territórios URBANOS "O Papel do Arquiteto e Urbanista na Construção Autogestionária: Um Estudo Sobre a Prática de Assessoria Técnica na Ocupação Novo Horizonte" Autor: Jhonatan Melo Orientadora: Izabella Galera
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Foto: Jhonatan Melo 2
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EDITORIAL Dentro desse contexto de luta pelo direito social, resistência à especulação do capital e de formas autogestionárias de planejamento e construção, questiona-se o papel do Arquiteto e Urbanista na lógica das Ocupações Urbanas: como conciliar o processo de concepção projetual à autogestão política e territorial? Como incorporar soluções populares e autônomas ao projeto técnico arquitetônico/urbanístico? Quais elementos desse processo de planejamento fortalecem a luta social e anticapitalista das ocupações urbanas? Este trabalho é dividido em: artigos de dissertação teórica (estudo teórico/conceitual); relato das ações realizadas na Ocupação Novo Horizonte, localizada em Justinópolis – Ribeirão das Neves; entrevistas realizadas com alguns dos agentes diretamente envolvidos na luta urbana por moradia. É, também, fruto da intenção de alinhar estudos teóricos à vivência prática, para propor alternativas de projeto que consigam abarcar, além das necessidades dos moradores, as suas próprias formas de viver e seus próprios métodos construtivos e organizacionais e difundir o conhecimento especializado e absorver saberes a fim de contribuir para a qualidade de vida das comunidades e para a luta pela digna pelo direito à cidade.
ÍNDICE 6 12 18 20 22 25 32 32 42 44 50 55 58 66 67 68 72 74 80 83
A Produção Hegemônica do Espaço Urbano Brasileiro Ocupações Urbanas enquanto Fissuras Políticas, Sociais e Espaciais Entrevista: Poliana Souza Ocupação Novo Horizonte: 1 ano de luta! Diário de Bordo: A experiência da assessoria técnica na Ocupação Novo Horizonte As Ocupações Urbanas da Região Metropolitana de BH Entrevista: Rafael Bittencourt A Autogestão Política e Territorial Entrevista: Thiago Canettieri Diário de Bordo: O Esgoto da Ocupação Novo Horizonte A Atuação do Arquiteto como Assessor Técnico em Ocupações Autogestionárias Entrevista: William Azalim Diário de Bordo: A Construção do Parquinho Entrevista: Deusiane Silva Lucas Entrevista: Felter Rodrigues O Projeto Arquitetônico na Dinâmica da Autoconstrução Entrevista: Isadora Guerreiro Diário de Bordo: O Planejamento Construtivo da Casa do Lucinei e da Naiara Entrevista: Camila Bastos Considerações Finais (?)
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As Ocupações Urbanas da RMBH
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Vespasiano 18
Santa Luzia
Ribeirão das Neves
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Contagem
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Sabará 16 23
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Ibirité
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Nova Lima 6
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6km
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Essas comunidades abrigam cerca de 14.269 famílias e um número estimado de 55.000 moradores, segundo dados do Praxis UFMG (1) . As Ocupações Urbanas [ocupações planejadas – ou organizadas (2), segundo os movimentos sociais – e ocupações espontâneas (3)] existentes na RMBH, com indicação numérica em ordem cronológica são:
A experiência das Ocupações traz consigo a prova de que a insubordinação à realidade capitalista deve se aliar à ação prática, à construção real, inclusive por, talvez, não haverem outras alternativas de provisão habitacional aos moradores e por se tratar de algo que é maior do que uma experiência teórica de resistência. Essa fissura é, levando em consideração as definições de Holloway, “uma insubordinação aqui-e-agora, não um projeto para o futuro” (2016, p. 28), já que para Hakim Bey (1985/2001, p.16 apud HOLLOWAY, 2013), não podemos esperar por uma revolução futura, pois a ideia de revolução futura se tornou inimiga da emancipação. As Ocupações se apresentam como um modelo prático de micropolítica, “através da qual os envolvidos tornam-se agentes ativos no campo de forças e interesses” (MOUFFE, 2006). Compõem uma realidade onde o senso de coletividade sugere uma lógica de resistência ao modelo urbano capitalista, o que pode ser entendido por John Holloway como uma fissura ao capitalismo, onde “a solidariedade social [...] gera formas de viver e organizar que funcionam contra a lógica do capital” (2013, p. 26).
