territórios URBANOS - Jhonatan Melo (2016)

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territórios URBANOS "O Papel do Arquiteto e Urbanista na Construção Autogestionária: Um Estudo Sobre a Prática de Assessoria Técnica na Ocupação Novo Horizonte" Autor: Jhonatan Melo Orientadora: Izabella Galera

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Foto: Jhonatan Melo 2

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EDITORIAL Dentro desse contexto de luta pelo direito social, resistência à especulação do capital e de formas autogestionárias de planejamento e construção, questiona-se o papel do Arquiteto e Urbanista na lógica das Ocupações Urbanas: como conciliar o processo de concepção projetual à autogestão política e territorial? Como incorporar soluções populares e autônomas ao projeto técnico arquitetônico/urbanístico? Quais elementos desse processo de planejamento fortalecem a luta social e anticapitalista das ocupações urbanas? Este trabalho é dividido em: artigos de dissertação teórica (estudo teórico/conceitual); relato das ações realizadas na Ocupação Novo Horizonte, localizada em Justinópolis – Ribeirão das Neves; entrevistas realizadas com alguns dos agentes diretamente envolvidos na luta urbana por moradia. É, também, fruto da intenção de alinhar estudos teóricos à vivência prática, para propor alternativas de projeto que consigam abarcar, além das necessidades dos moradores, as suas próprias formas de viver e seus próprios métodos construtivos e organizacionais e difundir o conhecimento especializado e absorver saberes a fim de contribuir para a qualidade de vida das comunidades e para a luta pela digna pelo direito à cidade.

ÍNDICE 6 12 18 20 22 25 32 32 42 44 50 55 58 66 67 68 72 74 80 83

A Produção Hegemônica do Espaço Urbano Brasileiro Ocupações Urbanas enquanto Fissuras Políticas, Sociais e Espaciais Entrevista: Poliana Souza Ocupação Novo Horizonte: 1 ano de luta! Diário de Bordo: A experiência da assessoria técnica na Ocupação Novo Horizonte As Ocupações Urbanas da Região Metropolitana de BH Entrevista: Rafael Bittencourt A Autogestão Política e Territorial Entrevista: Thiago Canettieri Diário de Bordo: O Esgoto da Ocupação Novo Horizonte A Atuação do Arquiteto como Assessor Técnico em Ocupações Autogestionárias Entrevista: William Azalim Diário de Bordo: A Construção do Parquinho Entrevista: Deusiane Silva Lucas Entrevista: Felter Rodrigues O Projeto Arquitetônico na Dinâmica da Autoconstrução Entrevista: Isadora Guerreiro Diário de Bordo: O Planejamento Construtivo da Casa do Lucinei e da Naiara Entrevista: Camila Bastos Considerações Finais (?)

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Às Brigadas Populares, ao MLB e ao Coletivo Margarida Alves pelo apoio e disposição de sempre. Principalmente aos queridos William Azalim e Thiago Canettieri pela força imensa. Às/aos moradores das Ocupações Urbanas da Região Metropolitana de Belo Horizonte, resistentes da luta urbana pelo direito à moradia, à dignidade e à vida. Especialmente aos moradores da Ocupação Novo Horizonte por me proporcionarem tamanho aprendizado. Muitíssimo obrigado! Ao guerreiro e companheiro Kadu, por sua jornada de luta e persistência junto às Ocupações da Mata da Izidora, que – como outros – foi covardemente assassinado em nome da ganância capitalista sobre a propriedade. À Izabella Galera, pela dedicação, carinho e por acreditar tanto que a realização deste trabalho seria possível. Pelo amor, pela generosidade em compartilhar esse conhecimento gigante, pelos mutirões e por todos esses anos, muito obrigado! À esquerda-festiva-combativa de Belo Horizonte! À rua. À cidade. À luta! 5 Foto: Maurício do Valle


A PRODUÇÃO HEGEMÔNICA DO ESPAÇO URBANO BRASILEIRO Até o começo do século XIX, era a Coroa quem concedia a propriedade das terras no Brasil, sendo a terra ocupada por classes sociais privilegiadas o que favorecia a hegemonia na organização espacial do país. Em 1850, com a “Lei das Terras”, a propriedade passa a ser considerada privada e, nesse contexto, quem detinha a “carta de sesmarias” ou provas de ocupação “pacífica e sem contestação” a possuía como mercadoria. O território não ocupado pertencia à Coroa Portuguesa, que realizava leilões para vendê-lo. Para Ermínia Maricato (1997), antes mesmo da aprovação da “Lei das Terras” houve um processo de ampla ocupação de terras e expulsão de pequenos posseiros por grandes proprietários, o que, a partir de 1850, consolidaria a hegemonia de uma determinada classe social a legitimação da propriedade sobre grande parte do território. A partir daí a terra se transforma em bem com valor monetário e só a teria quem conseguisse pagar por ela. Segundo a autora, a lei “distingue, pela primeira vez na história do país, o que é solo público e o que é solo privado” (MARICATO, 1997, p. 23). Sendo assim, os meios urbanos e rurais se estruturam para regulamentar o acesso à terra de maneira a não alterar a absoluta hegemonia das elites. Com o fim da escravidão (segunda metade do século XIX), com o estabelecimento da relação do trabalho assalariado e com a legitimação de posse da terra por uma determinada classe social, “a Lei das Terras serviu para transferir o indicativo de poder e riqueza das elites de então: sua hegemonia não era mais medida pelo número de escravos, mas pela terra que possuía, agora convertida em mercadoria” (WHITAKER, 2005, p. 3). O ritmo da crescente ocupação do território urbano, as aspirações dos grandes proprietários rurais (que haviam transferido suas residências para as cidades, como forma de participarem do processo comercialização dos produtores agrícolas) e a participação do Brasil no cenário do comércio internacional, trouxeram ao imaginário nacional o ideal urbano de cidades que fossem relevantes para o contexto comercial. Rio de Janeiro e São Paulo, que representavam o avanço e o progresso da época, passavam a possuir “uma aparência compatível com a ambição comercial da expansão cafeeira” (WHITAKER, 2005, p. 5). Nesse contexto, “as elites buscavam afastar de suas vistas – e das vistas do estrangeiro – o populacho inculto, desprovido de maneiras civilizadas, mestiço. As reformas urbanas criaram uma cidade ‘para inglês ver’. ” (RIBEIRO e CARDOSO, 1981 apud WHITAKER, 2005, p. 5). Dentro da dinâmica mercadológica das cidades, a localização do terreno é decisiva sobre o seu valor. As cidades brasileiras do século XIX concentrava maior infraestrutura em suas regiões centrais, o que atraia – inclusive – a atenção das elites para instalação dos seus palacetes. Comercialmente, um terreno é valioso quando o seu entorno é dotado de infraestrutura, fácil acesso, proteção, etc. Whitaker (2005, p. 6) diz, ainda, que a localização é mais interessante quando há um significativo trabalho social para produzi-la e torná-la atrativa dentro de determinada aglomeração urbana e, nesse contexto, o Estado intervém, por meio de obras urbanizadoras e com instrumentos tributários e reguladores sobre o uso e a ocupação do solo, de forma a equipar determinada região para atrair interesse.

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Sendo assim, entende-se como a influência sobre a máquina pública rende benefícios a quem conseguir direcionar tais investimentos segundos interesses privados de valorização da terra e, para Whitaker (2005, p. 6), “todas as grandes intervenções urbanas promovidas pelo Poder Público foram, salvas raras exceções, destinadas a produzir melhorias exclusivamente para os bairros das classes dominantes”. Os primeiros planos urbanísticos brasileiros previam a regulação, o uso e a ocupação do solo de forma a “higienizar” as cidades e modernizá-las, com a pretensão de atrair a atenção estrangeira para o progresso do país. Dessa forma, a legislação urbanística, aliada à especulação do capital sobre a terra, era determinante na expulsão dos pobres das áreas centrais das cidades: a complexidade e a rigidez da legislação para construção de edifícios em determinadas áreas das cidades eram facilmente dobradas pelo mercado imobiliário, que possuía proximidade com o Poder Público e capital para compra de grandes terrenos em áreas onde o código de posturas urbano exigia limites de afastamentos e proibia determinados usos (como cortiços, por exemplo) As intensas mudanças na distribuição demográfica no território brasileiro desde o início do século XX, fruto da migração pelo trabalho, acabou por concentrar ainda mais a população nas cidades, fator que certamente acentuou com o tempo os problemas urbanos, e – sem dúvidas – a habitação é um deles. O Estado Novo (a partir de 1937) passa a implementar políticas sociais para tentar suprir as demandas do campo da habitação. Em 1942, com o decreto da Lei do Inquilinato, os aluguéis se congelam e o mercado da construção para locação se esfria. Nessa época, o governo habilitou os Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs) a criarem carteiras trabalhistas aos seus empregados, para reduzirem os juros e ampliarem os prazos para pagamento de suas construções. Para Pequeno (2008) a parcela da população que não possuía vínculos com organizações encontrou na aquisição de lotes em assentamentos periféricos a possibilidade de acesso à moradia “fazendo-se difundir a lógica a propriedade privada em substituição à moradia de aluguel através da autoconstrução nas periferias urbanas”. Aliando-se a isso, a falta de casas financiadas pelo poder público (devido à fata de recursos para a construção de uma quantidade adequada de residências populares) “gerou ao mesmo tempo a necessidade da autoconstrução” forçando os trabalhadores “a construir suas próprias casas a partir de materiais mais baratos” (HOLSTON, 2013, p. 217). A partir do Golpe de 1964, o governo militar passa a centralizar a questão da habitação com a criação do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), destinando a ele todos os recursos do Fundo de Garantia (FGTS). Iniciou-se, então, um período de intervenção estatal em torno da questão da habitação e daí surgiu o Banco Nacional da Habitação (BNH), que passou a gerir e executar a política nacional junto às Companhias de Habitação (COHABs). Esse modelo de gestão acabou por beneficiar as grandes empresas envolvidas com a produção habitacional da época e reproduziu um modelo de habitação social que não contemplava um conjunto mínimo de equipamentos e melhorias urbanas. Surgiam aí grandes “conjuntos-dormitórios” que se localizavam a certa distância da área central e eram mais servidos de infraestrutura e acesso a transporte, por exemplo. Ainda assim, esse modelo não beneficiava a parcela realmente pobre da população (que recebia até 5 salários mínimos) e as periferias seguiam em expansão contínua, em condições precárias e – em diversos casos – se conformando em áreas de risco ou de proteção ambiental. A corrida pela “globalização” e modernização das cidades, acabava por conformar espaços centrais esplendorosos e sem relação com a população pobre. As cidades se urbanizam, criam espaços segregadores e o Estado investe em regiões específicas das cidades de modo a fortalecer a desigualdade socioespacial e contribuir para a exacerbada diferenciação e valorização fundiária. Uma modernização que, segundo Whitaker, “não superou os desequilíbrios herdados no Brasil colonial” e a terra continua, até hoje, inacessível à boa parte da população que necessita dela para sobreviver, seja no campo ou nas cidades (2005, p. 17). A atuação de uma classe dominante em se apropriar de mecanismos e dos fundos públicos destinados à urbanização das cidades caracteriza, até hoje, sua predominância sobre o mercado imobiliário. Sendo assim, pode-se afirmar que as intervenções do Estado sobre a urbanização das cidades convergem para beneficiar as porções urbanas ocupadas pelas classes dominantes, de forma a distribuir de desigualmente os investimentos em infraestrutura nas cidades. Esse fenômeno resulta na absurda diferença de preços que está evidentemente associada aos interesses do capital especulativo “que sempre soube, no Brasil, fundir-se à ação estatal e canalizar os investimentos públicos para locais do seu interesse, gerando altos níveis de lucratividade” sobre a terra. (WHITAKER, 2005, p. 7).

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Desse modo, a alta valorização monetária de determinadas porções das cidades forçava – e força – a migração da parcela pobre da população para lugares mais distantes e menos favorecidos de infraestrutura urbana e investimentos públicos. A questão problemática da habitação no Brasil é, para além da desigualdade socioespacial, fruto de uma política marcada pela ausência de instrumentos de gestão do solo urbano e de sua democratização, de um processo de urbanização desordenado e pela atuação massiva dos especuladores imobiliários. Para Villaça (1999), os instrumentos de planejamento deixaram de lado o combate às desigualdades e se pautaram na tecnocracia, centrando-se “em questões estruturais associadas a horizontes distantes que inviabilizaram sua implementação”.

REFERÊNCIAS HOLSTON, James. Cidadania Insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,2013. MARICATO, Ermínia. Habitação e Cidade, São Paulo: Atual Editoral. 1997. PEQUENO, Renato. Políticas habitacionais, favelização e desigualdades sócio-espaciais nas cidades brasileiras: transformações e tendências. Diez años de cambios en el Mundo, en la Geografía y en las Ciencias Sociales, 1999-2008. Actas del X Coloquio Internacional de Geocrítica, Universidad de Barcelona, 26-30 de mayo de 2008. <http://www.ub.es/geocrit/-xcol/275.htm> ROLNIK, Raquel. Para além da lei: legislação urbanística e cidadania, in SOUZA, Maria Adélia A. (et. Outros, Orgs). Metrópoles e Globalização, São Paulo: CEDeSP, 1999. VILLAÇA, F. Efeitos do espaço sobre o social na metrópole brasileira. In: o. Maria Adelia Aparecida de Souza, Metrópole e globalização. São Paulo: Cedesp. 1999. WHITAKER, João Sette. A Cidade Para Poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. In: SIMPOSIO INTERFACES DAS REPRESENTAÇÕES URBANAS NO BRASIL, 2005. Bauru-SP.

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OCUPAÇÕES URBANAS COMO FISSURAS POLÍTICAS, SOCIAIS E ESPACIAIS As Ocupações Urbanas surgem no cenário da luta urbana brasileira como resposta ao déficit habitacional, à falta de oportunidade residencial para as famílias de baixa renda nas áreas urbanizadas das cidades e à especulação imobiliária, pela existência de uma grande quantidade de terrenos desocupados, em descumprimento à função social da propriedade. Estudos divulgados pela Fundação João Pinheiro apontam que o déficit habitacional era de 141 mil domicílios na Região Metropolitana de Belo Horizonte e os Movimentos Sociais sugerem que esse índice tenha chegado a 150 mil em 2015 (1). Nesse contexto, famílias se organizam, na maioria das vezes com o apoio dos movimentos sociais de luta urbana, e ocupam terrenos ociosos para construírem suas moradias. Essas ocupações estariam inseridas no contexto que Milton Santos denomina como “circuito inferior”, onde imperava a informalidade, a ilegalidade, produções de baixa qualidade e o emprego de tecnologias tradicionais. Desse modo, estes países eram marcados, segundo Santos (2), “por enormes diferenças de renda na sociedade, que se exprimem, ao nível regional, por uma tendência à hierarquização das atividades e, na escala do lugar, pela coexistência de atividades de mesma natureza, mas de níveis diferentes” (2003, p. 21). Para Botelho (2007, p. 60), o circuito inferior compreendia um setor de construção de moradia geridos pelos próprios moradores em loteamentos clandestinos ou áreas de ocupação e é nesse contexto que as Ocupações Urbanas surgem: os moradores constroem e gerem suas casas em áreas da cidade pouco (ou nada) urbanizadas. Ermínia Maricato (2009, p. 36) afirma que a produção informal se amplia, já que o mercado se restringe às camadas de mais alta renda e o investimento público no Brasil é escasso, afinal “todos moram em algum lugar” (MARICATO, 2009, p. 36). As diversas tentativas de implementação de programas habitacionais acabaram se mostrando ineficazes e fortes reprodutores da lógica do capital sobre a terra, através da construção de conjuntos que por vezes não atenderam à demanda da classe realmente pobre do país. A lógica urbana se reafirma, assim, rendida aos interesses do capital e o Estado disposto a legislar a favor de um espaço urbano que favoreça a segregação socioespacial, distribuindo a cidade de forma desigual através da diferenciação sobre o custo da terra urbana e através da concentração dos investimentos em infraestrutura nas áreas centrais e nos bairros de classes média e alta das cidades, excluindo as regiões periféricas, ocupadas, necessariamente, devido à falta de oportunidade de compra na cidade formal.

(1) Informação divulgada no site das Brigadas Populares em 02 de fevereiro de 2015 (2)Para Milton Santos (2003, p. 37-38), haviam dois circuitos nos países subdesenvolvidos: o circuito superior, voltado para as classes de renda média e alta, que caracterizava-se pelo emprego de tecnologias modernas e produção de bens de alta qualidade (urbanização da cidade formal) e o inferior.

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A partir de 1988, com a nova Constituição, muitas leis surgiram para incentivar a função social da propriedade e controlar a valorização monetária do bem imóvel. Instrumentos legais foram pensados com a intenção de reduzir o monopólio dos proprietários fundiários na luta contra a mercantilização da terra urbana brasileira. O que ocorre, a partir da década de 1990, é um confronto entre esse marco regulatório para a urbanização das cidades e o projeto liberal para a desregulação do mercado. A partir daí um conflito urbano passa a compor o cenário da luta urbana brasileira, segundo Luciana Corrêa do Lago (2012, p. 9): “empresas do setor construtivo e movimentos sociais organizados nacionalmente disputam a apropriação e a gestão do fundo público para a habitação”. Novos programas habitacionais surgiram para compor alterações no panorama da habitação social no Brasil a partir de 2003, no governo Lula: o Programa Crédito Solidário (PCS) – fruto das reivindicações dos movimentos sociais – foi criado em 2004 para subsidiar construções autogeridas por cooperativas ou associações comunitárias. O PCS cobria custos com aquisição e regularização do terreno, construção e seguros. Para Quinto (2007), o valor insuficiente do crédito inviabilizava as propostas nas quais o poder público não oferecesse a doação dos lotes e provesse a infraestrutura necessária. Além disso, afirma que haviam problemas com relação à localização dos empreendimentos, em locais periféricos com terrenos sem qualidade e sem infraestrutura, acesso restrito a comércios, transportes, escolas, postos de saúde, etc. Na época do lançamento do PCS, havia uma escassez de recursos destinados à produção de habitação de baixa renda. Já a criação do Programa Minha Casa Minha Vida, em 2009, estabeleceu um marco histórico “pelo volume de recursos aportados pelo Estado em habitação” (LAGO, 2012), o que impulsionou o crescimento do mercado imobiliário. Mais tarde, o PCS seria incorporado ao Programa Minha Casa Minha Vida – Entidades (MCMV-E), que era muito mais atrativo ao beneficiário, que devia possuir renda de até três salários mínimos e ser representado de forma associativa por uma Entidade Organizadora sem fins lucrativos. Para Silke Kapp (2012), as políticas nacionais que incluem processos participativos – como, por exemplo, o MCMV-E – peca com a falta de arranjos institucionais adequados às diversas formas de gestão e reconhece “uma retórica de democratização (2012, p. 475), enquanto legislações e rotinas frequentemente impendem que decisões sejam de fato tomadas pelos habitantes”. Dentro dessa lógica, o PMCMV ganhou força e atraiu interesses de construtoras e prefeituras, pelo grande retorno financeiro e político. Em uma análise sobre o atual quadro do Programa Minha Casa Minha, Denise Morado Nascimento (2016, p. 160) afirma que, mesmo que o poder público se esforce em produzir grandes quantidades de unidades habitacionais com a pretensão de reduzir o déficit habitacional, há uma convergência para que sejam atendidos os interesses econômicos e para que os argumentos políticos se sobressaiam em detrimento às reais demandas habitacionais da população de baixa renda. Ou seja, os programas habitacionais em geral acabam servindo como base de lucro para grandes construtoras, que se valem do princípio do Estado em buscar oferecer grandes quantidades de conjuntos habitacionais entregues em detrimento à qualidade dos mesmos. Ainda que a tentativa seja a entrega de grandes quantidades de unidades habitacionais, o programa está longe de conseguir suprir a demanda por moradia. Em Belo Horizonte, por exemplo, o déficit habitacional era de 78.340 unidades em 2013 segundo a Fundação João Pinheiro (2013). A Urbel (2015) indica que até 2015 haviam sido entregues 2.705 unidades residenciais do Minha Casa Minha Vida, ou seja, 3,45% do déficit total. A estimativa, ainda segundo dados da Urbel, é que sejam entregues 23.973 unidades até o final de 2016, o que representa apenas 34% do déficit. Esses programas trazem consigo problemas que são inerentes à lógica capitalista sobre o ramo imobiliário e sobre a propriedade: na cidade formal, dotada de infraestrutura, comércio, possibilidade de melhor acesso ao transporte público, etc. não cabe a moradia de interesse social. O alto custo da terra – definido pela própria lógica de investimento em infraestrutura urbana – impossibilita que pobres residam nessas regiões, o que determina que as áreas mais afastadas dos centros urbanos consolidados recebam os conjuntos habitacionais de interesse social. Para Morado Nascimento (2016, p.160) “a associação Estado-capital impõe à cidade a moradia financiada como produto massificado de apartamentos genéricos nas periferias da cidade, sem urbanidade e precarizadas pela falta de serviços públicos”. Em contramão a isso, as Ocupações Urbanas se conformam em um movimento de liberdade para a criação de uma outra cidade, ainda que, como afirma a autora, “em terrenos precários e condições sociopolíticas vulneráveis e até mesmo violentas” (2016, p.161).

