O relacionamento entre o Homem e a Arquitectura Joana Costa
Joana Costa
D I M E N S Õ E S D O AC TO D E E X P E R I E N C I A R O relacionamento entre o Homem e a Arquitectura
D I M E N S Õ E S D O A C TO D E E X P E R E N C I A R
10|11 Professora Doutora Susana Faro Prof. Arq. João Rapagão
faculdade de arquitectura e artes
UNIVERSIDADE LUSÍADA DO PORTO
DIMENSÕES DO ACTO DE EXPERENCIAR o relacionamento entre o Homem e a Arquitectura
Joana Costa Tese para obtenção do Grau de Mestre
Porto, 2012
I
Apesar da presente dissertação ser um trabalho individual, contou com a ajuda e participação de diversas pessoas, às quais gostaria de deixar o meu mais profundo agradecimento: Aos meus pais, por tudo. Aos meus orientadores, professor João Rapagão e professora Suzana Faro, pela orientação sempre tão atenta e admirável, por tudo o que me ensinaram, pelo interesse demonstrado e pelo tempo disponibilizado. Ao Artur, pela amizade, pela companhia inestimável e pela ajuda incansável durante todo este processo. A todos os meus familiares e amigos, pelo apoio incondicional e pela atenção ao longo da construção deste trabalho. Aos funcionário das bibliotecas da Universidade Lusíada do Porto e da Faculdade de Arquitectura do Porto, por toda a ajuda disponibilizada.
Muito obrigada!
III
Índice
Agradecimentos
III
Resumo
VII
Abstract
IX
Introdução
11
Capítulo I | Relação entre o Homem e a Arquitectura – processos cognitivos
17
1.1 | Sentidos enquanto sistemas perceptivos:
22
Visão, audição, olfacto e tacto. 1.2 | Percepção
41
1.3 | Memória
47
Capítulo II | O espaço e a sua mensagem - valores arquitectónicos 2.1 | Concepção espacial e formal
53 56
2.1.1 Espaço enquanto realidade:
57
Escala, forças verticais e horizontais, dinâmica dos volumes e ritmo. 2.1.2 Espaço enquanto domínio arquitectónico:
70
Espaço positivo e negativo (em planta e em corte), espaço conexo ou estático, espaço direccional ou não direccional e espaço funcional. 2.2 | Concepção material
84
2.2.1 Materiais
84
2.2.2 Cor
91
2.3 | Concepção imaterial
102
2.3.1 Luz
102
2.3.2 Som
111
V
Capítulo III | O meio enquanto dimensão activa na experiência arquitectónica
121
3.1 | Experiência do espaço na arquitectura egípcia: ordem eterna
125
3.2 | Experiência do espaço na arquitectura tradicional japonesa: harmonia sensorial
139
3.3 | Experiência do espaço na arquitectura barroca: êxtase teatral
152
3.4 | Experiência do espaço na arquitectura do Nacional-Socialismo: imponência espacial
Conclusão
167
183
Referências bibliográficas e iconográficas: Bibliografia
191
Iconografia
197
Resumo
A arquitectura existe enquanto reflexo da existência humana, acompanhando a sua evolução, estruturando a sua realidade e envolvendo as suas vivências. A dialéctica entre o homem e a arquitectura é possibilitada pela capacidade humana de compreender a sua envolvente, de experienciar os espaços. Considerando que o propósito primordial da disciplina é responder às necessidades funcionais e emocionais do homem, é relevante compreender o funcionamento desse relacionamento, não só com o intuito de clarificar as dimensões que abrange, mas essencialmente para esclarecer quais os factores que determinam a qualidade da experiência. Na arquitectura, o fenómeno de experienciar, mais do que percepcionar, implica o acto de recolher, recordar, de compreender e reagir emocionalmente aos espaços. A arquitectura, enquanto realidade percepcionada, é constituída por valores espaciais e formais, bem como materiais e imateriais, que estabelecem a ligação com o homem e estruturam a sua vivência, estimulando, assim, a cognição que lhe é inerente. O lugar em que esta simbiose se desenvolve proporciona um contexto específico, influenciando tanto o emissor como o receptor e, consequentemente, a mensagem, atribuindo-lhe assim um carácter único. Experienciar é conviver com as características palpáveis e simbólicas de um espaço, com a realidade que o envolve e com a capacidade pessoal de as assimilar. Experiência e arquitectura, enquanto domínios vitais do acto de viver, possibilitamse reciprocamente. A experiência assume-se como a ponte entre o homem e a arquitectura, enquanto, por sua vez, a arquitectura dita a qualidade da experiência.
Palavras Chave: Experiência, Sentidos, Homem, Arquitectura e Meio
VII
Abstract
Architecture exists as a reflection of human existence, monitoring their evolution, structuring their reality and involving their experiences. The dialectic between man and architecture is made possible by the human capacity to understand its surroundings, to experience spaces. Considering that the primary purpose of this discipline is to meet functional and emocional needs of man, is relevant to understand the workings of this relationship, not only in order to clarify the dimensions that covers, but essentially to clarify which factors determine the quality of experience. In architecture, the phenomenon of experiencing, rather than perceiving, implies the act of collecting, remember, understand and react emotionally to the spaces. Architecture, as a perceived reality, consists of spacial and formal values, well as material and immaterial, that link with man and structure their experience, stimulating, like this, the cognition that is inherent to man. The place where this symbiosis develops provides a specific context, influencing both the emitter and the receiver and, consequently, the message, giving it a unique character. Experiencing is to live with the tangible and symbolical spacial characteristics, with the reality that surrounds space and with the personal capacity to assimilate. Experience and architecture, as vital areas of the living act, enable one another. Experience assumes itself as a bridge between man and architecture, while in turn, architecture dictates the quality of the experience.