(1) Relatório parcial sobre as ocupações urbanas consolidadas na Região Metropolitana de Belo Horizonte, em processo de elaboração pelo PRAXIS/UFMG, 2016. Ainda não publicado. (2) Ocupações que são pensadas pelos Movimentos Sociais e demandam a formação de um grupo de famílias com o intuito de ocuparem uma gleba específica, previamente escolhida pelos coletivos. (3) Quando as famílias se organizam coletivamente e ocupam uma gleba, sem o acompanhamento dos Movimentos, que – geralmente – se inserem posteriormente na comunidade.
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Foto: Jhonatan Melo
OCUPAÇÃO NOVO HORIZONTE 1 ano de luta! A gleba, com área de – aproximadamente - 6.500 m², pertence, em tese, à construtora PK Engenharia seria utilizada para a construção de edifícios residenciais. A construtora deu início aos trabalhos de fundação e movimentação do terreno, mas, há cerca de 3 anos – segundo informações dos moradores locais – ABANDONOU O EMPREENDIMENTO Em JUNHO DE 2015 o terreno foi ocupado e batizado como Ocupação Novo Horizonte, onde 53 FAMÍLIAS CONTAM COM O APOIO POLÍTICOS DAS BRIGADAS POPULARES E JURÍDICO DO COLETIVO MARGARIDA ALVES
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LINHA DO TEMPO 2012
- Gleba desocupada há 15 anos
2013
- A construtora PK Engenharia inicia a construção de um condomínio, mas abandona a obra
JUNho/2015
AGOsto/2015
- Mutirão de ocupação e parcelamento do terreno - Ação de reintegração de posse é distribuída pela PK Engenharia - Liminar favorável à reintegração é concedida - Moradores, em contato com a Ocupação Dandara, procuram apoio político das Brigadas Populares e assessoria jurídica do Coletivo Margarida Alves
SETembro/2015
- Coletivo Margarida Alves entra com recurso - Liminar suspende o despejo. 1ª vitória judicial da Ocupação. - Início de poucas construções em alvenaria
FEVereiro/2016
- 2ª Decisão judicial favorável à Ocupação. - Construções em alvenaria começam a ser erguidas em maior número
MARço/2016
- A construtora PK entra com recurso para reintegração de posse. Recurso ainda em julgamento.
7 Imagem: Google Maps. Adaptada por: Jhonatan Melo
PARCELAMENTO DA GLEBA
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Rua a
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11 Foto: MaurĂcio do Valle
DIÁRIO DE BORDO:
A experiência da assessoria técnica na Ocupação Novo Horizonte.
Me aproximo, então, dessa Ocupação de forma mais contundente, através das Brigadas Populares, em Setembro de 2015. A gleba havia sido ocupada recentemente e haviam poucas casas de alvenaria sendo construídas, com predominância dos barracos de madeirit. O terreno havia sido parcelado e as ruas abertas pelos próprios moradores e a conformação urbanística estava consolidada, com o loteamento para subdivisão da gleba em lotes privados, o que é comum na lógica de organização das Ocupações Urbanas da RMBH. Além disso, como dito anteriormente, os cortes e platôs deixados no terreno pela Construtora PK Engenharia foram fortes condicionantes para a organização espacial da comunidade. Não dava para desconsiderar isso.