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Na história, os movimentos sociais se estruturam de modo a reivindicar a autogestão da propriedade pela classe trabalhadora: uma forma de produção associativa e comunitária que não é levada em consideração nas normas que regulamentam o uso dos recursos públicos para moradia social. Trata-se de propor uma outra forma de produção-gestão, capaz de inibir o processo de especulação imobiliária e alterar o padrão de urbanização imposto pelas empresas do setor imobiliário, com a intenção de combater a ocupação hegemônica dos espaços urbanos. Para Denise Morado, “há um dissenso entre como o Estado governa a cidade – políticas públicas urbanas – e o que os cidadãos querem da cidade” (2016, p.147). A autora defende que, para além do direito ao acesso à cidade, os movimentos sociais de luta urbana reivindicam o que Lefebvre chama de “direito à vida urbana”, que, segundo David Harvey (2013), é “o direito de decidir sobre a cidade que se quer”. O ideal da “casa própria do trabalhador” é fortemente difundido na história e traz consigo uma série de implicações socioeconômicas e políticas. A propriedade privada é um princípio do capitalismo que, quando se depara com a luta popular (e dos trabalhadores) em defesa da propriedade pública – como ocorreu em Londres na década de 1970 -, defende a disseminação da casa própria como uma proteção ao patrimônio individual conquistado. Para Harvey, [...] a vulgarização da casa própria, individualizada, é vista como vantajosa para a classe capitalista porque estimula a fidelidade de pelo menos uma parte da classe operária ao princípio da propriedade privada, além de promover a ética de um ‘individualismo possessivo’ bem como a fragmentação dessa classe em ‘classes de habitação’ constituídas de inquilinos e proprietários. (1982, p. 13).

Nesse sentido, a realidade das ocupações urbanas brasileiras – que absorve estes elementos da lógica capitalista – mostra aparente contradição: se por um lado os movimentos sociais lutam por uma outra forma de conformação urbana (menos hegemônica e excludente), por outro, esbarram no princípio de propriedade privada e na possibilidade de retorno financeiro aos futuros moradores dos imóveis ocupados. A legislação dos programas de habitação social vigentes acaba por reproduzir a lógica mercantil sobre a propriedade, isentando-se da discussão sobre o conceito de propriedade coletiva e de “autogestão urbana”, que, de acordo com Martha Schteingart (1990), é a “cogestão exercida por organizações populares e instituições públicas com autonomia dos primeiros [...] na definição de novos critérios de distribuição e regulação dos recursos públicos”. Sendo assim, a discussão deve abarcar o conceito de propriedade coletiva da terra que, para Lago, é uma barreira à especulação fundiária e ainda não faz parte da agenda de negociações do Estado. Lago (2012) coloca em xeque o padrão de habitação popular moralmente aceito no Brasil, bem como a própria noção de “habitação” e afirma que os movimentos sociais reivindicam “um conjunto de práticas cotidianas que vão além dos atos elementares da produção da vida e não se restringem à vida privada” (2012, p. 11). Para Dowbor (2007), há de se reconhecer, além da produtividade econômica, resultados que levem em consideração a qualidade de vida e o progresso social.

REFERÊNCIAS BOTELHO, Adriano. O Urbano em Fragmentos: a produção do espaço e da moradia pelas práticas do setor imobiliário. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2007. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização do texto: Juarez de Oliveira. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 168 p. (Série Legislação Brasileira). BRIGADAS POPULARES. Manifestação na Porta da Prefeitura: Ocupações Unidas na Luta por Moradia Digna e Contra Despejos. Disponível em: <http://brigadaspopulares.org.br/?p=944.>. Acesso em: 30 de mai de 2016. 14

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DOWBOR, Ladislau. Democracia Econômica: um passeio pelas teorias. Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil, 2007. Disponível em: <http://dowbor.org>. Acesso em: 01 de Novembro de 2015. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO – FJP. Déficit Habitacional no Brasil. Belo Horizonte, FJP. 2013. ______. Nota técnica 1: Déficit Habitacional no Brasil 2011-2012 – Resultados Preliminares. Belo Horizonte, FJP. Disponível em: http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman/cei/deficit-habitacional/363-deficit-nota-tecnica-dh-2012/file. Acesso em: 20 de Maio de 2016. HARVEY, D. O trabalho, o capital e o conflito de classes em torno do ambiente construído nas sociedades capitalistas avançadas. Espaço & Debates, São Paulo, n.6, p. 6-35, jun./set. 1982. ______. The New Imperialism. Oxford University Press, 2003. KAPP, Silke. Direito ao espaço cotidiano: uma moradia e autonomia no plano de uma metrópole. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez. 2012. LAGO, Luciana Corrêa. Autogestão habitacional no Brasil: utopias e contradições - Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2012. MARICATO, Ermínia. Por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação. In: Cadernos Metrópole. Rio de Janeiro, n.21, 1.sem., 2009 NASCIMENTO, Denise Morado. As Políticas Habitacionais e as Ocupações Urbanas: dissenso na cidade. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 145-164, abr 2016. SANTOS, Milton. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. 2.ed. São Paulo: EDUSP, 2003. SCHTEINGART, Martha. Aspectos teóricos y prácticos de la autogestión urbana. Sociológica: México, 1990.

URBEL. Situação do Minha Casa Minha Vida em BH, 2015. Disponível em: http://portalpbh.pbh.gov. br. Acesso em: mar 2016.

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Enquanto nรฃo hรก verba Pra tijolo e concreto Um lote pode ser Milharal

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entrevista:

Sobre a sua militância, a forma como o trabalho de assessoria técnica e política vêm sendo desenvolvidos e como avalia as ações na Ocupação Eliana Silva / RMBH

Poliana Souza

Militante do MLB (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas) Coordennadora da Ocupação Eliana Silva (Belo Horizonte - MG)

Sou moradora da Ocupação Eliana Silva e faço parte da coordenação nacional do MLB (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas) há, mais ou menos, 4 anos. Conheci o Movimento (MLB) através da Ocupação. Em um primeiro instante porque eu precisava de uma luta para morar. Eu já tinha outras perspectivas políticas, por ter participado de algumas ONGs, mas ainda não tinha me engajado nessa luta política. Dentro da ocupação eu conheci o Movimento Social. Inclusive antes de ocupar, porque a Ocupação existe antes de, de fato, entrarmos no espaço. As pessoas são preparadas antes, num processo de conscientização. Eu participei de reuniões durante 9 meses antes de entrar no terreno e nesse processo eu fui conhecendo o movimento, fui me interessando pela causa e quando ocupamos o terreno onde hoje é a Eliana Silva, eu ingressei na equipe de coordenação. O MLB entendeu que não adianta ocupar por ocupar, até mesmo porque a nossa luta não é só pelas quatro paredes. Isso não resolve o problema de ninguém. Construir uma casa sem disponibilidade do serviço básico, escola, transporte, saúde e sem entender porque estamos ocupando, vamos acabar fadados a viver a vida inteira sob a exploração capitalista ou até mesmo sob a opressão que a gente já vive no cotidiano. O trabalho do MLB é anterior, mesmo, de preparação e conscientização. Se você chegar perto de um morador da ocupação e perguntar pra ele porque ele está ocupando, ele vai te dizer que é porque ele não tinha casa e porque o terreno não cumpria sua função social. E todos entendem que a nossa luta não termina com as quatro paredes e que nós precisamos lutar por outras coisas: o processo de urbanização, de regularização da casa própria, a questão do acesso à escola, ao transporte... todas essas são lutas que a gente trava depois de ocupar e que são fruto do processo de conscientização política feito pelo trabalho de base anteriormente. A conquista da casa é uma porta de entrada pras outras lutas.

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Pra além disso, a questão não é “a minha casa”. “Minha casa” não segura despejo, não garante melhoria de vida pros meus filhos... ela é só um teto para que eu consiga deitar e dormir todos os dias. A conquista da casa é uma brecha para reivindicarmos outras coisas que são de interesse coletivo. Na Eliana Silva, por exemplo, nós conseguirmos dar início à construção uma creche porque era uma necessidade coletiva. Estamos lutando pela biblioteca, que ainda é uma luta bem embrionária. Há conquistas que são maiores, que beneficiam a região, como, por exemplo, a escola que existe em frente à Ocupação: nós lutamos para que ela atendesse toda a população que mora ali. Temos a luta pela horta coletiva, que é muito forte. As conquistas coletivas são o que fortalecem a Ocupação e fazem com que a luta continue. Se não houver espaço para discussão coletiva, a Ocupação morre. As assembleias são prova disso. São espaços deliberativos, onde criamos vínculos. Pensa só: existe um trabalho anterior, onde a gente conhece as pessoas que farão parte da rede de vizinhança. A partir daí nos aproximamos, criamos laços de amizade... mas se a gente ocupa e não mantém o espaço de vínculo para sempre, cada um vai cuidar da sua casa, fazer um muro e evitar qualquer contato com quem tá morando ao lado. Até atividades, como a oficina de páscoa, que acontece todo ano na ocupação, contribuem para união da comunidade. A gente teve uma experiência muito boa com a assessoria técnica na Ocupação Eliana Silva. Especialmente com o Práxis (UFMG), mas pra além dele. Temos vários profissionais que são apoiadores da luta, além do pessoal da UFMG e da arquitetura: temos apoiadores do curso de medicina, temos advogados populares, estamos iniciando um processo com pessoas da área da pedagogia para ajudar no trabalho da creche. O Práxis, por exemplo, é um dos principais responsáveis pela solução do esgoto na Ocupação Eliana Silva. O trabalho com a Universidade foi anterior à Ocupação.

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pensamos o parcelamento, a divisão dos lotes... produzimos esse espaço em conjunto e foi um aprendizado para todo mundo. O Práxis chegou uma uma ideia muito definida do que seria o espaço, nós – como comunidade – pensamos uma coisa completamente diferente e tivemos que chegar a um consenso. Foi um processo coletivo, a ponto de um morador rabiscar o projeto porque tinha uma concepção diferente da dos arquitetos, e a solução acabar sendo acatada como melhor. Obviamente no primeiro contato houve esse estranhamento dos moradores, que não entendiam muito bem porquê aquele pessoal estava chegando e poderia dizer o tamanho na sua casa, o que eu tenho que ter, sendo que era ele quem estava na luta do dia a dia. Mas com o tempo houve uma aproximação e os moradores foram entendendo que a assessoria técnica poderia somar. Se o morador era pedreiro há 40 anos, esse saber não seria desconsiderado. No nosso projeto de parcelamento todos os moradores opinaram. Uma coisa que poderia ser um grande problema na ocupação acabou não sendo: com o planejamento urbanístico, chegamos à conclusão de que os lotes deveriam ter 63m², apenas. A princípio isso poderia ser um grandes problemas, mas, pelo trabalho feito anteriormente, pela conscientização e por termos construído isso juntos, os moradores aceitaram a condição e a partir daí fomos pensando em soluções para ocuparmos melhor esses espaços. No caso do esgoto, alguns assessores nem eram arquitetos ou engenheiros, mas tinham feito uma experiência de esgoto alguma vez na vida e isso permitiu que a comunidade tivesse muitas alternativas. Muitos moradores opinaram porque já tinham experiências anteriores e tinham uma noção do que poderia dar certo... chegamos, então, na solução do TVAP (Evapotranspiração), que é um sistema que utiliza bananeiras e outros tipos de vegetação, onde os dejetos ficam depositados em pneus enterrados, que requer manutenção em até 7 anos e na Eliana Silva essa solução deu muito certo. A gente não queria esgoto a céu aberto, não tinha alternativa de fazer fossa, pelos tamanhos dos lotes, existe uma nascente e nós estávamos preocupados em não jogar o esgoto na rua e acabar poluindo a nascente, porque com certeza isso acabaria acontecendo se não houvesse assessoria técnica auxiliando e não existia caída para um sistema de esgoto, então essa solução nos atendeu bem.

ma... foi aí que os moradores viram os alunos e professores da universidade de chinelo, bermuda e botando a mão na massa... isso acabou criando um vínculo ainda maior, porque você para de enxergar o outro como diferente só porque ele tem um diploma. Ao mesmo tempo a universidade enxerga os moradores de outra forma, porque entende o trabalho que eles fazem no dia a dia. Todos os sistemas de esgoto que foram feitos deram certo e a partir daí os próprios moradores foram modificando as soluções de acordo com as necessidades específicas. Não houve uma relação de poder do projeto. A solução que a universidade levou não estava fechada. A questão era: temos essa ideia e como podemos construir juntos? Até mesmo porque quem vai executar? Os moradores. Há um problema entre a Universidade, o Movimento de luta social e as ocupações, na minha opinião: a falta de inserção da população no espaço da universidade. Muitas vezes as experiências dos moradores das ocupações são desconsideradas. A formação de vida de um pedreiro de 40 anos de profissão muitas vezes não conta. A própria inserção da juventude da periferia dentro das universidades é um problema. A universidade sai do seu espaço e vai pras ocupações, mas as ocupações não conseguem sair dos seus espaços para entrarem na universidade. A gente precisa pensar em como pode ser feita essa troca de experiências. Muita coisa que os alunos estão estudando agora e maquinando como resolver, a galera do bairro já fez. Já tá resolvido e a universidade apenas desconsidera. Da mesma forma como cresce a participação da universidade nas ocupações, o contrário também precisa acontecer.

No início de tudo, aconteceu uma aula sobre o siste-

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Foto: Jhonatan Melo

OCUPAÇÃO NOVO HORIZONTE 1 ano de luta! A gleba, com área de – aproximadamente - 6.500 m², pertence, em tese, à construtora PK Engenharia seria utilizada para a construção de edifícios residenciais. A construtora deu início aos trabalhos de fundação e movimentação do terreno, mas, há cerca de 3 anos – segundo informações dos moradores locais – abandonou o empreendimento. Em junho de 2015 o terreno foi ocupado e batizado como Ocupação Novo Horizonte, onde 53 famílias contam com os apoios político das Brigadas Populares e jurídico do Coletivo Margarida Alves.

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LINHA DO TEMPO 2012

- Gleba desocupada há 15 anos

2013

- A construtora PK Engenharia inicia a construção de um condomínio, mas abandona a obra

JUNho/2015

AGOsto/2015

- Mutirão de ocupação e parcelamento do terreno - Ação de reintegração de posse é distribuída pela PK Engenharia - Liminar favorável à reintegração é concedida - Moradores, em contato com a Ocupação Dandara, procuram apoio político das Brigadas Populares e assessoria jurídica do Coletivo Margarida Alves

SETembro/2015

- Coletivo Margarida Alves entra com recurso - Liminar suspende o despejo. 1ª vitória judicial da Ocupação. - Início de poucas construções em alvenaria

FEVereiro/2016

- 2ª Decisão judicial favorável à Ocupação. - Construções em alvenaria começam a ser erguidas em maior número

MARço/2016

- A construtora PK entra com recurso para reintegração de posse. Recurso ainda em julgamento.

21 Imagem: Google Maps. Adaptada por: Jhonatan Melo


DIÁRIO DE BORDO:

A experiência da assessoria técnica na Ocupação Novo Horizonte.

Me aproximo, então, dessa Ocupação de forma mais contundente, através das Brigadas Populares, em Setembro de 2015. A gleba havia sido ocupada recentemente e haviam poucas casas de alvenaria sendo construídas, com predominância dos barracos de madeirit. O terreno havia sido parcelado e as ruas abertas pelos próprios moradores e a conformação urbanística estava consolidada, com o loteamento para subdivisão da gleba em lotes privados, o que é comum na lógica de organização das Ocupações Urbanas da RMBH. Além disso, como dito anteriormente, os cortes e platôs deixados no terreno pela Construtora PK Engenharia foram fortes condicionantes para a organização espacial da comunidade. Não dava para desconsiderar isso.

Foto: Jhonatan Melo

Entendemos que já havia ali um modelo urbanístico aplicado e que não era necessário intervir de forma a alterá-lo completamente: nós poderíamos propor outras relações com o espaço e discutir sua inserção na lógica urbana da cidade formal por outros caminhos, sem, necessariamente, impor uma lógica que, teoricamente, fosse mais transgressora e anticapitalista (como a implantação de lotes coletivos, por exemplo). Afinal, o princípio da imposição é, por si só, uma ferramenta ordenadora e caracteriza a organização do espaço urbano capitalista. Havia urgência em fazer com que a ocupação começasse rapidamente a se consolidar, mas os moradores, obviamente, estavam inseguros em investir na construção de suas casas com o risco de serem despejados pela justiça. O primeiro ganho da causa jurídica trouxa à Ocupação um sentimento de segurança e a assembleia de divulgação da resposta judicial favorável se encerrou com um tom de vitória. A partir daí as Brigadas Populares e o Coletivo Margarida Alves fizeram uma forte campanha de incentivo à construção das casas, fator que fortalece, inclusive, os argumentos jurídicos contra um possível despejo. Foi a primeira grande vitória coletiva da comunidade!

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A partir daí alguns moradores, que já despunham de reserva financeira, deram início às construções das casas. Mas ainda eram poucos. Os coordenadores da ocupação sentiam que a comunidade ainda estava desarticulada e por algum motivo, desmotivada a construir (salvos os casos em que não possuíam dinheiro para investir na obra). Foi então, que, em uma assembleia, levantou-se a discussão – muito puxada pelos coordenadores e pelas Brigadas Populares - sobre a consolidação espacial da comunidade e postas ao coletivo as razões da aparente falta de motivação e articulação entre os moradores. Alguns problemas foram identificados rapidamente: muitas famílias têm filhos e os pais não sentiam segurança em leva-los para a comunidade, que ainda não possuía muitas casas construídas e tampouco espaços de lazer, onde as mães pudessem deixar os filhos com tranquilidade. Além disso, poucos moradores possuíam um vínculo mais forte de vizinhança e o trabalho coletivo dependia (e depende) desse processo de aproximação. Com esses elementos expostos, surgiu a ideia da primeira construção efetivamente coletiva da Ocupação Novo Horizonte: o Parquinho! A assembleia, como espaço político, serviu para traçarmos algumas diretrizes de implantação e para desenharmos estratégias que viabilizassem essa construção. Foi formado um Grupo de Trabalho (GT) que ficaria responsável por essa articulação, onde se decidiu que: coletaríamos doações de materiais; construiríamos por meio de mutirão; utilizaríamos a internet para divulgação da ação e como forma de chamar pessoas de fora; seria feito um projeto para que chegássemos à conclusão de quais materiais seriam necessários. Obviamente, os moradores entenderam que essa seria uma responsabilidade minha, afinal era eu o acadêmico da arquitetura...