Key words: Experience, Senses, Man, Architecture and Environment
IX
Introdução
11
A arquitectura sempre foi reflectida e projectada à luz de valores distintos, focando questões espaciais, formais, funcionais, estruturais e materiais, tentando compreender, paralelamente, a dimensão conceptual onde os mesmos se enquadram e cuja ordem de importância se foi apropriando a diferentes interpretações. Mas, só muito recentemente é que a interacção entre o homem e a arquitectura se assumiu relevante no campo do estudo e crítica arquitectónica. É no decorrer do existencialismo pós-segunda Guerra Mundial que é consolidada a área filosófica denominada fenomenologia, cujo objectivo visa a compreensão e dissecação dos fenómenos inerentes à vida e comportamentos humanos, balizados pelos sentidos e pela percepção, pela memória e pelo enquadramento sociocultural. Surge, neste contexto, a necessidade de tornar inteligível a reacção do ser humano aos espaços através dos diferentes estímulos proporcionados pelos mesmos, procurando compreender o seu inter-relacionamento e a experiência resultante. Não se pretende afirmar que os processos de apreensão do meio que estruturam essa mesma experiência só assumem importância a partir deste período específico, uma vez que são inatos ao ser humano. Assim, experienciar arquitectura não é um acto acidental ou secundário, uma vez que se encontra intrinsecamente ligado ao acto de viver, assumindo-se como o objecto de estudo primordial. A presente dissertação é desenvolvida no âmbito da conclusão do Mestrado Integrado do Curso de Arquitectura da Faculdade de Artes e Arquitectura da Universidade Lusíada do Porto. Ainda que de uma forma mais indirecta, as unidades curriculares de Projecto, Teoria da Arquitectura e História da Arquitectura têm, igualmente, um papel importante na concepção deste trabalho, na medida que enunciaram e exploraram a temática em questão. A motivação subjacente ao estudo deste tema teve origem no desenvolvimento de um trabalho de investigação sobre os projectos e obras do arquitecto Luis Barragan, que permitiu compreender a dimensão da importância dos fenómenos que estruturam a experiência da arquitectura, bem como a sua capacidade de significar e despertar emoções. Surgiu, então, o interesse em tentar descodificar e analisar as vivências humanas no campo arquitectónico, movido igualmente pelo gosto pela área da psicologia e da fenomenologia, recentemente adquirido e consolidado durante as pesquisas para a dissertação. A selecção do tema foi igualmente motivada pelas críticas actuais de arquitectos como Juhani Pallasmaa e Neil Leach ao processo de concepção arquitectónica na sociedade actual, segundo as quais os resultados visam a exacerbação visual da arquitectura, com propósitos exclusivamente comerciais, em detrimento de uma vivência plena e profunda dos espaços. A combinação destas motivações originaram inquietações e impulsionaram a vontade, não de querer identificar as situações em que essa suposta patologia recentemente identificada se materializa, mas sim de perceber o que compreende um acto de experienciar rico no domínio da arquitectura e quais as suas vantagens.
13
Desta forma, a pesquisa foi direccionada no sentido de compreender que, da mesma forma que o ser humano necessita da arquitectura nas suas vivências, também a arquitectura vive da presença humana. Mais do que servir as necessidades do homem, a arquitectura ganha significado com a sua presença, o que resulta na necessidade de aprofundar a forma como se estrutura e funciona esta simbiose. Assim, quando se considera o fenómeno da experiência no âmbito da arquitectura, surgem, naturalmente, diversas questões. Em que consiste a experiência? Resume-se a um conjunto de percepções? Envolve elementos de ordem afectiva ou imaterial? Que valores arquitectónicos são responsáveis pela manipulação das experiências humanas? O processo de experenciar é influênciado pela circunstância? A experiência é um fenómeno que resulta de diversos processos, estruturando-se enquanto resposta a circunstâncias distintas. Uma vez que se assume como uma forma de diálogo, através do qual o homem vive os espaços e conhece a sua realidade, emerge o interesse de estudar esse fenómeno à luz dos factores que possam condicionar as suas vivências. Com o intuito de responder às questões que se levantam relativamente ao tema, é o objectivo primordial do presente trabalho esclarecer o processo de comunicação entre o homem e a arquitectura, de acordo com o contexto em que se desenvolve. As preocupações na área da psicologia e da fenomenologia são relativamente recentes no mundo da teoria da arquitectura, uma vez que ambas nasceram no século XX. Assim, as primeiras considerações sobre as características da percepção humana e, consequentemente, do pensamento e da relação com o meio, foram feitas por teóricos franceses como Jean-Paul Sartre, Jacques Derrida, Maurice Merleau-Ponty e Michael Foucault e, enquanto as questões de domínio fenomenológico foram alvo da cogitação dos filósofos Edmund Husserl e Martin Heidegger. Mas, os responsáveis pelo transporte deste tema de estudo para a arquitectura foram teóricos como Rudolf Arnheim, psicólogo alemão especializado em psicologia da arte, que desenvolveu um extenso trabalho que contribuiu para o aprofundamento da relação entre a arquitectura, a arte e os mecanismos do pensamento. Edward T. Hall, antropólogo americano, investigou a relação do homem com o espaço, quer pessoal, quer arquitectónico e cultural, e Steen Eiler Rasmussen, arquitecto dinamarquês, focou-se nos fenómenos inerentes à experimentação humana da arquitectura. Christian Norberg-Schulz, teórico e historiador norueguês, teve como objecto de estudo inicial, preocupações do ponto de vista analítico e psicológico da arquitectura, tendo posteriormente abordado a essência do lugar, sendo dos primeiro teóricos a mencionar o já referido Martin Heidegger, um dos grandes pioneiros da fenomenologia, associado ao campo da arquitectura. Estudos mais recentes foram feitos pelo teórico e arquitecto finlandês Juhani Pallasmaa, que centra a sua atenção e pesquisas na dissecação da existência arquitectónica, enquanto Josep Maria Montaner, teórico espanhol,
aborda o entendimento da arquitectura e respectivo enquadramento formal, em que a forma significa o todo arquitectónico. A investigação realizada no decorrer da dissertação tem um cariz essencialmente bibliográfico, com recurso à consulta de monografias, artigos, periódicos e dicionários, contando também com o recurso a documentos electrónicos e documentários relativos aos temas previamente referidos. Uma vez que o objecto de estudo do trabalho está intimamente ligado a processos cognitivos como a percepção e a memória, no contexto da experimentação espacial, surge a necessidade de recorrer a esclarecimentos dentro de outras áreas, nomeadamente na anatomia, na psicologia e na fenomenologia. O presente trabalho é desenvolvido não só com o recurso a um corpo escrito principal apoiando-se paralelamente em definições específicas de conceitos relevantes, associados ou não à arquitectura. São elaboradas breves contextualizações históricas, sociais e culturais, tendo em vista o enquadramento e o apoio dos assuntos considerados e analisados. Recorrese ainda à exposição escrita e imagética de obras de arquitectos relevantes para a temática, enquanto elementos explicativos e complementares dos temas enunciados. Para uma melhor análise de um fenómeno tão subjectivo e ambíguo, optou-se por organizar o tema de acordo com as variáveis que participam activamente no fenómeno de experienciar o espaço. A presente dissertação encontra-se, então, estruturada em três partes: a análise da experiência em conformidade com o sujeito, com a arquitectura e com o meio. Esta opção organizativa procura estabelecer um paralelismo com o funcionamento de um acto comunicativo, constituído por um receptor, um emissor e uma circustância onde o mesmo se desenvolve. O conteúdo da primeira parte visa a abordagem dos sentidos, da percepção e da memória, enquanto processos do intelecto que permitem ao homem estabelecer uma relação com tudo o que o rodeia e, mais especificamente, com a arquitectura, clarificando assim o processo do contacto humano com os espaços. No segundo capítulo, procura-se compreender de que forma esses mesmos mecanismos actuam na apreensão do espaço, recorrendo-se à análise dos diferentes valores espaciais, formais, materiais e imateriais que estruturam a arquitectura, estudando individualmente o seu papel na manipulação das vivências humanas. Por último, considerando que o homem e a arquitectura se inserem e desenvolvem num contexto específico, surge a necessidade de explorar a influência dos princípios ideológicos, religiosos, económicos, sociais, culturais e territoriais na concepção arquitectónica, e a forma como interagem com a experiência dos espaços. A conclusão pretende, então, expôr a importância das três variáveis referidas nos capítulos e esclarecer a estrutura da sua dialética no processo que envolve a experiência espacial e arquitectónica.