Foto: Jhonatan Melo
Entendemos que já havia ali um modelo urbanístico aplicado e que não era necessário intervir de forma a alterá-lo completamente: nós poderíamos propor outras relações com o espaço e discutir sua inserção na lógica urbana da cidade formal por outros caminhos, sem, necessariamente, impor uma lógica que, teoricamente, fosse mais transgressora e anticapitalista (como a implantação de lotes coletivos, por exemplo). Afinal, o princípio da imposição é, por si só, uma ferramenta ordenadora e caracteriza a organização do espaço urbano capitalista. Havia urgência em fazer com que a ocupação começasse rapidamente a se consolidar, mas os moradores, obviamente, estavam inseguros em investir na construção de suas casas com o risco de serem despejados pela justiça. O primeiro ganho da causa jurídica trouxa à Ocupação um sentimento de segurança e a assembleia de divulgação da resposta judicial favorável se encerrou com um tom de vitória. A partir daí as Brigadas Populares e o Coletivo Margarida Alves fizeram uma forte campanha de incentivo à construção das casas, fator que fortalece, inclusive, os argumentos jurídicos contra um possível despejo. Foi a primeira grande vitória coletiva da comunidade!
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A partir daí alguns moradores, que já despunham de reserva financeira, deram início às construções das casas. Mas ainda eram poucos. Os coordenadores da ocupação sentiam que a comunidade ainda estava desarticulada e por algum motivo, desmotivada a construir (salvos os casos em que não possuíam dinheiro para investir na obra). Foi então, que, em uma assembleia, levantou-se a discussão – muito puxada pelos coordenadores e pelas Brigadas Populares - sobre a consolidação espacial da comunidade e postas ao coletivo as razões da aparente falta de motivação e articulação entre os moradores. Alguns problemas foram identificados rapidamente: muitas famílias têm filhos e os pais não sentiam segurança em leva-los para a comunidade, que ainda não possuía muitas casas construídas e tampouco espaços de lazer, onde as mães pudessem deixar os filhos com tranquilidade. Além disso, poucos moradores possuíam um vínculo mais forte de vizinhança e o trabalho coletivo dependia (e depende) desse processo de aproximação. Com esses elementos expostos, surgiu a ideia da primeira construção efetivamente coletiva da Ocupação Novo Horizonte: o Parquinho! A assembleia, como espaço político, serviu para traçarmos algumas diretrizes de implantação e para desenharmos estratégias que viabilizassem essa construção. Foi formado um Grupo de Trabalho (GT) que ficaria responsável por essa articulação, onde se decidiu que: coletaríamos doações de materiais; construiríamos por meio de mutirão; utilizaríamos a internet para divulgação da ação e como forma de chamar pessoas de fora; seria feito um projeto para que chegássemos à conclusão de quais materiais seriam necessários. Obviamente, os moradores entenderam que essa seria uma responsabilidade minha, afinal era eu o acadêmico da arquitetura...
13 Foto: Pedro Vianna
DIÁRIO DE BORDO:
A Construção do Parquinho Novo Horizonte
Foto: Lucinei Charles
O primeiro passo para a organização da ação de construção do parquinho foi reunir o GT para combinar datas, formas de comunicação com a comunidade externa e estratégias de construção. Dentro do questionamento e crítica acerca do projeto arquitetônico prescritivo, havia a intenção de fazer com que o parquinho fosse planejado coletivamente. Não só a construção do parquinho seria feita por meio de mutirão: e se o projeto também fosse? E se as crianças se reunissem para projetar os sonhos para esse espaço? Propus que o planejamento da construção do parquinho se dividisse em 3 etapas: Visita ao lote e planejamento lúdico
Arrecadação do Material
Mutirão de Construção
Na primeira etapa, as crianças – agentes diretamente afetados pela construção e, consequentemente, aptos a decidirem sobre ela – foram reunidas e estimuladas a expressarem no papel seus desejos para o espaço coletivo, ao mesmo tempo em que trocavam informações e compartilhavam seus sonhos uns com os outros. A proposta era que elas pensassem nos brinquedos, na organização do espaço e nas cores e que, ao final, encontrássemos os elementos que se comunicassem nos projetos de cada um para que criássemos um desenho coletivo. Mas a atividade extrapolou os limites esperados... 14