23 Foto: Pedro Vianna


+16,20

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PARCELAMENTO DA GLEBA +8,00

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AS OCUPAÇÕES URBANAS DA REGIÃO METROPOLITANA DE BELO HORIZONTE Já que os programas sociais de habitação não conseguem superar a felicidade do alcance do “sonho da casa própria” e possuem um processo de planejamento de habitação social “voltado para a produção quantitativa de unidades, em um processo alienado da análise macro de dinâmica sócio territorial” (NASCIMENTO, 2016, p. 152) os Movimentos Sociais e as Ocupações Urbanas – especificamente na Região Metropolitana de Belo Horizonte – se articulam na luta urbana pelo direito de decidir sobre a própria cidade. Os coletivos políticos que atuam de forma mais veemente na RMBH são as Brigadas Populares (BPs) e o Movimento de Luta pelos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), mas outros grupos também compõem o cenário de luta urbanas em apoio às Ocupações: o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), o Movimento de Luta Pela Moradia (MLPM), o Fórum Moradia, a Frente Terra e Autonomia (FTA), o grupo Arquitetos sem Fronteira (ASF), o Fórum de Moradia e a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Esses agentes passam a reivindicar, então, a legitimação das Ocupações Urbanas como “alternativa[s] à provisão habitacional para os pobres” (NASCIMENTO, 2016, p. 152), levando à discussão a crítica ao modelo social excludente e colocando às vistas o descaso do Poder Público com a vida e com os direitos humanos. No caso da RMBH, em contraste com o panorama das Ocupações Urbanas de São Paulo, por exemplo, o diálogo com o Estado é escasso e isso muito se deve à falta de incentivo público para a reserva de um orçamento destinado à autoconstrução da moradia de interesse social e pelo fato de o Estado não reconhecer a experiência das Ocupações Urbanas como possibilidades de provisão de moradia. Segundo Rafael Bittencourt (1), As ocupações [na RMBH] surgem num modelo onde não há diálogo nenhum com o Estado [...] não há possibilidade de financiamento da experiência das Ocupações Urbanas por parte do Estado, que talvez dariam mais possibilidades de se criar formas diferentes de tipologias, de produção social do espaço, que é o que acontece em São Paulo. (Rafael Bittencourt, 2016)

A RMBH soma, atualmente, um total de 25 ocupações urbanas, que surgem desde 1996, com a Ocupação Canto do Rio, em Nova Lima.

(1) Formado em Ciências Sociais e mestrando em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais, militante das Brigadas Populares. Entrevista realizada em maio de 2016. Versão completa na página 32.

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11

Vespasiano 18

Santa Luzia

Ribeirão das Neves

7 13

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14 2

4

Contagem

15

12

Sabará 16 23

19 22

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8

Betim 9

20

Ibirité

1

24 5 3 17 10

Nova Lima 6

0

26

6km

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Essas comunidades abrigam cerca de 14.269 famílias e um número estimado de 55.000 moradores, segundo dados do Praxis UFMG (1) . As Ocupações Urbanas [ocupações planejadas – ou organizadas (2), segundo os movimentos sociais – e ocupações espontâneas (3)] existentes na RMBH, com indicação numérica em ordem cronológica são:

A experiência das Ocupações traz consigo a prova de que a insubordinação à realidade capitalista deve se aliar à ação prática, à construção real, inclusive por, talvez, não haverem outras alternativas de provisão habitacional aos moradores e por se tratar de algo que é maior do que uma experiência teórica de resistência. Essa fissura é, levando em consideração as definições de Holloway, “uma insubordinação aqui-e-agora, não um projeto para o futuro” (2016, p. 28), já que para Hakim Bey (1985/2001, p.16 apud HOLLOWAY, 2013), não podemos esperar por uma revolução futura, pois a ideia de revolução futura se tornou inimiga da emancipação. As Ocupações se apresentam como um modelo prático de micropolítica, “através da qual os envolvidos tornam-se agentes ativos no campo de forças e interesses” (MOUFFE, 2006). Compõem uma realidade onde o senso de coletividade sugere uma lógica de resistência ao modelo urbano capitalista, o que pode ser entendido por John Holloway como uma fissura ao capitalismo, onde “a solidariedade social [...] gera formas de viver e organizar que funcionam contra a lógica do capital” (2013, p. 26).

(1) Relatório parcial sobre as ocupações urbanas consolidadas na Região Metropolitana de Belo Horizonte, em processo de elaboração pelo PRAXIS/UFMG, 2016. Ainda não publicado. (2) Ocupações que são pensadas pelos Movimentos Sociais e demandam a formação de um grupo de famílias com o intuito de ocuparem uma gleba específica, previamente escolhida pelos coletivos. (3) Quando as famílias se organizam coletivamente e ocupam uma gleba, sem o acompanhamento dos Movimentos, que – geralmente – se inserem posteriormente na comunidade.

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A experiência das Ocupações traz consigo a prova de que a insubordinação à realidade capitalista deve se aliar à ação prática, à construção real, inclusive por, talvez, não haverem outras alternativas de provisão habitacional aos moradores e por se tratar de algo que é maior do que uma experiência teórica de resistência. Essa fissura é, levando em consideração as definições de Holloway, “uma insubordinação aqui-e-agora, não um projeto para o futuro” (2016, p. 28), já que para Hakim Bey (1985/2001, p.16 apud HOLLOWAY, 2013), não podemos esperar por uma revolução futura, pois a ideia de revolução futura se tornou inimiga da emancipação. Não se afirma aqui que as Ocupações Urbanas sejam respostas absolutas e definitivas à deficiência habitacional e à problemática da ocupação hegemônica do espaço, fruto da mercantilização da terra e dos interesses capitalistas em torno da construção (e dos conjuntos habitacionais), mas as Ocupações Urbanas são as QUESTÕES, as fissuras, e como tal, não são espaços puros e livres das influências capitalistas em sua produção e nas relações que se estabelecem, mas são – pela definição de Holloway – “uma rejeição comum da lógica coesiva do capitalismo e a tentativa de criar algo de diferente” (2013, p. 25). Isadora Guerreiro (4) integrante do Coletivo Usina CTAH (São Paulo, SP), defende que as ocupações urbanas são as experiências necessárias para a criação de “resistências produtivas”, ainda que reproduzam elementos da lógica capitalista em suas relações: A Ocupação Urbana não está dentro de uma lógica socialista. Não se trata de uma bolha. Os materiais de construção vêm da indústria... existem relações que são completamente capitalistas. O meu entendimento é que não é um dia de revolução que vai transformar tudo. A gente precisa experimentar as formas de socialismo agora, ou não haverá construção do socialismo. É necessário criar resistências produtivas para, daí, conseguir construir territórios livres. É necessário propor novas formas de construir a cidade, não só conformar uma resistência reivindicativa. (Isadora Guerreiro, 2016).

Essa luta se estende para além da reivindicação do direito à moradia, sendo encarada como um posicionamento político de um enfrentamento à lógica de organização das cidades, de distribuição dos sistemas de saúde, transporte, educação, dos equipamentos de lazer e é, inclusive, um espaço propício ao surgimento de novos tipos de relações sociais e de vizinhança. Poliana Souza (5), moradora e uma das coordenadoras da Ocupação Eliana Silva, defende que a luta urbana das Ocupações vai além do direito à construção das casas. Em entrevista, Poliana diz que: [...] todos [os moradores da Ocupação Eliana Silva] entendem que a nossa luta não termina com as quatro paredes e que nós precisamos lutar por outras coisas. O processo de urbanização, de regularização da casa própria, a questão do acesso à escola, ao transporte... todas essas são lutas que a gente trava depois de ocupar [...] a conquista da casa é uma porta de entrada para as outras lutas. Pra além disso, a questão não é “a minha casa”. A “minha casa” não segura despejo, não garante melhoria de vida pros meus filhos... ela é só um teto para que eu consiga deitar e dormir todos os dias. A conquista da casa é uma brecha para reivindicarmos outras coisas que são de interesse coletivo. (Poliana Souza, 2016).

Estes são exercícios da lógica do bem comum, que Dyer-Witheford defende como o embrião de uma nova sociedade quando afirma que “se a forma-célula do capitalismo é a mercadoria, a forma celular de uma sociedade para além do capital é o bem comum” (2007, p. 28 apud HOLLOWAY, 2013, p. 31). Para Thiago Canettieri , o trabalho político nas Ocupações Urbanas, conforma “uma dimensão constituinte, onde é possível construir novas relações espaciais e outras formas de sociabilidade, formas mais éticas e comunitárias”. Guilherme Boulos defende as Ocupações como uma espécie de, como ele denomina, “escola de luta”, “um despertar para sujeitos tratados pelo capitalismo a ferro e fogo nas periferias. Do chão da periferia segregada, muitos combates ainda poderão brotar”. (2014, p.70). (4) Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (2010). Ex-coordenadora do Coletivo Usina (CTAH). Entrevista concedida em abril, 2016. Versão completa na página 72. (5) Moradora e coordenadora da Ocupação Eliana Silva. Entrevista concedida em maio de 2016. Versão completa na página 18. (6) Mestre em Geografia pela PUC-MG, doutorando em Geografia pela(UFMG), militante das Brigadas Populares. Entrevista concedida em abril de 2016. Versão completa na página 42. 28

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REFERÊNCIAS BOULOS, Guilherme. Por que Ocupamos? Uma introdução à luta dos sem-teto. Revista ORG & DEMO, Marilia, v.15, n.1, p. 133 – 140, Jan/Jun, 2014. HOLLOWAY, J. Fissurar o Capitalismo. São Paulo, Publisher Brasil. 2013. MOUFFE, C. Por um Modelo Agonístico de Democracia. In: Revista Sociologia Política. Curitiba, v. 25, 2006. pp. 165-175. NASCIMENTO, Denise Morado. As Políticas Habitacionais e as Ocupações Urbanas: dissenso na cidade. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 145-164, abr 2016.

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31 Foto: Jhonatan Melo


entrevista:

Sobre a sua militância nos movimentos sociais, a forma como desenvolve o trabalho de assessoria política e como avalia as ações na RMBH

Rafael Bittencourt

Formado em Ciências Sociais, Mestrando em Arquitetura Militante das Brigadas Populares e assessor político em Ocupações Urbanas Eu me insiro nesse ciclo de lutas de Ocupações Urbanas que surge em Belo Horizonte em 2006, na Ocupação Caracol. Antes disso, haviam as Ocupações Torres Gêmeas e a Ocupação Corumbiara (barreiro) em 1996. De 1996 a 2006 as Ocupações Urbanas em Belo Horizonte não aparecem. Foi em 2006 que a Ocupação Caracol retomou essa história e foi quando eu conheci as Brigadas Populares e me inseri no movimento. A partir daí acompanhei as Ocupações das Brigadas Populares que eram verticais (João de Barro I, II e III), acompanhei a Ocupação Camilo Torres, que foi a primeira ocupação em terreno horizontal desse novo ciclo, depois disso veio a Dandara e por aí vai. Eu concluí uma pesquisa recentemente que aponta a existência de 24 ocupações urbanas na Região Metropolitana de Belo Horizonte, mais ou menos 14 mil famílias e uma estimativa de 60 mil pessoas. Eu acompanhei de perto a maioria dessas experiências. Eu entendo que a assistência técnica modifica e qualifica a natureza da experiência das Ocupações Urbanas. O conhecimento técnico geralmente existe sob o monopólio das classes dominantes e ao socializar essa forma de conhecimento na experiência das Ocupações Urbanas, estamos colocando-o a serviço dos interesses e da realização dos direitos das camadas populares. Obviamente isso traz consigo uma série de contradições: existe um processo de formação do conhecimento técnico que se dá nas faculdades e nos campos de saberes que foram forjados pelas elites... ao aplicar esse conhecimento em colaboração e troca com os setores populares, um conjunto de questões, evidentemente, vai emergir para evidenciar que esses conhecimentos também contribuem para o monopólio do saber, mas isso não deve deslegitimar essa experiência da confluência entre os saberes técnicos e a experiência das Ocupações Urbanas, que é nitidamente popular, por garantia de direitos. Desde que começou esse ciclo de ocupações urbanas (após 2006) eu vejo as Ocupações Camilo Torres e Dandara como os pontos de aproximação desse saber técnico à realidade das Ocupações Urbanas, 32

através, inclusive, do trabalho do Tiago Castelo Branco. A partir daí se dá início a um processo de uma confluência de saberes que é mais significativa. Na Ocupação Dandara é possível ver o processo da construção dessa experiência, da concepção do plano urbanístico e da disponibilização do saber técnico a serviço dos moradores de uma forma mais rígida e talvez um pouco mais verticalizada. O Tiago apresentou uma primeira proposta já pronta e ela é sistematicamente negada e ao ser negada, os moradores acabam por construir o seu inverso. Ou seja, não houve uma síntese. Talvez o resultado pudesse ser muito mais interessante a ponto de determinar toda a história das ocupações urbanas de Belo Horizonte. Que dilema era esse? O Tiago apresentou uma proposta de lotes coletivos, que foi recebida com estranhamento pelas famílias, porque há uma mentalidade coletiva sobre a posse do lote privado, que é uma construção histórica e cultural do Brasil. Então os moradores negam essa experiência e defendem o lote privado de forma muito vigorosa, que é o que vinga no fim das contas. Se talvez já houvesse, nessa experiência, um processo de construção coletiva, o rumo poderia ter sido diferente. É claro que isso é uma hipótese, porque a questão do lote privado é muito difícil e complexa e a gente, ao estudar os planos urbanísticos das ocupações da RMBH, percebe que basicamente todos eles reproduzem o modelo do loteamento baseado no lote privado e na construção horizontalizada, porque é a tipologia que permite o desenvolvimento de uma série de práticas sociais que uma tipologia verticalizada não permite: desde a horta, até questões de terapia ocupacional, por existir a possibilidade de um fazer e um lazer no espaço do quintal, a possibilidade de geração de renda e por aí vai. Talvez seja necessário pensar uma outra forma de gestão que não fosse através do lote privado, mas ele é o modelo tradicional e essa é uma questão difícil.

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Nessa experiência da Dandara eu vejo que na própria prática das ocupações o processo vai se modificando. Na Ocupação Guarani Kaiowá, por exemplo, o processo foi muito mais compartilhado. O plano foi basicamente desenhado com diretrizes que os moradores traçaram. O terreno, por exemplo, na Guarani, possui uma centralidade em duas grandes mangueiras, que foi o local onde o acampamento provisório de constituiu. Então esse foi o primeiro espaço comum que se constituiu na Ocupação e foram os moradores que determinaram que aquele local seria a praça da comunidade. Sinto que, nesse caso, houve uma sensibilidade e uma abertura maiores da parte do Tiago e o processo de construção foi todo realizado junto com os moradores. Apesar de que na Dandara também, porque ao meu ver existe o processo de planejamento e depois o processo de apropriação dos planos. Hoje os moradores da Dandara sentem muito orgulho do plano feito por eles mesmos, dentro daquele contexto de negativa do plano entregue pelo profissional técnico. O conhecimento técnico expresso no plano acaba sendo apropriado pelos moradores. Hoje em dia temos um campo enorme que envolve vários projetos de extensão, vários grupos de pesquisa, vários arquitetos e outros profissionais e entidades. Então existe uma rede constituída em torno da discussão do espaço urbano das ocupações e isso tem fomentado uma reflexão muito maior sobre como atuar nesse contexto de forma menos assimétrica, mais horizontal, mais colaborativa... e essa reflexão faz parte de um processo histórico que nós estamos vivendo, que talvez possa ser visto como resultado de forma mais objetiva em próximas experiências. Não há um trabalho sistemático de reflexão. O do Tiago Castelo Branco foi o primeiro e percebo que outros estão surgindo, se pretendendo a refletir sobre esse processo e dessa reflexão podem se abrir outros campos de visão sobre a problemática. A experiência da RMBH é muito diferente, por exemplo, da experiência de São Paulo, que se forja na década de 80, onde a discussão gira muito em torno da autogestão. Uma das diferenças é que em São Paulo eles conseguem se apoderar da prefeitura, quando a Luiza Erundina assume o governo municipal, numa gestão conhecida por ser democrática e popular, onde havia uma participação muito grande dos movimentos sociais. Então o Estado dava condições pro financiamento da moradia por via da autogestão, coisa que em Belo Horizonte nunca foi possível. A gente sempre foi contra o Estado aqui.

As ocupações surgem num modelo onde não há diálogo nenhum com o Estado, ao mesmo tempo que não há nenhum fomento e reconhecimento da experiência dos movimentos sociais. Tem o orçamento participativo, mas ele vai se tornando rarefeito e não há possibilidade de financiamento da experiência das Ocupações Urbanas por parte do Estado, que talvez dariam mais possibilidades de se criar formas diferentes de tipologias, de produção social do espaço, que é o que acontece em São Paulo. Dentro desse processo paulistano de autogestão, muito se discute sobre como os assistentes técnicos vão construir junto com os moradores e como vão construir um novo modelo de processo produtivo vai ser aberto para o coletivo, não baseado na simetria entre o capital técnico e o trabalho. Em Belo Horizonte o processo é mais voltado às práticas da autoconstrução. Acredito que, no caso de Belo Horizonte, há um processo autogestionário na elaboração dos planos urbanísticos e de apropriação do território a partir das diretrizes desses planos. Esse é um processo autogestionário, porque quem o faz são os arquitetos em colaboração com os moradores, mas tendo o arquiteto um protagonismo realmente maior por causa dessa assimetria natural, afinal é ele quem tem o conhecimento técnico, no sentido do desenho, mas quem aplica esse plano urbanístico? Os moradores. E fazem de forma mediada pelo saber popular. Então o arquiteto não constrói nada e orienta muito pouco. Os moradores executam os planos por via da autoconstrução. A mediação entre o plano urbanístico e a realidade é feita pelos moradores, em conjunto com os movimentos sociais e outros profissionais e apoiadores que estão no ceio dessa experiência. É uma forma de autogestão que se dá no uso e ocupação prática do solo. No processo de autoconstrução das residências e dos outros equipamentos do ambiente construído, o processo da autoconstrução é mais tradicional, onde o núcleo familiar é que pensa e elabora o seu espaço de vida. Ainda são poucas as experiências de assistência técnica para as residências das Ocupações Urbanas. E qual é o motivo? A demanda é gigantesca. Por exemplo, só na Ocupação Dandara são quase mil famílias... quantos arquitetos e profissionais precisariam acompanhar cada experiência e poder traçar uma forma de construção colaborativa, né? Que demanda mais tempo e trabalho... A grande parte das 14 mil residências das Ocupações na RMBH foram feitas de forma independente, sem assistência técnica. Na minha opinião o processo de construção nas Ocu-

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pações Urbanas é muito colaborativo. Houve uma imbricação e uma contaminação dos moradores das Ocupações e das assistências técnicas muito maior do que se esperava. Essa construção fez com que o processo se tornasse naturalmente mais participativo. Mas é claro que existe uma questão de diferenciação entre classes, que passa por hábitos, práticas, percepções e que está fundamentada na subjetividade. Desconstruir isso é muito difícil. O profissional liberal foi pintado como detentor do monopólio do saber. Desconstruir isso nas camadas populares é um processo histórico também. Isso não acontece na primeira ou segunda experiência. Em vários momentos percebemos, dentro desse processo, a reprodução dessas relações de hierarquia, que está embutida na própria percepção do profissional liberal que detém o conhecimento técnico. Na área da arquitetura, a potência de contaminação e imbricação de uma construção colaborativa é muito grande. Hoje eu vejo nas Ocupações Urbanas o desafio de pensar para além da tipologia que está colocada, do loteamento baseado em lotes privados. E o conhecimento técnico, nesse sentido, pode contribuir muito. O conhecimento sobre outras experiências em outros contextos históricos pode contribuir para a luta no espaço pelo direito à moradia. O conhecimento técnico entra aí: há uma capacidade de acúmulo histórico de outras experiências. Isso fica muito claro na obra do Paulo Freire, quando ele diz que existe o conhecimento conteudista, elaborado nas universidades, e existe o saber popular. Não podemos naturalizar o conhecimento científico, nem naturalizar o conhecimento popular. Precisamos promover uma imbricação entre os dois. Precisamos superar o paradigma do loteamento nas ocupações e o conhecimento técnico pode contribuir para isso.