15
Capítulo I |
RELAÇÃO ENTRE O HOMEM E A ARQUITECTURA - PROCESSOS COGNITIVOS
17
Um dos principais propósitos da arquitectura é exaltar o drama da vida. A arquitectura deve, então, promover espaços diferenciados para actividades diversas e deve articulá-los, para que assim se reforce o conteúdo emocional do acto particular de viver que neles ocorre1.
A arquitectura é parte integrante da existência humana. O ciclo da vida a que o homem está entregue encontra-se intimamente ligado com o meio construído, dependendo da sua existência a vários níveis. Naturalmente, o relacionamento mais próximo entre ambos é materializado pela capacidade humana de experienciar as coisas que constituem o seu meio, capacidade que já foi estudada de acordo com perspectivas filosóficas, psicológicas, antropológicas, sociológicas e, recentemente, arquitectónicas. No decorrer do estudo da experiência no âmbito arquitectónico, foi estabelecida uma premissa, defendida por vários autores, que sublinha o facto de que qualquer manifestação arquitectónica deve ser compreendida como um todo. Quando se refere o entendimento total dos elementos que lhe são inerentes, pretende-se sublinhar o entender enquanto experiência. Bruno Zevi salienta a importância do espaço interior enquanto definidor da essência arquitectónica. Embora sublinhe o papel da percepção visual na apreensão do conjunto construído, defende a experiência directa, presencial, dos espaços, como a chave para a compreensão plena da arquitectura2. Assim, o homem deve assumir um papel activo nessa vivência específica, movimentando-se e experimentando o dinamismo visual da espacialidade. Steen Eiler Rasmussen sustenta a existência de uma multiplicidade de factores significativa, que define o espaço arquitectónico e que contribui para uma vivência plena do mesmo. O arquitecto debruça-se sobre os fenómenos tangíveis e intangíveis da arquitectura, sólidos e vazios, cor, escala, proporção, textura, luz, ritmo, entre outros, dissecando o seu contributo na constituição de uma essência espacial específica. Compreender a arquitectura, portanto, não é o mesmo que estar apto a determinar o estilo de um edifício através de certas características externas. Não é suficiente ver a arquitectura; devemos vivê-la3. No seguimento interpretativo da experiência presencial e global da arquitectura,
1 One of the prime purposes of architecture is to heighten the drama of living. Therefore, architecture must provide differentiated spaces for different activities, and it must articulate them in such a way that the emotional content of the particular act of living which takes place in them is reinforced. (tradução livre)
BACON, Edmund – Design of the cities. London: Thames and Hudson, 1978. ISBN 0-500-27133-X. p.19 2
Cfr. ZEVI, Bruno - Saber ver a arquitectura. 5ªed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. ISBN 85-336-0541-2
RASMUSSEN, Steen Eiler – Viver a arquitectura. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2007. ISBN 978-989-8010-99-5. p.28 3
19
enquanto resultado de um conjunto de factores que a definem e devem ser tidos em conta, os arquitectos Juhani Pallasmaa e Neil Leach defendem uma posição mais radicalizada. Não só sublinham que a vivência dos espaços não deve ser fragmentada, como condenam a tendência para se reduzir a experiência arquitectónica à recolha de dados visuais. Promovida pelo êxtase informativo, comunicativo e materialista da actualidade, acreditam que a realidade se transforma em hiper-realidade e que o recurso intensivo à imagem conduz a uma autenticidade questionável do que nos rodeia4. Crêem que esta realidade se transporta e verifica na arquitectura contemporânea, exaltando a necessidade de apelar ao estímulo de todos os receptores sensoriais humanos como forma de contrariar essa tendência. Só através de uma percepção global do meio é possível restituir veracidade à vivência da arquitectura. Christian Norberg-Schulz define a relação entre o homem e a arquitectura como essencial, em que o espaço arquitectónico se assume como a materialização do espaço existencial humano. Compreendendo o contexto em que o homem existe, defende que o mesmo nasce com uma predisposição para se relacionar com o meio físico em que se insere: O interesse do homem pelo espaço tem raízes existenciais: deriva de uma necessidade de adquirir relações vitais no ambiente que o rodeia para atribuir sentido e ordem a um mundo de acontecimentos e acções. Basicamente, orienta-se a objectos, ou seja, adapta-se fisiológica e tecnologicamente às coisas físicas, influencia outras pessoas e é influenciado por elas, e capta as realidades abstractas ou significados transmitidos pelas diversas linguagens criadas com o objectivo de comunicar. A sua orientação para diferentes objectos pode ser cognitiva ou afectiva, mas em qualquer caso, deseja estabelecer um equilíbrio dinâmico entre ele e o ambiente que o rodeia5. O homem reconhece a imagem do mundo em que vive através da arquitectura. A experiência da mesma resulta em sensações específicas, que ditam a aceitação humana dos espaços e assumem determinados significados. Permite, também, definir a vivência territorial, contribuindo para a existência da noção de lugar, familiar e quotidiano, ou estranho e desconhecido. Experienciar não se cinge à compreensão material dos edifícios, mas também
4
Cfr. LEACH, Neil – A anestética da arquitectura. 1ªed. Lisboa: Antígona, 2005. ISBN 972-608-180-7. p.9 a 16