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Projeto do Parquinho
Fotos: Jhonatan Melo
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O compartilhamento de sonhos durante a atividade acabou trazendo à conversa a noção de planejamento espacial que levava em consideração, em vez dos brinquedos, as atividades que as crianças queriam realizar no espaço. O parquinho deixava de ser um espaço para instalação de brinquedos e se tornava um espaço onde seria possível a vivência e a realização de atividades, independente de como a infraestrutura seria provida. Isso foi especialmente importante para a viabilização da construção do parquinho, já que contávamos com poucos recursos e dependeríamos de doações para a fabricação dos brinquedos. Cada criança apresentou o seu desenho e compartilhou o seu sonho individual de parquinho e, à medida que a conversa acontecia, encontrávamos pontos em comum entre os projetos. Daí surgiu o conceito espacial do parquinho, que consistia em: Lugares para deitar | fazer piquenique | escorregar | balançar | conversar | brincar Lugares de onde os pais poderiam “olhar” os filhos brincando A partir daí, em conversa com os pais e com os assessores das Brigadas Populares, pensamos em quais elementos físicos conseguiriam atender a demanda do nosso planejamento e iniciamos uma campanha nas redes sociais para levantamento de doações de materiais multiuso: madeira, cordas, tintas, pneus, pregos, etc. O mutirão foi marcado e começamos a convergir os esforços para a arrecadação de doações e para conseguirmos pessoas dispostas a ajudar com o trabalho físico do mutirão. O parquinho nasceu. Dia 28/03, véspera do domingo de páscoa. Estudantes universitários, militantes dos movimentos sociais e moradores da Ocupação Dandara se uniram às crianças e adultos da Ocupação Novo Horizonte. O trabalho realizado foi: limpeza do lote, retirada do lixo, avaliação do material arrecadado e construção dos brinquedos.
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Mutirรฃo do Parquinho
Fotos: Jhonatan Melo
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Na construção do balanço, os conhecimentos técnicos e o desenho esquemático foram importantes para resolvermos a forma e solucionarmos a estratégia para estabilidade do brinquedo, tendo em vista que não dispúnhamos de material em grande quantidade. O croqui facilitou a comunicação entre os envolvidos nas tarefas, sendo utilizando inclusive pelas crianças projetar o que viria a ser o espaço para o que eles chamavam de “brincadeiras de chão”: amarelinha, tabuleiro humano, etc. Surgiu deles a ideia de usar uma pequena fundação existente no terreno como local para implantar as brincadeiras.
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As “brincadeiras de chão” foram prova de que, ainda que haja um planejamento para a ação e que muitas pessoas participem dele, há ideias que se apresentam no processo de construção. É importante, portanto, que haja abertura às novas soluções e à contribuição livre, pois elas fortalecem o senso de coletividade e reforça nos sujeitos o sentimento de pertencimento ao lugar. Em analogia ao que se entende como “projeto arquitetônico” – ou, como prefiro chamar, “planejamento construtivo” – é necessário estar atento às insurgências e às soluções que surgem no processo. É no processo, na ação, que construímos relações de vizinhança, coletividade e é onde aprendemos uns com os outros. Foi também durante o processo que as crianças começaram a se apropriar do local e a ressignificá-lo de modo a utilizar da própria conformação física do terreno para realização de atividades que os assistentes técnicos e moradores adultos não conseguiram resolver. Está aí o nosso escorregador:
O mutirão para construção do Parquinho foi fundamental para aproximar a comunidade e aumentar os vínculos de confiança com os assessores técnicos e entre os próprios moradores. É nesse sentido que caminha a relação de horizontalidade de que tanto falamos: construímos confiança coletiva. Também construímos autoconfiança, quando os moradores se sentem aptos a solucionar problemas espaciais e construtivos, quando os pedreiros moradores da ocupação sentem que seus saberes são valorizados e que podem ser usados em favor do bem comum e quando as crianças se lançam a projetar um espaço e se percebem importantes no processo. 21
