecidas pela comunidade de educadores, que integravam grupos de trabalho. O desafio era grandioso. Sair de um estágio, marcado por uma profunda crise de efetividade, e galgar outros patamares em que a qualidade do ensino fosse uma constante e universal. Enfrentar este desafio passava necessariamente pela organização do sistema municipal de ensino e da rede escolar em especial. Significava investir maciçamente na formação de recursos humanos e de dirigentes educacionais, com atenção especial na qualificação para a gestão pedagógica e administrativa; integrar a política educacional ao conjunto das políticas públicas, priorizando-as dentro do plano de governo das prefeituras; elaborar, de forma participativa, o plano municipal de educação, espelho fiel de uma vontade coletiva em favor do desenvolvimento educacional; valorizar radicalmente os profissionais da educação em todos os níveis, oferecendo-lhes não só capacitação permanente, mas, sobretudo, condições de trabalho e de vida verdadeiramente dignas; mobilizar a comunidade escolar e a comunidade de pais 98
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e amigos da escola em favor da construção de uma escola pública de qualidade comprovada para assim ter condições de se igualar às demais escolas das outras redes de ensino; além de outras iniciativas internas e externas, como estimular a participação estudantil, o envolvimento de outros setores produtivos e organizados da sociedade, o funcionamento autônomo dos conselhos de deliberação coletiva e de controle social, por exemplo. O planejamento da educação municipal será um remédio eficaz se for entendido dentro dos exatos limites de suas possibilidades intrínsecas. Só se planeja o desenvolvimento social e da educação em particular se estiver claro o projeto de escola, de comunidade, de município, de estado e de nação que se pretende construir. Adotar o planejamento como ferramenta do desenvolvimento da educação municipal quer dizer recorrer a uma técnica e a um método racional para melhor atingir os objetivos pretendidos. O planejamento municipal tem sido pouco adotado ultimamente porque se atravessa uma aguda crise de valores, de financiamento e de identidade que faz com que pensar além do dia-a-dia seja tarefa quase impossível. Por outro lado, há um mundo poderoso que avança velozmente em todas as direções, pensando e decidindo por toda a humanidade, em nome do poder desta nova ordem mundial globalizada, projetando e realizando investimentos que repercutirão durante os próximos 25 anos. O que fazer diante dessa realidade inexorável: deixar as coisas com estão ou agir agora para tentar vencer os obstáculos que se antepõem a um destino melhor para a nação brasileira e para o povo maranhense? Planejar sem esse referencial é perda de tempo e de recursos, além de desperdício de esperanças e sonhos humanos, hoje cada vez mais escassos. 99
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Todo esse esforço tinha um único objetivo: atingir uma educação de qualidade que contribuísse efetivamente para libertar o Maranhão e a grande maioria dos seus municípios do atraso. Cresce a consciência mundial de que a resolução dos problemas dos grandes centros urbanos passa pela criação de uma boa qualidade de vida nos pequenos e médios municípios e centros urbanos. As melhorias de qualidade nas estruturas locais dependem obrigatoriamente de uma ação política decidida e por um compromisso democrático. A importância da democratização do poder local é chave, na medida em que esta dimensão da vida social ainda é marcada por fortes coloridos oligárquicos. Não se realiza essa tarefa histórica sem uma boa educação para todos e cada um. O novo planejamento do desenvolvimento em construção asseverava que o fundamental é não perder de vista a importância do município, dos territórios planejados, das regiões integradas para o desenvolvimento da economia e da sociedade. E que, o desenvolvimento pretendido, não ocorreria plenamente se os sistemas de educação locais não forem competentes o suficiente para cumprirem os seus papéis de humanização e de civilização. O povo do interior, principalmente os setores mais organizados, ainda que de forma lenta, cada vez mais se conscientiza da sua posição desconfortável em termos de padrão de vida e da baixa efetividade social das políticas públicas governamentais em suas vidas. Baixa qualidade de vida popular e ineficácia das ações dos governos municipais guardam, indubitavelmente, uma forte correlação. A análise lúcida e honesta da situação educacional e social dos municípios apontava à época para uma realidade repleta de desafios de toda ordem, em especial aqueles ligados ao bem-estar do povo e das crianças, ao desenvolvimento das forças produtivas e da tecnologia e à produção de espaços públicos necessários à evolução política. 100
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O longo atraso social global, manifesto no baixo nível de renda, na reduzida escolaridade, na fraca disponibilidade de capital social, na escassez de quatros técnicos capacitados para direção pública e empresarial, sintetizam o largo spectrum de iniciativas que precisam ser tomadas a fim de que se superassem os desafiadores problemas presentes nos territórios. A principal lição a ser assimilada diz respeito ao reconhecimento de que um dos únicos caminhos é a busca da solução conjunta, isto é, envolvendo governo, sociedade civil, empresariado com responsabilidade social, instituições do conhecimento geradoras de tecnologias e inovações, sob pena, em caso de fracasso, de todos fracassarem juntos. Significa afirmar que é preciso construir uma nova teoria e uma nova prática de governar o município, suas cidades, o interior, as instituições públicas e privadas, em um esforço amplo de reinvenção da política, a partir da desconstrução de todos os seus atuais fundamentos de sustentação, que são, na verdade, as causas últimas do atraso social, econômico, educacional e cultural do semi-árido e mesmo do Nordeste. Sem boa educação para todos, todavia, nada disso seria viável. Uma das prioridades para qualificar a educação municipal é procurar capacitar as comunidades gestoras locais com instrumentos necessários a uma gestão educacional realmente efetiva, consideradas relevantes no atual contexto do processo de municipalização da educação básica no Brasil e na região, procurando situar o papel da administração e do planejamento educacional, dotados de autonomia e competência, como estratégias de peso decisivo para o avanço e o amadurecimento dos sistemas municipais de educação. Focalizo agora o que foi o plano educacional mais ousado do governo. Com muita alegria passo a palavra à Profa. Célia Linhares, certamente uma das maiores educadoras já nascidas no torrão maranhense, para que exprima, com sua própria voz, 101
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a ideia central desse que também foi o projeto educacional mais relevante do governo, do qual foi consultora respeitável e a quem coube coordenar equipe central talentosa e comprometida. “Este Plano de Alfabetização Educadora de Jovens, Adultos e Idosos do Maranhão, o PAEMA, apresentado na Conferência Estadual de Alfabetização do Maranhão, em 2008, traz as marcas de um empenho democrático que vem se concretizando, com múltiplas ações, desde o início do Governo Jackson Lago. Cabendo à Secretaria Adjunta de Projetos Especiais, órgão vinculado à Secretaria de Educação do Estado (SAPE-SEDUC), a responsabilidade da coordenação, tanto da elaboração do PAEMA, quanto de sua implantação e desenvolvimento, a partir da assinatura de um Convênio entre este órgão da administração estadual e o Instituto Paulo Freire. É este Instituto que vem redigindo, dialogicamente, o PAEMA, que deverá constituir-se como uma política pública sob a responsabilidade de uma rede de instituições em movimento e expansão, participantemente criadora, para uma alfabetização educadora do Estado do Maranhão. Como os produtos sociais só se constituem como democráticos, à medida que os processos que os vão produzindo também estejam impregnados de participação social, de auto expressão popular, com possibilidades de experimentações instituintes, o PAEMA vem sendo tecido e retecido, com participações que progressivamente se ampliam. Sua apresentação para discussões 102
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e contribuições, nos 10 Fóruns Regionais de Alfabetização de Jovens, Adultos e Idosos do Maranhão, realizados nos dias 16 e 18 de Junho de 2008, mostrou um desejo de educação impressionante. Para esses eventos foram convidados todos os 217 municípios maranhenses, convite sustentado com o envio de cópias da Proposta do PLANO DE ALFABETIZAÇÃO EDUCADORA DO MARANHÃO para leitura e debate em cada localidade e instituição educativa. Atendendo à regionalização político-administrativa do Estado do Maranhão, que data de 2007, esses 10 Fóruns reuniram 130 municípios maranhenses, representados por prefeitos, secretários de educação, conselheiros, dirigentes escolares, estaduais e municipais, ao lado de educadores e educandos (com alguma prevalência dos que participam da EJA), bem como, sindicalistas e militantes dos movimentos sociais, que juntos constituíram coletivos plurais, somando 1.122 participantes. Se, quantitativamente, o número de municípios e participantes foi bastante expressivo, sobretudo considerando as condições assimétricas do desenvolvimento maranhense, as dimensões qualitativas desses Fóruns merecem um espaço maior para ser devidamente apreciadas, espaço que não poderá ser usurpado deste, reservado que é para a explicitação do PAEMA. De toda maneira, se faz mister registrar as lições de alto teor democrático, que neles o Maranhão viveu, exercitando processos de diferir, 103
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confluir, dissentir e complementar, enriquecendo, sobremaneira, o PAEMA e as possibilidades políticas de concretizá-lo, atualizá-lo e recriá-lo continuamente. Assim, o que resumidamente podem atestar, o que deles participamos, é que demos outros importantes passos na construção compartilhada de uma Política de Estado, comprometida em revigorar e coordenar as forças éticas da sociedade política e civil para a inclusão de cerca de 800.000 maranhenses na cultura letrada, da qual foram, historicamente, impedidos de compartilhar. Portanto, os frutos desta Política de Alfabetização Educadora de Jovens, Adultos e Idosos presentes nesses Fóruns representam processos em si reveladores da maturidade, dos desejos e dos projetos democráticos maranhenses, testados em escutas e discussões em que prevaleceu o respeito, não só à posição do outro ou da outra, mas, sobretudo, às propostas com que o momento presente do Maranhão vai potencializando seus movimentos de auto-gestão. Os Fóruns, diversificados em suas posições, histórias e interesses, souberam confluir em atitudes de extrema sensibilidade com a grandeza do que o PAEMA propõe para todo o Estado e, por isso mesmo, se colocaram acima de quaisquer particularismos. As contribuições que ampliaram, temática e metodologicamente, o PAEMA, com as sabedorias de quem experimenta os caminhos da alfabetização de jovens, adultos e idosos em suas múltiplas trevas e cintilações, constituíram um verdadeiro tesouro que, como já foi 104
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ressaltado, não cabe, na totalidade de suas minúcias, nesta redação do PAEMA, até por esta se constituir uma proposta de Política Pública, em que devem preponderar “teoriza-ações”, refletindo e orientando a realidade. Por isso, já estão coletadas para alicerçar o trabalho de elaboração dos Planos Estratégicos de Implantação e desenvolvimento do PAEMA, em início de sistematização. Mas, importa ainda destacar a vivacidade permanente que transbordou dos Fóruns, manifestando-se não só na pertinência, sagacidade e argúcia das contribuições, mas também como um elã motivador da organização de acontecimentos, como um “Pré-Fórum”, em uma tarde de domingo, com a presença de representantes de 15 municípios, inclusive com a presença de uma recém mamãe, que havia deixado em casa seu bebê, em fase de aleitamento. Mas também, importa registrar tantas outras acolhidas municipais, com o oferecimento de pastas, como pernoites, banners e organizações de passeatas, com adesões populares, debates abertos em praça pública e mobilização da imprensa falada, escrita e televisiva. Contudo, para quem acompanhou os Fóruns do PAEMA não vai ser fácil deixar escapar como um dos maiores signos desses eventos o sentimento cívico de participação e cuidado com a democracia que contagiava a todos, a par de um investimento afetivo e profissional para que o PAEMA se consolide como uma Política de Estado vigorosa e aberta às reinvenções e experimentações compartilhadas por 105
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interligações e trocas que possam ir subscrevendo uma outra cartografia geo-política-educacional do Maranhão. Essas participações que vão reconstruindo uma democracia fortalecida pelo exercício popular e esses investimentos que afetam as dimensões da profissionalidade só são possíveis quando mergulhamos no cotidiano social e educativo com as tensões próprias de quem os deseja ampliar, superando travas e desafios que só se tornam inexoráveis, quando a eles nos resignamos, aceitando uma convivência passiva e reprodutora das desigualdades. Por isso mesmo, os participantes dos Fóruns, recorrentemente, enfatizaram que precisamos criar redes e circuitos de apoio e avaliação do PAEMA, para realimentar de forma continuada essa dinâmica aprendente e ensinante que irá tornar o processo de múltiplas alfabetizações tão potente a ponto de não só realizarmos, mas quem sabe, superarmos metas, com as surpresas de um trabalho comunitário que se espalha pelo nosso Estado e que pode transbordá-lo de muitas maneiras. Como tal, este Plano, agora ampliado, representa um conjunto de princípios e diretrizes de ações que visam a diferentes níveis de reparação das perdas acumuladas por esse segmento populacional, que teve restringidas muitas de suas oportunidades existenciais, políticas, culturais e econômicas, com ressonâncias terríveis no desenvolvimento social de nosso Estado.
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Mas, o presente Plano não se limita a reparar injustiças e excludências, assumindo-se como uma Política Pública que, democraticamente, garante o direito crescente desses e dos outros maranhenses a uma educação escolar por toda a vida, interconectando-o com os demais direitos, como à saúde, ao trabalho (emprego e renda), à habitação, à terra, à alimentação, à cidadania nacional e planetária, com sustentabilidade ambiental, enfim, garantindo as expansões da vida em todas as suas dimensões éticas, estéticas, econômicas e políticas. Importa reconhecer que o Maranhão, acolhendo tradições não conformistas, está realizando um processo instituinte de uma outra política, que ao invés de planejar, para que uma parcela da sociedade execute tarefas, se abre para interlocuções, as mais plurais, para elaborar o Plano, com que juntas e juntos vamos enfrentar as assombrosas desigualdades que, há tanto tempo, têm preponderado entre nós, sobretudo aquelas relacionadas ao processo de alfabetização do Maranhão. Para isto, o Governo do Maranhão, em nome de todos os movimentos democráticos deste Estado, vem convocando a Sociedade maranhense a aprender e a ensinar leituras mais solidárias e includentes das letras, mas também dos outros bens que coletivamente vimos produzindo, para fazer a vida de todas e todos mais digna de ser vivida. Isto tem se traduzido, na elaboração do PAEMA, numa dialogia incessante, sem nenhuma 107
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discriminação partidária, étnica, religiosa, etária, daquelas pessoas com deficiência ou com preferências sexuais não hegemônicas. Assim, vão se acolhendo vozes, linguagens, pronunciamentos, gestos e pensamentos que como ações vão forjando outros canais de comunicações, para escaparmos dos tecnicismos, abrindo pontes com outras realidades maranhenses, até agora pouco visíveis, mas que alimentam expectativas e sonhos de melhorar de vida, melhorando a própria vida, como uma forma de resistência aos esvaziamentos da dignidade humana, político e social. Entretanto, todo esse trabalho, que já floresceu como um encontro democrático nos Fóruns, tem uma longa história. Em primeiro lugar, importa mencionar algumas organizações, em âmbito estadual, que foram implementadas, para que os processos alfabetizadores pudessem e possam se aprimorar com o decisivo apoio intersetorial dos organismos do Estado e da Sociedade maranhense. Mesmo sabendo que não caberia aqui elencar todas as iniciativas do atual Governo e nem tão pouco as ações específicas da SAPE/SEDUC e Secretaria de Estado de PlanejamentoSEPLAN, endereçados a ampliar o processo de alfabetização e de revigorar o sistema de educação no Maranhão, aqui mencionamos algumas, pela sua relevância política. São elas: •
Planejamento, organização e implantação da Comissão Maranhense de Erradicação do Analfabetismo (COMEA); 108
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Ciclo de Experiências de Alfabetização de Jovens e Adultos no Estado do Maranhão;
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Elaboração do Plano Plurianual do Programa Brasil Alfabetizado – Maranhão e sua imediata aprovação pelo Governo Federal;
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Formação Inicial e Continuada de Alfabetizadores do Programa Brasil Alfabetizado;
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Implantação em caráter experimental da metodologia do SIM EU POSSO em parceria com o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra – MST;
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Elaboração do Plano Plurianual 2008/2011, priorizando a educação.