PALLASMAA, Juhani - Los Ojos de la piel: La arquitectura e los sentidos. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2006. ISBN 9788425221354. p.9 a 13 5 El interés del hombre por el espacio tiene raíces existenciales: deriva de una necesidad de adquirir relaciones vitales en el ambiente que le rodea para apontar sentido y orden a un mundo de acontecimientos y acciones. Básicamente se orienta a objectos, es decir, se adapta fisiológica y tecnologicamente a las cosas físicas, influye en otras personas y es influído por ellas y capta las realidades abstractas o significados transmitidos por los diversos lenguajes creados con el fin de comunicarse. Su orientación hacia los diferentes objetos puede ser cognoscitiva o afectiva, pêro en cualquier caso desea establecer un equilíbrio dinâmico entre él y el ambiente que le rodea. (tradução livre)
NORBERG-SCHULZ, Christian – Existencia, espacio y arquitectura. 1ªed. Barcelona: Editorial Blume, 1975. ISBN 84-7031233-2. p.9
ao entendimento da organização urbana que a arquitectura estabelece . Determina, assim, o habitar, fenómeno existencial complexo, quer num universo mais próximo e pessoal, a casa, como num universo mais abrangente e global, a cidade. Perante um domínio tão abrangente e complexo, uma vez que resulta da combinação de diversos factores externos à própria arquitectura, e tendo em conta as diferentes considerações de arquitectos distintos, previamente mencionadas, várias questões se levantam. Neste capítulo procura-se compreender os mecanismos que permitem ao homem estabelecer uma relação com o meio, e os processos que se realizam para que tal se verifique. Esta interacção com a arquitectura só é possível porque o homem tem a capacidade de experienciar o que o rodeia. O ser vivo é em parte uma fábrica química, em parte uma máquina calculadora, em parte uma alma pensante… Estas representações completam-se, mas nenhuma esgota o sujeito6.
L. BRILLOUIN in MORIN, Edgar – O método II: a vida da vida. Sintra: Publicações Europa-América, 1980. [s/ISBN]. p.145 6
21
1.1 | SENTIDOS ENQUANTO SISTEMAS PERCEPTIVOS
Qualidade Arquitectónica só pode significar que sou tocado por uma obra7.
Peter Zumthor afirma que quando se entra num edifício, visualiza-se o seu espaço e numa fracção de segundo é transmitida uma atmosfera, sente-se a sua essência. A atmosfera comunica com a nossa percepção emocional. Não se apoia num pensamento estruturado e linear, mas sim numa reacção instintiva de sobrevivência. Compreensão imediata, ligação emocional, recusa imediata8. Juhani Pallasmaa refere que cada experiência comovedora arquitectónica é multissensorial; as qualidades do espaço, da matéria e da escala medem-se em partes iguais pelo olho, pelo ouvido, pelo nariz, pela pele, pela língua, pelo esqueleto e pelo músculo9. Compreende-se, então, que não só nos encontramos munidos de mecanismos que permitem uma apreensão e compreensão do espaço, empírica e imediata, como também é o estímulo dos mesmos que dita a qualidade da experiência de um determinado lugar. São os sentidos que permitem a criação dos nossos mundos perceptivos, sendo necessário compreender e articular as influências dos sistemas de recepção sensorial e do contexto cultural e social. Assumem, então, um papel primordial, uma vez que são a ponte entre o homem e a vivência da arquitectura, conferindo-lhe significado. (…) Uma obra de arquitectura gera uma complexidade indivisível de impressões (…)10. Perante a importância que os receptores sensoriais têm, uma vez que são determinantes na inter-relação homem e arquitectura, torna-se necessário compreender o papel mais específico de cada um dos sentidos directamente associados ao processo de percepção da arquitectura: visão, audição, tacto e olfacto. Anatómica e fisiologicamente falando, um receptor sensorial é qualquer estrutura especializada na detecção de estímulos. Alguns são simples terminações nervosas, enquanto
7
ZUMTHOR, Peter - Atmosferas. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2006. ISBN 978-84-252-2169-9. p.11
8
Idem, p.13
Cada experiencia conmovedora de la arquitectura es multisensorial; las cualidades del espacio, de la matéria y de la escala se miden a partes iguales por el ojo, el oído, lo nariz, la piel, la lengua, el esqueleto y el músculo. (tradução livre)
9
PALLASMAA, Juhani - Los Ojos de la piel: La arquitectura e los sentidos. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2006. ISBN 9788425221354. p.43 10
Una obra de arquitectura genera um complejo indivisible de impressions. (tradução livre)
Idem, p.46
outros se classificam como orgãos sensoriais - terminações nervosas combinadas com tecido conjuntivo11, epitelial12 ou muscular13 que melhoram ou moderam as respostas de um determinado estímulo. São exemplo os nossos olhos e ouvidos, existindo também inúmeros agentes sensoriais miscrocópicos na nossa pele, músculos, articulações e vísceras. Os receptores dos nossos sentidos convertem a energia que entra nos sinais electroquímicos que o sistema nervoso utiliza para a comunicação. Se a energia que entra for suficientemente intensa, detonará impulsos nervosos que transmitem informação codificada sobre as várias características do estímulo, através de fibras nervosas específicas, a determinadas regiões do cérebro14. O cérebro processa a informação recepcionada e responde adequadamente. Pode-se afirmar, então, que este processo depende quer dos receptores sensoriais quer do cérebro, e estrutura-se em quatro operações: detecção, transdução (conversão de energia de uma forma para a outra), transmissão e processamento da informação15. É através de um código desenvolvido naturalmente que é levada a cabo a transdução (transformação ou codificação) dos estímulos em impulsos nervosos. Estes sinais, por sua vez, activam outros componentes, como músculos ou glândulas, cuja função é transmitir a informação recebida a todo o organismo16. Portanto, o sistema nervoso actua como uma rede de informação, ainda que a posse de sensores por si só não seja suficiente. Edward T. Hall considera que o aparelho sensorial do homem se divide em duas categorias de receptores: à distância, referentes aos objectos afastados – olhos, ouvidos e nariz; e imediatos, que exploram o mundo próximo – pele, mucosas e músculos.