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23 Foto: Jhonatan Melo
DIÁRIO DE BORDO:
O Planejamento Construtivo da casa do Lucinei e da Naiara
Aos poucos, pela nossa aproximação, os moradores se sentiam seguros para, por exemplo, conversarem sobre seus projetos residenciais e pedirem ajuda para resolução de eventuais problemas. É importante lembrar que muitos pedreiros moram em ocupações urbanas e no caso da Novo Horizonte não é diferente: são eles que, contratados ou por amizade, acabam ajudando a planejar e a construir muitas casas. O conhecimento técnico pode contribuir, sim, para a melhoria das construções e na experiência da Novo Horizonte, serviu, em grande parte, para ajudar no planejamento das obras, com o objetivo de evitar desperdício de material. Além disso a falta de preocupação com os espaços de circulação e com a ventilação/iluminação dos ambientes entre os moradores – e até mesmo entre os pedreiros – é recorrente. É na assessoria técnica que conseguimos propor soluções que resolvam essas deficiências e isso é resultado de um processo de diálogo e conscientização com os moradores. Esse foi o caso, por exemplo, da residência do Lucinei e da Naiara: os próprios moradores haviam resolvido a planta da casa. O casal procurou assessoria técnica para apresentar o projeto e juntos acabamos identificando sérios problemas relacionados à iluminação e ventilação naturais e largura dos espaços de circulação. Propus que fizéssemos o levantamento do projeto inicial, que seria simulado por meio de maquete, como estratégia para o diálogo e, a partir desse projeto, seriam feitas as alterações necessárias. A convivência me fez perceber que os moradores são muito ligados à tecnologia e lidam bem com as abstrações do mundo digital. Resolvi propor, em vez de maquete física ou papel, um modelo 3D do projeto.
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A simulação digital foi fundamental para conseguirmos tratar das questões problemáticas do projeto que foi resolvido, parede a parede, pelos moradores e eu. Foram feitas, a partir do projeto inicial, algumas simulações. Sugeri, também, que criássemos uma lógica para as medidas dos espaços de circulação: tiramos medidas dos aparelhos eletrodomésticos maiores, do sofá, dos próprios moradores e chegamos à conclusão de que a largura adotada no projeto inicial (50 cm) não permitiria, por exemplo, a entrada da geladeira na casa. Outros problemas foram resolvidos: ventilação e iluminação nos ambientes. Conversamos sobre problemas com mofo, calor, etc. Além do modelo digital, utilizamos desenhos em papel para conversarmos sobre o projeto e enquanto simulávamos o resultado da construção, foi perceptível a empolgação dos moradores, que vislumbravam na tela do computador a realização do sonho.
Com o desenho da casa resolvido, os moradores demonstraram dúvidas sobre materiais, revestimentos, preços, etc. Fizemos, então, uma pesquisa online e conseguimos definir os materiais que seriam empregados na construção, como, por exemplo, o tijolo de vidro para iluminar a circulação interna da casa.
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Projeto: Lucinei e Naiara
Fotos: Jhonatan Melo
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Segundo Naiara, o planejamento da construção trouxe outro parâmetro para o projeto. Lucinei afirma que “foi importante ver como ficaria a casa no computador e poder resolver os problemas antes deles aparecerem. Seria um prejuízo construir uma parede e ter que derrubar porque não tinha ficado boa”. Foi a partir desse projeto que percebi que a assessoria técnica na Ocupação Novo Horizonte seria desenvolvida como forma de auxílio e arranjo dos projetos que os moradores já possuíam para suas casas e nesse sentido, principalmente, o diálogo com os pedreiros era essencial. Muitas assessorias técnicas aconteceram, então, durante pequenas conversas informais ou pelo celular, sem necessariamente passarem pelo campo do projeto. Mas, evidentemente, a partir dessa experiência, todos os moradores passaram a valorizar o planejamento construtivo como forma de evitar custos desnecessários ou desperdício de material, por exemplo.