Mesmo atentando para esses avanços, não podemos desconhecer os grandes desafios históricos que retomam velhos embates em que tradições conservadoras conflitam com aquelas outras inconformistas, em que os lampejos de liberdade mantêm a história sempre acesa, produzindo efeitos surpreendentes. Por tudo isto, vale questionarmos a realidade, introduzindo o PAEMA. II. É possível girarmos, em um salto, no qual alfabetizamos o Maranhão e com ele, também nos alfabetizamos? Quantas vezes nas ruas, nos sinais de trânsito, presenciamos malabarismos infantis. Mas, é, sobretudo, nos peitoris à beira-mar e à beira-rio, que nos assombramos com os saltos de nossas crianças que giram seus corpos ao arremessá-los nas águas, delas emergindo com intensas expressões de vida e potência. 109
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Partindo desta metáfora “do girar em pleno salto”, o Governo Democrático do Maranhão vem convidando toda sociedade maranhense para participar deste Plano de Alfabetização Educadora (PAEMA), insistindo na urgência de reinventarmos, de forma criadora e prazerosa, outros tipos de processos de aprendizagem e ensino de leitura que superem muitas das negações educacionais, sempre entrelaçadas com os constrangimentos de hierarquias rígidas e dominações econômicas, sociais, culturais até agora vigentes, mantendo quase um milhão de maranhenses excluídos do mundo das letras. Não há dúvidas de que este Plano, em ação desde o início de sua construção, processualmente aberta, precisa carregar consigo a alegria de um devir que vá concretizando “inéditos possíveis” , para usarmos instrumentos conceituais socializados por Paulo Freire, significando a concretização de potências históricas, que ao se realizarem irradiam outras possibilidades de criação. Também o Maranhão, neste amanhecer, que juntos estamos protagonizando, irá se alimentar de energias, de desejos, de ações, de necessidades que de há muito persistem entre nós, urgindo por saltos múltiplos, para os quais o Governo Jackson Lago convida e convoca todas as forças de dignificação do nosso Estado e de nossa Sociedade para realizarmos um Maranhão em que todos e todas possam ler e aprender, como forma de participação política.
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Por tudo isso, importa ressaltar que o que sustenta e anima este Plano não são apenas objetivos de alfabetizar, mecanicamente, jovens, adultos e idosos para engrossarem estatísticas, debilitando esperanças, com as frustrações daqueles que, vivendo e produzindo no Maranhão, ainda não tiveram a oportunidade de participar de uma leitura e escrita do mundo, em que eles próprios se inscrevam, política e biograficamente. Sabemos que não basta reproduzir métodos do tipo “bancário” que oprimem os alfabetizandos e alfabetizadores ao usá-los como esquemas de transmissão de competências e informações. Não há como desconhecer a situação de desamparo civil em que são deixados tantos grupos indígenas e outros tantos negros, quilombolas, lavradores, quebradeiras de coco, pescadores, minorias discriminadas por opções e exercícios sexuais não padronizados, pessoas com deficiência, ou, mesmo desvalorizadas por situação de gênero e idade, homens e, ainda, mulheres em prisões, grupos populacionais deslocados de seu habitat cultural, pela expansão do agronegócio ou de outras ordens de iniciativas, que acabam por desprovê-los de equipamentos culturais e sociais, os mais indispensáveis à sobrevivência e à convivência contemporânea. Paradoxalmente, nunca tivemos, ao nosso dispor, instrumentos tão numerosos e potentes para rompermos com os abismos das desigualdades. Entre tantas ferramentas, destacamos não só as intensas polifonias e pluralidades que se expressam por força dos processos de 111
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complexificação civilizatória, potencializando avanços teórico-metodológicos e tecnológicos, que podem ser trabalhados com a alfabetização e suas interfaces culturais, econômicas e políticas, ampliando não só a realidade pelo autoconhecimento, mas também o autoconhecimento pela imersão criadora na realidade. Nesta direção, ressaltamos as “teoriza-ações” freireanas, que vêm sendo crescentemente recriadas, com um reconhecimento nacional e internacional que bem atestam à fertilidade dessa produção coletiva. Para ilustrar tudo isso, vale lembrar que na V Conferência Internacional de Educação de Adultos, que ocorreu em julho de 1997, na cidade de Hamburgo, Alemanha, foi instituída a “Década da Alfabetização Paulo Freire”. Todas essas marcas históricas avivam a importância da autonomia individual e coletiva, para que não percamos de vista os fracassos engendrados por programas alfabetizadores que vão compondo uma faixa mais visível da ainda dispersa e insuficientemente estudada história da alfabetização internacional e, sobretudo, brasileira. Nesse sentido, urge superar tendências de recuos e a estagnações, sempre prontas a se reeditarem, para que o Maranhão possa investir numa alfabetização educadora, promovendo trajetórias de alfabetização de mulheres e homens mais livres, mais participativos, mais criadores e produtivos, através de ações que incluam um permanente exercício de pensar, como enfrentamento dos desafios históricos, requerendo, por isso mesmo, diálogos 112
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com as circunstâncias, como textos impregnados de passados, encaminhando devires. Assim, a primeira urgência do PAEMA é encararmos a realidade da exclusão de um milhão de maranhenses do mundo letrado, correspondendo a 23% da população do Estado. Mesmo que nos constranja, precisamos reconhecer que esta realidade representa uma espécie de genocídio e de aniquilamento existencial e político, cujas responsabilidades e conseqüências atingem a todas e todos nós. Não podemos esquecer que um percentual de 23% de analfabetos, obtido pela “Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar” (PNAD/2005), significa, numa tradução aproximada, que em cada 100 maranhenses, quase 25 ainda não sabem ler e escrever. Como não perceber as graves repercussões dessa ausência de alfabetização educadora, que vai mutilando infinitas possibilidades para aqueles que estão interditados da comunicação letrada, mas também incessantemente atinge e perverte toda a sociedade, atrofiando o pensamento que como uma criação permanente e coletiva, fica constrangido na expansão de seus fluxos mais plurais, pela ausência de uma participação de toda a sociedade? Mas, esses problemas que, juntas e juntos, estamos procurando enfrentar, não podem ser lidos nem como um signo de naturalização, já acimentado em nosso jeito desigual de habitarmos e construirmos, cotidianamente, o Maranhão, nem tão pouco como um sinal de nossa impotência político-pedagógica. 113
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Neste sentido, vamos fazer alguns destaques, visando acender alertas, que fazem este Plano não se circunscrever em ímpetos voluntaristas, nem se reduzir a tabelas burocráticas ou a contabilidades quantitativas, mas prever ações continuamente inventivas e criadoras, grandes e pequenas, com acompanhamentos que impliquem em interligações e realinhamentos possíveis para assegurar a mais ampla participação e aproveitamento de todas e todos nestes movimentos diversificados, com que vamos aprendendo a saltar conjuntamente, ao irmos realizando esta alfabetização educadora no Maranhão”.
10 MANTER VIVO O LEGADO Dignidade, combatividade e ética foram imperativos que acompanharam Jackson Lago não só no governo estadual, muito curto face a uma interrupção infame, mas ao longo de sua vida, seja como ator, militante, dirigente e líder local, estadual, regional e nacional. A situação exige das atuais e novas gerações que não esqueçam Jackson. O alvo principal dos seus adversários era destruir essa reputação, procurando nivelá-la por baixo, equiparando-a à maioria dos políticos profissionais que tuam no país e no estado, reconhecidos pela ausência de princípios, valores humanos superiores e respeito à coisa pública. O Instituto Jackson Lago se inscreve nesse contexto. Nasceu para preservar e destacar os atributos do patrono e os seus feitos, sem nenhum compromisso com o culto à personalidade, ao contrário, visando abrir espaço à construção coletiva de uma
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nova política, sem corrupção e tiranias. Objetivando atingir as novas gerações, aos jovens e a todas gerações que defendem e lutam pela dignidade do poder público. Em 257 páginas, organizadas e embelezadas por mãos de artesãos cuidadosos, o Instituto Jackson Lago – IJL publicou o livro Governo Jackson: O Legado, difundido quase que simultaneamente em Imperatriz e São Luís, no final de setembro de 2013, cidades que marcaram a vida pública do ex-governador. Na retaguarda e na linha de frente, ao mesmo tempo, a figura singular de Clay Lago, viúva e presidente do Instituto, responsável direta pela façanha de dar vida, em um prazo extremamente curto, a um projeto institucional de grande magnitude, difícil de concretizar em contextos como o maranhense, submetidos cotidianamente a desafios gigantescos nos aspectos políticos, sociais e econômicos. Passar a limpo a realidade maranhense e as suas circunstâncias, numa perspectiva de fomentar o contra poder popular e democrático é algo dificílimo e enormemente penoso. Nesses seus poucos anos de vida, o IJL já se encontra devidamente formalizado, com sede provisória bem estruturada; instituiu um padrão de funcionamento estável e regular da sua diretoria; manteve articulada a militância mais próxima e atrai novos parceiros; realizou debates públicos do mais alto nível, com personalidades como Marco Antonio Villa, João Pedro Stédile e Beatriz Bissio; publicou revista, livro e, principalmente, avançou no mapeamento do acervo documental, iconográfico e histórico a respeito da trajetória do Patrono, destacando-se a elaboração de um plano de ações estratégicas, que culminará com a inauguração, em prazo não muito distante, de um centro cultural à altura do Legado e das necessidades de desenvolvimento e emancipação político e cultural do povo maranhense.
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O livro sobre o Legado do governo Jackson Lago chega a tempo de evitar que se apague da memória coletiva a verdade da sua gestão à frente do Executivo. Em tempo algum da formação maranhense se tem conhecimento de uma orquestração política tão eficaz, voltada exclusiva e impiedosamente para apagar da memória do povo um período marcante da história política local. Igor Lago, filho aguerrido e zeloso guardião da obra do ex-governador, a esse respeito se posiciona na orelha do livro em referência, com toda a propriedade: “um governo plural tão combatido, mesmo antes de assumir; tão agredido e sabotado, durante; e, tão desdenhado, após seu fim...” O Legado não é uma apologia infundada, nem muito menos um incenso apagado e indolor. A matéria-prima com a qual se nutre e fundamenta decorre das mais distintas latitudes de seu governo, produzida por atores sociais e políticos que vislumbraram ali a oportunidade de virar a página da história, em uma sociedade dominada por senhores e coronéis. Não se trata de um relatório administrativo puro e simples. O Legado deve ser lido como uma carta de navegação, como um relatório de viagem rumo a um Maranhão desejado por legiões de maranhenses que, em distintos tempos existenciais, sonharam com a mudança de um modelo de sociedade que favoreceu apenas aos seus mandatários e donatários. É um mergulho no mar dos Sargaços, com todo o seu simbolismo e dualidade. Se para os antigos navegantes aquele mar acolhia bestas marinhas e monstros assustadores, que se moviam lentamente entre as embarcações dos navegantes; para outros, felizmente, é também a vitória da ousadia de um timoneiro, seja Colombo, seja Jackson, que abriu as portas do Novo Mundo, singrando um mar tenebroso e sem vento. Como toda carta de navegação requer do navegante que penetre nas entranhas do mapa. Com toda certeza encontrará, aqui e ali, fantasmas e sonhos, natural quando se busca reinventar 116
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uma sociedade pisoteada em sua dignidade humana ao longo dos tempos. Depois do Legado, por mais insanos que sejam os detratores, não se poderá mais dizer que nada foi feito pelo Governo Jackson. Não se poderá mais acusá-lo e incompetência e omissão, mesmo sob a mais feroz das críticas. Se inconformados ainda houver, mesmo dentre aqueles que merecem todo o respeito pela honestidade intelectual, o livro registra a trajetória de um político único e exemplar que resistiu bravamente e lutou até a morte por suas crenças e devoção ao povo da sua terra. Por tudo isso é uma obra para hoje e para a posteridade. O IJL, por seu turno, dá sinais de que avançará nas boas práticas em favor da democracia no Maranhão ao inaugurar dois projetos auspiciosos: o primeiro, denominado “Diálogos Jackson Lago” e o segundo, intitulado “Um Fio de Prosa com...”. Os dois projetos foram lançados quase que simultaneamente à criação do IJL; um no mesmo dia e o outro no dia seguinte. Ambos contando com a inteligência cortante do historiador Marco AntonioVilla e as luzes do seu verbo crítico, penetrante e provocador. O objetivo central dos referidos projetos é ampliar e dinamizar a esfera pública em nosso Estado há muito tempo em situação de letargia, contribuindo para a democratização da sociedade local. Hannah Arendt, ao afirmar que a esfera pública é “o local adequado para a excelência humana”, consegue transmitir, de forma contundente, não só o seu julgamento sobre a matéria, como também a própria síntese da importância atribuída ao tema pela filosofia política antiga e moderna. A proposta do IJL é que os dois projetos contribuam efetivamente para a produção e disseminação de informações e co117
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nhecimentos que estimulem o debate sobre o desenvolvimento e a consolidação democrática no Maranhão, com elevado foco municipal. Como subprodutos das iniciativas pretende estimular e promover a produção, publicação e divulgação em livros, revistas, jornais, teses, redes sociais dos conteúdos abordados nos eventos. Além disso, espera que os Diálogos e o Fio de Prosa contribuam para a construção de agendas públicas sobre os temas emergentes e contemporâneos enfocados, articulando-os aos movimentos sociais e à sociedade civil organizada. E, por último, que incentivem a formação, expressão e mobilização política da sociedade em geral por intermédio de cursos, palestras, seminários, encontros, congressos, fóruns, debates, círculos de diálogo e cultura. Quando Arendt afirma, com efeito, que a esfera pública é o lugar da “excelência humana”, ela está reconhecendo ali o lugar da política, o lugar no qual o homem é capaz de fazer política, capacidade esta que, em seu juízo, torna o ser humano diferente e distinto dos outros animais, pois fazer política implica em agir, discutir, formular projetos, o que nenhuma outra espécie é ou foi capaz de empreender. O primeiro Diálogo ocorreu no dia 4 de abril de 2013, por ocasião da posse da primeira diretoria e do corpo de coordenadores do IJL, no auditório da OAB, completamente lotado por representativo contingente do que se tem de melhor no campo democrático. O tema foi sobre a relevância da questão democracia versus oligarquia no atual contexto local e brasileiro. O expositor M.A. Villa trouxe uma excelente contribuição. A plateia atendeu plenamente às expectativas. No dia seguinte, na órbita do Fio de Prosa houve um aprofundamento das questões, a partir da participação de um grupo 118
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de interlocutores convidados. Outro grande momento. Sem dúvida, o resultado de todo esse exercício deixou patente o peso que terá em nosso meio o investimento em iniciativas como essas, pelo poder que têm de recriar a esfera pública, sobretudo agora quando se vive uma forte crise de legitimidade das lideranças políticas, de pensamentos e ideias inovadoras. A esfera pública, segundo o entendimento da autora referida anteriormente, é o lugar da ação e da palavra, condição pela qual assume o papel de espaço privilegiado da liberdade. Ali qualquer ato de arbitrariedade representa a morte do político, seja pela cassação da palavra, seja pela obstrução da ação. A manifestação de qualquer um desses atos é um procedimento pré-político. Com efeito, a excelência da esfera pública, em especial para autores como Hannah, não retira a relevância da esfera privada. A “publicização” do privado, a hipertrofia da esfera pública, fenômeno especialmente contemporâneo, não leva necessariamente ao avanço do político. Em suas reflexões, deixa antever que o avanço desproporcional de uma das esferas sobre a outra, tanto em um quanto em outro sentidos, acaba provocando o desaparecimento do político. A cidadania, conforme suas análises, não pode ter a sua existência assegurada em apenas umas das instâncias, mesmo que esta seja a esfera pública. No âmbito do privado muito menos ainda, pois, para Arendt, esta é a esfera que responde pela satisfação das necessidades básicas. Fundamentalmente a esfera pública é o lugar no qual as ações dos homens “objetivam” a sua reprodução material e da sua existência. Ademais, é uma concepção segundo a qual o privado não se confunde com a noção patrimonial de propriedade privada, pois, sobretudo, liga-se ‘a ideias de “privados de algo”, que nada mais é que a privação da esfera pública.