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Foto: Jhonatan Melo


A AUTOGESTÃO POLÍTICA E TERRITORIAL A autogestão está relacionada ao direito dos trabalhadores de produzirem e gerirem suas moradias, de acordo com as necessidades coletivas e sob parâmetros de bem-estar que se distanciam da racionalidade lucrativa capitalista, que exclui a parcela pobre das áreas urbanas e confere valor monetário à terra e que dá suporte a mecanismos que fazem perdurar a hegemonia nos espaços urbanizados das cidades. Devido a isso, a luta pela autogestão da propriedade é levada como uma das principais pautas urbanas e políticas na discussão sobre o direito à moradia e à cidade. Na visão de Silke Kapp (2012), ainda os programas sociais participativos destinados à melhoria de assentamentos existentes acabam por reproduzir os procedimentos de urbanização da cidade formal, que, segundo a autora, são heterônomos, tendo em vista os processos que teoricamente dependem da participação popular, mas que acabam por desconsiderar as informações e opiniões dos indivíduos em detrimento do referencial técnico, econômico e/ou burocrático. Segundo Ferreira (2012, p. 117), a ideia de autogestão é anterior ao próprio capitalismo: operários ingleses, na primeira metade do século XIX, reconhecem a exploração sofrida em fábricas e se reúnem no chamado “cooperativismo revolucionário”, com a pretensão de gerirem autônoma e coletivamente os meios de produção. Seria a autogestão apenas a “produção pelos próprios produtores” ou, simplesmente, o “autogoverno”? Para Michel Albert (2000), autogestão tem a ver com a resposta que cada agente dá ao processo de decisões, à medida em que é afetado pelas consequências. Albert defende que não há uma única resposta ao processo de tomada de decisões coletivas e, sendo assim, os métodos de participação não podem seguir apenas a regra de “cada pessoa, um voto – vencendo a maioria”, ou apenas o consenso, ou a ditadura, etc. As decisões tomadas em grupo se diferem pelo fato de afetarem de forma diferente cada indivíduo e a forma como um método de tomada de decisões será escolhido deve considerar o contexto específico e os agentes diretamente afetados no processo. Para o Coletivo Usina-CTAH (2008), “em uma sociedade colonizada pela lógica do capital [...] deixar tudo a cargo da ‘demanda’ (ou do consumidor) apenas como forma de demonstrar – muitas vezes até cinicamente – que ela tem ‘poder de escolha’, acaba por reiterar [...] o que já é dado pelo capital como natural”. Silke Kapp (2012) cita uma entrevista com o psicólogo social Erich Fromm, onde se exalta uma nova forma de encarar os graves problemas em torno do regime capitalista e se propõe uma nova maneira de se encarar o regime socialista, que, segundo ele, não deve ser um regime como o em vigor na União Soviética, mas deve ser capaz de fazer crescer uma sociedade onde o lucro não seja o principal objetivo da produção, mas o uso; “na qual o cidadão individual participa do modo responsável no seu trabalho e em toda a organização social, e na qual ele não é um meio empregado pelo capital” (FROMM, 1958). Para a autora, o espaço cotidiano seria o palco para o exercício concreto de um direito à cidade que contrarie a lógica urbana capitalista: um espaço autonomamente produzido, onde os grupos locais determinam seus processos e os desenvolva ao longo do tempo.

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Esse “modelo” se foca nas “relações de vizinhança, na negociação e ação numa coletividade territorial, na capacidade de solucionar problemas [...] sem complexos mecanismos burocráticos” (KAPP, 2012). A autogestão deve ser uma alternativa democrática ao capitalismo [que impõe, segundo Guilherme Boulos (2014, p. 67), “o princípio do ‘cada um por si’”], onde os espaços administrativos sejam organizados com ampla participação popular, descentralizando, assim, o poder burguês ou burocrático. Para Abraham Guillén (1990) , o uso da ciência e da técnica de forma elitista explora e oprime os trabalhadores. Sendo assim, a autogestão deve contemplar meios onde os indivíduos sejam capazes de combinar o trabalho manual ao desenvolvimento do raciocínio de forma a conferir autonomia ao sujeito no processo de tomada de decisões. Deve ser uma possibilidade de democratização e redistribuição dos processos decisórios, para que se efetive a construção de uma cidade de todos. Para Denise Morado, baseando-se nessa visão, “[...] pressupomos que os moradores das ocupações urbanas tomam a cidade como um corpus político coletivo e estão interessados em viver sob outro modelo de cidade, onde as suas ações no espaço, portanto, ações humanas, prevaleçam sobre as escassas possibilidades de apropriação do espaço e de vida urbana contemporânea impostas pela associação Estado-Capital”. (NASCIMENTO, 2016, p.147)

A auto-organização nas ocupações urbanas reconhece a população como capaz de produzir a própria moradia e construir a cidade. Para Guilherme Boulos (2014), as “ocupações organizadas” conformam uma proposta de resistência que mostra que “a organização coletiva dos trabalhadores é capaz de fazer o que o Estado não faz”. A autogestão – precedida pela autoconstrução em terrenos periférico e pelas ocupações coletivas –, em resposta ao déficit habitacional brasileiro, representou grande avanço no processo político emancipatório da população sem acesso à moradia digna, que pressionava o poder público, com a ajuda dos movimentos sociais (FERREIRA, 2012). Para Guilherme Boulos, a auto-organização das Ocupações Urbanas é o que ele denomina como “fazer Reforma Urbana com as próprias mãos”, e um enfrentamento ao Estado na luta por direitos: O nome que damos a isso [às ocupações urbanas organizadas] é fazer Reforma Urbana com as próprias mãos: apropriar-se do espaço urbano de acordo com interesses coletivos, colhendo os frutos da organização autônoma dos trabalhadores, sem deixar, por outro lado, de enfrentar o Estado para exigir a conquista de nossos direitos. (BOULOS, 2014, p. 67).

Nesse contexto, os profissionais/especialistas e os movimentos sociais, como o Movimento de Luta pelos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), o Movimento Brigadas Populares (BP), e a Frente Terra e Autonomia (FTA) desempenham o papel de auxílio político, ao desenvolverem um trabalho de base que contribui para a formação e promoção da autonomia política das comunidades, bem como para o entendimento dos mecanismos e processos técnicos e legais para conformação urbanística das áreas ocupadas. É esse trabalho de base aliado ao exercício de decisão coletiva que, para Boulos, “produz um resultado duradouro, ao formar novos militantes para a luta dos trabalhadores no Brasil. São aqueles que [...] perceberam que podem lutar para decidir os rumos da sociedade em que vivem” (2014, p. 69). Poliana Souza (1), ao ser questionada sobre o trabalho que os movimentos sociais desenvolvem nas Ocupações Urbanas, relata: Conheci o Movimento (MLB) através da Ocupação (Eliana Silva). Em um primeiro instante porque eu precisava de um lugar para morar. Eu já tinha outras perspectivas políticas, por ter participado de algumas ONGs, mas ainda não tinha me engajado nessa luta. Dentro da ocupação eu conheci o Movimento Social. Inclusive antes de ocupar, porque a Ocupação existe antes de, de fato, entrarmos no espaço. [...]

(1) Moradora e coordenadora da Ocupação Eliana Silva. Entrevista concedida em maio de 2016. Material completo na página 18.

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As pessoas são preparadas antes, num processo de conscientização. Eu participei de reuniões durante 9 meses antes de entrar no terreno e nesse processo eu fui conhecendo o movimento, fui me interessando pela causa e quando ocupamos o terreno onde hoje é a Eliana Silva, eu ingressei na equipe de coordenação [...] todos (os moradores da Ocupação) entendem que a nossa luta não termina com as quatro paredes e que nós precisamos lutar por outras coisas: o processo de urbanização, de regularização da casa própria, a questão do acesso à escola, ao transporte... todas essas são lutas que a gente trava depois de ocupar e que são fruto do processo de conscientização política feito pelo trabalho de base anteriormente. (Poliana Souza, 2016).

Deusiane Lucas (2), moradora da Ocupação Guarani Kaiowá (Contagem, MG), também relata a experiência da comunidade com o trabalho de base e apresenta os frutos dessa formação política emancipatória: Nós entramos em contato pedindo ajuda e eles (as Brigadas Populares) toparam. Passamos por um processo de reuniões durante 9 meses, pra gente se preparar e aprender como ocupar, como falar, porque não podemos dizer que vamos invadir, mas que vamos ocupar. Invadir é chegar onde mora alguém e colocar a pessoa pra fora e tomar o lugar dela. Ocupar é quando existe um terreno baldio, que não é usado, que não tem nenhum tipo de uso que traga benefício pro bairro ou pra cidade. (Deusiane Lucas, 2016).

Fica, então, evidente que a Ocupação de uma gleba, por si só, não é suficiente para alcançar os objetivos políticos e as conquistas reivindicadas por moradores e pelos movimentos de luta urbana. É necessário um trabalho de conscientização, de preparação, de formação política para que o cotidiano das ocupações seja, efetivamente, um enfrentamento à lógica do capital sobre a cidade. E para além disso, é necessário que essa consciência seja tomada de forma autônoma pelos próprios indivíduos que constroem esse espaço e que, uma vez formados para a luta, consigam viver essa luta no cotidiano e para sempre, ainda que não hajam (e sobretudo quando não houverem) assessores técnicos ou políticos participando do processo de construção da comunidade. Thiago Canettieri (3) relata o trabalho das Brigadas Populares dentro dessa lógica política: A forma como a gente atua nas ocupações é, sobretudo, uma forma de assessoria política, através da aproximação e do planejamento das ocupações ou começando a agir em ocupações espontâneas e trazendo uma discussão política mais ampla, que não seja só a resolução imediata do conflito ou da casa em si, mas pensando que aquela ocupação é fruto de uma luta de classes pra cidade, é um espaço contraditório de conflitos e que, com isso, a gente consegue de alguma forma, através das assembleias e formações políticas, aglutinar forças e pessoas em prol de um projeto de mudança social. [...] A partir daí entramos com as ações do trabalho político, levando essa discussão mais ampla da cidade de forma a agregar no debate da Ocupação. E os frutos têm sido muito bons: a Gaby, que é uma das lideranças da Ocupação Novo Horizonte, tem acompanhado de perto as lutas urbanas e não só a do contexto de Belo Horizonte, mas já viajou para Brasília, São Paulo... esse talvez seja o nosso grande objetivo. Queremos que pessoas como a Gaby, com um acúmulo fruto da experiência pessoal, como mãe solteira, trabalhadora, negra, de periferia e que, com toda essa bagagem, consegue canalizar de uma maneira política, afim de reivindicar seus direitos e consiga pensar em uma mudança pra sociedade. (Thiago Canettieri, 2016).

Karl Marx vincula a experiência humana diretamente ao posicionamento político quando diz que “só o sentimento próprio dos homens, sua liberdade, pode fazer a sociedade novamente um dia se tornar uma comunidade em que os homens possam realizar seus objetivos mais elevados, uma pólis democrática” (MARX, 1992b [1843], p. 201).

(2) Moradora da Ocupação Guarani Kaiowá (Contagem, MG). Entrevista concedida em março de 2016. Versão completa na página 66. (3) Mestre em Geografia pela PUC-MG, doutorando em Geografia pela(UFMG), militante das Brigadas Populares. Entrevista concedida em abril de 2016. Versão completa na página 42.

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Michel Albert (2000) traz à discussão o lugar dos profissionais/especialistas no processo de tomada de decisões, afirmando que são fontes de informações importantes devendo ser levados em consideração no processo, mas de maneira a influenciar apenas o proporcional ao quanto ele é afetado e que as informações disponibilizadas por todos os grupos envolvidos devem ser divulgadas para que cada indivíduo seja capaz de tirar suas próprias conclusões. É nesse sentido que se pretende chegar a um lugar onde os próprios indivíduos construam o espaço e se apropriem do discurso político, o reconstrua, e o utilize para defender seus próprios direitos na tomada de decisões sobre o rumo da conformação das cidades. O trabalho de base realizado pelos movimentos sociais de luta urbana converge para que essa autonomia seja gerada e para que o trabalho político nas ocupações dependa cada vez menos de suas iniciativas. Thiago Canettieri defende que a assessoria política deva passar pelo processo de desvanecimento, que, segundo ele, significa “estar cada vez menos presente para que eles (os moradores das ocupações urbanas) possam estar” e completa: Queremos ser cada vez menos as pessoas que puxam as assembleias, ou os que mais utilizam o espaço de fala. Isso passa, necessariamente, pelo processo de formação, que é papel nosso, ao trazer discussões mais amplas, ao fazer links entre as escalas que não se limitam aos níveis do bairro, do município, mas ao nível nacional ou mundial. Mas a partir de um momento, penso que seja ideal é que a militância não esteja mais no território, para que consigam exercer suas autonomias e termos plena confiança política de que eles vão conseguir tocar o trabalho com essa linha política. (Thiago Canettieri, 2016).

É importante que seja construída a autonomia do território, que sejam espaços autogeridos e que movimentem os ganhos entre os próprios moradores. Que o pedreiro receba o dinheiro de uma construção na comunidade e reaplique esse dinheiro comprando o milho que o vizinho planta... ou seja, estimular uma outra sociabilidade, que é o que, na opinião de Canettieri, “muito se perdeu com o modo capitalista, voltado para a geração de lucro. Devemos pensar em outras formas de se relacionar”. A partir daí, questiona-se, então, o papel dos assessores técnicos para a contribuição na construção desses novos micromodelos urbanos, tendo em vista a relação política dos moradores com os espaços das Ocupações Urbanas e a sua lida no campo do trabalho prático, na construção efetiva dos espaços coletivos, das residências, na urbanização da gleba, etc.

REFERÊNCIAS ALBERT, Michael. Buscando a autogestão, em Autogestão Hoje: Teorias e Práticas Contemporâneas. São Paulo, Faísca Publicações Libertárias: 2004. FERREIRA, Regina Fátima C.F. Movimentos sociais, autogestão e a construção da política nacional de habitação no Brasil. In: Autogestão habitacional no Brasil: utopias e contradições / Luciana Corrêa do Lago, organizadora. - Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2012. FROMM, E. (1958). Entrevista a Mike Wallace. Disponível em: <http://www.hrc.utexas.edu/multimedia/video/2008/wallace/fromm_erich_t.html>. Acesso em: 30 de Setembro de 2015. KAPP, S. Direito ao Espaço Cotidiano: moradia e autonomia no plano de uma metrópole. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012 MARX, Karl. Letters from the Franco-German yearbooks, in Karl Marx: Early writings. Traduzido por Rodney Livingstone. Londres, Penguin Books. (1992b [1843]). USINA, Coletivo. Arquitetura, Política e Autogestão: um comentário sobre os mutirões habitacionais. Revista Urbânia 3 (São Paulo, SP): Editora Pressa, 2008.

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41 Foto: Jhonatan Melo


entrevista:

Sobre a sua militância nos movimentos sociais, a forma como desenvolve o trabalho de assessoria política e como avalia as ações na RMBH

Thiago Canettieri

Doutorando em Geografia Militante das Brigadas Populares na Ocupação Novo Horizonte e assessor político em Ocupações Urbanas A nossa atuação dentro das Brigadas Populares converge para a construção de uma nova maioria política e pra isso, acreditamos que as Ocupações são espaços onde é possível aglutinar essas pessoas. Por vários mecanismos: porque a cidade é voltada para a reprodução da lógica do capital, que exclui pessoas da possibilidade ao acesso à habitação, então essa é uma necessidade latente, objetiva e concreta das famílias que vivem nessa situação; pela própria dimensão de instituinte do ato de ocupar, de retirar do mercado imobiliário e da especulação uma parcela do terreno que seria voltada para a acumulação; e também uma dimensão constituinte, que é construir novas relações espaciais e outras formas de sociabilidade, formas mais éticas e comunitárias. Partimos do pressuposto de que a Ocupação pode ser um laboratório social para outras experiências e práticas urbanas.

Através desses momentos políticos como o da assembleia, principalmente com a formação da coordenação, que é composta por pessoas que se aproximam mais das Brigadas Populares e que se articulam politicamente de forma mais ampla, a gente consegue criar uma base social para discutir a cidade. Esse também é um grande objetivo: discutir a cidade e mostrar que a forma como ela existe atualmente não beneficia a todo mundo e que é preciso mudar. Mas mudar como? Para onde? É esse o nosso grande desafio.

A forma como a gente atua nas ocupações é, sobretudo, uma forma de assessoria política, através da aproximação e do planejamento das ocupações ou começando a agir em ocupações espontâneas e trazendo uma discussão política mais ampla, que não seja só a resolução imediata do conflito ou da casa em si, mas pensando que aquela ocupação é fruto de uma luta de classes pra cidade, é um espaço contraditório de conflitos e que, com isso, a gente consegue de alguma forma, através das assembleias e formações políticas, aglutinar forças e pessoas em prol de um projeto de mudança social. Talvez esse seja o grande objetivo que a gente tenha com as Ocupações Urbanas: levar discussões mais amplas do que as que a gente normalmente vê, que se baseiam apenas na defesa da moradia. É necessário ampliar o escopo da ocupação pro contexto da cidade, pro contexto regional e nacional.

A Novo Horizonte começou de maneira espontânea entre os próprios moradores em Julho de 2015. As famílias se organizaram majoritariamente por vínculos de vizinhança, pois muitas já se conheciam antes da Ocupação. A partir daí, pela proximidade geográfica com a Ocupação Dandara, que é uma ocupação “brigadista” desde 2009, houve um contato entre as comunidades e foi daí que as famílias que haviam recém-ocupado a gleba onde hoje é a Novo Horizonte chegaram ao contato com as Brigadas Populares. Começamos, então, a fazer um trabalho sistemático de acompanhamento das assembleias e tentar o objetivo da ocupação e concluímos que são, realmente, famílias que precisam de moradia. Essa era uma necessidade urgente para elas.

A nossa militância acompanha de perto o cotidiano das Ocupações, participando não só das assembleias e mutirões, que são espaços importantes, onde o momento do trabalho também é um momento de aprendizado pros dois lados, um momento de troca. 42

A minha militância, especificamente em território e ocupação, é a da Ocupação Novo Horizonte, que é a que eu acompanho de maneira mais sistemática. Antes disso eu atuava de forma menos objetiva nas Ocupações da Mata da Izidora e na Vila do Cafezal, mas de maneira menos orgânica. A Novo Horizonte é a ocupação onde eu faço um trabalho mais sistemático.