A carga acumulada devido à vivência e prestação de assessoria técnica em outras residências na Ocupação Novo Horizonte, bem como em outras Ocupações da RMBH, me ajudaram a reunir informações de demandas recorrentes nas comunidades com a intenção de elaborar um material com apelo didático e prático, pelo qual os moradores possam se auxiliar na resolução dos problemas construtivos e de conforto de suas casas, bem como se instrumentalizar para elaborarem seus próprios planejamentos construtivos, por meio de um material básico de referência. 27
*Esse material encontra-se em fase de elaboração e aprimoramento, mas já foi utilizado em alguns momentos de assessoria técnica na Ocupação Novo Horizonte e consiste em uma espécie de questionário-diagnóstico de possíveis problemas construtivos nas casas já consolidadas, com alternativas de soluções. Pode ser aplicado também a casos onde os moradores ainda não construíram as residências definitivas. Há também um espaço dedicado à elaboração de plantas e dimensionamento de ambientes através de uma malha pré-dimensionada e blocos com medidas de móveis geralmente utilizados. Obviamente a utilização desse material requer algum tipo de contato prévio entre o morador interessado e o assessor técnico, que poderá, inclusive, auxiliar os indivíduos na sua utilização, quando for o caso.
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A carga acumulada devido à vivência e prestação de assessoria técnica em outras residências na Ocupação Novo Horizonte, bem como em outras Ocupações da RMBH, me ajudaram a reunir informações de demandas recorrentes nas comunidades com a intenção de elaborar um material com apelo didático e prático, pelo qual os moradores possam se auxiliar na resolução dos problemas construtivos e de conforto de suas casas, bem como se instrumentalizar para elaborarem seus próprios planejamentos construtivos, por meio de um material básico de referência. 29
Enquanto nรฃo hรก verba Pra tijolo e concreto Um lote pode ser Milharal
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O Esgoto da Ocupação Novo Horizonte
Foto: Thiago Canettieri
No Brasil a falta de estrutura de saneamento básico adequado configura um dos maiores dilemas urbanos, e nas Ocupações Urbanas não seria diferente. Segundo dados do publicados pelo Instituto Trata Brasil, com base em informações do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), apenas 48,6% dos brasileiros possui acesso à coleta de esgoto e, nas 100 maiores cidades brasileiras, mais de 3,5 milhões descartam esgoto de forma irregular. Esse tipo de deficiência influencia na conformação de um ambiente insalubre para os moradores. No caso da Ocupação Novo Horizonte, com o aumento do número de construções, se tornou urgente encontrarmos uma solução para esse problema. Nos organizamos, assessores técnicos e moradores, para estudar alternativas de implantação do esgoto. Surgiu, espontaneamente, a comissão responsável por estruturar o sistema de esgoto. Isso ocorreu porque alguns moradores possuíam mais urgência em resolver a situação, já que suas casas já haviam sido construídas e eles já dispunham de uma reserva de dinheiro para aplicar. Outros moradores, no entanto, ainda não haviam manifestado maior interesse sobre o assunto, apesar de ser recorrente em conversas informais e assembleias. No início, os moradores mais interessados – pelas urgências individuais – em implantar o sistema de esgoto cogitaram fazer uma obra que atenderia apenas um núcleo isolado de casas, mas o processo de conscientização da luta coletiva no espaço da ocupação fez com que a situação se convertesse: após algumas conversas sobre a construção coletiva, motor de uma ocupação urbana, chegamos a uma solução que conseguisse atender a toda a comunidade, através da implantação de um sistema de captação central, onde as casas – que devem possuir suas próprias caixas de gordura – podem ser ligadas, através das conexões de espera que serão instaladas em todo o comprimento da tubulação de esgoto central. Além disso, o sistema contará com 5 caixas de visita. 32