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Na verdade, a existência da esfera pública, além de seus atributos específicos, cria a consciência da necessidade da ação política, que é a condição para a ultrapassagem da própria situação de “privação”. Se, na esfera privada, o homem conquista a sua sobrevivência enquanto ser individual; na esfera pública ele se reúne aos outros homens em busca de algo comum, na expectativa de construir algo que o ultrapasse no tempo. Ação e palavra, como signos de uma concepção de esfera pública, nada mais são que metamorfoses da vontade, do querer, e do juízo, fatores que garantam o movimento da sociedade em sua face política. A intensidade deste movimento depende da existência da liberdade, que é a garantia de diálogo com todas as palavras e a certeza da ação em todos os sentidos. O que se tem notado ultimamente no contexto maranhense, e isso já dura um bom tempo, é a configuração de uma situação na qual a esfera pública praticamente desapareceu. A rigor, as redes de comunicação escrita, falada e televisiva se encontram sob o controle acionário de um pequeníssimo e privilegiado grupo político-empresarial, que atua numa linha editorial inteiramente comprometida com a manutenção do sistema de dominação oligárquico. No ambiente acadêmico discute-se muito mais, obviamente, no entanto é uma ilustração descomprometida com os problemas do cotidiano e seus desafios, além de, em geral, permanecer quase inteiramente confinada aos bem decorados muros que cercam esses templos sagrados. Com efeito, ingressei no governo Jackson Lago no início de 2007, próximo de sua posse no primeiro dia daquele ano. Saí logo depois de sua cassação, que ocorreu em instância final, no dia 16 de abril de 2009, cumpridos dois anos e três meses de gestão emblemática.
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Era tarde de 20 daquele mês, chegara de São Paulo no dia anterior e após breve reunião com os funcionários administrativos e técnicos, para as palavras finais de despedida e entrega do pedido de exoneração, tomei o rumo do elevador que me levaria até o estacionamento do Centro Administrativo localizado no Calhau. Na curta distância percorrida entre a sede do Instituto Maranhense de Estudos Socioeconômicos e Cartográficos, no qual atuei como presidente, até a ascensorista atenciosa de todos os dias, procurava consolo em Fernando Pessoa, o ombro a quem recorro sempre nos momentos de angústia: ...”de tudo ficam três coisas: a certeza de que estamos começando, a certeza de que é preciso continuar e a certeza de que podemos ser interrompidos antes de terminar. Fazer da interrupção um novo caminho, da queda um passo de dança, do medo uma escola, do sonho uma ponte, da procura um encontro. E assim terá valido a pena...” Estava abalado e confuso para concentrar-me no significado dos versos pessoanos. Acabara de me submeter a uma cirurgia para a retirada da vesícula biliar e ainda estava sob o efeito dos medicamentos e, principalmente, do golpe frontal da cassação do mandato do governador. “Teria realmente valido a pena passar por tantos revezes?”, perguntava-me sem cessar. Muitas lembranças vieram-me à cabeça. A experiência interrompida no ano de 1999, em Caxias, igualmente por uma cassação inesperada. O discurso apoteótico de Jackson na Praça Maria Aragão ao receber a faixa das mãos do governador dissidente José Reinaldo. A crença de que estava começando uma nova história para o meu Estado. A emoção quase infantil do historiador Leandro Oliveira, que, do meu lado, vibrava intensamente, acompanhando aquela cerimônia inesquecível e única, sob os acordes sensíveis de Arthur Moreira Lima e os olhares, entre vagos e esperançosos, do povo ali presente.
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Já fora do elevador que me transportava diariamente para o trabalho, o Maranhão e os seus desafios não me saiam da cabeça, além de mais perguntas inquietantes: “...em que medida o governo satisfez as expectativas de seus mais de seis milhões de maranhenses?” tes?”
“Será que se indignarão com a queda ou ficarão indiferen-
Jackson Lago assumiu o governo para libertar o Maranhão da opressão e do poder oligárquico, principal responsável pelo seu atraso social, econômico e político. Estado que carrega em sua história social um emaranhado de problemas sem solução imediata, pois jamais foram priorizados pelo poder oligárquico: analfabetismo, saneamento básico, infraestrutura social e pobrezas as mais diversas, incluindo-se a mais danosa de todas, a decorrente do atraso político. Esses atributos políticos fizeram do Maranhão um Estado bem peculiar no Brasil. Quase sempre o último em tudo, ou quase tudo. A palidez dos seus indicadores sociais e econômicos, sempre entre as três piores posições no contexto nacional, virou cordel entre os cantadores, e palavra de ordem dos contadores de estatísticas. Cassado em plena metade do caminho, no momento em que tudo que havia sido pensado, formulado e programado parecia que ia dar certo, o governador Lago viu-se abruptamente afastado do cargo para o qual se preparara por toda vida. E, mais patético ainda, tendo que passá-lo às mãos daquela a quem derrotara nas eleições de 2006, Roseana Sarney, a reinvenção mais acabada do donatarismo tardio da província. Ao deixar o estacionamento perguntava-me atônito como seria possível transformar aquela queda descomunal em um passo de dança. Olhei para trás e para os lados e não via Pessoa. Uma brisa suave me fez calmo por alguns instantes... 122
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Agora, retornando da longa viagem existencial, passados tanto tempo, vejo o sofrido torrão maranhense aparentemente incólume a tudo que houve e foi interrompido, sintomaticamente,desmemorizado, como se o tempo tivesse parado, a despeito da ampliação dos problemas e desafios e da volta dos fantasmas apavorantes. Impressionava ver o resistente Jackson Lago novamente cercado de armadilhas ameaçando sua nova postulação, dando a impressão de que se perderam as referências históricas de um dos mais importantes momentos de nossa vida política, certamente sufocado pelo retorno da ideologia oligárquica tradicional, modernizada pela expertise dos marqueteiros profissionais, magos do engenho ilusionista. Retirado do trono à força, já ocupado pela princesa, viu-se de forma escancarada o retorno avassalador das velhas práticas travestidas de novas, processos de cooptação os mais inacreditáveis, alianças políticas completamente absurdas e fisiológicas ao extremo, métodos de governo muitas vezes mais condenáveis do que aqueles que levaram à guilhotina o antigo governo, fenômenos que transbordavam o cotidiano político do Estado, justificados pela falsa inexorabilidade salvacionista de novo ciclo de investimentos privados e federais, na magia dos novos “grandes projetos” e na camuflagem de uma velha elite dirigente que se comportava como neófita na arte de governar, sem atribuir-se a menor responsabilidade nos destinos do Estado nas últimas cinco décadas. A despeito da força descomunal dos poderosos, das minhas inseguranças e tormentos pessoais, continuo firmemente acreditando que seremos capazes de transformar tudo isso em um passo de dança. Mesmo sabendo das dificuldades de fazer previsões seguras sobre a resposta da população às próximas eleições, uma brisa anuncia que a resposta virá. 123
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Paira na atmosfera uma música que certamente levará o povo a sair da indiferença. Já não são poucos os que se livraram da cegueira. O maior dos enigmas é saber o que resultará desse complexo processo político, que em tudo ficou muito velho, apodrecido, e, ao mesmo tempo, parece agora que está acabando de nascer. Insisto, algo muito forte diz que o povo não assistirá a tudo isso de modo indiferente. Há sinais de que a estratégia dos donatários chegou ao fim. Já é possível ver a presença inexorável da morte em tudo que parecia eterno. E, se assim for, terá valido a pena. A extemporânea interrupção político-institucional do governo Jackson Lago até que poderia garantir à vítima um lugar na eternidade pela forma grotesca com que foi perpetrada. Os mártires sempre sensibilizaram em todo mundo. Mais ainda pela voracidade dos caçadores que construíram cuidadosamente a armadilha perfeita. Isto, obviamente, se no Maranhão a sociedade inclusiva tivesse olhos para ver e juízo para pensar com autonomia e liberdade. Não é este o caso, todavia. Confiava-se, dentro e fora do governo, que, de algum modo, a justiça viria a trunfar, a partir da crença de que não seria difícil perceber os maquiavelismos e as falsificações dos seus algozes, ao passarem para a opinião pública, de maneira abominável, a ideia de que Jackson Lago cairia por seus inúmeros erros, fruto de incompetências generalizadas e incompetentes exemplares, sem falar na suposta lama derramada pela corrupção desenfreada. Culpabilizar a vítima é uma recorrência presente na formação social brasileira e na vida política e social maranhense. Por anos a fio as mazelas do país sempre foram atribuídas à ignorância do brasileiro comum ou à baixa escolaridade de sua população e nunca às sandices, artimanhas e estratégias das falsas
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elites políticas e seus populismos e oportunismos profissionais. No Maranhão esta prática chegou facilmente à quinta essência. Não há a menor dúvida de que o governo Jackson Lago foi, além de cassado, impiedosamente escalpelado, bastando prestar atenção ao modo de agir dos adversários, que, a todo tempo, usavam e abusavam do seu poder econômico, político e midiático. O mais chocante, todavia não se limita aos episódios descritos, já conhecidos e debatidos à exaustão pelo que ainda resta de lucidez na inteligência local. O mais surpreendente de tudo isto é que o engenhoso processo de cassação produziu um segundo efeito, ou um segundo escalpo do governo Lago, e este, bestifiquem-se, cometido, voluntária ou involuntariamente, por personagens das próprias hostes oposicionistas tradicionais e, até mesmo, por atores expressivos, com vínculos anteriores à facção jackquista. O texto de autoria do sociólogo Léo Costa, “Decifrar o golpe e clarear o ambiente”, é primoroso como fonte explicativa de todo esse fenômeno. Por que antigos aliados, militantes políticos, intelectuais e jornalistas, não satisfeitos com as ignomínias do golpe judiciário, ainda pretendiam arrancar a cabeça do governo passado, atribuindo-lhe pletora de erros, no afã de promover o seu desmonte e a sua desconstrução, como fizeram os antigos donos do poder estadual? O objetivo não declarado dos pregoeiros de sempre parecia bem claro: demolir e apagar da memória o governo da antiga frente de libertação do Maranhão, liderada inicialmente por Jackson Lago e José Reinaldo Tavares, demonstrando, de forma cabal e inquestionável, sua incompetência estrutural para gerir o governo estadual e, ao mesmo tempo, apontar os supostos culpados pelo fracasso, extraídos do interior do próprio governo, com
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o intuito de execrá-los socialmente e expurgá-los da vida pública para sempre. No Maranhão a mídia é um Midas. Governando segundo o seu surrado evangelho e com seus tradicionais e caducos pastores, o governo que ascendeu ao poder pelo golpe, tenta, de modo eficiente, apelando à sua mediunidade comunicativa, transformar água em vinho, assistencialismo em políticas públicas, inércia em ação. Necessitam-se, por uma questão de dever ético e histórico, de traduções múltiplas para a opinião pública estadual e sua vasta população a respeito do significado do governo Jackson Lago. Longe destas reflexões quaisquer veleidades míticas ou muito menos iconoclásticas. Não se trata de renúncia à razão crítica. Esconder erros e omissões, ambiguidades e contradições, eximir e blindar culpados também não é isso. O que se defende é o retorno à lucidez para que a verdade triunfe. Defeitos e muitos, sim, os houve em todos os níveis e modalidades da gestão. Virtudes também e muitas, certamente, a ponto, como tem afirmado Léo Costa, de terem sido as verdadeiras razões que deram causa à interrupção do mandato. Houve sim um círculo virtuoso em franca gestação durante o período jackista, antinômico aos padrões técnicos e políticos do então antigo regime oligárquico. Inaugurava-se uma nova governança com os grandes projetos, tidos como símbolos de um Maranhão moderno. Compreendia-se a importância de capacitar o Estado como forma de obter melhores benefícios econômicos e sociais a partir dos investimentos previstos para os próximos anos. A consciência de que era preciso garantir que a população se beneficiasse do crescimento econômico do novo ciclo de investimentos sempre se fez presente. Para isso era preciso reforçar a capacidade do setor
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público em atender às demandas da nova estrutura econômica em construção. Uma estratégia fundamental para isso era fortalecer os municípios e descentralizar as responsabilidades governamentais. A divisão do Maranhão em 32 regiões administrativas e de desenvolvimento foi a resposta ousada aos desafios de descentralizar a gestão pública estadual e colocá-la a serviço do desenvolvimento regional e local, aproximando o governo do povo de uma forma concreta e correta. Os diagnósticos eram claros em favor da descentralização e da regionalização: crescimento econômico e social concentrado em poucos municípios, potencial econômico convivendo com pobreza absoluta, baixa capacidade institucional do poder público, principalmente no municipal, além das disfuncionalidades estruturais da máquina estadual. A história interrompida do governo Jackson Lago deixa cada vez mais claro os danos irreparáveis que produziu à evolução política do Estado do Maranhão. A lição maior que fica para o povo maranhense é a de que, sem mobilização e cidadania ativa, dificilmente se conseguirá vencer a dominação absolutista dos grupos oligárquicos estaduais e seus apetites insaciáveis pelo poder.