A partir daí entramos com as ações do trabalho político, levando essa discussão mais ampla da cidade de forma a agregar no debate da Ocupação. E os frutos têm sido muito bons: a Gaby, que é um das lideranças da Ocupação, tem acompanhado de perto as lutas urbanas e não só a do contexto de Belo Horizonte, mas já viajou para Brasília, São Paulo... esse talvez seja o nosso grande objetivo. Queremos que pessoas territórios URBANOS


como a Gaby, com um acúmulo fruto da experiência pessoal, como mãe solteira, trabalhadora, negra, de periferia e que, com toda essa bagagem, consegue canalizar de uma maneira política, afim de reivindicar seus direitos e consiga pensar em uma mudança pra sociedade. Esse é o grande viés que a gente tem defendido. A assessoria que eu presto não é técnica, é política. Talvez a natureza seja diferente. Dentro da assessoria política, eu venho refletindo e muitas vezes acho que ela deveria passar pelo processo de desvanecimento, no sentido de estarmos cada vez menos presentes para que eles possam estar. Sermos cada vez menos as pessoas que puxam as assembleias, ou os que mais utilizam o espaço de fala. Isso passa, necessariamente, pelo processo de formação, que é papel nosso, ao trazer discussões mais amplas, ao fazer links entre as escalas que não se limitam aos níveis do bairro, do município, mas ao nível nacional ou mundial. Mas a partir de um momento, penso que seja ideal é que a militância não esteja mais no território, para que consigam exercer suas autonomias e termos plena confiança política de que eles vão conseguir tocar o trabalho com essa linha política. É importante que seja construída a autonomia do território, e essa autonomia se realiza de diversas maneiras: autonomia econômica, que sejam espaços autogeridos e que movimentem os ganhos entre os próprios moradores. Que o pedreiro receba o dinheiro de uma construção na comunidade e reaplique esse dinheiro comprando o milho que o vizinho planta... ou seja, estimular uma outra sociabilidade, que é o que, na minha opinião, muito se perdeu com o modo capitalista, muito voltada para a geração de lucro. Devemos pensar em outras formas de se relacionar.

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DIÁRIO DE BORDO:

O Esgoto da Ocupação Novo Horizonte

Foto: Thiago Canettieri

No Brasil a falta de estrutura de saneamento básico adequado configura um dos maiores dilemas urbanos, e nas Ocupações Urbanas não seria diferente. Segundo dados do publicados pelo Instituto Trata Brasil, com base em informações do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), apenas 48,6% dos brasileiros possui acesso à coleta de esgoto e, nas 100 maiores cidades brasileiras, mais de 3,5 milhões descartam esgoto de forma irregular. Esse tipo de deficiência influencia na conformação de um ambiente insalubre para os moradores. No caso da Ocupação Novo Horizonte, com o aumento do número de construções, se tornou urgente encontrarmos uma solução para esse problema. Nos organizamos, assessores técnicos e moradores, para estudar alternativas de implantação do esgoto. Surgiu, espontaneamente, a comissão responsável por estruturar o sistema de esgoto. Isso ocorreu porque alguns moradores possuíam mais urgência em resolver a situação, já que suas casas já haviam sido construídas e eles já dispunham de uma reserva de dinheiro para aplicar. Outros moradores, no entanto, ainda não haviam manifestado maior interesse sobre o assunto, apesar de ser recorrente em conversas informais e assembleias. No início, os moradores mais interessados – pelas urgências individuais – em implantar o sistema de esgoto cogitaram fazer uma obra que atenderia apenas um núcleo isolado de casas, mas o processo de conscientização da luta coletiva no espaço da ocupação fez com que a situação se convertesse: após algumas conversas sobre a construção coletiva, motor de uma ocupação urbana, chegamos a uma solução que conseguisse atender a toda a comunidade, através da implantação de um sistema de captação central, onde as casas – que devem possuir suas próprias caixas de gordura – podem ser ligadas, através das conexões de espera que serão instaladas em todo o comprimento da tubulação de esgoto central. Além disso, o sistema contará com 5 caixas de visita. 44

territórios URBANOS


NERY

LUCAS

JOÃO

+ALTO

ZÉ ALEXANDRE

SIMONE

EDNA

MALÃO

GABY

NEIA

LEVY

ELAINE WARLEN LUCINEI

MÃE DO RONALDO

PARQUINHO

ALZINHO CLAUDIO

MANINHO MIQUEIAS

ROSILDO DIRCEU

LEO

MAURO

PIRANHA MARLENE REGINALDO

DINEI BETO

JÚLIO

AMANDA FARLEY E NANDO

ANDRÉ

NILSON

GERALDO

RUA FÁTIMA

JEFERSON

DIEGO

REGINALDO

NANÁ

RONALDO

BENI MENDONÇA RAPOSO

MATAGAL

SEM NOME

LEGENDA TUBULAÇÃO CAIXA

+BAIXO

LIGAÇÃO PARA A CASA

A PARTIR DAQUI DEVERÁ SER CONECTADO À REDE DA COPASA

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O trabalho foi dividido em 5 etapas básicas: Levantamento do terreno e solução construtiva Dimensionamento do material necessário Apresentação do planejamento construtivo e discussão em assembleia Arrecadação do dinheiro/compra dos materiais Mutirão de construção O levantamento do terreno e o dimensionamento da rede foi elaborado por um grupo composto por moradores (dentre os quais havia 1 pedreiro) e eu, como assessor técnico. O planejamento construtivo do sistema de esgoto foi, então, elaborado para atender aos 53 lotes através de uma tubulação-mestra, instalada nas duas ruas de acesso. A solução abre possibilidade, inclusive pela conformação dos lotes, que duas casas possam dividir a mesma caixa de gordura, ou que a tubulação para as duas casas seja a mesma, dependendo do acordo entre os respectivos vizinhos. A rede central de coleta do esgoto será construída com um número de “esperas” estipulado de acordo com o levantamento realizado, possibilitando aos moradores que não têm previsão de construção da casa ou da rede de esgoto individual utilizaram a estrutura O projeto da rede de esgoto foi apresentado e aprovado pela comunidade em assembleia, onde a comissão explicou detalhes do seu funcionamento e onde foram postos à luz assuntos como o acordo entre vizinhos (sobre a construção das caixas de gordura, disposição das tubulações individuais, uso consciente da rede e manutenção), o orçamento do material da obra (que será construída por meio de mutirão) e o destino do esgoto Uma boa surpresa nesse processo foi a comunidade ter conseguido a doação dos tubos de PVC para a rede central, o que diminuiu consideravelmente o custo construtivo para os moradores, que pagarão, então, apenas pelo material das caixas, pelas peças de redução para conexão com as casas e pelo material que compete às residências individuais. Uma questão delicada, nesse projeto, foi a decisão sobre o destino do material do esgoto. Muitos moradores defendiam veementemente que os dejetos fossem deixados no córrego vizinho, já que, segundo muitos deles, o córrego já serve como esgoto do bairro. Houve, então, um trabalho de diálogo e conscientização sobre o papel de responsabilidade da comunidade com o ambiente urbano, com a saúde das pessoas, com o meio ambiente e o cuidado que era necessário ter com a vizinhança, afinal liberar o esgoto de 53 famílias em um córrego aumentaria muito a poluição local. Outro fator que contou muito para a reversão desse pensamento foi o fato de o córrego, que infelizmente é canalizado, transbordar e época e chuvas fortes e sequenciais. O que fazer, então?

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Levantamento do terreno Fotos: Maurício do Valle

O sistema de Evapotranspiração foi cogitado antes mesmo dessa assembleia, mas descartado pela comissão. Chegamos então à conclusão de que, com o sistema resolvido, temos argumentos para cobrarmos da COPASA a ligação da rede de esgoto da Novo Horizonte à sua rede oficial, já que ela percorre o bairro por uma rua vizinha à Ocupação. A visita à Companhia será marcada e estarão presentes 2 coordenadores, 2 pedreiros, 1 assistente técnico, 1 assistente político e 1 advogado. O mutirão de construção ficou marcado para o Junho/2016.

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Assembleia

Fotos: Thiago Canettieri

Assembleia

Foto: Pedro Vianna 48

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Foto: Jhonatan Melo


A ATUAÇÃO DO ARQUITETO E URBANISTA COMO ASSESSOR TÉCNICO EM OCUPAÇÕES AUTOGESTIONÁRIAS

O ambiente das Ocupações Urbanas deve suprir as necessidades que os programas habitacionais governamentais não conseguem. Não é possível conceber, na luta contra a lógica impositiva do capital sobre a terra e sobre o trabalho humano, um processo ordenador, da mesma maneira impositiva, antidemocrática e que não considera os interesses específicos de cada contexto. Reproduzir as intenções de programas como o Minha Casa, Minha Vida, por exemplo, que se conforma de maneira a atender o índice de lucros das grandes construtoras e se vangloria em bater as metas relativas aos números de “casas próprias” entregues, sem a menor preocupação com o bem-estar individual e coletivo, ou com as lógicas habitacionais específicas de cada morador ou comunidade é, no mínimo, incoerente. Nesse sentido, as Ocupações Urbanas são experiências que confrontam a lógica lucrativa dos programas sociais e tentam estabelecer discussões que tragam uma lógica organizacional que seja resistente à lógica que expulsou os moradores da “cidade formal”. Tiago Castelo Branco, no último capítulo da dissertação “Cidade Ocupada” (2014), discute o papel dos arquitetos nesse contexto de luta urbana, autogestão política e autonomia das comunidades e elenca as vantagens e desvantagens da atuação desses profissionais no processo de ocupação e construção das áreas. Para o autor, a assistência técnica dos arquitetos traz à luta um poder de resistência que, segundo ele, “o discurso político por si só não tem” (p. 148), além de elementos técnicos que potencialmente fortalecem os argumentos políticos, sobretudo no que diz respeito ao direito à moradia, além de oferecer às ocupações um plano formal que pode constituir “uma variável de peso, tanto para a opinião pública, quanto para o juiz que decidirá uma reintegração de posse” (p. 149). Esse discurso é, então, fruto de uma ideologia tecnocrata e autoritária do “discurso competente”. Trata-se do processo comumente hierarquizado no âmbito da construção civil: os planos ordenadores, desenhados por poucos profissionais, quase nunca correspondem bem aos anseios populares. A tomada de decisões, nesses casos, é completamente antidemocrática e autoritária e acaba por reproduzir os preceitos capitalistas sobre o espaço das cidades. Quando questionado sobre a hierarquização do processo de planejamento urbanístico no contexto da assessoria técnica nas Ocupações Urbanas, Rafael Bittencourt (1) reconhece que “o conhecimento técnico geralmente existe sob o monopólio das classes dominantes”,

(1) Formado em Ciências Sociais e mestrando em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais, militante das Brigadas Populares. Entrevista realizada concedida em maio de 2016. Versão completa na página 32.

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mas aponta um caminho positivo, pois, segundo ele, “ao socializar essa forma de conhecimento na experiência das Ocupações Urbanas, estamos colocando-o a serviço dos interesses e da realização dos direitos das camadas populares”. Apesar da contradição entre a lógica transgressora, anticapitalista e de luta pela autogestão das comunidades ocupadas e a perpetuação da relação sobre o monopólio do saber na prática da concepção espacial das Ocupações, tendo em vista que os profissionais técnicos são naturalmente vistos como detentores do saber sobre a técnica, Rafael afirma que: Existe um processo de formação do conhecimento técnico que se dá nas faculdades e nos campos de saberes que foram forjados pelas elites... ao aplicar esse conhecimento em colaboração e troca com os setores populares, um conjunto de questões, evidentemente, vai emergir para evidenciar que esses conhecimentos também contribuem para o monopólio do saber, mas isso não deve deslegitimar essa experiência da confluência entre os saberes técnicos e a experiência das Ocupações Urbanas, que é nitidamente popular, por garantia de direitos. Desde que começou esse ciclo de ocupações urbanas (após 2006) eu vejo as Ocupações Camilo Torres (BH) e Dandara (BH) como os pontos de aproximação desse saber técnico à realidade das Ocupações Urbanas, através, inclusive, do trabalho do Tiago Castelo Branco. (Rafael Bittencourt, 2016).

A lógica do capital sobre os bens e serviços nega o profissional arquiteto à realidade das classes mais pobres, nas quais estão inseridos os moradores das ocupações urbanas, tornando a atividade distante do campo da realidade prática dessas comunidades e colocando o profissional como autoridade intocável no ramo da construção. Castelo Branco diz que os projetos dos arquitetos são “tratados como obras primas, cujas determinações todos devem se submeter sem questionamento” (p. 153), o que deve ser questionado, tendo em vista a rotina de transgressão política, e espacial, inerentes à própria lógica da luta das ocupações urbanas. Pode-se citar o caso da Ocupação Dandara (2), onde a conformação espacial orgânica moveu-se para além da regulamentação proposta no plano urbanístico apresentado aos moradores. Entende-se, inclusive, que essa transformação é parte do processo livre de apropriação das comunidades que se emancipam e transformam o espaço a partir de suas próprias experiências temporais, que extrapolam os limites dos projetos técnicos. Essa lógica também se aplica ao ambiente urbano, observando as devidas proporções. As Ocupações Urbanas são lugares potentes, onde as circunstâncias permitem que o próprio cotidiano da comunidade apresente respostas às questões estruturais do planejamento urbano das cidades e aponte soluções para a democratização do processo, bem como a apropriação popular para a construção das cidades. Em relato sobre a sua experiência na militância dos movimentos de luta que atuam nas Ocupações Urbanas da RMBH, Rafael Bittencourt aponta: Na minha opinião o processo de construção nas Ocupações Urbanas é muito colaborativo. Houve uma imbricação e uma contaminação dos moradores das Ocupações e das assistências técnicas muito maior do que se esperava. Essa construção fez com que o processo se tornasse naturalmente mais participativo. Mas é claro que existe uma questão de diferenciação entre classes, que passa por hábitos, práticas, percepções e que está fundamentada na subjetividade. Desconstruir isso é muito difícil. O profissional liberal foi pintado como detentor do monopólio do saber. Desconstruir isso nas camadas populares é um processo histórico também. Isso não acontece na primeira ou segunda experiência. Em vários momentos percebemos, dentro desse processo, a reprodução dessas relações de hierarquia, que está embutida na própria percepção do profissional liberal que detém o conhecimento técnico. Na área da arquitetura, por exemplo, a potência de contaminação e imbricação de uma construção colaborativa é muito grande. (Rafael Bittencourt, 2016).

A assessoria técnica nas Ocupações Urbanas é uma via de mão dupla: se, por um lado, os profissionais técnicos e universitários colaboram para a construção política e espacial dessas comunidades,

(2) Localizada em Belo Horizonte, MG, a gleba foi ocupada em 2009 por cerca de 800 famílias e se tornou um dos maiores conflitos fundiários do país. Dandara foi referência e inspiração para o surgimento de outras ocupações urbanas.

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por outro as ocupações se transformam em grandes canteiros para a troca de experiências e saberes técnicos e populares, que são compartilhados através da relação cotidiana, da aproximação, da convivência e do trabalho prático, muitas vezes no próprio ato da construção. Joviano Mayer, militante das Brigadas Populares, afirma que parte daí “a importância de os movimentos populares estarem conectados com as universidades, entidades e grupos que buscam disseminar novas práticas construtivas e de apropriação espacial no território”, pois, nesse processo, “as partes constroem conjuntamente novas práticas” (NASCIMENTO, 2016, p. 119). Para Rafael Bittencourt, “existe uma rede constituída em torno da discussão do espaço urbano das ocupações e isso tem fomentado uma reflexão muito maior sobre como atuar nesse contexto de forma menos assimétrica, mais horizontal, mais colaborativa”. Deusiane (3), moradora da Ocupação Guarani Kaiowá, entende esse processo de troca de saberes e relata: Eu aprendi muito depois que eu entrei pra ocupação e conheci o pessoal das Brigadas Populares, da FTA, depois que eu conheci muita gente assim, que está estudando, que se dispõe a sair da sua casa e vir aqui... eu tenho o maior prazer de estar falando aqui (no momento da entrevista), porque eu sei que de alguma forma eu tô ajudando em alguma coisa, como vocês também estão ajudando aqui. A gente aprende junto. (Deusiane Lucas, 2016).

Essa confluência de saberes, fruto da troca de experiências, entre assessores técnicos e moradores das Ocupações se estabelece pelo convívio, que muito tem a ver com a temporalidade. A aproximação entre os atores que compõem esse cenário de luta urbana é determinante para o trabalho de construção dos espaços (físicos e políticos) das comunidades. Para William Azalim , militante das Brigadas Populares, deve haver uma certa “lentidão no processo”, onde se estabelece uma relação de confiança entre moradores e assessores técnicos. Para ele, “Não há como produzir algo coletivo sem que haja confiança”. William questiona ainda a concepção de horizontalidade dentro do processo de construção coletiva da luta urbana, já que, para ele, “horizontalidade não é uma metodologia, não é a ideia de que todo mundo pode falar... horizontalidade é construção coletiva de relações de confiança”. Segundo Azalim, essa relação de confiança se constrói através do engajamento político e é a partir dele que as famílias estabelecem uma relação de confiança com os sujeitos assessores técnicos a ponto de fazerem com que a vivência permita que se construa coletivamente, de fato. Azalim completa que “enquanto elas não confiarem em você, não adianta desenvolver o melhor instrumento, o melhor sistema...”. Conviver com a realidade cotidiana de uma ocupação e se relacionar com os sujeitos que vivem e constroem esses espaços com as próprias mãos, não necessariamente significa que os assessores técnicos devam se posicionar no mesmo lugar de fala que todos os moradores, pois há experiências e saberes específicos que devem ser levados em consideração. É uma hipocrisia achar que chegaremos a um ponto de convivência onde seremos todos plenamente iguais. Sobre esse ponto, Wiliam Azalim defende que: Se por um lado a gente precisa reconhecer que é diferente, assumir a legitimidade disso e utilizar o nosso conhecimento para avançar na discussão dentro da Ocupação, por outro, não há necessidade de ter medo de se arriscar a uma outra forma de vida da qual você não faz parte. E não é no sentido de dizer que somos todos iguais... a experiência vai nos fazer enxergar que existe coisa que a gente não sabe. É necessário ver que existem outros saberes. Talvez o trabalho coletivo deixe isso claro. (Wiliam Azalim, 2016).

Desse modo, Tiago Castelo Branco defende que as Ocupações Urbanas são espaços ideais para que os arquitetos e urbanistas repensem as suas práticas, que, na visão do arquiteto, devem se estabelecer “contra o projeto prescritivo e a favor de um diálogo real entre o campo profissional e as camadas populares” (2014, p. 166).

(3) Moradora da Ocupação Guarani Kaiowá (Contagem, MG). Entrevista concedida em março de 2016. Versão completa disponível na página 66. (4) Mestre em Engenharia de Produção pela UFMG, militante das Brigadas Populares. Entrevista concedida em abril de 2016. Versão completa disponível na página 55.

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O arquiteto é um agente político dentro da lógica da ocupação e deve pensar procedimentos que possibilitem aos moradores a escolha dos seus valores e construam as próprias críticas sobre suas situações social e espacial. É preciso expandir os discursos e repensar o que, de fato, é relevante a atuação dos arquitetos e urbanistas, para que os moradores possam se posicionar em relação às propostas e decidir os caminhos a serem trilhados. Isadora Guerreiro (5) enxerga diferenças entre o papel desempenhado por arquitetos assessores técnicos nas Ocupações Urbanas da Região Metropolitana de Belo Horizonte e o papel que desempenham os arquitetos ligados aos movimentos sociais de ocupação urbana em São Paulo, por exemplo, que, segundo ela, fazem parte do que denomina como “antigo ciclo”, onde os papéis dos profissionais técnicos (dos quais ela destaca os arquitetos) estavam muito bem definidos e havia “uma visão muito clara do que é o papel do técnico e político do arquiteto, o papel do movimento, do morador e como isso tudo se une. Nesse ciclo o projeto ainda é visto como O PROJETO”, que segundo ela é uma visão onde o arquiteto ainda é quem formula um desenho para ser usado no canteiro de obras. No contexto das ocupações da RMBH, por outro lado, na análise de Isadora Guerreiro, o arquiteto exerce diferentes funções. Nas palavras dela, “o arquiteto precisa ser alguém que pensa o espaço e suas potencialidades, muito mais do que o fixe esse espaço. Eu acho que as ocupações de Minas têm essa dinâmica da flexibilidade, do atravessamento”. Nesse contexto, Guerreiro defende que o projeto arquitetônico aplicado ao contexto das ocupações urbanas da RMBH talvez nem passe, necessariamente pelo desenho. Ou talvez passe de outro jeito. Qual é, então, o lugar do projeto arquitetônico na autoconstrução?