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NERY
LUCAS
JOÃO
+ALTO
ZÉ ALEXANDRE
SIMONE
EDNA
MALÃO
GABY
NEIA
LEVY
ELAINE WARLEN LUCINEI
MÃE DO RONALDO
PARQUINHO
ALZINHO CLAUDIO
MANINHO MIQUEIAS
ROSILDO DIRCEU
LEO
MAURO
PIRANHA MARLENE REGINALDO
DINEI BETO
JÚLIO
AMANDA FARLEY E NANDO
ANDRÉ
NILSON
GERALDO
RUA FÁTIMA
JEFERSON
DIEGO
REGINALDO
NANÁ
RONALDO
BENI MENDONÇA RAPOSO
MATAGAL
SEM NOME
LEGENDA TUBULAÇÃO CAIXA
+BAIXO
LIGAÇÃO PARA A CASA
A PARTIR DAQUI DEVERÁ SER CONECTADO À REDE DA COPASA
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O trabalho foi dividido em 5 etapas básicas: Levantamento do terreno e solução construtiva Dimensionamento do material necessário Apresentação do planejamento construtivo e discussão em assembleia Arrecadação do dinheiro/compra dos materiais Mutirão de construção O levantamento do terreno e o dimensionamento da rede foi elaborado por um grupo composto por moradores (dentre os quais havia 1 pedreiro) e eu, como assessor técnico. O planejamento construtivo do sistema de esgoto foi, então, elaborado para atender aos 53 lotes através de uma tubulação-mestra, instalada nas duas ruas de acesso. A solução abre possibilidade, inclusive pela conformação dos lotes, que duas casas possam dividir a mesma caixa de gordura, ou que a tubulação para as duas casas seja a mesma, dependendo do acordo entre os respectivos vizinhos. A rede central de coleta do esgoto será construída com um número de “esperas” estipulado de acordo com o levantamento realizado, possibilitando aos moradores que não têm previsão de construção da casa ou da rede de esgoto individual utilizaram a estrutura O projeto da rede de esgoto foi apresentado e aprovado pela comunidade em assembleia, onde a comissão explicou detalhes do seu funcionamento e onde foram postos à luz assuntos como o acordo entre vizinhos (sobre a construção das caixas de gordura, disposição das tubulações individuais, uso consciente da rede e manutenção), o orçamento do material da obra (que será construída por meio de mutirão) e o destino do esgoto Uma boa surpresa nesse processo foi a comunidade ter conseguido a doação dos tubos de PVC para a rede central, o que diminuiu consideravelmente o custo construtivo para os moradores, que pagarão, então, apenas pelo material das caixas, pelas peças de redução para conexão com as casas e pelo material que compete às residências individuais. Uma questão delicada, nesse projeto, foi a decisão sobre o destino do material do esgoto. Muitos moradores defendiam veementemente que os dejetos fossem deixados no córrego vizinho, já que, segundo muitos deles, o córrego já serve como esgoto do bairro. Houve, então, um trabalho de diálogo e conscientização sobre o papel de responsabilidade da comunidade com o ambiente urbano, com a saúde das pessoas, com o meio ambiente e o cuidado que era necessário ter com a vizinhança, afinal liberar o esgoto de 53 famílias em um córrego aumentaria muito a poluição local. Outro fator que contou muito para a reversão desse pensamento foi o fato de o córrego, que infelizmente é canalizado, transbordar e época e chuvas fortes e sequenciais. O que fazer, então?
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Levantamento do terreno Fotos: Maurício do Valle
O sistema de Evapotranspiração foi cogitado antes mesmo dessa assembleia, mas descartado pela comissão. Chegamos então à conclusão de que, com o sistema resolvido, temos argumentos para cobrarmos da COPASA a ligação da rede de esgoto da Novo Horizonte à sua rede oficial, já que ela percorre o bairro por uma rua vizinha à Ocupação. A visita à Companhia será marcada e estarão presentes 2 coordenadores, 2 pedreiros, 1 assistente técnico, 1 assistente político e 1 advogado. O mutirão de construção ficou marcado para o Junho/2016.