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MARANHÃO COMO URGÊNCIA Jhonatan Almada4
1 GOVERNO JACKSON COMO ESCOLA Pessoalmente sublinho que o Governo Jackson foi uma grande escola política e profissional para mim. Seria impensável no contexto imediatamente anterior que alguém vindo de Caxias sem vinculações familiares ou políticas poderosas pudesse ser convidado e trabalhar com significativa autonomia e liberdade em projeto auspicioso, criativo e libertador. Juntamente com dedicada equipe, liderada pelo professor Raimundo Palhano, plantamos a ousadia de extrair de uma folha de papel um órgão de pesquisa aplicada cuja missão seria apoiar tecnicamente o processo de planejamento público do Maranhão. Fizemos isso com uma dezena de pessoas, boa vontade e escasso orçamento, aí está o Instituto Maranhense de Estudos Socioeconômicos e Cartográficos (Imesc), prova viva de que ousar valeu a pena. Há pouco vi o Imesc distribuir suas inúmeras publicações para Universidades e Bibliotecas. Resgataram a importante tarefa 4 Atualmente é Secretário de Estado da Ciência, Tecnologia e Inovação do Governo do Maranhão. Técnico em Assuntos Educacionais da Universidade Federal do Maranhão, membro fundador do Instituto Jackson Lago e vice-diretor da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae) no Maranhão. Historiador, formado pela Universidade Estadual do Maranhão (Uema), especialista em Gestão e Políticas Públicas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e mestre em Educação pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Foi membro suplente do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do Maranhão (CDES), secretário executivo do Comitê Gestor da Descentralização e Regionalização, secretário executivo do Conselho de Administração do IMESC, membro do Comitê Gestor do Pacto “Um mundo para a criança e o adolescente do semi-árido” e coordenador de projetos da Escola de Formação de Governantes (EFG). Foi Chefe de Gabinete do Instituto Maranhense de Estudos Socioeconômicos e Cartográficos (IMESC), vinculado a Secretaria de Planejamento e Orçamento do Estado do Maranhão no Governo Jackson Lago (2007-2009). 130
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de divulgar a produção de conhecimento que nasceu ali. Entre os livros distribuídos, identifiquei os Cadernos IMESC, o livro “Planejamento que Marca Caminhos” e o livro “A singularidade do pensamento de Ignacio Rangel”, frutos do nosso trabalho, no já distante 2008. Sem dúvidas, boa parte do profissional que me constituí, se erigiu dessa experiência e passagem pelo Governo Jackson. Enxugamos as lágrimas, recolhemos as lembranças, guardamos os sonhos e partimos. Não foi fácil, se a experiência calou fundo, a interrupção foi traumática. Refeitos, pudemos contribuir para a criação do Instituto Jackson Lago com o objetivo de preservar a memória do nosso patrono e resgatar a memória institucional de sua vida política, protegendo-a do extravio. O mais relevante é que muitos daqueles sonhos guardados estão sendo postos à prova no atual Governo, testados e reconstruídos à luz das conjunturas e estruturas herdadas. Nada do que foi será de novo, tenho plena clareza disso. Tempos “mudaves” como diria o poeta Sá de Miranda. O fundamental é sabermos as lições aprendidas e derivadas daquela experiência, pondo-as altas e visíveis como mapas norteadores do agir. Considero como central a percepção de que as gerações no governo são diferentes, o programa de governo5 é diferente, mas o sonhar por um Maranhão justo e desenvolvido é o mesmo. Seguindo a linha dos autores deste livro, reuni algumas reflexões para compor o presente capítulo sob uma nova visão e com as devidas reformulações e atualizações, considerando que boa parte foi publicada anteriormente em blog ou jornal. A linha mestra que presidiu meu raciocínio foi compor análise que pontuasse de forma mais precisa possível, quais são
5 A respeito do programa de governo de Flávio Dino cf. ALMADA, Jhonatan. Alternância de poder no Maranhão: temas de um projeto político pós-Sarney. São Luís: Jhonatan Almada Editor, 2014. Disponível para venda em www.livrariacultura.com.br. 131
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as urgências do Maranhão em termos de um projeto amplo de desenvolvimento.
2 UM FIO CONDUTOR Toda ação política consequente exige um plano. Alguns banalizam esse momento como se não fosse fundamental para a conquista e convencimento do eleitorado em torno do programa do candidato ou dos moradores em torno do programa de melhorias e necessidades do bairro. Outros compreendem o significado político desse momento, valorizando-o e democratizando-o o quanto possível. O movimento que falta é compreender que existe essa necessidadee tomá-la como oportuna para discutir não um plano ou um programa de governo, mas um projeto para o Maranhão. O desafio básico de qualquer projeto é apresentar coerência interna e coerência externa. A coerência interna é que tenha um fio condutor de todas as propostas, a linha mestra. A coerência externa é que tenha sintonia com os problemas conjunturais e estruturais da realidade na qual está referido. Penso que ao desenvolver tal projeto é fundamental compreender duas ordens de coisas. Primeiro é que se trata de retomar ações, projetos e programas interrompidos durante o Governo Jackson Lago se estas mantiveram atualidade em relação aos problemas que pretendiam enfrentar. Segundo é que a reflexão que ora desenvolvemos se baseia na experiência concreta de 2 anos e 4 meses daquele governo, a qual possibilitou não só o conhecimento da chamada máquina administrativa, mas também das demandas sociais reivindicadas e apresentadas pela sociedade civil organizada durante as várias consultas populares, fóruns e reuniões ampliadas realizadas.
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O fio condutor em face dessas questões está referido ao eixo tríplice da democracia, do desenvolvimento e da prosperidade. A democracia por que não vivemos em uma sociedade democrática, por que não temos tradição de tomar decisões governamentais com base em consultas populares, referendos e plebiscitos, mas sim com base no pretenso conhecimento da realidade advindo das elites políticas e econômicas dirigentes. O desenvolvimento que no conceito mais atual é multidimensional, ambiental, econômico, social, político, cultural, simbólico, etc, não se reduz ao meramente econômico e muito menos aos grandes projetos, mas está focado na dinamização das economias locais, das economias dos municípios, levando a ruptura, o quanto possível, da lógica capitalista. A prosperidade é a superação dos programas assistencialistas e do discurso do combate à pobreza, é efetivamente garantir as condições materiais e imateriais para o empreendedorismo, o empoderamento e a solidarização. Nenhuma das propostas integrantes de um projeto para o Maranhão está deslocada desse eixo tríplice, sintonizado com desafios históricos da realidade maranhense, especificamente: a ausência de alternância do poder político, a concentração econômica e a centralização da administração pública. Dar conta de tudo, da realidade inteira, é impossível para qualquer planejamento. O fundamental é enfrentar os desafios principais, realizar as ações possíveis em face dos recursos públicos disponíveis, mas, sobretudo, atender as reivindicações históricas dos movimentos sociais e sociedade civil organizada. Dar continuidade, mas também inovar, pois a realidade é dinâmica, ela já não é a mesma do início desse texto, tem suas permanências, mas também mudanças e nuances. O cerne de um projeto para o Maranhão é ter clareza da necessidade de uma profunda reforma do Estado, ouso mais, uma ingente e urgente refundação do Estado. Não as reformas 133
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administrativas feitas por aqui pelo governo roseanista-sarneisista, essas foram um desastre retumbante, na verdade foram contra-reformas, por que em vez de consolidar direitos, os subtraíram. Os equívocos dessas contra-reformas poderão ser conferidos em sua totalidade graças ao lançamento de dois volumes com o balanço dos Governos Roseana Sarney, nos mandatos de 19951998, 1999-2002, 2009-2010 e 2011-2014, no mês de novembro de 2015. Este material será muito útil para os analistas, estudiosos e pesquisadores com interesse em perscrutar esse longo e tenebroso período da história recente do Maranhão. A refundação do Estado no sentido que defendo aqui, passa pela refundação deste em suas bases institucionais, políticas e sociais. Sem isso é improvável que um governo consiga mudar nas estruturas o Maranhão, mais ainda, garantir que o feito não seja desfeito ou destruído pelo governo seguinte. A reforma orientada por este projeto deveria reestruturar com segurança todas as instituições do Poder Executivo; profissionalizar o serviço público estadual por intermédio de concurso público, carreira e remuneração; estabelecer com clareza para cada Secretário de Estado o que deve fazer, em quanto tempo, deixando claro que sua permanência no cargo não está apenas vinculada a questões políticas, mas ao desempenho. Articular tudo isso a um projeto estadual de desenvolvimento de médio e longo prazo, próprio, sem imitar arbitrariamente outros estados, sem copiar as políticas do governo federal, elaborado e pensado com a própria cabeça, mediante os próprios problemas, a própria realidade. A questão central é não copiar modelos importados, mas desenvolver projeto autóctone, próprio, referido aos nossos problemas, aos nossos desafios. Ao lado disso não ter medo de ousar e propor o inovador. A refundação do Estado passa por uma significativa reforma na Constituição Estadual, que revise profundamente o arremedo de legislação que temos. Aí já não falo 134
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de projeto enquanto Plano de Governo, mas de projeto enquanto Plano de Estado. Estou pensando em uma reforma, não em uma atualização do texto estadual em relação à Constituição Federal de 1988. Essas reformas necessitariam, entre outras coisas, revisar a composição do Tribunal de Justiça e do Tribunal de Contas, vincular percentuais de investimento para a educação, a saúde e a segurança, bem como, criar fundos especiais voltados para o incentivo dos arranjos produtivos locais e fortalecimento institucional dos municípios. Não tenho a ingenuidade de acreditar que pelo fato das mudanças estarem inscritas na Constituição Estadual serão imediatamente cumpridas. Entendo que o primeiro passo é formalizar essa inscrição, o segundo passo é empoderar a sociedade civil organizada para cobrar essa implementação. Assim, um processo de mobilização social se faz paralelo ao processo de formalização institucional. Realizar um mapeamento da sociedade civil organizada no Estado do Maranhão, identificando qual é sua capilaridade no âmbito dos municípios é o início. Durante o Governo Jackson Lago chegamos a realizar um mapeamento nas 32 regiões de planejamento, o qual aponta os Sindicatos Rurais como a instituição mais representativa e presente em praticamente todos os municípios. Logo depois vem as Associações de Moradores e as Igrejas. Articular-se politicamente com essas instituições é estratégico em um Estado caracterizado pelo monopólio da comunicação. Essa organização do campo vai de encontro ao cerne do projeto de desenvolvimento proposto por Bandeira Tribuzi, ou seja, é pela dinamização econômica do campo que poderemos elevar o patamar de desenvolvimento maranhense de forma inclusiva, distribuindo e redistribuindo as terras, enfrentando a concentração latifundiária e provendo assistência técnica. Acrescentando-se (o que era novo na época da proposta) a sustentabi135
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lidade dessa dinamização, a qual passa pelos cultivos orgânicos, pelo cooperativismo e pela agricultura familiar. Constituir uma rede de mobilização social é o meio principal para um novo pacto social e para a disseminação de uma nova cultura política no Estado. A rede em funcionamento neutralizará em parte o poder de produção da verdade que o grupo dominante possui, permitindo a produção e a contraposição de outras verdades. Se o caminho possível na atual conjuntura é o das reformas, então as façamos com o povo, nunca sem ele ou por ele. O jornalista Hipólito da Costa (1774-1823) é lembrado e deve ser sempre lembrado como paradigma negativo de reformas, pois as defendia sem o povo. As políticas públicas feitas com o povo durante o governo interrompido necessitam ser retomadas e aprofundadas. Não basta, como diz o poeta cubano Nicolas Guillén, fazer que floresça e frutifique a ideia, mas diante do obstáculo a ela, sacudir com mais atrevimento ante o atrevimento do obstáculo. Estamos no Maranhão. Vivemos aqui. Quais são as necessidades fundamentais do nosso tempo? Podemos melhorar a pergunta: quais são as urgências do nosso tempo? Entendo a urgência como algo que nos mobiliza para a ação, algo que nos move para transformar determinada realidade insatisfatória e com a qual não podemos conviver ou nos conformar. A urgência é humana, portanto, passível de enfrentamento e superação.
3 A DEMOCRACIA COMO MEIO Vejo que uma primeira urgência é desenvolver a democracia entre nós. Indispensável que os avanços democráticos cheguem concretamente ao Maranhão. Que de fato nossa cultura política se afaste cada vez mais dos elementos patrimonialistas e fisiológicos tão fortes. O respeito às decisões tomadas nas con136
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sultas populares e nos Conselhos Estaduais de Políticas Públicas é elemento crucial. Nesse sentido, tornar as consultas populares obrigatórias, regionalizadas e participativas no processo de elaboração do Plano Plurianual (PPA), bem como, implementar o orçamento impositivo em relação às decisões tomadas são medidas iniciais. Some-se a isso instituir espaço físico permanente para os Conselhos Estaduais de Políticas Públicas setoriais juntamente com as condições materiais e humanas para seu funcionamento. Mais do que deliberativos ou consultivos é indispensável dotar os Conselhos de poderes sobre determinado percentual do orçamento, com o qual definiriam as prioridades de aplicação. Estimular a criação e acompanhar as condições de funcionamento dos Conselhos Municipais de Políticas Públicas, formando uma rede é outra medida a ser tomada. A composição desses Conselhos deve ser majoritariamente com representantes da sociedade civil organizada, no mínimo 2/3, como proposto no documento final do “Ciclo de Debates Pós-SBPC: proposições para o enfrentamento à pobreza no Maranhão à luz dos Direitos Humanos”. Quando menciono, anteriormente, o monopólio de comunicação do grupo dominante local, penso que isso é um óbice à democracia. O monopólio da verdade que eles exercem descontrói qualquer governo que lhes seja potencialmente ameaçador, vide as estratégias utilizadas contra Jackson Lago, João Castelo ou o atual prefeito de São Luís, Edvaldo Holanda Júnior. O cerne dessa estratégia foi e é apresentar esses governos como incompetentes, sem projeto, negativos, impopulares e equivocados, independentemente de o serem ou não. Superar esse óbice demanda a criação de uma Rede Pública de Comunicação, agregando à Rádio Timbira, uma TV Pública, um Portal de Notícias Governamentais na internet (que não se
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confunde com o portal oficial do governo) e um encarte semanal impresso, a ser veiculado nos jornais diários locais. Essa Rede Pública produzirá e distribuirá informação governamental, além de desenvolver programação cultural relevante. Entendo o conceito de rede pública para além dos componentes mencionados. Ela deverá constituir uma articulação regional com os meios de comunicação disponíveis em cada município,sobretudo, as rádios comunitárias, além de utilizar de forma intensiva de redes sociais e telefonia móvel. A implantação de um projeto de interligação por fibra ótica de todo o Maranhão para levar internet de alta velocidade, caminho já trilhado pelo Ceará há 10 anos atrás, talvez seja o instrumento mais poderoso para democratizar o acesso à informação em nosso estado. As redes sociais ainda não sofrem o domínio e o controle de pequenas famílias potentes a ditar cotidianamente suas verdades e opiniões como se fossem as da sociedade como um todo. O lamentável em relação a isso é que minha constatação da necessidade estratégica desse projeto, já denominado em governos anteriores de infovia e ultimamente chamado de cinturão digital, nos alcança em tempo de escassez dos recursos públicos vultosos exigidos, sobretudo por que demoramos demais em transpor o planejado em realizado. Essa primeira urgência se situa, especialmente, no Balanço de Gestão Política, teorizado por Carlos Matus. Esse balanço sintetiza os resultados positivos e negativos em relação às demandas políticas dos atores sociais e da população em geral. A democracia está essencialmente vinculada à distribuição do poder político, fortalecê-la passa pela criação de novas instâncias consultivas, deliberativas e decisórias, descentralização e desconcentração.