11 Material composto por fibras que forma uma estrutura de suporte para os tecidos e órgãos do corpo. Cartilagem e osso são formas especializadas de tecido conjuntivo. (tradução livre)
MEDICINE NET INC. – MedTerms online medical dictionary A-Z list: Definiton of Connective tissue [em linha]. New York: WebMed Network, 1996, actual. 24 Set. 2009. [Consult. 12 Julh. 2011]. Disponível em: http://www.medterms.com/script/ main/art.asp?articlekey=2824 Relativo ao epitélio, a camada externa de células que cobre todas as superfícies abertas do corpo, incluindo a pele e mebranas mucosas que comunicam com o exterior do corpo. (tradução livre) 12
MEDICINE NET INC. – MedTerms online medical dictionary A-Z list: Definition of Epithelial [em linha]. New York: WebMed Network, 1996, actual. 27 Abr. 2011. [Consult. 12 Julh. 2011]. Disponível em: http://www.medterms.com/script/main/art. asp?articlekey=20649 13 É o tecido do corpo cuja função primordial é ser uma fonte de poder. Existem três tipos de tecido muscular no corpo: o músculo esquelético, responsável por mover as extremidades e áreas externas do corpo; o músculo cardíaco, ou músculo do coração; e o músculo liso, que se encontra nas paredes das artérias e do intestino. (tradução livre)
MEDICINE NET INC. – MedTerms online medical dictionary A-Z list: Definition of muscle [em linha]. New York: WebMed Network, 1996, actual. 27 Abr. 2011. [Consult. 12 Julh. 2011]. Disponível em: http://www.medterms.com/script/main/art. asp?articlekey=4464 14 15 16
DAVIDOFF, Linda L. - Introdução à Psicologia. 3ªed. São Paulo: McGraw-Hill, 2001. ISBN 8534611254. p.218 Idem, p.218 Cfr. Idem, p.219
23
Visão
Encontra-se um poder nas coisas mais simples da vida quotidiana (…). Apenas é preciso olhar o tempo suficiente para ver17.
Fisiologicamente, visão é a percepção de objectos que se encontram presentes na nossa envolvente, através da luz que eles emitem ou reflectem. É um processo que se apoia maioritariamente nos olhos, mas que envolve também alguns acessórios estruturais associados ao olho, com fins específicos de protecção e/ou ajuda na sua função, como as sobrancelhas, pálpebras, vias lacrimais, entre outros18. O processamento da informação sensorial tem ocorrência em diferentes locais dos sistemas sensorial e nervoso. No caso da visão, o processamento tem lugar dentro dos olhos, em diferentes regiões do cérebro e nos neurónios de ligação19. A quantidade de informação visual que o ser humano recebe é desmesuradamente grande. Pode ser considerado o sentido dominante, como já foi verificado em vários estudos, uma vez que, caso as informações sensoriais provenientes de diferentes receptores entrem em conflito, é a informação visual que prevalece20. O olho pode ser equiparado a uma câmara escura com uma abertura na frente, a pupila21, que permite a entrada da luz. O processo visual tem início no momento em que o raio de luz entra no olho. Quando a iluminação é muito fraca, a pupila aumenta para admitir o máximo de luz possível. Quando a iluminação é intensa, a pupila diminui de tamanho para limitar o volume de luz que entra22. O disco pigmentado que a circunda, a íris, controla as suas variações e deve ser suficientemente opaca de modo a constituir um diafragma adequado. A córnea cobre a zona exposta do olho, sendo sua função proteger o olho e ajudar na focalização
ZUMTHOR, Peter - Pensar a arquitectura. 2ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2005. ISBN 978-84-252-2332-7. p.16 17
18
DAVIDOFF, Linda L. - Introdução à Psicologia. 3ªed. São Paulo: McGraw-Hill, 2001. ISBN 8534611254. p.218
19
Idem,. p.218
Cfr. HALL, Edward T. - A Dimensão Oculta. Lisboa: Relógio d‘ Água Editores Lda, 1986. ISBN 972-708-123-1. p.54 20
21 A pupila é uma abertura na íris. Embora, aparentemente, se dilate ou contraia, é a íris que efectua esses movimentos. A pupila é, então, a ausência da íris num ponto específico, que determina a quantidade de luz que entra no olho. (tradução livre)
MEDICINE NET INC. – MedTerms online medical dictionary A-Z list: Definition of Pupil [em linha]. New York: WebMed Network, 1996, actual. 27 Abr. 2011. [Consult. 13 Julh. 2011]. Disponível em: http://www.medterms.com/script/main/art. asp?articlekey=5135 22
DAVIDOFF, Linda L. - Introdução à Psicologia. 3ªed. São Paulo: McGraw-Hill, 2001. ISBN 8534611254. p.219
de elementos visuais direccionados à retina. Na pupila encontra-se localizada uma lente (ou cristalino) que, como defende Richard Gregory, embora não seja importante para a formação da imagem, é essencial à sua recepção23. O raio da curvatura do cristalino reduz-se para a visão próxima (…) Torna-se mais convexo por contracção muscular24, enquanto para o visionamento de objectos afastados, assume uma forma côncava. Dependendo do movimento das ondas luminosas, as imagens são focadas na retina, de cabeça para baixo e invertidas da direita para a esquerda. A retina é uma delgada camada de células nervosas interligadas, incluindo as células em bastonete e em cone, que convertem a luz em impulsos eléctricos – a linguagem do sistema nervoso25. Os bastonetes (ou bastões) e os cones identificam-se, então, como células receptoras da luz. O funcionamento dos cones é accionado pela existência de boa iluminação, possibilitando a visão cromática, enquanto os bastonetes reagem à luminosidade fraca, permitindo visionar apenas tons de cinzento. Os cones encontramse localizados na zona periférica da retina e os bastonetes estão condensados na fóvea26 (zona central).