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Assembleia
Fotos: Thiago Canettieri
Assembleia
Foto: Pedro Vianna 36
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Foto: Jhonatan Melo
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territรณrios URBANOS Foto: Jhonatan Melo
Na realidade da conformação urbana hegemoneizada e excludente, onde a infraestrutura das cidades serve a classes com maior poder aquisitivo e é um dos principais meios de obtenção de lucro de grandes construtoras e empresários do ramo imobiliário, principalmente, as Ocupações Urbanas em terrenos que não cumprem função social são respostas imediatas de resistência à lógica capitalista de mercantilização das cidades. Mais que perguntas, são questões! É a problematização viva sobre uma cidade que pertence a poucos, mas que custa o dinheiro, a saúde e a vida de muitos. As Ocupações Urbanas, especificamente as que se localizam na RMBH – por terem sido objetos desse estudo – confrontam a lógica da organização espacial da cidade formal capitalista, trazendo ao espaço a potencialização para o surgimento de novas formas de sociabilização e de organização no meio, onde predominam, na maioria das vezes, relações baseadas nos princípios da construção coletiva, na autogestão política e territorial e na autoconstrução dos espaços pelos próprios moradores. Ainda que hajam contradições inerentes à lógica dada pelo capital, essas comunidades se conformam como fissuras políticas, sociais e espacial ao capitalismo. Formas de resistência prática, pelo exercício do direito à moradia e à dignidade da vida humana. Dentro desse contexto, movimentos sociais e assessores técnicos engajados nas causas urbanas convergem esforços no sentido de suscitarem a reflexão política, para que se fortaleça, dentro das comunidades, o discurso do direito à cidade e para que os próprios moradores se organizem politicamente, como uns dos principais agentes da luta urbana. Por isso, é imprescindível que os moradores possuam ferramentas para decidirem sobre o espaço urbano que lhes compete, trazendo à tona novos modelos de organização socioespacial. A assessoria técnica levada à realidade das Ocupações Urbanas pode potencializar as tensões políticas e sociais que esses espaços trazem consigo, pela utilização do saber técnico e da formação política coletiva em benefício dos direitos humanos, sobretudo de classes sociais menos favorecidas. Sendo assim, o diálogo entre os moradores e os especialistas técnicos deve ser baseado em ideais de horizontalidade e construção coletiva, onde os indivíduos reconheçam seus lugares dentro da realidade específica do contexto e consigam confluir saberes (técnicos e populares) com a finalidade de melhorarem os espaços construídos informalmente, e, consequentemente, contribuírem para a consolidação da luta urbana por uma cidade justa e territorialmente equilibrada. Além disso, a autogestão é o caminho e o fim da construção da autonomia nos sujeitos envolvidos, que devem ser instrumentalizados para conseguirem lidar com as questões políticas e construtivas de acordo com a formação coletiva dentro das comunidades. No campo da Arquitetura e do Urbanismo, profissionais técnicos precisam reconhecer os saberes populares dos agentes envolvidos no processo de consolidação e na vida cotidiana de uma Ocupação Urbana e ponderar formas para que o saber técnico contribua na melhoria das condições espaciais, sociais e ambientais das Ocupações Urbanas. O projeto prescritivo se mostra, então ineficiente, regulador e autoritário, pois parte do princípio de que o profissional detenha um saber absoluto e, portanto, seja ele o agente habilitado a planejar os espaços urbanos e decidir sobre as formas de organização das comunidades das quais ele, inclusive, não pertence (pelo menos a princípio). Devemos, então, entender que o trabalho de assessoria técnica dentro dessas comunidades é fruto de uma relação de empatia política e de uma construção coletiva, onde, evidentemente, os moradores são agentes principais, afinal tratamos, aqui, da moradia e das condições de vida de pessoas reais. Não encarar as Ocupações Urbanas e seus moradores, bravos resistentes urbanos, como meras estatísticas é um bom começo. A partir daí, inserido no meio e se relacionando com os indivíduos, ainda que reconhecido como o profissional arquiteto, a relação de assessoria é levada a outro patamar de potência: a desconstrução sobre o monopólio do saber pode (e provavelmente vai) acontecer no cotidiano, através da aproximação entre os indivíduos, pelo reconhecimento – por parte dos profissionais – que o trabalho nas comunidades não deve se colocar como uma atitude assistencialista, mas como um trabalho que pode fortalecer a luta nada mais que justa pela moradia e pela cidade.
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