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4 A ALTERNÂNCIA DO PODER NOS MUNICÍPIOS E INSTITUIÇÕES Uma segunda urgência fundamental e ligada à primeira é atingirmos a alternância do poder político. Enquanto não compreendermos que uma das problemáticas que nos cinge e nos emperra é a dominância de um mesmo grupo político por décadas seguidas, se reproduzindo à custa da exclusão permanente de milhões de maranhenses, penso ser difícil uma mudança. De fato, se a população não compreender que o projeto liderado por esse grupo jamais responderá as questões do nosso tempo, por que implicaria em revelar o vazio dele mesmo, apenas simulacros de projetos pessoais de poder, a mudança demorará. O que há é tão somente o ir fazendo e fazendo o que traz benefícios imediatos e mediatos, tanto político-eleitorais, quanto garantidores da própria reprodução. Entendo ser fundante a introdução de novos sujeitos políticos na arena de disputas pelo fundo público. A institucionalização dos Conselhos Regionais de Desenvolvimento, cujos integrantes seriam eleitos, implica na criação de uma instância mediadora entre o Governo do Estado e os municípios. Essa instância se materializa pela atuação dos sujeitos políticos escolhidos por cada região de desenvolvimento. Mais do que órgãos meramente figurativos, os Conselhos devem decidir sobre percentual do orçamento estadual. A partir dos seus Planos Regionais de Desenvolvimento, os Conselhos definiriam quais são as prioridades para aplicação dos recursos públicos estaduais naquela região, construindo consensos, reforçando a solidarização e afirmando identidades regionais. A criação dessa sinergia regional poderia fortalecer a ideia de consorciação de serviços públicos, incentivar as parcerias entre os municípios, facilitar a articulação Governo do Estado-Mu-
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nicípios e propiciar a troca de ideias e experiências. Exercita-se assim, a construção do diferente, da alternância. Ignacio Rangel em um de seus escritos chamaria isso de dualidade entre o antigo e o novo. Aquilo que tem sido a prática política histórica de nossa formação social e o que diverge diametralmente dessa prática. O antigo é a democracia restritiva do Império e das primeiras décadas da República, vivíssima na forma oligárquica de governar. A participação popular e a mudança regular dos governantes, características da democracia brasileira contemporânea lhe são avessas, o novo que não consegue nascer e se afirmar. Penso que apesar dos avanços, ainda é difícil contestar que o Maranhão não viva “na democracia de mentira”, conforme denúncia de Marcellino Machado do início do século XX. Enquanto não espraiarmos a alternância do poder nos municípios e instituições, a mudança vivenciada no âmbito do Governo do Estado poderá ser revertida. Os municípios como lugar onde ocorrem nossas vivências e onde sentimos os problemas públicos de forma mais concreta são controlados por pequenas oligarquias locais e regionais. O vento que soprou no âmbito do Governo Estadual, também precisa oxigenar os municípios. Essas oligarquias se alimentam do atraso e da pobreza, caladas com comida, festejos e shows gratuitos. A maioria dos prefeitos e prefeitas dos municípios de mais baixo IDH se recusaram ou dificultaram ao máximo a implantação das cozinhas e restaurantes populares, iniciativa recente do Governo. A recusa está em fato observável a olho nu. A casa do prefeito funciona como cozinha e restaurante popular, ali às custas do dinheiro público, mas com fins privados, alimenta-se o eleitorado, cativa-se pela boca os eleitores. A entrada de um espaço público nesse jogo da comida tiraria força de um dos instrumentos utilizados para manter a leal-
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dade. Não se esquece quem oferece um prato de comida, sobretudo se todos os dias. Mata-se a fome imediata, sem extirpá-la. A manutenção do poder político necessita que a fome não seja resolvida de uma vez por todas, pois ela alimenta e conserva a dependência das pessoas em relação a esse poder. Ninguém entendeu tão bem a frase de Betinho, quem tem fome, tem pressa. Centro do Guilherme recentemente foi objeto de matéria investigativa no Repórter Record. O município integra a relação dos mais miseráveis do Brasil. Poucos meses depois dessa matéria, a Prefeitura local organizou festa de aniversário da cidade e contratou as bandas mais caras do país, gastando dinheiro suficiente para fornecer a merenda escolar do ano inteiro ou reformar todas as escolas municipais. Mais grave que a decantada política do pão e circo, a meu ver, trata-se da implacável hipocrisia dos agentes públicos, fingindo ignorar a realidade e dando às costas ao país, confiantes na impunidade e no comportamento bovino da população de seu município. Outras forças sociais e partidos fora do circuito local de poder precisam ser acionados e fortalecidos para atuarem como contrapoderes, essa seria também uma das finalidades dos Conselhos Regionais de Desenvolvimento. A resistência dos prefeitos para além dos aspectos mencionados também ocorreu e ocorre por que não receberam dinheiro público através de convênios, prática comum nas gestões anteriores, cuja eficácia não está comprovada e na esmagadora maioria das vezes inexiste transparência na aplicação dos recursos transferidos. Defender o municipalismo e fortalecer os municípios não pode ser reduzido a transferir recursos por convênios. Contrapoderes vigorosos que possam constituir projetos alternativos de poder, disputando e vencendo essas oligarquias locais, devem ser incentivados e apoiados. Erro crasso foi cometido pelo Governo Jackson na montagem da estratégia para as eleições municipais ao abrir o PDT, sem qualquer critério de 141
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adesão. A militância histórica que sustentou o partido em vários municípios se viu alijada do poder por grupos tradicionais contra os quais lutara. Enorme frustração tomou conta da militância. Morreu ali a possibilidade de fortalecer base de sustentação fora dos quadros oligárquicos. As instituições da sociedade civil não ficam imunes ao vírus do oligarquismo, cujo principal sintoma é a falta da alternância no poder. O Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA) possuía à sua frente o mesmo grupo político por várias décadas. Na eleição de 2014, um novo grupo conseguiu impor uma derrota e se sair vitorioso. Por outro lado, a Federação de Comércio (FECOMÉRCIO), mesmo com eleições regulares, continua sendo dirigida pelo mesmo grupo desde 1983. Democratizar as instituições também é uma necessidade urgente a qual percebo extremamente difícil, pois as “corporações de ofício” bebem da mesma formação social dos grupos políticos e partidos. A seiva do patrimonialismo penetra em tudo e retarda a alternância. Manter tudo como está sustenta dependentes e interesses abrigados e alimentados pelo status quo.
5 REFUNDAR O ESTADO Entendo que uma terceira urgência é mudarmos profundamente as instituições e estruturas do Estado no Maranhão. Enquanto prevalecer a lógica do espontaneísmo, do engessamento, do burocratismo, do exército de terceirizados e comissionados, nunca teremos uma concretude estatal que sirva ao bem comum. A refundação do Estado é bandeira primicial. Provavelmente muitos, não convencidos dos êxitos experimentados por Venezuela, Cuba, Equador e Bolívia, olharão o termo com desconfiança conservadora, dominados pelo medo da liberdade e apegados à vontade de serem opressores, mesmo sendo oprimidos.
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O Governo do Estado não pode continuar gastando milhões de reais na locação de prédios para a instalação dos órgãos públicos. Não penso que a alternativa seja ocupar os prédios do Centro Histórico de São Luís, ideia bastante válida quando referida a instituições de pesquisa e ensino, artísticas e culturais. O Estado de Minas Gerais já sinalizou com um caminho fecundo: criar um Centro Administrativo do Governo do Estado reunindo todas as Secretarias, autarquias e fundações em uma mesma área. Creio que a profissionalização do serviço público passa pela implementação de um plano único de carreira e remuneração, prevendo o desenvolvimento do servidor e o reconhecimento do mérito em serviço. O planejamento da força de trabalho estadual com o número de servidores que irão se aposentar, a quantidade de vagas de concursos públicos necessários e os impactos financeiros de médio e longo prazo daria maior consistência à implementação do plano de carreira. Tal planejamento objetiva reduzir as interveniências clientelistas na promoção e progressão em carreira ou a excessiva lentidão no reconhecimento desses direitos. Trata-se de um direito, não faz o menor sentido, tudo depender de uma portaria do Governo de plantão. Esse é um problema tranquilamente delegável para outras instâncias do Estado. Ao lado disso, implantar o cargo de especialista em políticas públicas, profissional generalista que atuaria em todos os órgãos do Governo do Estado fundamentando as medidas administrativas, as decisões políticas e as ações governamentais. Isso pouparia o Estado da contratação de consultorias e assessoriais especializadas, quando desnecessárias. Essa medida tem funcionado razoavelmente no âmbito do Governo Federal e de alguns Governos Estaduais. As Secretarias de Estado não contam com um cargo fixo permanente que realize a mediação entre o Secretário politicamente indicado e a estrutura da Secretaria, a qual é em parte 143
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constituída por servidores de carreira, em disponibilidade ou em desvio de função. Atualmente, os Ministérios possuem a figura do Secretário Executivo que garante o andamento dos trabalhos e a continuidade das políticas públicas em suas linhas gerais, atuando acima das flutuações de ordem política. A profissionalização do serviço público passa ainda pela definição de cotas dos cargos comissionados a serem ocupadas por servidores de carreira. Não é possível manter o quadro atual, onde quando muda o Secretário basicamente se alteram todos os ocupantes dos cargos de direção. Vinculada a essa medida, a ocupação do cargo pelo servidor de carreira não pode ser vitalícia ou até a aposentadoria compulsória do servidor. É fundamental incentivar a alternância do exercício desses cargos e o crescimento na carreira dos servidores recém-ingressos. A cultura organizacional do serviço público maranhense nunca foi efetivamente tocada nos processos anteriores de reformas administrativas. Caracterizada pelo favor como mediação, o apadrinhamento como justificativa do cargo e a rotina imobilizadora como prática cotidiana, se torna outro óbice à mudança. Renovar os quadros administrativos por intermédio de amplo concurso público (com atenção especial para os conteúdos exigidos e a descrição das responsabilidades dos cargos), implementar a premiação por mérito, desempenho, produtividade e capacidade de inovação, seriam medidas importantes para reinventar essa cultura. Repensar institucionalmente a Escola de Governo completaria o processo de profissionalização e iniciaria uma mudança na cultura organizacional. Os cursos da Escola de Governo não podem ser essencialmente de capacitação de curto prazo, voltados para atender ao público de ocasião (cargos comissionados e de confiança) e de frequência exclusivamente voluntária. Os cursos deveriam estar organizados em dois níveis, os de nível dirigente (secretários de estado e secretários adjuntos) e 144
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os de nível especializado (terceiro escalão, assessores, assistentes e técnicos de carreira). O nível dirigente será capacitado de forma generalista com o objetivo de ampliar a compreensão sobre a política pública de sua responsabilidade. O nível especializado será capacitado de forma específica em cursos obrigatórios para a progressão na carreira e cursos focados em problemas específicos da política pública em que atuam. Peça teatral recente tem uma repartição pública como principal cenário. Ela é movimentada por uma funcionária concursada e uma estagiária. Clarice é uma mulher casada, mas com várias separações precedentes, todos os ex-maridos pertencem a uma família política maranhense, Sarney e Murad entre elas. Dijé é a estagiária de origem humilde e moradora da periferia. Ambas oferecem um serviço público caracterizado pela lentidão, descaso e desrespeito com os cidadãos, ainda que temperados com o bom humor e a criatividade. O que respalda esse tratamento, o qual é parte da cultura organizacional do serviço público não é só a estabilidade ou o apadrinhamento, mas a ausência de instrumentos e meios para combater esse comportamento de forma permanente e institucionalizada. Isso passa pelo funcionamento do processo administrativo-disciplinar, das ouvidorias e da controladoria. O cidadão que recebe esse tratamento se sente impotente ao não ter a quem recorrer ou ao não saber como recorrer. É sintomática dessa cultura, a fixação de uma placa ameaçadora nas repartições públicas estaduais onde se afirma, citando o Código Penal: “Art. 331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa” (Decreto-Lei Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940). Os municípios possuem baixíssima capacidade técnica e fraca institucionalização das políticas públicas. O que impera são a inconstância e a descontinuidade, irmãs siamesas dos grupos 145
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governantes locais. Muda o governo, nada ou pouco permanece. É um eterno trabalho de Sísifo. O Estado do Maranhão já possuiu um órgão especializado no assessoramento técnico dos municípios. Sem a avaliação dessa experiência anterior, como é de praxe, o órgão foi extinto. Indispensável criar uma fundação ou instituto dedicado à tarefa de fortalecer institucionalmente os municípios. Mais indispensável ainda que ele seja constituído por quadros concursados e próprios. Nada justifica que um cidadão precise, necessariamente, viajar até São Luís para resolver problemas cuja solução compete ao Governo do Estado, existe um deslumbre quanto à centralização do poder na capital, complementado pelo entendimento de que o contrário dessa prática representa o enfraquecimento do Estado. Isso está claro, por exemplo, quando falando da abertura de estradas em 1928, Clarindo Santiago, afirma que ligar o Estado tem por objetivo levar os “productos do sertão” para São Luís. Ora, integrar o Estado é fundamental não pelo benefício que isso poderá gerar para São Luís, mas em que medida isso beneficiará o fortalecimento das economias locais. A efetiva descentralização administrativa passa por procedimentos, práticas e resolutividade das políticas e ações estaduais no âmbito dos Municípios. O fortalecimento de estruturas administrativas regionais que congreguem as políticas estaduais e facilitem o acesso, bem como, a solução de problemas no âmbito local é uma medida de impacto significativo. Isso só terá a efetividade desejada se o Governo do Estado desenhar uma institucionalidade flexível e amparada em uma regulação objetiva e simplificada. O mesmo Governo mantém em alguns municípios estruturas que mais competem que colaboram entre si. Não é manter o que já existe, mas repensar, redesenhar
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e instituir em uma nova estrutura organizacional regionalizada e integrada. Em princípio o problema de enfrentar essa urgência passa pela ampliação do gasto público e do tamanho do Estado, algo difícil em períodos de crise econômica e queda na arrecadação tributária. Ainda não encontramos alternativas para fortalecer o Estado sem inchá-lo. Observe-se que há certa regularidade de concursos na área de educação e segurança, enquanto que saúde, presídios e administração pública prevalecem seletivos e terceirizações. Contudo, defendo que precisamos de um modelo alternativo de contratação, talvez nos moldes do praticado pelas estatais ou sociedades de economia mista, exemplo do Banco do Brasil e Caixa. Essa terceira urgência se situa essencialmente no Balanço de Intercâmbio de Problemas Específicos referido por Carlos Matus. É pela melhoria da capacidade gerencial do Governo que se poderão enfrentar os principais problemas ligados, por exemplo, a educação, a saúde, a segurança e ao saneamento. O que ameaça negativamente esse balanço, dentre outras coisas, é o burocratismo (desvio em relação à burocracia profissional), o déficit dos serviços públicos e a insegurança pessoal.