(5) Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (2010). Ex-coordenadora do Coletivo Usina (CTAH). Entrevista concedida em abril, 2016. A entrevista completa na página 72.

REFERÊNCIAS LOURENÇO, Tiago Castelo Branco. Cidade Ocupada. 232f. Dissertação de Mestrado - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014.

NASCIMENTO, Denise Morado. As Políticas Habitacionais e as Ocupações Urbanas: dissenso na cidade. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 145-164, abr 2016.

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Foto: Izabella Galera 54

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entrevista:

Sobre a sua militância nos movimentos sociais, a forma como desenvolve a assessoria técnica/política e como avalia as ações na RMBH

William Azalim

Mestrando em Engenharia de Produção Militante e assessor técnico/político em Ocupações Urbanas

Minha relação com as Brigadas se dá num momento individual de crise com a faculdade. Como se fosse um aprendizado de diversas técnicas, mas que eu não conseguia encontrar uma interface com o mundo. Eu tive uma formação dentro da matemática computacional, desenvolvendo modelo com roteamento para duzentos caminhões, mas onde tem isso no Brasil, né? Quem tem duzentos caminhões? Essa era uma coisa que me fazia refletir. Quando eu me aproximo das Brigadas Populares, me aproximo politicamente cru. É uma aproximação que se dá principalmente pela Dandara, sob uma ideia do consenso da luta justa, onde você não precisa que o morador de ocupação elabore um grande discurso pra saber que no Brasil há muita gente sem moradia. E ao ver a cara das pessoas, sentir ao ser recebido em uma casa, percebe que a luta é justa sem precisar de um discurso tão explícito assim em palavras ou no discurso. Isso se dá pela aproximação. A partir daí fui desenvolvendo esse trabalho de assessoria política, que na verdade é o grande carro-chefe dentro do trabalho da Reforma Urbana nas Brigadas Populares, onde me aloco, especificamente. É a frente que desenvolve um trabalho mais massivo com as ocupações. Por outro lado eu trazia comigo a dúvida sobre como associar a minha formação acadêmica à lida prática. A primeira tentativa que fiz foi elaborar uma feira de produtores na Dandara, através de recursos de uma ONG da Europa para comprar as barracas e daí nos lançamos a tentar operacionalizar a realização de uma feira na Ocupação Dandara. Naquela época nos mantivemos muito sob a prescrição do que achávamos que deveria ser a feira ao invés de nos lançarmos à análise dos recursos que a Ocupação realmente possuía para realizar essa feira. Fazíamos várias reuniões, debatíamos sobre esses princípios do que deveria ser a feira, ou os critérios de utilização das barracas, muitos critérios que tentavam trazer a justiça do trabalho coletivo e que impedissem qualquer tentativa de tomada da feira por interesses mais

privados de pequenos grupos da comunidade. Por outro lado a gente esquece de fatores operacionais: como assim, a gente monta uma feira, num domingo de manhã em uma área da Dandara que não tem nenhum tipo de cobertura vegetal e debaixo de um sol rachando? O espaço em volta das barracas era inóspito, não dava pra ficar ali. Então eu percebo que ainda era uma tentativa de expandir para um outro tipo de militância, um outro tipo de intervenção que entrasse mais no âmbito da técnica, mas que, por outro lado, pecava em se manter muito na perspectiva do que a gente entendia como ideal de justiça, de compartilhamento e não da análise real desses recursos. Aí, então, resolvo ir para a Venezuela estudar uma cooperativa já consolidada. Era uma central de cooperativas com cinquenta e uma cooperativas e a partir do retorno da Venezuela eu começo a pensar no que era possível trazer do meu aprendizado para o Brasil. Eu acho que uma das primeiras coisas é que não existe debate coletivo se o problema não é percebido coletivamente. Uma das coisas que me levava a trabalhar a feira na Dandara era tentar propor um tipo de assembleia diferente: como uma assembleia sai da estrutura de controle social, onde existem representado e representante? Mas também sem apego àquela crítica muito extrema de que existe manipulação, apesar de até achar que exista essa possibilidade, mas quem é representado sempre tem a possibilidade de dizer “não”, então não é porque foi decidido em assembleia que as coisas vão ser executadas. Quantas coisas foram decididas em assembleia e nunca foram executadas, né? Então quem é representado também tem o poder de escolha sobre executar ou não. Por exemplo: combina-se em assembleia de fazer uma marcha ou manifestação e no dia não aparece ninguém: o indivíduo decidiu sobre ele. Pra além disso eu queria entender como formar uma assembleia onde as pessoas discutissem coisas que 55


fossem coletivas e conseguissem encaminhá-las. Na Dandara, por exemplo, eram tantas questões: a água, a luz, o resíduo... será que não seria possível, pra além da ação reivindicativa, fechar a rua, que é uma ação super importante que te coloca em diálogo com outros setores da cidade, mas a partir daí como pensar a auto-organização. Então a questão era problematizar o debate coletivo que não possui um problema que é percebido coletivamente. Por exemplo: o problema do resíduo é coletivo? Da perspectiva pela qual a gente olha é. Assim como o problema da saúde, do cuidado da criança... são problemas percebidos individualmente, mas que são problemas coletivos. Você vai na Ocupação e vê que existem trocentas formas de tratar o lixo. Algumas interessantes, outras não. Tem gente que joga o lixo na vala, tem gente que joga no rio e tem gente que faz compostagem ainda que de maneira precária, mas aponta a semente de uma coisa que pode funcionar. E aí? No nível da auto-organização essas são questões individuais, mas que resvalam no coletivo. Há também outro caminho: o de se organizar e protestar reivindicando à prefeitura a coleta de lixo dentro da Ocupação. Se não houver a força real para conseguir, de fato, fazer esse embate com a prefeitura e conseguir, e aí? O que dá pra fazer? Na Venezuela isso foi um aprendizado: a questão precisa aparecer coletivamente. No meu mestrado eu trabalhei em dois casos: a construção de um Centro Social na Ocupação Guarani Kaiowá e a implementação do sistema de coleta na Thomás Balduíno, em Ribeirão das Neves. Sobre a Thomás Balduíno, o sistema já está implementado há mais de um ano e agora está se iniciando um projeto que a Vivian Toffaneli está levando à frente em parceria com a AMAU e as Brigadas Populares um projeto de quintais produtivos. Na Guarani Kaiowá, havia o interesse em criar um equipamento coletivo e a galera queria que ele fosse diverso em suas funções. “Vai ser tudo”: creche, centro ecumênico, centro social e por aí vai... Existiam vários grupos e eles levaram pra assembleia esse debate: o que vai ser esse equipamento? E a Assembleia decidiu que seria tudo. Mas porquê eu acho que essa foi a decisão? Porque as escolhas que deveriam ser feitas na assembleia não estavam claras. Se você não deixa as coisas claras pras pessoas, e elas vão julgar e abstrair sozinhas. O que deve ser discutido é: o que difere o centro ecumênico de uma creche? Isso influencia na construção? Quem vai fazer o mutirão? Quem vai cuidar das crianças na creche? É o pastor? É o padre? Ou entidade religiosa? As questões do trabalho, da ativi56

dade, não estavam claras e a falta de clareza levou todo mundo a escolher as três coisas e no final, o processo de mutirão acabou por si só e o centro social não foi terminado. Não se afirmou uma identidade. Optou-se pelo mutirão – o que por si só é fenomenal no nível do trabalho coletivo, o ambiente que se cria... é, de certa forma, um compartilhamento de saberes, uma desierarquização, apesar de ter arquiteto acompanhando a obra e eu enquanto engenheiro, não ocorria das pessoas ficarem perguntando tudo. Pelo contrário, você falava as coisas e elas te contrariavam, então um mutirão é interessante pra gente perceber esses níveis do aspecto do trabalho. Por outro lado, o mutirão se sustenta numa identidade que não é formada por eles. Não é uma identidade formada no processo, é uma identidade até então já formada, que é a identidade do sem-teto. Há, de certa forma, um apelo para a identidade do sem-teto como se aquilo fosse uma tarefa, algo que deve ser feito e não algo em que alguém se engaja. Por exemplo: passava alguém que não estava trabalhando pelo mutirão e essa pessoa se sentia constrangida, como se no nível do todo aquela fosse uma tarefa de todo mundo, na qual ele não tivesse engajado... A identidade do sem teto é importante, pois ela nega na sua forma de ser o sistema que está dado: o sem teto não precisa de nenhum esclarecimento ou desenvolvimento dessa ideia, ou de conscientização sobre a situação porque sua própria existência é a negação do sistema; ela é a prova de que o sistema não inclui todo mundo, mas essa identidade acaba se mostrando uma identidade frágil e se esvai. Afinal, qual é a função da identidade do sem-teto? Deixar de existir, não é? O indíviduo afirma essa identidade para conseguir um teto. Então essa falta de pessoas que pudessem pensar o espaço e levar os debates para a assembleia fez com que eu todos os debates sobre o espaço se concentrassem no mutirão. Ou seja, era coletivo? Era. Mas para aquele grupo que estava ali no mutirão, que não era o grupo de todas as pessoas da comunidade. A gente tende a acreditar que o mutirão é a coisa mais democrática do mundo, mas nesse exemplo não foi. A UFMG já tentou fazer vários carrinhos de reciclagem pra catador de rua e não conseguiu, porque é uma coisa que só a experiência individual pode estabelecer. Então eu vou levar essa questão para a assembleia? Pra uma pessoa que nunca puxou um carrinho decidir como ele vai ser? Olha que coisa heterônoma! Isso não é o contrário da autonomia de certa forma? Então existem questões que devem ser tratadas no grupo e existem questões que um determinado grupo pode adiantar o debate para facilitar a participação do coletivo. territórios URBANOS


Vamos discutir física quântica na ocupação, então... quem vai participar do debate? Se as pessoas não têm um saber, se as coisas não são claras, se as decisões não parecem racionais para elas a participação coletiva se transforma em demagogia. As pessoas têm que conseguir participar. Não é simplesmente convidá-las a participar, ter a boa vontade, ou querer que isso aconteça... não é isso. Elas têm que poder participar. Outra questão foi: a coleta vai acontecer porta a porta ou quadra a quadra? Isso é trazido para a dimensão individual e aí vinham algumas questões que fugiam da dimensão da coleta. Os próprios indivíduos decidiam as coisas e às vezes transpunham para o mundo político, olha só! Em vez da gente precisar inferir, de certa forma incitar ou provocar esse tipo de debate... isso surgiu das próprias pessoas, mas porque elas traziam as experiências pessoais. As decisões que foram tomadas, mesmo que não tivessem sido as mais adequadas, pela experiência individual levada à questões que são do coletivo. Eu já ouvi algumas críticas dentro da faculdade de Arquitetura sobre alguns processos serem hierarquizados ou unilaterais, mas – na minha opinião – um dos grandes problemas que um arquiteto enfrenta quando vai conceber algo: você concebe para o uso antes que esse uso exista. Existe um saber que é técnico que vai interferir. Agora, como fazer para que o uso das pessoas te permita uma reconcepção? Ou uma metaconcepção? É necessário que o coletivo tenha a percepção de que isso é um problema. Eu acho que a gente só vai realmente entender a utilização dessa técnica para esse outro mundo que a gente almeja, para uma outra formalização, não como o técnico que prescreve, que determina, que assume a posição do especialista sobre os leigos... não esse tipo de técnico. Mas um técnico que também reconheça que ele é diferente. O primeiro passo é reconhecer essa diferença e que há legitimidade nisso. Não é porque você é diferente que você não pode falar. Não é porque você não mora que você não pode falar. Mas é necessário encontrar o seu lugar de fala. O segundo passo é o engajamento e é através dele que conseguimos nos apropriar de técnicas que foram desenvolvidas em outros contextos, mas de maneira não mecânica. Não dá para aplicar um conhecimento que foi produzido sob a perspectiva de outra realidade de maneira mecânica. Isso acontece muito na universidade, né? Você tira o retrato de uma situação e começa a criticar as coisas sem entender qual é o processo histórico que se desenvolve ali.

Então é só quando há engajamento real, que se dá através da imersão física, a vivência com as pessoas e com o espaço, há possibilidade de usar a técnica de forma não mecânica. Existem algumas teorias que propõem, inclusive, um afastamento para não reproduzir a relação de hierarquia intelectual. Algumas pessoas acham que os assessores técnicos não precisam estar no campo fisicamente, pois a imersão física do assessor já gera uma relação de poder incontornável. Ao meu ver é o contrário: é necessário o engajamento e, aí, refletir sobre como se engajar. É reconhecer qual é o seu lugar dentro do processo. Pela minha experiência, percebo que a lentidão do processo é necessária. Inclusive é necessária uma relação de confiança. Na experiência da Venezuela, aprendi que confiança é responsabilidade compartilhada. Não há como produzir algo coletivo sem que haja confiança. E aí entra a polêmica da horizontalidade. Horizontalidade não é uma metodologia, não é a ideia de que todo mundo pode falar... horizontalidade é construção coletiva de relações de confiança. Você pode fazer, por exemplo, uma assembleia com vários coletivos onde um não confie no outro. Um deles chega com a ideia elaborada e assembleia vira o campo de polarização e isso não é uma construção coletiva. Para haver construção coletiva e horizontal, é necessário confiança. Não dá para construir coletivamente com quem a gente não confia. E aí eu entendo que uma nova ação técnica deve nascer do engajamento e é do engajamento de alguém que se posiciona de maneira diferente, mas que não tem medo e não acha que é diferente a ponto de não poder, por exemplo, tocar no lixo. Eu acho que a melhor coisa a fazer quando você chega em uma ocupação é viver o espaço: você pode se alimentar, passar uma noite, dormir... e pouco a pouco você vai vivenciando isso. É justamente esse engajamento que vai permitir que as famílias confiem em você e construam coletivamente com você. Enquanto elas não confiarem em você, não adianta desenvolver o melhor instrumento, o melhor sistema... se por um lado a gente precisa reconhecer que é diferente, assumir a legitimidade disso e utilizar o nosso conhecimento para avançar na discussão dentro da Ocupação, por outro, não há necessidade de ter medo de se arriscar a uma outra forma de vida da qual você não faz parte. E não é no sentido de dizer que somos todos iguais... a experiência vai nos fazer enxergar que existe coisa que a gente não sabe. É necessário ver que existem outros saberes. Talvez o trabalho coletivo deixe isso claro. 57


DIÁRIO DE BORDO:

A Construção do Parquinho Novo Horizonte

Foto: Lucinei Charles

O primeiro passo para a organização da ação de construção do parquinho foi reunir o GT para combinar datas, formas de comunicação com a comunidade externa e estratégias de construção. Dentro do questionamento e crítica acerca do projeto arquitetônico prescritivo, havia a intenção de fazer com que o parquinho fosse planejado coletivamente. Não só a construção do parquinho seria feita por meio de mutirão: e se o projeto também fosse? E se as crianças se reunissem para projetar os sonhos para esse espaço? Propus que o planejamento da construção do parquinho se dividisse em 3 etapas: Visita ao lote e planejamento lúdico

Arrecadação do Material

Mutirão de Construção

Na primeira etapa, as crianças – agentes diretamente afetados pela construção e, consequentemente, aptos a decidirem sobre ela – foram reunidas e estimuladas a expressarem no papel seus desejos para o espaço coletivo, ao mesmo tempo em que trocavam informações e compartilhavam seus sonhos uns com os outros. A proposta era que elas pensassem nos brinquedos, na organização do espaço e nas cores e que, ao final, encontrássemos os elementos que se comunicassem nos projetos de cada um para que criássemos um desenho coletivo. Mas a atividade extrapolou os limites esperados... 58

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Projeto do Parquinho

Fotos: Jhonatan Melo

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O compartilhamento de sonhos durante a atividade acabou trazendo à conversa a noção de planejamento espacial que levava em consideração, em vez dos brinquedos, as atividades que as crianças queriam realizar no espaço. O parquinho deixava de ser um espaço para instalação de brinquedos e se tornava um espaço onde seria possível a vivência e a realização de atividades, independente de como a infraestrutura seria provida. Isso foi especialmente importante para a viabilização da construção do parquinho, já que contávamos com poucos recursos e dependeríamos de doações para a fabricação dos brinquedos. Cada criança apresentou o seu desenho e compartilhou o seu sonho individual de parquinho e, à medida que a conversa acontecia, encontrávamos pontos em comum entre os projetos. Daí surgiu o conceito espacial do parquinho, que consistia em: Lugares para deitar | fazer piquenique | escorregar | balançar | conversar | brincar Lugares de onde os pais poderiam “olhar” os filhos brincando A partir daí, em conversa com os pais e com os assessores das Brigadas Populares, pensamos em quais elementos físicos conseguiriam atender a demanda do nosso planejamento e iniciamos uma campanha nas redes sociais para levantamento de doações de materiais multiuso: madeira, cordas, tintas, pneus, pregos, etc. O mutirão foi marcado e começamos a convergir os esforços para a arrecadação de doações e para conseguirmos pessoas dispostas a ajudar com o trabalho físico do mutirão. O parquinho nasceu. Dia 28/03, véspera do domingo de páscoa. Estudantes universitários, militantes dos movimentos sociais e moradores da Ocupação Dandara se uniram às crianças e adultos da Ocupação Novo Horizonte. O trabalho realizado foi: limpeza do lote, retirada do lixo, avaliação do material arrecadado e construção dos brinquedos.

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Mutirรฃo do Parquinho

Fotos: Jhonatan Melo

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Na construção do balanço, os conhecimentos técnicos e o desenho esquemático foram importantes para resolvermos a forma e solucionarmos a estratégia para estabilidade do brinquedo, tendo em vista que não dispúnhamos de material em grande quantidade. O croqui facilitou a comunicação entre os envolvidos nas tarefas, sendo utilizando inclusive pelas crianças projetar o que viria a ser o espaço para o que eles chamavam de “brincadeiras de chão”: amarelinha, tabuleiro humano, etc. Surgiu deles a ideia de usar uma pequena fundação existente no terreno como local para implantar as brincadeiras.