O seu papel na Arquitectura
A percepção da forma e da cor esperou por olhos mais complicados, capazes de formarem imagens, e por cérebros suficientemente diferenciados para interpretarem os sinais neuronais enviados pelas imagens óptimas formadas pela retina27. A visão é o sentido que mais tardiamente se desenvolveu no homem, mas é, indiscutivelmente, o maior fornecedor de informação, tendo em conta que cerca de 80% das fibras nervosas que chegam ao cérebro transportam informação visual28. As aptidões perceptivas visuais são vitais no entendimento da arquitectura, sendo responsáveis pela compreensão do espaço, dos objectos, das escalas,
GREGORY, Richard Langton - A Psicologia da Visão (O olho e o cérebro). Porto: Editorial Inova Limitada [1968]. [s/ISBN]. p.39 23
24
Idem, p.38
25
Idem, p.46
É uma pequena depressão na retina que providencia uma visão mais clara. É apenas na fóvea que as camadas da retina se afastam, deixando a luz incidir directamente sobre os cones, as células que permitem que uma imagem se torne mais nítida. (tradução livre) 26
MEDICINE NET INC. – MedTerms online medical dictionary A-Z list: Definition of Fovea [em linha]. New York: WebMed Network, 1996, actual. 26 Agos. 2003. [Consult. 13 Julh. 2011]. Disponível em: http://www.medterms.com/script/main/ art.asp?articlekey=24120 GREGORY, Richard Langton - A Psicologia da Visão (O olho e o cérebro). Porto: Editorial Inova Limitada [1968]. [s/ISBN]. p.27
27
28
Cfr. Idem, p.10
25
Fig.1 Faculdade Zollverein de gestão e design, na cidade de Essen, Alemanha, projectada pelo atelier Sanaa e construída entre 2005 e 2006.
Fig.2 Alçado oeste da faculdade de design e gestão em Essen.
Fig.3 Vista da cidade do Porto, Portugal. Fig.4 Vista da rua de Manhattan, em Nova Iorque.
Fig.5 Edifício destinado à Confederação Empresarial de Granada, em Espanha, projectado pelo arquitecto Alejandro Muñoz Miranda e construído em 2007.
das cores, da profundidade, da perspectiva e da luz. Na percepção dos objectos, o ser humano utiliza diversas estratégias de processamento interpretativo da informação visual que recebe. A título de exemplo, a constância consiste na forma como os objectos, observados de ângulos distintos, de distâncias variadas ou sob condições diferentes de iluminação, continuam a ser percebidos como tendo a mesma forma, tamanho e cor29. Podemos observar a fachada de um edifício de um ângulo lateral, aparentemente deformada pela perspectiva (fig.1), mas sabendo que a sua forma real é rectangular (fig.2). Também pode ser referido o agrupamento, por semelhança e proximidade, uma vez que temos tendência a agrupar visualmente elementos com cor, forma ou textura semelhantes, bem como elementos que se movem na mesma direcção ou espacialmente próximos30. Quando visualizamos uma parte da encosta da cidade do Porto (fig.3), não isolamos as construções, percepcionamo-las como um conjunto. A visão permite-nos percepcionar a profundidade e a distância, recorrendo a indicadores fisiológicos31 como por exemplo a disparidade biocular32. Os olhos estão localizados em posições diferentes e cada retina faz um registo visual distinto, o que resulta na sobreposição da informação dessas duas imagens, dando origem ao tridimensional. Podem, também, ser estabelecidas comparações visuais, através do recurso a elementos como perspectiva linear e aérea, luz e sombra. A título de exemplo, existe o tamanho conhecido33 que se verifica quando vemos um edifício e compreendemos a sua distância consoante o tamanho que ele assume na nossa retina (fig.4). Quando a imagem é relativamente pequena, deduzimos que está longe. Por último, a visão permite a identificação da luz nos espaços. Tem um papel fulcral na arquitectura, quer pela capacidade de iluminação propriamente dita, quer pela simbologia espacial que confere a um lugar (fig.5). Quando vemos luz, estamos na realidade a percepcionar o brilho, cuja geração é feita através da entrada de energia física da luz no olho. A experiência cromática deve-se ao facto de a luz solar ser composta por diferentes comprimentos de onda que os objectos absorvem, reflectindo esses raios de diferentes formas, supondo-se que o olho humano é capaz de diferenciar milhares de cores34. A cor tem uma influência emocional no ser humano, contribuindo para a criação de atmosferas específicas.
29
DAVIDOFF, Linda L. - Introdução à Psicologia. 3ªed. São Paulo: McGraw-Hill, 2001. ISBN 8534611254. p.223
30
Idem, p.225
31
Idem, p.228
32
Idem, p.228
33
Idem, p.228
Cfr. MUGA, Henrique - Psicologia da Arquitectura. 1ªed. Canelas: Edições Gailivro Lda, 2005. ISBN 989-557-241-7. p.40 34
27
Audição
Oiçam! Cada espaço funciona como um instrumento grande, colecciona, amplia e transmite os sons35.