6 A SOCIEDADE DEVE SER MAIS FORTE QUE O ESTADO A consolidação de um projeto estadual de desenvolvimento originado em consenso possível e efetiva articulação da sociedade é uma quarta urgência. Mais ainda do que apresentar tal projeto, imprescindível é a sua execução. O Maranhão já experimentou dezenas de projetos inconsistentes sob a égide da oligarquia, nenhum o desenvolveu, apenas aumentou o patrimônio dos donos do poder e usurpou o sonho de uma vida próspera e digna de muitas gerações. É importante conjugar o fazer imediato com o erigir para as novas gerações, antecipar os problemas, não resol-
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vê-los no afogadilho. A expansão da economia dos municípios, a dinamização dessa economia, a prevalência do local, dos projetos locais é que darão o ritmo, sem perder a visão do todo. É importante notar algo contraditório. Quando defendo o fortalecimento dos municípios somos conscientes que isso implica em uma maior presença do Estado, quantitativa e qualitativa. Por outro lado, essa presença deve servir de preparação e estímulo para sua desnecessidade, sobretudo econômica. A administração pública, hoje, é a principal atividade econômica da maioria dos municípios maranhenses, conforme as inúmeras séries estatísticas do Produto Interno Bruto. Isso nos leva a compreender o alto grau de dependência das sociedades locais em relação às Prefeituras e ao Governo do Estado. Os dois são os maiores empregadores e consumidores. Daí que a disputa política e a oligarquização estão diretamente relacionadas à prevalência do Estado em sentido amplo como fiel da balança na vida da maioria dos maranhenses. Assim, quem controla o Estado tem enorme possibilidade de enriquecer e se manter no poder. É justamente pela progressiva redução da força econômica do Estado nos municípios que poderemos enfrentar a problemática da ausência de alternância no poder político de forma mais consistente e permanente. Paralelamente, apoiar de forma intensiva as iniciativas locais de empreendedorismo e autonomização econômica. Essa redução não significa que o Estado deixará de prover os serviços públicos, significa que estimulando a economia local criará condições para autonomia individual em relação ao seu peso econômico, preservando-se seu papel político e de provedor das políticas públicas. É justamente no campo que precisamos realizar um trabalho consistente de assistência técnica, investimento em infra-
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estrutura, construção de escolas e provimento de serviços públicos de saúde, educação e empreendedorismo. A agricultura de orgânicos é um setor econômico de futuro, podemos assumir liderança expressiva se isso for uma prioridade relevante para o governo. Tornar o campo um lugar cidadão, próspero, digno e atrativo para seus habitantes deve ser eixo estratégico para um novo projeto de desenvolvimento do Maranhão. Nossos agricultores familiares ainda não avançaram na autoconsciência de sua potencialidade e capacidade de construir autonomia e desenvolvimento. Eis o desafio para as políticas educacionais de alfabetização e ensino técnico-profissionalizante, oferecer e implementar uma formação que tome essa realidade como caminho de prosperidade, não de condenação e fuga. Esse alinhamento está ausente quando impomos a cultura educacional urbana como padrão e ideal de vida para todos.
7 CONSTRUIR VISÃO DE FUTURO
Os estudos do futuro são importantes fontes de orientação e direcionamento dos decisores, sejam da esfera pública, sejam da iniciativa privada. Ao delinearem as grandes tendências da humanidade em 15, 20 ou 30 anos à frente, evidenciam os desafios a serem enfrentados e os possíveis caminhos que precisamos abrir para reduzir sua gravidade ou superá-los. Muito se avançou neste último século no desenvolvimento de cenários de futuro. Recentemente saíram dois excelentes estudos sobre essa temática tomando por referência o ano de 2030. O primeiro é “O Estado do Futuro 2030: as megatendências globais que moldam os governos”, foi encomendado pela KMPG International e elaborado pelo Mowat Centre (Canadá). O segundo é “Megatendências mundiais 2030: o que as entidades e personalidades
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internacionais pensam sobre o futuro do mundo”, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). As megatendências que exercerão impacto sobre governos e cidadãos, segundo o primeiro estudo, são mudanças como perfil demográfico (maior número de idosos e grandes contingentes de jovens desempregados), ascensão do indivíduo (maior empoderamento individual em face das redes sociais), inclusão tecnológica (avanços tecnológicos, educação e emprego), interligação econômica (quebras e crises financeiras), dívida pública (equilíbrio fiscal e investimento produtivo), mudanças no poder econômico (controle estrangeiro de empresas), mudanças climáticas (degradação ambiental, desabastecimento de água e poluição), pressão sobre recursos (esgotamento dos recursos naturais essenciais) e urbanização (infraestrutura e energia). Os governos precisam responder a essas mudanças com antecipação, agindo no campo das políticas, regulamentação e programas, repensando e alterando estratégias, estruturas administrativas e desenvolvendo novas habilidades e capacidades institucionais. Não é um cenário positivo, sobretudo se considerarmos que o máximo de planejamento dos governos, marcadamente os do Brasil, estende-se por 4 anos, o tempo do PPA. Existe também uma multiplicidade de planos quase sempre alheados uns dos outros, com diferentes temporalidades, metodologias e perspectivas. Não temos tradição de planejamento como a China e a Índia, cujas diretrizes estratégicas miram décadas à frente e vão sendo implementadas desde a metade do século passado. Segundo o estudo do Ipea as megatendências mundiais estão implicadas em cinco dimensões: população e sociedade, geopolítica, ciência e tecnologia, economia, e meio ambiente. O envelhecimento populacional, as migrações, a urbanização crescente e o empoderamento dos indivíduos e da sociedade civil são alguns dos destaques. A ideologia da globalização, a permanência 150
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dos Estados Unidos como maior potência, o crescimento da importância da Ásia e dos BRICS são elementos-chave da dimensão geopolítica. O acelerado desenvolvimento tecnológico continuará alterando a natureza do trabalho, a estrutura produtiva, educacional e de relação entre as pessoas, também ocorrerá crescimento marcante dos investimentos em robótica, nanotecnologia e biotecnologia. A dimensão econômica evidencia que apesar da retomada do crescimento econômico mundial a concentração de renda se mantem, a inovação terá mais força nos países desenvolvidos, a demanda por energia se voltará para a matriz renovável e os alimentos experimentarão forte procura. Ao lado disso, a dimensão meio ambiente prevê que em face da pressão por recursos hídricos e da ocorrência de eventos climáticos extremos será amplificado o questionamento do modelo econômico atual sem sustentabilidade. Nossa dificuldade de pensamento de longo prazo impõe ações erráticas no médio e curto prazo. Incentivamos os biocombustíveis e energias renováveis com intensidade em determinado momento, logo em seguida, com a descoberta do pré-sal, revertemos esse quadro pela ilusão do ouro negro. Continuamos furando poços nas grandes cidades para suprir o abastecimento de água, mesmo com o exemplo de Recife onde os poços secaram. Apesar do investimento em tratamento de esgoto, descuidamos da preservação das nascentes e da revitalização das bacias hidrográficas, a exemplo do Rio Itapecuru que supre São Luís. Esses cenários de futuro me remetem ao Maranhão. O último estudo de futuro foi produzido pelo Governo Jackson com o título “O que o Maranhão quer ser quando for Grande”, tendo 2017 como horizonte temporal. Esse trabalho foi coordenado pelo professor Tetsuo Tsuji e suas linhas gerais se mantêm válidas. Entretanto, precisamos retomar as reflexões sobre o futuro
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do Maranhão para não nos perdermos na conjuntura ou na síndrome do quadriênio. Não atentar para o porvir implica ser ultrapassado pelas novas urgências, tais como: a degradação ambiental, a crise do abastecimento de água, o aquecimento global e consequente redução do período chuvoso, o colapso da mobilidade urbana, o desemprego juvenil, a defasagem tecnológica agravada pela ausência de foco no investimento em pesquisa, déficit educacional em ciências e matemática e exclusão digital, além da deterioração das condições de vida digna nas periferias e áreas centrais das cidades. É fundamental agirmos enquanto há tempo, por isso, considero que o Maranhão precisa de uma visão de futuro delineada e regularmente atualizada, configurando-se como uma quinta urgência relevante para seu projeto de desenvolvimento.
8 REVITALIZAR OS RIOS Recordo vividamente o rio Itapecuru que dividia ao meio a cidade de Caxias. Na minha memória de infância, fazia-se a travessia em uma grande balsa, tal a largura do rio na época além do fato de só existir uma ponte de concreto. O crescimento da cidade, a derrubada de toda a vegetação nas margens, a utilização da água de forma desenfreada para atender à uma produção industrial incipiente, mas consumista, e a ocupação irregular dos terrenos corroboraram para a degradação e assoreamento do rio. Essa realidade é a mesma em outros rios do Maranhão, com graus diversos de severidade. Mearim, Grajaú, Corda, etc. Poucos escaparam da lógica predatória da ignorância e cupidez. Vejo que não ultrapassamos a constatação política e administrativa do problema, assim como São Paulo ignorou a relevância de 152
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bem gerir os recursos hídricos e enfrenta hoje crise interminável de abastecimento, chegaremos lá por inércia. A única ação até hoje delineada passa pela criação dos comitês de bacias hidrográficas. Faz parte de nossa formação social criar comissões para não resolver os problemas. Até o presente momento, os comitês assim me parecem. Não imagino como criar instâncias burocráticas poderá resolver esse problema específico. O Programa de Revitalização do Rio Itapecuru (PROITA) que foi elaborado com apoio da Agência Brasileira de Cooperação, órgão vinculado ao Ministério das Relações Exteriores, mobilizando inúmeras agências e organismos internacionais foi totalmente abandonado. A inexistência de uma ação que preserve os rios maranhenses cobrará em curto espaço de tempo sua conta, sobretudo com a crise hídrica, a qual já ocorre em muitas cidades do interior, a exemplo de Chapadinha. Sem água não há possibilidade de viver, algo tão óbvio, mas esquecido por todos nós, até o momento em que ela não pinga da torneira, até o momento em que ela não mais abastece nosso desperdício. Não há poço que resolva a falta de água em um ambiente que degrada os rios, os mananciais e as nascentes. O fotógrafo Sebastião Salgado tem um depoimento ilustrativo e esclarecedor sobre esse assunto, no documentário “Sal da Terra”, o qual aborda sua trajetória profissional. Salgado mostra as terras de seu pai em Minas Gerais, totalmente peladas de Mata Atlântica, secas e mortas. Onde se criava gado, bastava grama. Quando o gado vai embora, contudo, nada fica. Após dedicado trabalho seu e de sua esposa Lélia ao longo de 10 anos toda a mata nativa foi replantada, uma tecnologia social disseminada pelo Instituto Terra que fundaram ali. Educação ambiental, preservação ambiental e formação de técnicos em meio ambiente movimentam àquelas terras outrora devastadas.
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Não só reviveram a floresta, como os animais voltaram e as nascentes de água da infância de Salgado brotaram mais uma vez. Entendo que a criação de uma estratégia concreta para revitalizar os rios maranhenses representa uma sexta urgência complexa, mas factível pela articulação e mobilização da sociedade, com apoio e mediação do governo e organismos internacionais.
9 IMPLEMENTAR ESTRATÉGIA DE STEM EDUCATION O estado do Maranhão completou, no ano de 2014, 25 anos sem cumprir a determinação do art. 221 da Constituição Estadual de 1989, qual seja, elaborar: “o plano estadual e municipal de educação plurianual, articulando e desenvolvendo o ensino estadual em seus diversos níveis, mediante ação integrada do poder público”. Contrariamente à Constituição Federal de 1988, a Constituição Estadual não estabeleceu:a duração do plano;prazo ou data para elaboração do plano;ou se será regulamentado em lei. Somente no dia 11 de junho de 2014, a Lei Estadual nº 10.099 preencheu essa lacuna ao aprovar o Plano Estadual de Educação (PEE). Importante pontuar que o Plano foi aprovado pelo Governo Roseana Sarney após forte pressão da sociedade civil e mesmo com isso, o cumprimento do Plano ficou para o próximo governante. Não há mérito quando já se governou por quatro mandatos e nunca se agiu. O PEE traz um diagnóstico sobre a educação básica maranhense (educação Infantil, ensino fundamental, ensino médio) e a educação superior. Enfatiza-se os déficits educacionais a partir da análise do IDEB e indicadores de reprovação, abandono, evasão, promoção, repetência e reprovação, taxas de distorção idadesérie, e baixa qualidade da rede estadual e das redes municipais. 154
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Entre os déficits destacam-se os de aprendizagem no ensino fundamental e no ensino médio: a) Anos Iniciais do Ensino Fundamental • 21,8% dos alunos alcançam nível desejado em Língua Portuguesa; • 15,1% dos alunos alcançam nível desejado em Matemática; b) Anos Finais do Ensino Fundamental • 16,1% dos alunos alcançam nível desejado em Língua Portuguesa; • 8,2% dos alunos alcançam nível desejado em Matemática; c) Ensino Médio • 417.388 pessoas com 15 a 17 anos (Censo 2010); • 80,9% estão sendo atendidos no Ensino Médio; • 30,5% dos jovens concluem o Ensino Médio; • 15,3% dos alunos alcançam nível desejado em Língua Portuguesa; • 3,3% dos alunos alcançam nível desejado em Matemática. Pela primeira vez o Estado reconhece os problemas educacionais de forma oficial e legal, saldando um passivo histórico de ausência de planos e esboçando uma visão de longo prazo na educação. A despeito disso, o PEE também evidencia nossa incapacidade de estabelecer prioridades (nisso se iguala ao Plano Nacional de Educação). É um equívoco acreditar que os recursos disponíveis darão conta de todos os níveis e modalidades do ensino. Penso que a maior ausência do PEE é não prever qualquer iniciativa mais concreta e factível no campo do ensino de ciência, tecnologia, engenharias e matemática, caracterizada na sigla em inglês por STEM Education. Se a aprendizagem de matemática 155
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é ruim, não se fundam as bases para o conhecimento científico, prejudicando todas as demais áreas, mas prejudicando fortemente aquelas com maior vinculação para o desenvolvimento das forças produtivas no século XXI. O governo do Presidente Barack Obama lançou um plano estratégico para “Science, Technology, EngineeringandMath STEM Education” com duração de cinco anos. Obama referencia a Ciência como “mais do que uma disciplina escolar, ou a tabela periódica, ou as propriedades das ondas. É uma abordagem para o mundo, compreender de forma crítica e explorar e interagir com o mundo, e em seguida, ter a capacidade de mudar o mundo”. Compreendendo que o crescimento econômico no longo prazo está cada vez mais vinculado ao avanço científico, à capacidade de transformar conhecimento em inovação, o Governo dos Estados Unidos decidiu mobilizar recursos e esforços institucionais para aumentar o número de estudantes e professores proficientes nas áreas de STEM com o objetivo de garantir a liderança global do país. As estratégias para ampliar o impacto dos investimentos federais são as seguintes: melhorar a instrução em STEM na educação infantil até o ensino médio; aumentar e sustentar o envolvimento dos jovens com STEM; melhorar a experiência de STEM para os estudantes de graduação; servir melhor os grupos historicamente sub-representados no campo de STEM (hispânicos e latinos, afro-americanos, pessoas com deficiência, mulheres e meninas, etc); conceber a pós-graduação de STEM como força de trabalho do amanhã. No caso específico do Maranhão penso que a rede de ensino médio deve ser o espaço privilegiado de iniciativas que fortalecem a aprendizagem de STEM, sobretudo com utilização das bolsas de iniciação científica júnior da FAPEMA, articulação com programas de iniciação a docência como o PIBID, apoio a projetos existentes com foco em ciências e matemática, participação 156
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em olimpíadas do conhecimento, ressignificação das feiras de ciências das escolas e articulação da rede formadora de professores (instituições públicas e privadas). Construir uma estratégia estadual de STEM Education, a meu ver, representa uma sexta urgência imperiosa para darmos maior foco ao PEE do Maranhão e delinearmos a contribuição do setor educacional para o novo ciclo de desenvolvimento do estado.