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As “brincadeiras de chão” foram prova de que, ainda que haja um planejamento para a ação e que muitas pessoas participem dele, há ideias que se apresentam no processo de construção. É importante, portanto, que haja abertura às novas soluções e à contribuição livre, pois elas fortalecem o senso de coletividade e reforça nos sujeitos o sentimento de pertencimento ao lugar. Em analogia ao que se entende como “projeto arquitetônico” – ou, como prefiro chamar, “planejamento construtivo” – é necessário estar atento às insurgências e às soluções que surgem no processo. É no processo, na ação, que construímos relações de vizinhança, coletividade e é onde aprendemos uns com os outros. Foi também durante o processo que as crianças começaram a se apropriar do local e a ressignificá-lo de modo a utilizar da própria conformação física do terreno para realização de atividades que os assistentes técnicos e moradores adultos não conseguiram resolver. Está aí o nosso escorregador:

O mutirão para construção do Parquinho foi fundamental para aproximar a comunidade e aumentar os vínculos de confiança com os assessores técnicos e entre os próprios moradores. É nesse sentido que caminha a relação de horizontalidade de que tanto falamos: construímos confiança coletiva. Também construímos autoconfiança, quando os moradores se sentem aptos a solucionar problemas espaciais e construtivos, quando os pedreiros moradores da ocupação sentem que seus saberes são valorizados e que podem ser usados em favor do bem comum e quando as crianças se lançam a projetar um espaço e se percebem importantes no processo. 65


entrevista:

Sobre a relação da comunidade com os grupos de assessoria técnica e com os movimentos sociais

Deusiane Silva Lucas

Militante Moradora da Ocupação Guarani Kaiowá (Contagem - MG)

Eu era uma das coordenadoras da Ocupação, mas, devido a todos os problemas que a gente passa, precisei dar um tempo. Mas continuo trabalhando e fazer o meu serviço. Depois que a gente entra, não tem como sair. Eu era uma simples dona de casa, que trabalhava fora, e vivia na rotina casa-serviço / serviço-casa. Aí surgiu essa ocupação: eu morava aqui no bairro mesmo. Cheguei do trabalho um dia e meu marido meu deu a notícia de que iria acontecer uma Ocupação nas redondezas e eu já me preocupei em garantir um espaço pra mim e pros meus filhos, porque eu não tenho dinheiro pra comprar uma casa e a gente morava de aluguel. Nós tentamos ocupar 2 vezes e em todas as vezes o dono veio com a polícia e colocou a gente pra fora debaixo de muita humilhação. Mas nós resistimos. Foi aí que nós conhecemos uma moça que nos falou das Brigadas Populares. Nós entramos em contato pedindo ajuda e eles toparam. Passamos por um processo de reuniões durante 9 meses, pra gente se preparar e aprender como ocupar, como falar, porque não podemos dizer que vamos invadir, mas que vamos ocupar. Invadir é chegar onde mora alguém e colocar a pessoa pra fora e tomar dela. Ocupar é quando existe um terreno baldio, que não é usado, que não tem nenhum tipo de uso que traz benefício pro bairro ou pra cidade. Nesse terreno só existia muito mato e coisas ilícitas, que não agradavam a ninguém. A vizinhança vivia com medo. Aí foi essa preparação que nos fez acumular material pra construir: lona, madeira, mantimentos, água e fomos participando das reuniões, aprendendo. Quando a gente entrou, já tinha o apoio das Brigadas Populares e depois apareceu o pessoal da FTA (Frente Terra e Autonomia) apoiando. Também vieram os universitários para nos apoiar, junto com o Tiago Castelo Branco, que foi muito importante pra nós, na nossa comunidade. A gente sabe que eles estão distantes, com uma vida atarefada, mas eles estão guardados aqui com a gente e a gente sabe que se 66

precisar, com certeza eles não vão negar. A gente entrou e ocupou com a ajuda do pessoal da Ocupação Dandara, também. Nós resistimos e estamos aqui, há 3 anos e 2 meses. Sem pagar aluguel. Aí agora dá pra fazer uma unha, arrumar o cabelo... Agora nós temos que lutar pra mudar o pensamento de quem não aceita a gente aqui, principalmente a vizinhança. Por outro lado eu acho que eles têm que ver que melhorou até pra eles mesmos. Aqui todo mundo vivia com tudo fechado, abriram um bar uma vez, mas era todo cheio de grade... Hoje não. Hoje eles têm mais tranquilidade em assistir um jogo na rua, por exemplo. Já abriram um restaurante perto... Isso quer dizer que não é tão ruim a gente estar aqui na ocupação. Pra mim essa ocupação é muito importante. Ajudou muito, não só a mim mas às outras pessoas que viviam na cruz do aluguel, que é pesada pra caramba. A gente espera que dê tudo certo. Nós estamos no processo de negociação com o proprietário do terreno, né? As casas foram feitas por conta própria, do jeito que o dinheiro dava. O arquiteto, aqui na ocupação, fez o desenho da ocupação. No começo, o projeto era pra abrigar 100 famílias, mas com o passar do tempo foram chegando mais e pobre é daquele jeito: se tiver 2 tomates, cada um fica com 1 e tá tranquilo. Na ocupação a relação de vizinhança é muito forte. O projeto das ruas e dos lotes foi feito pelo Tiago Castelo Branco com os meninos das Brigadas Populares. Eu aprendi muito depois que eu entrei pra ocupação e conheci o pessoal das Brigadas Populares, da FTA, depois que eu conheci muita gente assim, que está estudando, que se dispõe a sair da sua casa e vir aqui... eu tenho o maior prazer de estar falando aqui, porque eu sei que de alguma forma eu tô ajudando em alguma coisa, como vocês também estão ajudando aqui. A gente aprende junto.

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entrevista:

Sobre a relação da comunidade com os grupos de assessoria técnica e com os movimentos sociais

Felter Rodrigues

Militante das Brigadas Populares Morador da Ocupação Dandara (Belo Horizonte - MG)

Sou morador da Comunidade Dandara e militante das Brigadas Populares. Estou no Ocupação desde 2009, o já somam 7 anos de luta e a luta não tem fim. A nossa luta não é só por moradia, é por água, luz, saneamento básico, é saúde, segurança pública... o déficit habitacional é muito grande.

com o projetinho da casa e procurou o Tiago (Castelo Branco) como assessor técnico para avaliar e por mais que não houvesse experiência com projeto, muitas casas estavam bem resolvidas. Tem muito pedreiro na ocupação e se são eles que constroem pra fora, podem construir aqui também.

Nós, moradores da comunidade Dandara, junto com as Brigadas Populares estamos sempre lutando pelo direito de outros companheiros à moradia. Muita gente que não tem um conhecimento sobre a luta e que acha que é só ocupar o espaço para morar, mas é preciso entender que a luta é muito mais ampla do que isso. Quando as Brigadas se organizam junto com a comunidade, a luta é muito mais reconhecida. A gente tem um grupo de advogados, os militantes de base que fazem o trabalho de mostrar pra todo mundo que essa luta é bem mais ampla e não é só por moradia. Esse trabalho de base ajuda todo mundo a entender até onde vai a luta. A relação entre esses assistentes técnicos e políticos se estende de forma muito ampla e dá uma direção pras pessoas em relação até à visão urbanística mesmo.

A universidade (UFMG e PUC) tem participado muito do processo de construção da comunidade, então isso fez com que muitas casas, fossem surgindo. Poucas casas foram feitas em mutirão, sendo a maioria construída pela própria família que vai morar ou em outros casos, pagam a algum companheiro para que ele construa a residência. Os espaços coletivos são construídos por meio de mutirão.

Normalmente quando se ocupa de forma aleatória, cada um pega o lote de um tamanho, faz becos, não consegue dar conta de resolver os problemas internos e a assistência técnica, política e jurídica, dentro desse âmbito, consegue ajudar a resolver muito melhor esse tipo de situação.

Na Dandara temos poucos espaços coletivos, mas a igreja, o centro social, o parquinho... todos foram feitos por meio de mutirões. A horta comunitária, que foi feita para trazermos mais visibilidade às práticas rururbanas, também foi feita através de mutirão. A construção por meio de mutirão faz muita diferença: quando se contrata alguém para construir a casa, a relação não é de carinho, ou de dedicação, é mais pelo dinheiro mesmo. Quando a construção acontece por meio do mutirão, a comunidade se une, trocam saberes e a obra anda mais rápido porque são muitas mãos trabalhando juntas. Minha casa, por exemplo, foi quase toda feita por mutirão.

A prefeitura de Belo Horizonte está leiloando lotes aí, mas diz que não tem onde colocar famílias que não têm casa. A gente sabe que o programa Minha Casa Minha Vida anda a passos lentos... tem gente que está na fila há 10 anos. Aqui, com a organização do MST e das Brigadas Populares, as pessoas saíram dessa fila. As próprias pessoas constroem as suas casas, porque já tem muita gente que trabalha na área da construção civil e tem um conhecimento do assunto. Aqui na Dandara, por exemplo, aconteceu de muita gente – como foi o meu caso – fez um desenho básico 67


O PROJETO ARQUITETÔNICO NA DINÂMICA DA AUTOCONSTRUÇÃO A lógica projetual convencional encara a conformação do espaço através do desenho, não pela sua experiência. Henri Lefebvre (2001) afirma que “os arquitetos parecem ter estabelecido e dogmatizado um conjunto de significações” elaboradas “não a partir das significações percebidas e vividas por aqueles que habitam, mas a partir do fato de habitar, por eles interpretado”. De acordo com Baltazar dos Santos (2009), a lógica do uso do espaço se dá por eventos, numa dinâmica que não cabe em nenhum projeto; os espaços vão sendo construídos à medida em que são ocupados. Castelo Branco afirma que “o projeto como método de trabalho nas ocupações urbanas não corresponde às disposições dos moradores de resolver os problemas imediatamente, sem passar por diversas instâncias de mediação” e parte de abstrações que não fazem parte da experiência da maioria dos moradores dessas ocupações, transformando-se em um desestímulo à participação da comunidade no seu processo de elaboração por não possuir elementos concretos que possibilitem a compreensão e o diálogo. As propostas de ampla participação entre os diversos agentes vêm sido encaradas como formas de abertura e democratização do processo de planejamento nas ocupações urbanas (espacialmente), mas, segundo as reflexões de Soares (2012), esses processos “continuam a ser manipuláveis se conduzidos de acordo com a hierarquia do conhecimento codificado sobre o conhecimento prático e o senso comum”. Retomando as reflexões de Michael Abert (2000) e Abraham Guillén (1990), faz parte do processo de autogestão [e, nesse contexto, da autoconstrução] a buscar por estratégias de aproximação da comunidade aos saberes especializados, de forma a exaltar o exercício da autonomia sobre as decisões dos moradores – que também possuem argumentos técnicos (mesmo que não academicizados) para a solução dos problemas construtivos locais. Parte-se do pressuposto de que a democratização do processo de concepção e construção das ocupações urbanas deve, necessariamente, contemplar todos os saberes responsáveis por este processo, assumindo a multiplicidade de conhecimentos para levar a prática construtiva a uma relação inversa à hegemônica presente nos projetos arquitetônicos e planos urbanísticos. A autoconstrução integra o panorama das grandes cidades: em favelas, loteamentos ilegais, ocupações urbanas, etc. (SOARES, 2012). Tendo sido problematizados em falas anteriores, o assunto abordado nesse item não se baseia na experiência dos programas habitacionais brasileiros para a autogestão da moradia e, sim, no que Ermínia Maricato (1982) chama de “mutirão, autoajuda ou ajuda mútua”, que não conta com recursos técnicos formais especializados do planejamento urbano e do projeto arquitetônico. É “a prática estruturada em saberes e experiências populares como forma de subsistência para a construção da moradia e da cidade” (SOARES, 2012). Raquel Rolnik (2011) defende a ideia de que a habitação extrapola a casa, o “objeto físico de quatro paredes”, tendo relação com o espaço coletivo da rua, dos espaços de convívio, dos espaços de reuniões, eventos, etc., que também são construídos de forma autônoma. Desse processo de autoconstrução, participam moradores, 68

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familiares, vizinhos e, em alguns casos, agentes da mão-de-obra local contratada (pedreiros e serventes). Como dito, a lógica construtiva no âmbito das Ocupações Urbanas autogestionárias não deve reproduzir os métodos convencionais de concepção projetual, entendidos como parte de um processo unilateral e pouco democrático de tomada de decisões. A autoconstrução, nas comunidades, é uma alternativa à falta de recursos, às condições de moradia em glebas ocupadas coletivamente e, principalmente, à lógica capitalista, que “restringe o direito à cidade e à moradia digna dentro do funcionamento especulativo do mercado fundiário e imobiliários” (SOARES, 2012), reproduzida através dos programas de habitação social, que tipificam os indivíduos e desconsidera suas particularidades, desejos e que desconsidera, inclusive, a lógica de organização política-espacial vigentes nas estruturas dos movimentos de ocupação da terra. Para Ribeiro (1997), a lógica da autoconstrução desafia, inclusive, a concepção capitalista sobre a produção da moradia, onde há uma nítida separação entre o produtor da moradia e o proprietário. Maricato (1982), reforça a concepção sobre a prática da autoconstrução como uma resistência à lógica de produção capitalista de mercantilização da força de trabalho, que se baseia na troca de favores, com caráter cooperativo e social (mesmo que, por vezes, seja auxiliada por um profissional remunerado). Kowarick (2009) questiona, entretanto, o valor significativo da casa própria e a falta de auxílio técnico. Sendo assim, a falta de programação e planejamento podem gerar perdas de material e representar um longo sacrifício, tornando o processo de autoconstrução oneroso. No entanto, o autor reconhece a qualidade subjetiva da casa própria autoconstruída, que – segundo as análises de Soares (2012) é “um seguro contra as incertezas que as condições de vulnerabilidade socioeconômica e civil determinam à população carente urbana brasileira”. O autor entende a autoconstrução como uma representação do “fazer humano”, voltada a atender as possibilidades físicas e financeiras dos “construtores/moradores” a partir do contexto, já mencionado, de exclusão socioespacial. Para ele, a metodologia por onde a tomada de decisões parte, exclusivamente, do corpo de profissionais especializados está “distante da realidade na qual se propõe a intervir”, sendo o projeto uma via unilateral de transferência de informação, criando uma sobreposição dos interesses de quem decide (ou projeta) sobre os de quem constrói e, de fato, utiliza.

REFERÊNCIAS ALBERT, Michael. Buscando a autogestão, em Autogestão Hoje: Teorias e Práticas Contemporâneas. São Paulo, Faísca Publicações Libertárias: 2004. BALTAZAR DOS SANTOS, A.P. Cyberarchitecture: the virtualisation os architecture beyond representation towards interactivity. Unpublished PhD thesis, London: The Bartlett School Of Architecture, Universtity College London, March, 2009. KOWARICK, Lúcio. Viver em risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil. São Paulo. Editora 34, 2009. 320p. LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. Tradução: Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Editora Centauro, 2001. LOURENÇO, Tiago Castelo Branco. Cidade Ocupada. 232f. Dissertação de Mestrado - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014. MARICATO, Ermínia. Autoconstrução, a arquitetura possível. In:[org.] A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. 2. ed. São Paulo. Editora Alfa-Omega. 1982. p. 71-94. RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz. Dos Cortiços aos condomínios fechados: as formas de produção da moradia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. IPPUR, UFRJ: Fase, 1997. SOARES, André Costa Braga. Processos Compartilhados de Produção do Espaço Urbano: a mediação da informação na arquitetura. Dissertação de Mestrado. Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, 2012. 69


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entrevista:

Sobre a sua militância nos movimentos sociais, a forma como desenvolve o trabalho de assessoria técnica e como avalia as ações na RMBH em comparação ao contexto de São Paulo.

Isadora Guerreiro Arquiteta e Urbanista Ex coordenadora do USINA-CTAH (SP)

As ocupações declaradas pela Reforma Urbana começaram na década de 70 e em 80 tudo começou a ficar mais organizado. É nessa década que nasce o PT, então existe uma organização em torno da redemocratização, que era a pauta das ocupações. Nesse momento as Ocupações têm uma tradição. Quando o PT se forma, em São Paulo, pelo menos, é composto por um grupo muito diferente de pessoas que estão se juntando. Esse grupo que vai pra terra tá ligado às pastorais, ou seja, tem uma forte influência da igreja. E qual é a ideia? Cria núcleos territoriais que se reúnem, fazem discussões a respeito dos problemas do bairro, rezam, etc. Mas existe uma constância muito grande nisso. E esses núcleos existiam no Brasil inteiro. É um momento em que existe uma rede nacional efetiva, muito alimentada pela vertente da igreja que é da Teologia da Libertação, que é o povo legal que foi estudar Marxismo junto com a bíblia. É uma experiência de trabalho de base. São esses núcleos que começam a ter necessidade de moradia e começam a ocupar, o que vai criando uma ideia de que a ocupação e a terra criam comunidades... era uma época de ditadura, então muitos foram perseguidos, muitos mortos... O princípio político é o do trabalho de base. Daí em meados dos anos 90 o diálogo se expande para a universidade e com os arquitetos de forma mais efetiva (na experiência de São Paulo) e alguns desses arquitetos conhecem a experiência das cooperativas uruguaias. A ideia é que lá no Uruguai eles organizam cooperativas, existem propriedades coletivas, mutirões, autogestão, todo um processo de autogestão do projeto, etc. Lá existe uma coisa que no Brasil nunca conseguimos ter: as propriedades coletivas. Mas isso tem a ver com o fato da Constituição Uruguaia ter isso como tópico e é por isso que eu acho que os advogados precisam estudar a legislação uruguaia para que isso seja uma realidade aqui (no Brasil).

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Por conta da relação entre universidade e movimento popular, fizeram uma caravana de lideranças das comunidades de base com arquitetos e foram para ao Uruguai conhecer essas experiências nas cooperativas. Quando voltaram, começaram a tentativa de implantar essa experiência de produção coletiva na Vila Nova Cachoeirinha: fazer o projeto juntos, produzir em mutirão, praticar a autogestão, etc. Em 1989 a Luiza Erundina é eleita em São Paulo e é daí que começa a existir o financiamento público para a construção das moradias. Aí a tradição, então, passa a ser uma tradição de construção, mas sempre dentro da perspectiva de entender esse espaço como uma outra cidade, a cidade dos trabalhadores, com um trabalho de base muito forte. É no processo de discussão da arquitetura se constrói organicidade e apropriação do espaço. Com o processo de institucionalização do PT e desse processo de 30 anos de democracia, as políticas públicas foram surgindo e o modelo começou a se engessar cada vez mais. Eu digo que o financiamento é nossa solução, mas também é o nosso problema. Por exemplo: no Minha Casa Minha Vida (MCMV) é onde a gente tem mais dinheiro para realizar os projetos, mas onde menos se consegue fazer as coisas. Houve um grande período de ocupações, que é a década de 90, onde ocupava-se para construir e a legislação não era tão rígida e a gente conseguia, por exemplo, construir sem que a terra estivesse plenamente legalizada. Agora, com o Minha Casa Minha Vida isso não é possível, já que é obrigatório começar a obra com a terra já legalizada. Esse é um processo muito recente e é com o MCMV que o processo e toda a estrutura institucional financeira (legislação, políticas públicas, financiamento, etc.) se tornam absurdamente rígidos, que é a consequência da transformação do formato de cidade em mercadoria. E como é possível construir uma anti-cidade-mercadoria dentro de um processo que é o contrário?