Para muitos animais, principalmente para mamíferos, a audição é a modalidade sensorial dominante. No caso dos humanos, apresenta-se como secundária, relativamente à visão. Embora não se possa contabilizar a quantidade de informação fornecida, quer pelos olhos quer pelos ouvidos, é possível comparar as dimensões dos nervos que os ligam aos respectivos centros cerebrais. O nervo óptico contém cerca de dezoito vezes mais neurónios do que o nervo coclear36 e podemos daí concluir que transmite pelo menos dezoito vezes mais informação37. A audição actua enquanto complemento da visão. O som tem origem com o movimento ou vibração de um objecto. Este movimento é impresso no meio circundante (usualmente o ar) na forma de ondas alternativas de compressão e rarefacção38. O ouvido é composto por três partes distintas: o ouvido externo, o ouvido médio e o ouvido interno. O ouvido externo é responsável pela recolha de estímulos sonoros, enquanto o ouvido médio transmite as vibrações sonoras ao ouvido interno, onde as células receptoras auditivas estão localizadas, com o propósito de executar a transformação da energia sonora em energia neurológica39. O ouvido externo compreende o pavilhão auricular, a estrutura cartilaginosa habitualmente apelidada de orelha, e o conduto auditivo externo. Apesar de se considerar o pavilhão auricular pouco importante, é responsável por alterar significativamente o som que entra, particularmente em frequências altas, o que é importante para a nossa habilidade
35
ZUMTHOR, Peter - Atmosferas. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2006. ISBN 978-84-252-2169-9. p.29
Nervo da cóclea, parte do ouvido interno que converte a energia mecânica (vibrações) em impulsos nervosos enviados ao cérebro. (tradução livre) 36
MEDICINE NET INC. – MedTerms online medical dictionary A-Z list: Definition of Cochlea [em linha]. New York: WebMed Network, 1996, actual. 6 Agos. 1999. [Consult. 13 Julh. 2011]. Disponível em: http://www.medterms.com/script/main/art. asp?articlekey=9560 37
HALL, Edward T. - A Dimensão Oculta. Lisboa: Relógio d ‘Água Editores Lda, 1986. ISBN 972-708-123-1. p.56
Sound originates from the motion or vibration of a object. This motion is impressed upon the surrounding medium (usually air) in the form of alternate waves of compression and rarefaction. (tradução livre) 38
MOORE, Brian - Introduction to the Psycology of Hearing. 1ªed. Londres: The Macmillan Press Ltd., 1977. ISBN 0-33319701. p.15 e 16 39
Crf. Idem, p.25
de localizar sons40. O conduto auditivo externo conduz o som até à membrana timpânica (ou tímpano), fazendo-a vibrar. Estas vibrações são transmitidas através do ouvido médio por três ossos de pequenas dimensões (martelo, bigorna e estribo), conduzindo-as até uma abertura, de forma oval, coberta por uma membrana. Essa abertura localiza-se na parede de uma estrutura em espiral, localizada no ouvido interno, a cóclea. A principal função do ouvido médio é assegurar a eficiência da transferência do som do ar para os fluídos da cóclea41 que, juntamente com o sistema vestibular, constituem o ouvido interno. A cóclea, de estrutura complexa, detém um papel importante no contexto geral do ouvido humano, uma vez que contém as células de recepção auditiva. É preenchida por um fluído viscoso que, apesar de não vibrar (como qualquer fluído), possibilita a transmissão das ondas auditivas da janela oval até às células receptoras. As ondas são convertidas em impulsos nervosos que, após serem enviados ao cérebro, ficam a aguardar uma interpretação42 .
O seu papel na Arquitectura
Podemos recordar a frieza acústica de uma casa desabitada e sem mobília, em comparação com a afabilidade de uma casa habitada, em que cada som é refractado ou amaciado pelas superfícies dos inúmeros objectos da vida pessoal. Cada edifício ou espaço tem o seu som característico de intimidade ou monumentalidade, rejeição ou convite, hospitalidade ou hostilidade43. A audição contribui de uma forma muito específica na percepção da arquitectura, na medida em que o som actua como legenda, identificando os materiais que nele existem e as suas dimensões espaciais, denunciando a função específica de um lugar. Tanto as características materiais como espaciais influenciam a acústica de um recinto. Mais do que as ondas sonoras, a sensação auditiva é directamente influenciada pelas características do meio de emissão.
Cfr. MOORE, Brian - Introduction to the Psycology of Hearing. 1ªed. Londres: The Macmillan Press Ltd., 1977. ISBN 0-33319701. p.25 40
41
(…) to ensure the efficiency transfer of sound from the air to the fluids in the cochlea. (tradução livre)
Idem, p.25 42
Cfr. Idem, p.25
We can recall the acoustic arshness of an uninhabited and unfurnished house as compared to the affability of a lived home in wich sound is refracted and softened by the surfaces of numerous objects of personal life. Every building or space has its characteristic sound of intimacy or monumentality, rejection or invitation, hospitality or hostility. (tradução livre) 43
HOLL, S.; PALLASMAA, J. e PEREZ-GOMEZ, A. - Questions of Perception: Phenomenology of Architecture. 2ªed. San Francisco: William K Stout Pub, 2006. ISBN 4-900211-48-6. p.31
29
Fig.6 Museu Maxxi em Roma, Itália, projectado pela arquitecta Zaha Hadid e construído em 2009.
Fig.7 Sala de exposição do Museu Maxxi.
Fig.8 Biblioteca em Utrech, Holanda, projectada pelo atelier Wiel Arets Architects e construída em 2004.
Fig.9 Vista interior da biblioteca.
Fig.10 Auditório Ibirapuera em São Paulo, Brasil, projectado na década de 1950 pelo arquitecto Oscar Niemeyer e construído apenas em 2005.
Fig.11 Sala de espectáculos. A acústica de divisões com este tipo de funções é sempre calculada meticulosamente, considerando a amplitude espacial, respectivos materiais e formas.
Como tal, todos os locais com superfícies duras e rígidas, como por exemplo pedra, mármore, mosaico, entre outros, reflectem quase totalmente o som, prolongando-o. Normalmente, associamos estas características auditivas a espaços que visam a contemplação e silêncio, como as igrejas. Todo o interior de uma grande igreja possui a sua voz própria, as suas possibilidades especiais, de tal modo que escolas de música e de declamação foram influenciadas por tipos históricos de igrejas44. Enquanto oposto desta situação, um local surdo é aquele que tem superfícies absorventes do som (como pesados cortinados, móveis trabalhados, estantes cheias de livros, ...)45. O prolongamento do som no espaço denomina-se de reverberação46, um factor relevante nas considerações projectuais arquitectónicas. Como tal, aquando da idealização de teatros, auditórios, museus, bibliotecas (fig.6 a 11), entre outros espaços em que o som assume um papel fulcral, é necessário ter em conta as características da reverberação. No entanto, a experiência auditiva mais importante criada pela arquitectura é a tranquilidade47. O som ou, de igual importância, o silêncio, contribuem para a atribuição de determinadas características na arquitectura, quer de carácter positivo quer de carácter negativo. Mas, essencialmente, contribuiem para uma atmosfera de reflexão, de solidão, de calma, de paz e de equilíbrio, quando manipulados para tal. Esta manipulação pode ser feita no exterior mas, essencialmente no interior. Este condicionamento auditivo pode-se assumir como uma barreira entre os sons obrigatórios existentes no exterior, filtrando-os e permitindo a criação de uma atmosfera completamente diferente no interior. Barragán acreditava nos poderes dos sons na arquitectura, bem como do silêncio48. Sons da natureza, da água, dos pavimentos, comungando todos da serenidade que ele defendia ser indissociável das diversas experiências que integram os diferentes espaço. O som anima a existência arquitectónica e todos os actos que nela têm lugar.