10 FOCALIZAR OS INVESTIMENTOS EM PESQUISA Os investimentos em pesquisa no Maranhão realizados por intermédio da FAPEMA representam o maior aporte de financiamento das instituições de ciência e tecnologia no estado. Somente em 2013, investimos R$ 37 milhões, significativamente superior aos aportes do CNPq, CAPES e Finep. O cerne dos problemas do investimento em pesquisa e desenvolvimento no Maranhão está na ausência de foco. Existe uma primazia dos editais universais sobre os editais temáticos, bem como, a inexistência de áreas prioritárias do conhecimento a receberem os recursos. Não estimulamos a formação de recursos humanos em áreas estratégicas para nosso desenvolvimento, como a agricultura, a pecuária e a pesca, ou áreas potenciais para a geração de oportunidades de desenvolvimento, como energias renováveis, tecnologias da informação e comunicação, e engenharia aeroespacial. Além das bolsas de formação de mestres e doutores, as de iniciação científica representam o maior quantitativo. Um percentual minúsculo está voltado para o desenvolvimento tecnológico e extensão tecnológica. As instituições de ciência e tecnologia locais se acostumaram a pesquisar com recursos públicos, quase exclusivamente projetos de interesse particular dos seus próprios pesquisadores. O velho debate entre pesquisa básica e aplicada. 157
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Ainda que eu compreenda a relevância da pesquisa básica não é justificável pulverizarmos os recursos nela e de forma mínima na pesquisa aplicada. Defendo que no mínimo 70% dos recursos orçamentários previstos para a FAPEMA tenham como destinação áreas prioritárias do conhecimento articuladas ao projeto de desenvolvimento estadual. Cito como exemplos dessa prática, a FAPESP que apoia quatro grandes programas de pesquisa nas áreas de biodiversidade, bioenergia, mudanças climáticas globais e neurociências. Além desta, cito o programa de Plataformas de Conhecimento do MCTI, o qual segue ideia similar de programas existentes na China, Estados Unidos e Europa, focando em áreas como saúde, petróleo, engenharia básica, robótica, monitoramento e vigilância da Amazônia, melhoramento genético e bioenergia. Acredito que o passo corajoso de focalizar os investimentos em pesquisa é uma sétima urgência a ser enfrentada, com vistas a assegurar frutos mais portentosos e palpáveis desses investimentos em vez de dispersar recursos limitados em todas as áreas de conhecimento. Proponho priorizarmos no Maranhão as áreas de agricultura, energias renováveis, e tecnologias da informação e comunicação aplicadas a engenharia aeroespacial e aeronáutica no período de 10 anos.
11 É POSSÍVEL FAZER Alguns dos elementos mencionados até aqui estiveram explícitos ou implícitos durante o governo Jackson Lago. Mais do que registrar, busquei nesse texto atualizar ou propor novas ideias, contribuindo com o conjunto de reflexões disponibilizadas neste livro, as quais tem o Maranhão como enigma e desafio, para análise e superação dos problemas.
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Olhando mais à frente, penso que precisamos sair do conjuntural e alcançar uma visão de mais longo prazo para o Maranhão. Ainda não constituímos uma cultura de pensar grande e longe, como sugerira Ignacio Rangel. O principal legado de Jackson, segundo suas próprias palavras, foi de que “é possível fazer” com nossos próprios recursos um governo realizador. Essa lição precisa estar em lugar alto e visível para que o Maranhão enfrente suas principais urgências.
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SOBRE AS PRIORIDADES PARA ODESENVOLVIMENTO DO MARANHÃO Léo Costa6
Abordarei a regionalização, o princípio da subsidiariedade, o Fundo Maranhense de Combate à Pobreza (FUMACOP) e o projeto Águas Perenes, marcas indeléveis e distintivas do projeto do governo Jackson para o Maranhão, alicerçado no desenvolvimento, na inclusão social e na prosperidade para todos. Além disso, proponho a municipalização da agricultura como um dos eixos fundamentais de um projeto para o Maranhão, trazendo o campo e os campesinos para o centro das preocupações e das ações do Estado em articulação com os municípios.
1 A REGIONALIZAÇÃO Tive o privilégio de participar ativamente da feitura do principal documento da histórica e vitoriosa campanha de Jackson Lago a governador do Maranhão em 2006 – Diretrizes do Plano de Governo: desenvolvimento, inclusão social e prosperidade. O fio condutor daquele documento foi a ideia defendida pelo próprio governador Jackson de que o principal entrave e a causa maior do atraso secular do Maranhão era a falta de democracia. 6 Foi Superintendente do Fundo Maranhense de Combate à Pobreza (FUMACOP) no Governo Jackson Lago (2007-2009). Sociólogo, atualmente é prefeito de Barreirinhas. Foi Técnico-pesquisador no Instituto de Estudos e Pesquisas Sociais do Estado do Maranhão (IPES); Coordenador do Centro de Serviços de Barreirinhas apoiado pela OXFAM; Coordenador da Ação Comunitária do Projeto de Colonização do Nordeste – COLONE/Zé Doca; Assessor Especial do Reitor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA); assessor do Banco do Estado do Rio de Janeiro (BANERJ), na gestão do Governo Brizola; Secretário Municipal de Agricultura de São Luís no Governo de Jackson Lago, fundador e Secretário Executivo do Consórcio Intermunicipal de Produção e Abastecimento para o desenvolvimento da agricultura da região de São Luís. 162
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Instalado o Governo da Frente de Libertação, em janeiro de 2007, já em fevereiro do mesmo ano estávamos, eu e o economista Raimundo Palhano, em Santa Catarina para documentar, aprender e refletir sobre o Programa de Descentralização do governo Luís Henrique. Foram dez dias de encontros, leitura de documentos e visitas a duas das 36 regiões administrativas (Florianópolis e São Joaquim) que o modelo inovador delimitou para os 99.000 km² e os quase 300 municípios daquele Estado. Em fins de maio de 2007, reuniu-se todo o staff do Governo Jackson para a visita de representantes técnicos dos governos de Santa Catarina, Pernambuco e do Ministério da Integração Nacional. O objetivo foi o de aprofundar e enriquecer o debate da democracia e da participação por via da descentralização, tendo como diretriz a interiorização e o desenvolvimento das regiões. Após meses de intenso debate capitaneado pela SEPLAN, com a participação ativa da UEMA e outras organizações, chegou-se afinal a uma nova regionalização do Estado, optando o Governo pela estruturação de 32 regiões de desenvolvimento, ponto de partida de um novo olhar sobre o vasto território maranhense de 333.000km² e 217 municípios. Envolvido diretamente nesse embate, o governador Jackson conseguiu o necessário consenso da Assembleia Legislativa para aprovar a nova regionalização que ali nascia. Inspirada na experiência de Santa Catarina, na gestão do Governo Montoro (São Paulo) e em nossa própria vivência maranhense de governos municipais, a nova regionalização sonhava com elevados padrões de democratização, descentralização, inclusão social e prosperidade, numa tentativa sem precedentes de gestão compartilhada: 1. Induzir e apoiar simultaneamente o desenvolvimento em todas as regiões;
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2. Envolver e empolgar prefeituras, câmaras de vereadores, trabalhadores, empresários e acadêmicos na grandiosa tarefa de pensar, priorizar e planejar o desenvolvimento do Maranhão, região a região; 3. Transformar regiões administrativas em territórios de desenvolvimento. Instituir regulamentos, procedimentos administrativos, normas de conduta e orçamento regionalizado, consumiu o exercício de 2008, construindo as bases de sua implantação para 2009 e 2010. Foi quando as águas turvas de abril interromperam a primavera da Frente de Libertação do Maranhão. A ideia do funcionamento permanente dos 32 Conselhos de Desenvolvimento Regional, com a priorização de obras e serviços a cargo das lideranças políticas e comunitárias, já dava calafrios na velha oligarquia, historicamente centralizadora e autoritária. E, mais do que isso, o calafrio, a angústia da perda e o medo de derrotas iminentes aumentavam a agonia da velha ordem que não admitia a execução de práticas inusitadas de democracia direta: • nos Conselhos de Segurança Cidadã, sentavam lado a lado polícia e população, em busca de novas práticas de segurança pública, forjando uma nova cultura de paz; • nas regiões, os Fóruns Governo/Sociedade antecipavam a descentralização, obrigando o Governo a ouvir o povo olho no olho e colocando para os poderes as prioridades das regiões; • nas relações Estado/Municípios, o governo da Frente conveniava direto com as prefeituras transferindo recursos e aprofundando o aprendizado da municipalização. Tudo isso acontecia, e todos sabemos, com a ausência discriminatória de recursos financeiros da União e a negação da pre164
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sença de autoridades federais, a ponto do Presidente Lula correr o Brasil, sem pisar no Maranhão. Não há dúvida de que a democratização do Estado foi mais um desses elementos de convicção para a decretação do Golpe de Abril. Aliás, foi esse jeito novo de relacionamento (Governo/Sociedade/Regiões/Municípios) o principal responsável pela vitória acachapante dos partidos da Frente nas eleições municipais de outubro de 2008, prenúncio mais do que revelador da derrota anunciada da oligarquia em 2010. O Sr. Sarney sabia disso. Daí a violência sem pudor do Golpe de Abril de 2009.
2 O PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE Em se tratando de Maranhão, com o seu tamanho territorial, sua história complexa e sua cultura política marcadamente autoritária, são muito difíceis os caminhos da promoção e da sustentabilidade do desenvolvimento. Uma das principais dificuldades é justamente a de situar e de conceituar corretamente o papel do município nesse processo de desenvolvimento. Quando venceu o pleito de 2006, o Governador Jackson Lago estava plenamente ciente desse desafio. Facilitava seu discernimento a vivência própria de, por três vezes, ter exercido a função de prefeito de São Luís, o fato de ter nascido e vivido no interior (Pedreiras e Bacabal) e ser parceiro, amigo e companheiro de vários prefeitos interioranos. No interrompido governo da Frente de Libertação, no nível da Secretaria de Planejamento do Estado (SEPLAN), e de sua equipe complementar de técnicos do antigo sistema e de novos quadros técnicos recrutados, um dos enigmas do seu trabalho foi o de traduzir em prática de planejamento o novo papel do muni165
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cípio na concertação da prosperidade e da inclusão social que era a nova marca histórica que se queria alcançar. Logo no início do governo, a equipe da SEPLAN teve a excelente ideia de postar num banner, que se tornaria permanente e obrigatório em todos os seus eventos, uma frase do Governador Jackson que traduzia perfeitamente a escolha municipalista: “Sou daqueles que acreditam que é nos municípios que as pessoas devem encontrar as condições sociais para viver com dignidade”. Outra medida extremamente importante da equipe SEPLAN foi a de introduzir em seus escritos e na prática dos seus trabalhos o, para nós desconhecido, conceito da subsidiariedade. Trata-se de um conceito cada vez mais contemporâneo na evolução das democracias, protegendo-as das tentações ditatoriais e autoritárias que as acompanham pelo mundo afora. Na prática, trata-se também de proteger indivíduos, famílias e comunidades menores contra a arrogância das esferas centrais ou regionais de poder constituído. Franco Motoro, o lendário governador paulista e municipalista de arraigada convicção dizia no exercício do seu governo que: “aquilo que o estado pode fazer a União não deve fazer; aquilo que o Município pode fazer, o Estado não deve fazer; aquilo que a Comunidade pode fazer, o Município não deve fazer”. Todo esse espírito, aliado ao objetivo maior do Governo Jackson que era o de democratizar as relações governo-sociedade, foi consolidando o novo ambiente administrativo do Estado dando à gestão da Frente a feição municipalista de que o Maranhão tanto precisa para avançar: • conveniar diretamente com as Prefeituras, virou rotina; • atender as demandas regionais por via dos fóruns governo-sociedade se transformou em marca de governo;
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• tocar a nova regionalização para chegar à nova territorialização do desenvolvimento foi o caminho escolhido para dinamizar a economia e a sociedade em todas as regiões maranhenses; • abrir-se para financiar grandes obras e serviços dos consórcios municipais, a exemplo do Projeto Águas Perenes, era consequência dessa pegada municipalista, pegada que pode explicar os convênios com as Prefeituras de Presidente Dutra, Imperatriz e Pinheiro para a construção, equipamento e funcionamento dos socorrões tão desejados pela população. Dentre as tantas contribuições do governo interrompido de Jackson Lago, a municipalização de políticas públicas é sem dúvida uma das mais ricas e promissoras, ao se pensar e projetar um futuro próspero para o Maranhão. O Estado é a soma, o município é a base. Não haverá Estado forte com municípios fracos.