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Em São Paulo a gente nunca deixou de ocupar, mas na década de 2000 eram ocupações reivindicativas, onde a gente entrava nos terrenos pra conseguir alguma coisa, mas não se ocupava para ficar. Ocupava, reivindicava, negociava e saía. A partir da década de 2010 que outros movimentos, já fora da tradição dos movimentos ligados ao PT, passaram a usar a ocupação de outro jeito, mas que também não é o jeito que os movimentos fazem na Região Metropolitana de Belo Horizonte. As grandes do Movimentos dos Trabalhadores Sem Terra (MTST), por exemplo, são gigantescas e não são ocupações que estão nessa mesma tradição do trabalho de base. São ocupações onde as pessoas não vivem, onde são instalados barracos de lona, não existe uma organicidade da ocupação ou uma preocupação com a formação política, ou com qualquer tipo de produção. O processo de ocupação, nesses casos, é seguido de uma divulgação ampla de lotes disponíveis pela redondeza. É óbvio que em uma semana a ocupação terá 10 mil pessoas. A consequência material desse tipo de ocupação é o MCMV. Nesse caso a luta e por vitórias políticas. Por um lado, estão mostrando para a sociedade que a terra é um problema, mas o tipo de luta não tem a ver com o trabalho de base. Tivemos, em São Paulo, algumas poucas experiências de ocupações como as que existem na RMBH, que foram completamente dizimadas pelo MCMV. Se um lugar é ocupado e existe ali a perspectiva de que é importante as pessoas se manterem no lugar, produzindo e se apropriando coletivamente, como é feito da RMBH, os horizontes são outros. Em São Paulo o aparato repressivo é devastador e a alternativa dada é o MCMV, quando há essa possibilidade, porque não existe ampla disponibilidade. Ou a rua. Não há muito diálogo. Não existe, lá, um núcleo tão bom de advogados como os movimentos da RMBH têm. Eu acho que o movimento que acontece hoje em dia, principalmente na RMBH, faz parte de um novo ciclo que se abre por não estarmos mais reproduzindo a tradição anterior. É uma possibilidade de repensar essas ocupações como espaços livres, autogeridos, ligados a uma produção efetivamente coletiva, onde a gente caminha para esquecer o modelo do MCMV.

se une. Nesse ciclo o projeto ainda é visto como O PROJETO. É necessário aprovar o projeto na prefeitura e por mais que haja um processo participativo, é preciso chegar no projeto oficial. A construção precisa seguir o que foi estabelecido no projeto... ainda existe a noção de que o arquiteto, dentro dessa formação moderna, é o formulador de um desenho que será usado no canteiro de obras. O que eu vejo de potencialidade nas Ocupações da RMBH é, também, trazer uma função diferente ao arquiteto, pois talvez ele não desenhe mais da forma como a gente entende. Talvez o projeto já nem passe, necessariamente, pelo desenho. Ou talvez passe de um outro jeito. Para mim o arquiteto precisa ser alguém que pensa o espaço e suas potencialidades, muito mais do que o fixe esse espaço. Eu acho que as ocupações de Minas têm essa dinâmica da flexibilidade, do atravessamento.... Eu não sei como vai ser daqui para a frente, mas consigo enxergar essa potencialidade no trabalho. Em São Paulo, diferente de Minas, não existem tantos movimentos sociais tão preocupados com esse tema. Tendo em vista a conformação do contexto político onde as ocupações eclodem na RMBH, um contexto de estruturação da esquerda, um momento onde a própria sociedade não confia na institucionalidade, existe possibilidade de uma discussão política ainda mais abrangente do que no passado. A Ocupação Urbana não está dentro de uma lógica socialista. Não se trata de uma bolha. Os materiais de construção vêm da indústria... existem relações que são completamente capitalistas. O meu entendimento é que não é um dia de revolução que vai transformar tudo. A gente precisa experimentar as formas de socialismo agora, ou não haverá construção do socialismo. É necessário criar resistências produtivas para, daí, conseguir construir territórios livres. É necessário propor novas formas de construir a cidade, não só conformar uma resistência reivindicativa.

A USINA faz parte do antigo ciclo. Nos últimos projetos foi necessário um enrijecimento tamanho, que fez com que esse processo perdesse o sentido. Se no processo do “antigo ciclo” os papéis estão estabelecidos de forma muito clara. Existe uma visão muito clara do que é o papel do técnico e político do arquiteto, o papel do movimento, do morador e como isso tudo

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DIÁRIO DE BORDO:

O Planejamento Construtivo da casa do Lucinei e da Naiara

Aos poucos, pela nossa aproximação, os moradores se sentiam seguros para, por exemplo, conversarem sobre seus projetos residenciais e pedirem ajuda para resolução de eventuais problemas. É importante lembrar que muitos pedreiros moram em ocupações urbanas e no caso da Novo Horizonte não é diferente: são eles que, contratados ou por amizade, acabam ajudando a planejar e a construir muitas casas. O conhecimento técnico pode contribuir, sim, para a melhoria das construções e na experiência da Novo Horizonte, serviu, em grande parte, para ajudar no planejamento das obras, com o objetivo de evitar desperdício de material. Além disso a falta de preocupação com os espaços de circulação e com a ventilação/iluminação dos ambientes entre os moradores – e até mesmo entre os pedreiros – é recorrente. É na assessoria técnica que conseguimos propor soluções que resolvam essas deficiências e isso é resultado de um processo de diálogo e conscientização com os moradores. Esse foi o caso, por exemplo, da residência do Lucinei e da Naiara: os próprios moradores haviam resolvido a planta da casa. O casal procurou assessoria técnica para apresentar o projeto e juntos acabamos identificando sérios problemas relacionados à iluminação e ventilação naturais e largura dos espaços de circulação. Propus que fizéssemos o levantamento do projeto inicial, que seria simulado por meio de maquete, como estratégia para o diálogo e, a partir desse projeto, seriam feitas as alterações necessárias. A convivência me fez perceber que os moradores são muito ligados à tecnologia e lidam bem com as abstrações do mundo digital. Resolvi propor, em vez de maquete física ou papel, um modelo 3D do projeto.

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A simulação digital foi fundamental para conseguirmos tratar das questões problemáticas do projeto que foi resolvido, parede a parede, pelos moradores e eu. Foram feitas, a partir do projeto inicial, algumas simulações. Sugeri, também, que criássemos uma lógica para as medidas dos espaços de circulação: tiramos medidas dos aparelhos eletrodomésticos maiores, do sofá, dos próprios moradores e chegamos à conclusão de que a largura adotada no projeto inicial (50 cm) não permitiria, por exemplo, a entrada da geladeira na casa. Outros problemas foram resolvidos: ventilação e iluminação nos ambientes. Conversamos sobre problemas com mofo, calor, etc. Além do modelo digital, utilizamos desenhos em papel para conversarmos sobre o projeto e enquanto simulávamos o resultado da construção, foi perceptível a empolgação dos moradores, que vislumbravam na tela do computador a realização do sonho.

Com o desenho da casa resolvido, os moradores demonstraram dúvidas sobre materiais, revestimentos, preços, etc. Fizemos, então, uma pesquisa online e conseguimos definir os materiais que seriam empregados na construção, como, por exemplo, o tijolo de vidro para iluminar a circulação interna da casa.

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Projeto: Lucinei e Naiara

Fotos: Jhonatan Melo

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Segundo Naiara, o planejamento da construção trouxe outro parâmetro para o projeto. Lucinei afirma que “foi importante ver como ficaria a casa no computador e poder resolver os problemas antes deles aparecerem. Seria um prejuízo construir uma parede e ter que derrubar porque não tinha ficado boa”. Foi a partir desse projeto que percebi que a assessoria técnica na Ocupação Novo Horizonte seria desenvolvida como forma de auxílio e arranjo dos projetos que os moradores já possuíam para suas casas e nesse sentido, principalmente, o diálogo com os pedreiros era essencial. Muitas assessorias técnicas aconteceram, então, durante pequenas conversas informais ou pelo celular, sem necessariamente passarem pelo campo do projeto. Mas, evidentemente, a partir dessa experiência, todos os moradores passaram a valorizar o planejamento construtivo como forma de evitar custos desnecessários ou desperdício de material, por exemplo.

A carga acumulada devido à vivência e prestação de assessoria técnica em outras residências na Ocupação Novo Horizonte, bem como em outras Ocupações da RMBH, me ajudaram a reunir informações de demandas recorrentes nas comunidades com a intenção de elaborar um material com apelo didático e prático, pelo qual os moradores possam se auxiliar na resolução dos problemas construtivos e de conforto de suas casas, bem como se instrumentalizar para elaborarem seus próprios planejamentos construtivos, por meio de um material básico de referência. 77


*Esse material encontra-se em fase de elaboração e aprimoramento, mas já foi utilizado em alguns momentos de assessoria técnica na Ocupação Novo Horizonte e consiste em uma espécie de questionário-diagnóstico de possíveis problemas construtivos nas casas já consolidadas, com alternativas de soluções. Pode ser aplicado também a casos onde os moradores ainda não construíram as residências definitivas. Há também um espaço dedicado à elaboração de plantas e dimensionamento de ambientes através de uma malha pré-dimensionada e blocos com medidas de móveis geralmente utilizados. Obviamente a utilização desse material requer algum tipo de contato prévio entre o morador interessado e o assessor técnico, que poderá, inclusive, auxiliar os indivíduos na sua utilização, quando for o caso.

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A carga acumulada devido à vivência e prestação de assessoria técnica em outras residências na Ocupação Novo Horizonte, bem como em outras Ocupações da RMBH, me ajudaram a reunir informações de demandas recorrentes nas comunidades com a intenção de elaborar um material com apelo didático e prático, pelo qual os moradores possam se auxiliar na resolução dos problemas construtivos e de conforto de suas casas, bem como se instrumentalizar para elaborarem seus próprios planejamentos construtivos, por meio de um material básico de referência. 79


entrevista:

Sobre a sua militância nos movimentos sociais, a forma como desenvolve trabalho de assessoria técnica e como avalia as ações na RMBH

CAMILA BASTOS

Estudante de Arquitetura e Urbanismo Militante e assessora técnica em Ocupações Urbanas

A primeira vez que eu trabalhei em uma Ocupação Urbana diretamente foi na Dandara, em 2011, pra trabalhar na elaboração de um muro de contenção e no sistema de TVAP (esgoto). Minhas primeiras experiências foram sobre ajudar no que estivessem precisando, ainda que eu não possuísse conhecimentos técnicos então suficientes, pois eu estava no começo do curso. O conhecimento sobre essas questões construtivas foram sendo adquiridos durante a prática. Eu percebi que quando a gente chega lá eles estão mais precisando de mãos e trabalho braçal para realizarem as obras do que de gente para dar opinião. Quando eles não souberem, vão te perguntar. A postura que você apresenta lá dentro é o que muda a relação. Eu já vi muito aluno achando que vai chegar na Ocupação com a fórmula para resolver todos os problemas, sendo que os moradores já possuem muito conhecimento prático acumulado, afinal muitos deles construíram todas as casas onde moraram... A aproximação é muito delicada. Antes de querer fazer qualquer coisa, é necessário conhecer e se aproximar das pessoas. Quando elas precisarem de você, o convite vai surgir naturalmente. Chegar como “herói” é meio bizarro. Eu tenho um problema muito grande com o fato de fazerem das Ocupações Urbanas um laboratório, sabe? Com o tempo eu entendi que o estudo teórico é super necessário, mas essa ainda é uma questão muito complicada pra mim. Eu até preciso segurar um pouco a onda... ainda mais quando a gente se envolve muito. Em 2015, por exemplo, eu morei quatro meses na Ocupação Paulo Freire, emendei muitas noites em vigília nas Ocupações da Mata da Izidora, terminando drasticamente com a morte do Cadu. Aí a minha birra foi ficando maior: você entende que são vidas e que não se trata de uma das nossas maquetezinhas e quando você chega a perder um amigo e vê muita gente se referindo a ele como “um cara lá da ocupação”... é muito ruim. É uma relação pessoal, não de estatística, como a universidade tende a tratar muitas vezes.

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O assessor técnico jamais pode determinar o que será construído. Não tem como chegar na Ocupação com um objeto pronto ou a ser construído sendo que há várias outras questões territoriais que precisam ser resolvidas primeiro. Estou, junto com um grupo de pesquisa da UFMG, escrevendo um artigo onde a gente problematiza as Ocupações Urbanas como tensões entre o espaço diferencial e o espaço abstrato. No espaço diferencial, podem se realizar todas as nossas expectativas: a autogestão, as hortas urbanas, espaços comuns autogestionários com boa convivência... e no espaço abstrato encaramos a realidade: é o despejo, é o tráfico, a polícia, a falta de água, a falta de luz, é o cansaço, a falta de lugar para os filhos ficarem, o fato de ter que construir sua casa... Então as Ocupações são esse meio termo e é importante que as pessoas compreendam isso e abandonem o fetiche laboratorial sobre a questão. É necessário entender que a ajuda do assessor técnico tem que partir da forma como os moradores querem que ela seja ofertada, não como a gente quer ou acha que deve ser. Quando eu puxei a assistência técnica para a Ocupação Paulo Freire, havia o desejo de que fosse algo como um “start” e que as pessoas dessem continuidade pode conta própria... um dos grandes problemas do movimento é que somos poucos e acabamos por repetir as ações, o que gera um cansaço sobre as mesmas pessoas... além disso há uma cobrança muito grande por parte da universidade sobre o porquê de não estarmos fazendo essas ou aquelas coisas, mas é necessário lembrar que existem pessoas que, diferentes de nós, vivem a situação no dia a dia e permanecem nas ocupações depois que nós partimos para as nossas casas. Eles têm mil problemas para lidar que são de uma “imediatez” de vida muito maior do que a da nossa pesquisa ou das aspirações da assistência técnica. Na minha opinião ainda há uma “fetichização” muito grande acerca da produção do espaço nas Ocupações Urbanas.

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Às vezes a gente chega numa Ocupação querendo colocar em prática todas as técnicas que a gente aprende na faculdade e que parecem muito eficazes e aplicáveis e mais baratas e mais sustentáveis, mas a realidade da periferia infelizmente é outra. Não é que eu não acredite no conhecimento acadêmico, mas quando você vai trabalhar um determinado tipo de tecnologia no contexto construtivo da Ocupação Urbana é necessário lembrar que a mão-de-obra nesses casos é composta pelos próprios moradores, que na maioria das vezes nunca tiveram contato com esse universo. Há a possibilidade de deixar que o tempo resolva algumas coisas acontecerem e esse tempo não é o tempo da universidade. Quando surge, por exemplo, a proposta da construção de um sistema de Evapotranspiração para o sistema de esgoto, surge a questão: você tem bananeira na sua casa? Não. Você tem vaso, descarga... A construção dessa consciência é feita com o tempo e de forma gradativa.

sobre o modo de vida das pessoas, que é mais que um experimento acadêmico. É o jeito como as pessoas sobrevivem. Na época dos nossos levantamentos, 66% de Belo Horizonte ainda era autoconstruído. Esse índice deve ter abaixado um pouco, porque muita coisa foi derrubada com as obras da copa e muito prédio foi construído. A autoconstrução não é um bicho de sete cabeças que tem que ser treinado pela humanidade, ela é o bicho que fez a humanidade. A gente tem que entender isso e se enquadrar, não o contrário. A gente precisa entender que não é porque a gente aprendeu na faculdade que é o melhor jeito.

A assessoria técnica vai muito no sentido da melhoria. Na minha opinião é muito necessário o técnico, mas também é necessário a criação de laços afetivos. Amizades que nos permitam tomar uma cerveja no fim do dia, onde o morador se sinta à vontade para oferecer um café, para sentar, conversar sobre coisas da vida e não há conhecimento técnico que te faça saber dar valor para esse encontro. Então eu vejo, inclusive, a minha futura formação técnica como um caminho para ajudar gente que me ajuda muito e que se a formação técnica servir para ajudar a construir a casa deles, melhor ainda. Nós, assessores técnicos, podemos contribuir na ocupação com melhorias: resolver questões de ventilação, mofo, evitar infiltrações, que são contribuições bem técnicas, inclusive. Mas o que determina tudo isso é a sua relação. Quando eu entrei pra arquitetura fiquei muito impressionada com o seguinte: eu morava em um bairro periférico, que é o Dom Bosco, Zona Oeste de Belo Horizonte, que é um bairro bastante pequeno e todo autoconstruído. Como eu não frequentava tanto o lado do centro naquela época e quando entrei na Escola de Arquitetura me deparei com o fato de que muita gente não mora em casa que construiu. Isso foi um choque pra mim, quando comecei a ver que existia um fetiche muito grande em cima da autoconstrução, como se essa fosse a solução para a salvação do mundo. Nesse momento eu pensava “gente, mas o mundo é esse”... Eu cresci vendo meus vizinhos batendo laje no domingo enquanto as mulheres tomavam cerveja e jogavam buraco e, no fim disso, todo mundo parava pra assistir o jogo... Então essa foi uma chavinha que foi acionada em mim: a universidade é elitista e as coisas que eles estudam

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territรณrios URBANOS Foto: Jhonatan Melo


Na realidade da conformação urbana hegemoneizada e excludente, onde a infraestrutura das cidades serve a classes com maior poder aquisitivo e é um dos principais meios de obtenção de lucro de grandes construtoras e empresários do ramo imobiliário, principalmente, as Ocupações Urbanas em terrenos que não cumprem função social são respostas imediatas de resistência à lógica capitalista de mercantilização das cidades. Mais que perguntas, são questões! É a problematização viva sobre uma cidade que pertence a poucos, mas que custa o dinheiro, a saúde e a vida de muitos. As Ocupações Urbanas, especificamente as que se localizam na RMBH – por terem sido objetos desse estudo – confrontam a lógica da organização espacial da cidade formal capitalista, trazendo ao espaço a potencialização para o surgimento de novas formas de sociabilização e de organização no meio, onde predominam, na maioria das vezes, relações baseadas nos princípios da construção coletiva, na autogestão política e territorial e na autoconstrução dos espaços pelos próprios moradores. Ainda que hajam contradições inerentes à lógica dada pelo capital, essas comunidades se conformam como fissuras políticas, sociais e espacial ao capitalismo. Formas de resistência prática, pelo exercício do direito à moradia e à dignidade da vida humana. Dentro desse contexto, movimentos sociais e assessores técnicos engajados nas causas urbanas convergem esforços no sentido de suscitarem a reflexão política, para que se fortaleça, dentro das comunidades, o discurso do direito à cidade e para que os próprios moradores se organizem politicamente, como uns dos principais agentes da luta urbana. Por isso, é imprescindível que os moradores possuam ferramentas para decidirem sobre o espaço urbano que lhes compete, trazendo à tona novos modelos de organização socioespacial. A assessoria técnica levada à realidade das Ocupações Urbanas pode potencializar as tensões políticas e sociais que esses espaços trazem consigo, pela utilização do saber técnico e da formação política coletiva em benefício dos direitos humanos, sobretudo de classes sociais menos favorecidas. Sendo assim, o diálogo entre os moradores e os especialistas técnicos deve ser baseado em ideais de horizontalidade e construção coletiva, onde os indivíduos reconheçam seus lugares dentro da realidade específica do contexto e consigam confluir saberes (técnicos e populares) com a finalidade de melhorarem os espaços construídos informalmente, e, consequentemente, contribuírem para a consolidação da luta urbana por uma cidade justa e territorialmente equilibrada. Além disso, a autogestão é o caminho e o fim da construção da autonomia nos sujeitos envolvidos, que devem ser instrumentalizados para conseguirem lidar com as questões políticas e construtivas de acordo com a formação coletiva dentro das comunidades. No campo da Arquitetura e do Urbanismo, profissionais técnicos precisam reconhecer os saberes populares dos agentes envolvidos no processo de consolidação e na vida cotidiana de uma Ocupação Urbana e ponderar formas para que o saber técnico contribua na melhoria das condições espaciais, sociais e ambientais das Ocupações Urbanas. O projeto prescritivo se mostra, então ineficiente, regulador e autoritário, pois parte do princípio de que o profissional detenha um saber absoluto e, portanto, seja ele o agente habilitado a planejar os espaços urbanos e decidir sobre as formas de organização das comunidades das quais ele, inclusive, não pertence (pelo menos a princípio). Devemos, então, entender que o trabalho de assessoria técnica dentro dessas comunidades é fruto de uma relação de empatia política e de uma construção coletiva, onde, evidentemente, os moradores são agentes principais, afinal tratamos, aqui, da moradia e das condições de vida de pessoas reais. Não encarar as Ocupações Urbanas e seus moradores, bravos resistentes urbanos, como meras estatísticas é um bom começo. A partir daí, inserido no meio e se relacionando com os indivíduos, ainda que reconhecido como o profissional arquiteto, a relação de assessoria é levada a outro patamar de potência: a desconstrução sobre o monopólio do saber pode (e provavelmente vai) acontecer no cotidiano, através da aproximação entre os indivíduos, pelo reconhecimento – por parte dos profissionais – que o trabalho nas comunidades não deve se colocar como uma atitude assistencialista, mas como um trabalho que pode fortalecer a luta nada mais que justa pela moradia e pela cidade.

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