3 O FUMACOP Durante o Governo Jackson Lago, num longo par de meses fomos convidados a organizar os fundamentos de estruturação do Fundo Maranhense de Combate a Pobreza, o FUMACOP. Num primeiro momento, foi necessário virar de ponta-cabeça o modo de ver, de falar e de comunicar desse importante Programa, cuja percepção estava, a nosso ver, profundamente viciada e tendente a repetição de erros de abordagem que conduziam a práticas visivelmente equivocadas e ineficientes. O primeiro perigo conceitual era o de confundir combate a pobreza com filantropia. De fato, o Brasil das últimas décadas assis167
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tiu a escalada da filantropia confundida com políticas de combate a pobreza. O Brasil empanturrou-se de Papais Noel. O Brasil ficou caridoso a direita, ao centro e a esquerda do espectro político, o que já denuncia por si um cipoal de equívocos e contradições. A nosso ver, era preciso encarar a promoção econômica dos pobres como o principal pressuposto filosófico do FUMACOP. Daí sugerirmos que o Fundo começasse a se apresentar não como de combate a pobreza, mas como um Fundo de geração de riqueza. Nossa longa jornada acompanhando a batalha de sobrevivência dos pobres, quer nas cidades, quer nas zonas rurais do Maranhão e já nos despindo das armadilhas do paternalismo, do assistencialismo e da filantropia, nos autorizava a dizer ao governo da Frente que os pobres, em suas diversas manifestações de vida e de reprodução, são portadores de uma vida econômica, de uma batalha econômica, de uma cultura econômica. Em sua condição de lavradores, pescadores, extrativistas, lenhadores, vaqueiros, oleiros, carpinteiros, pedreiros, artesãos, feirantes, carroceiros, motoqueiros, camelôs, flanelinhas, frentistas, etc., os pobres só se reproduzem graças a sua condição de portadores de uma economia capaz de produzir, transformar, comercializar e consumir. Eles estão mais próximos do mercado do que supõe a nossa vã preguiça de ver e refletir. A visibilidade dessa gigantesca economia de pequenos só é ignorada, ingênua ou maliciosamente, porque sua estruturação é muito trabalhosa, custa caro e demora quase sempre a ser recompensada com votos. Essa multiplicidade de micro, pequenos e médios negócios, necessitará sempre de serviços competentes e abrangentes de acompanhamento técnico, pedagógico e financeiro. Antes, chamavam os pobres de preguiçosos. Hoje, amortece-se o seu pensamento crítico, aprofundando a filantropia em massa.
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Por isso, o FUMACOP demorou a estruturar-se. Foi preciso alargar o debate, posto que a conquista de espaço da ideia promoção era indispensável no embate que se começou a travar com a estabelecida e sedutora cultura do velho e pernicioso assistencialismo. Não é difícil entender as hesitações quando a lente da razão aproxima-se da verificação da máquina estatal refratária a prática de pensar, máquina essa com a cabeça gigantesca colada na capital do Estado, a beira do Oceano Atlântico, distante mil léguas dos centros produtivos do interior e, mais do que isso, quando o objetivo maior é dominar o povo, ao invés de libertá-lo. Invertendo a lógica dominante, buscou-se estruturar o FUMACOP na direção de apoiar: • os Arranjos Produtivos Locais (APL’s), que o governo colocou a cargo do SEBRAE, nele injetando recursos do Fundo; • a municipalização da agricultura, dando prioridade máxima, dando prioridade máxima a estruturação das casas Familiares Rurais, das Escolas Famílias Agrícolas e das Secretarias Municipais da Agricultura, Floresta e Pesca; • as incubadoras de empresas de base tecnológica na condução responsável da FAPEMA; • a inclusão digital, por vias do fortalecimento das lan-houses; • projetos regionais de desenvolvimento, como é exemplo a aprovação do Projeto Popular da Baixada Maranhense, denominado pelo governo de Águas Perenes, mas apelidado pelo povo de Águas Fujonas. Esses e outros projetos examinados estavam deixando de ter um teto mínimo financeiro para abrir-se a possibilidade de tacadas seguras e de grande impacto sobre um problema ou con169
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junto de problemas, como é o caso acima citado das Águas Fujonas na Baixada, ou uma ponte estratégica aproximando regiões. Programas como o DLIS (Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável) nos trinta municípios de menor renda por habitante estavam em plena maturação no âmbito da equipe pluridisciplinar do FUMACOP. É certo que a presença de abordagens assistencialistas pressionava pesadamente o Fundo, sob o reinado da cultura paternalista e patrimonialista do Estado. Esse debate rico, fecundo e penetrante sobre a erradicação de pobreza estava em plena efervescência quando adveio o golpe de abril de 2009. Instalado o novo governo da velha oligarquia de outros carnavais, o que se vê agora é o retrocesso, o fim do debate, a desconsideração sobre a dinamização da economia dos pobres, a volta acelerada da filantropia e o mais profundo assistencialismo. Infelizmente, esse novo-velho governo está conforme certas tendências que se pretendem universais, em se tratando de políticas públicas de erradicação de pobreza. Sua realização, no entanto, é a história de um fracasso anunciado. A promoção econômica dos pobres é o único caminho possível para o desenvolvimento, a prosperidade, a inclusão social e a sustentabilidade.
4 PROJETO ÁGUAS PERENES Na retrospectiva, muitas vezes, como é interessante verificar o nascimento e o desenvolvimento de um projeto de longo alcance humano, histórico, econômico, ecológico e social! Este é o caso do Projeto Águas Perenes, no âmbito do interrompido Governo Jackson Lago, também conhecido como Projeto Águas Fujonas da Baixada Maranhense. 170
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Antes mesmo da instalação da equipe da Secretaria de Planejamento do Governo da Frente de Libertação, nos seus movimentos embrionários, em dezembro de 2006, numa bela manhã de domingo, procura-me o inquieto engenheiro químico Francisco Bordalo. Sonhando e sonhador como todos nós, traz debaixo dos braços uma maçaroca de mapas dos lagos da Baixada Maranhense. Instalado o Governo, juntam-se informalmente à pequena célula aquática do projeto o baixadeiro de velha cepa, Francisco Figueiredo, um dos ícones da Greve de 51, o jornalista e criador de patos Reginaldo Telles e o bancário de Pinheiro, Cezar Soares. Inúmeras reuniões acontecem na Secretaria Estadual de Planejamento e no pequeno auditório do Consórcio Intermunicipal de Produção e Abastecimento, CINPRA SÃO LUÍS. O movimento pela retenção da água doce da Baixada foi crescendo, crescendo... um grupo técnico/empresarial estudioso e projetista das soluções do problema foi descoberto, até que em 14 de dezembro de 2007, uma entusiástica reunião de consulta popular acontece e explode em São Vicente de Ferrer, em pleno coração da Baixada. Com o apoio logístico do Prefeito Cabo Freitas e da Prefeitura da cidade, a região inteira estava lá, de Anajatuba a Turilândia, da associação de pescadores à associação de comercial, do agente de saúde ao prefeito, vice-prefeito e vereador. A rádio noticiou, os jornais falaram: um antigo e unânime sonho da Baixada estava nascendo. Nasceu, naquela histórica Sessão Pública, com o nome de Águas Fujonas. Depois, no laboratório de planos da SEPLAN, foi batizado de PROJETO ÁGUAS PERENES. Assim historiado, eis do que se trata: • construção de uma barragem no Rio Maracu, no Município de Cajari;
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• construção de um dique de contenção das águas num percurso de 70 km, da estrada Vitória/Viana com 21 vertedouros, até a cidade de Bacurituba, com o objetivo de perenizar os lagos do Coqueiro, das Itans e do Aquiri; • conclusão da barragem de São Vicente de Ferrer; • construção de pequenos diques nas enseadas do Rio Aurá, atingindo os municípios de São Bento, São Vicente, Bacurituba, Palmeirândia, Peri-Mirim, Bequimão e Alcântara. Quem é baixadeiro conhece naquelas paragens esse fantástico paradoxo da natureza: no inverno, a Baixada vira um Pantanal Matogrossense. A vida explode, da lama ressequida, como por milagre, faz-se a multiplicação dos peixes, não há mais fome na região, pássaros, bois e búfalos fazem sua festa. Ao contrário, no verão, as águas fogem repentinamente, aquele mar vira sertão, falta água, animais morrem de sede, a vida se retrai, as sementes de peixes se aninham nos charcos, a fome ronda a casa dos pobres, a alegria cede à tristeza. Nas marés altas, a água salgada invade campos e enseadas, salinizando o terreno: mais um problema econômico e ecológico de consequências negativas para o futuro. Antes de ser golpeado e absurdamente apeado do poder, o Governo Jackson Lago depositou R$ 47.000.000,00 (quarenta e sete milhões de reais) na conta do Consórcio CONLAGOS, uma entidade cooperativa de municípios da Baixada, primeira parcela de um total de R$ 134.000.000,00 (cento e trinta e quatro milhões de reais) que era o valor global do projeto, recursos totalmente garantidos pelo Tesouro Estadual. O dinheiro para iniciar o projeto ÁGUAS PERENES foi sequestrado da conta do CONLAGOS. Dois invernos e dois verões já se passaram. É com tristeza que presenciamos mais uma protelação, mais um adiamento de solução tão lógica e evidente como é o caso da perenização dos lagos da Baixada Maranhense. Uns 172
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tiveram tanto tempo e poder para fazer e não fizeram. O Governo Jackson comprou a ideia, depositou o dinheiro no CONLAGOS e o projeto estava em marcha acelerada para acontecer, mas foi bruscamente interrompido. A esperança de segurar as águas fujonas da Baixada não morreu. A bola bateu na trave, mas esse gol o povo unido da Baixada ainda há de fazer. E não há dúvida: será um belo gol de placa.
5 A MUNICIPALIZAÇÃO DA AGRICULTURA COMO PORVIR É do mestre antropólogo Darcy Ribeiro a reflexão de que as elites brasileiras são uma das mais competentes do mundo na arte de manipular e de perpetuar o atraso. O que dizer das elites políticas do Nordeste? O atraso secular do campesinato nordestino é uma das faces mais cruéis e notórias dessa competência às avessas. No caso do Maranhão, o requinte dessa capacidade negativa atingiu níveis sublimes de satisfação a ponto da Sra. Roseana Sarney Murad extinguir em meados dos anos 90 todos os órgãos de fomento e promoção da agricultura. O que já era ruim, ficou muito, muito pior. Hoje, 45 anos depois do mando absoluto dessa família sobre o povo do nosso Estado, a situação da agricultura é caótica, deprimida e preocupante: • produzimos 2% da soja do país; • produzimos menos de 0,5% de feijão; • talvez 1% de milho; • 50% de arroz; • 10% de mandioca; 173
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• nossa produtividade com a exceção da soja, beira o rés do chão; • nossa pauta de produtos, mesmo para o consumo interno, é risível. O Estado é rural. Noventa por cento das cidades são rurais. Porém, nossos representantes são lamentavelmente desvinculados da cultura produtiva que já se verifica tão fortemente no sul, sudeste, centro-oeste e partes do norte. Do rol de quase 200 mil estabelecimentos rurais, se você espremer, nem 5% recebem assistência técnica pública e, talvez, 1% receba orientações técnicas de forma regular. Nosso agricultor, grosso modo, ainda está na base da roça do tôco de corte e queima. Não trabalha o solo, não consegue ver o solo. Vive de uma agricultura arcaica de subsistência. Somos um grande Estado anestesiado num Estado grande. Em algum lugar do passado fomos exportadores de açúcar, algodão, arroz e farinha de mandioca. Hoje, até mesmo nosso agricultor compra tomate, lima, limão, laranja e cenoura de outros Estados. Somos dependentes e um grande importador de alimentos. Essa radiografia explica em grande medida nossa pobreza, nosso atraso e, portanto, a longevidade da oligarquia que nos envergonha, nos oprime e nos humilha. Nesse sentido, propomos a Municipalização da Agricultura, com as mesmas razões por que se municipalizou a educação e a saúde: • a roça não sai do lugar, o agrônomo é que tem que ir lá; • o boi não pega o ônibus para consultar o veterinário; • o pescador nunca viu um engenheiro de pesca;
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• a educação formal rural não forma agricultores, na melhor das hipóteses prepara migrantes. Muitos prefeitos, vereadores e lideranças locais já entenderam completamente o sentido, a necessidade e a oportunidade dessa revolução tecnológica que a municipalização pode trazer. O que falta é uma voz honesta, lúcida e competente. Falta uma a liderança nacional forte e comprometida com além das bolsas-família. No Maranhão, mil assentamentos da reforma agrária são proprietários de cinco milhões de hectares de terras. Sem tecnologias, porém, essas milhares de famílias passam fome, vivem doentes e importam frangos e ovos de outras regiões. É necessária uma política global comum, juntando à mesa: União, Estados e Municípios e até mesmo grandes empresas públicas e privadas num grande Pacto Nacional de Municipalização da Agricultura, com o objetivo de possibilitar: • o fortalecimento progressivo das Secretarias Municipais de Agricultura, Floresta e Pesca; • a instalação e funcionamento de uma rede de Casas Familiares Rurais nos moldes do que existe na França, desde 1935 e por onde passam e se formam anualmente 75 mil jovens, englobando 135 formações diferentes para o enriquecimento contínuo de todas as regiões francesas; • a adoção, junto às Secretarias Municipais de Agricultura, Floresta e Pesca, dos Agentes Municipais de Produção, a exemplo dos Agentes Comunitários de Saúde, para baratear custos e acelerar o atingimento da meta que é a universalização da assistência técnica que seria o objetivo final. Por intermédio dessa política aos agricultores, extrativistas, pescadores, assentados da reforma agrária, índios e quilombolas do Maranhão e do Nordeste: “todo agricultor terá direito 175
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e acesso garantido a assistência e orientação técnica de que necessitam para crescer, viver e prosperar”. Superando a atual onda nacional de assistencialismo e patrimonialismo, que fortalece em vez de enfraquecer as velhas e novas oligarquias da região, essa política anunciaria uma nova era de prosperidade baseada no renascimento da produção, da produtividade, da diversificação, da transformação, do comércio, do auto-consumo do mercado interno e da exportação, num movimento de baixo para cima, do interior para a capital, das cidades pequenas para as cidades médias e grandes, partindo do espaço básico focal, o município. Sem negar a necessidade emergencial das bolsas, até complementando-as, é fundamental assegurar, anunciar e possibilitar muito mais, ou seja, o desenvolvimento endógeno, a prosperidade e sustentabilidade de municípios. Essa ideia nasce de um grupo de técnicos maranhenses que há 13 anos toca esse projeto de Municipalização da Agricultura, tirando leite das pedras e enfrentando a indiferença de dirigentes políticos culturalmente atrasados, à direita, ao centro e à esquerda. O Instituto Pólis, o Cepam e a Escola de Administração Pública da FGV de São Paulo nos conhecem muito bem. Inspiramo-nos em Franco Montoro, municipalista convicto, apoiador do princípio da subsidiariedade e pioneiro incentivador dos consórcios intermunicipais. Acreditamos que apesar da refinada astúcia das nossas velhas e novas raposas políticas regionais no exercício da centenária arte de perpetuar o atraso, o Nordeste brasileiro anseia por uma modernização de base democrática e tecnológica, tendo o município como ponto de partida de um jeito novo de desenvolvimento, prosperidade e sustentabilidade. Essa é a tese.
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