MUGA, Henrique - Psicologia da Arquitectura. 1ªed. Canelas: Edições Gailivro Lda, 2005. ISBN 989-557-241-7. p.52 44
45 46
Idem, p.51 Reverberação, persistência do som audível, após a cessação de um som directo da fonte produtora.
Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 1985. vol.2. [s/ISBN]. p.981 47
However, the most essencial auditory experience created by architecture is tranquility. (tradução livre)
HOLL, S.; PALLASMAA, J. e PEREZ-GOMEZ, A. - Questions of Perception: Phenomenology of Architecture. 2ª ed. San Francisco: William K Stout Pub, 2006. ISBN 4-900211-48-6. p.31 Cfr. RUIZ BARBARIN, Antonio – Luis Barragán frente al espejo: la outra mirada. Barcelona: Caja de arquitectos, 2008. ISBN 978-84-935929-2-9 48
31
Tacto
A maçaneta da porta é o aperto de mão do edifício. O sentido do tacto conecta-nos com o tempo e as tradições; através das marcas do toque nós apertamos a mão de incontáveis gerações49.
Enquanto estrutura extremamente complexa, o seu papel no corpo humano revela-se de suma importância. O ser humano pode passar toda a sua vida cego, surdo e completamente desprovido dos sentidos do olfacto e paladar, mas não poderá sobreviver de modo algum sem as funções desempenhadas pela pele50. Encontram-se depositados na pele diversos receptores sensoriais, sendo que a mesma apresenta-se como o maior sistema sensorial humano. Tecida de uma variedade de células resistentes e robustas, a pele funciona como um contentor dos tecidos macios e moles do interior do nosso corpo51. Para além de actuar como uma barreira entre o organismo e o ambiente externo, regula a temperatura corporal e é responsável pela protecção contra as radiações solares, através da produção de melanina. Mas, a sua função mais importante é assinalar a presença de potenciais estímulos nocivos. A pele é composta de duas camadas principais: a epiderme e a derme. A epiderme subdivide-se em duas camadas: externa (camada morta que vai sendo restituída) e interna (camada viva). A camada exterior não contém vasos sanguíneos, nem fibras nervosas. A derme, em contraste, contém uma grande quantidade de terminações nervosas, outros receptores cutâneos, glândulas cutâneas52, vasos sanguíneos, e outras estruturas. A derme funde-se no tecido subcutâneo, sem fronteira de distinção. O aparelho somatossensorial, ou sentido somático, inclui as sensações de dor, toque ou pressão, frio e calor, que surgem a partir
The door handle is the handshake of the building. The tactile sense connects us with time and tradition; through marks of touch we shake the hands of countless generations. (tradução livre) 49
HOLL, S.; PALLASMAA, J. e PEREZ-GOMEZ, A. - Questions of Perception: Phenomenology of Architecture. 2ª ed. San Francisco: William K Stout Pub, 2006. ISBN 4-900211-48-6, p.33 MONTAGU, Ashley - Tocar: O Significado Humano da Pele. 5ªed. São Paulo: Summus Editorial Lda, 1986. ISBN 85-3230308-0. p.34 50
51
Idem. p.25
É um grupo de células responsáveis por segregar substâncias para uso no corpo, neste caso específico, na pele. (tradução livre)
52
MEDICINE NET INC. – MedTerms online medical dictionary A-Z list: Definition of Gland [em linha]. New York: WebMed Network, 1996, actual. 27 Abr. 2011. [Consult. 13 Julh. 2011]. Disponível em: http://www.medterms.com/script/main/art. asp?articlekey=3594
da pele, músculos e órgãos internos do corpo53. Como já foi mencionado previamente, a dor é um sistema de protecção do corpo. Quando um estímulo é intenso, o suficiente para causar danos no tecido, seja através de pressão, temperatura, choque eléctrico, entre outros, é considerado um estímulo de dor. O efeito deste estímulo específico é causar a libertação de substâncias químicas na pele54, que em contacto com o sistema nervoso, fazem chegar a informação ao cérebro. Quanto à sensibilidade e percepção térmica, os receptores são neurónios55 localizados debaixo da pele. Na fase de transdução, os receptores do frio geram um impulso neurológico quando se verifica uma descida da temperatura da pele, enquanto os receptores de calor geram impulso quando existe uma subida da temperatura56. Por último, é possível ao ser humano sentir pressão. Embora não tenha a noção da pressão corporal, é sensível a variações na sua superfície. Algumas partes do corpo são mais eficientes que outras, na identificação da pressão - lábios, nariz e bochechas são as mais sensíveis. Estas diferenças estão intimamente relacionadas com o número de receptores que respondem aos estímulos em cada parte do corpo57.
O seu papel na Arquitectura
Grande parte do sucesso arquitectónico de Frank Lloyd Wright liga-se ao facto de ele ter reconhecido a diversidade que caracteriza os indivíduos na sua experiência do espaço (…)
Somesthesis, or the somesthetic senses, includes the sensation of pain, touch, pressure, cold, and warmth that arised from the skin, muscles, and internal organs of the body. (tradução livre)
53
BENNETT, Thomas L. - The Sensory World, an introduction to sensation and perception. 1ªed. California: Wadsworth Publishing Company, Inc, 1978. ISBN 0-8185-0262-2. p.117 54
The effect of such a stimulus is to cause the release of chemical substances in the skin. (tradução livre)
ATKINSON, Rita L., et al - Introdution to Psychology. 10ª ed. San Diego: Harcourt Brace Jovanovich, 1990. ISBN 0-15543688-0. p.151 55
Célula nervosa que envia e recebe sinais eléctricos através de longas distâncias dentro do corpo. (tradução livre)
MEDICINE NET INC. – MedTerms online medical dictionary A-Z list: Definition of Neuron [em linha]. New York: WebMed Network, 1996, actual. 27 Abr. 2011. [Consult. 13 Julh. 2011]. Disponível em: http://www.medterms.com/script/main/art. asp?articlekey=7785 56 In the transduction stage, cold receptors generate a neural impulse when there is a decrease in skin temperature, while warm receptors generate a impulse when there is an increase in skin temperature. (tradução livre)
ATKINSON, Rita L., et al - Introdution to Psychology. 10ª ed. San Diego: Harcourt Brace Jovanovich, 1990. ISBN 0-15543688-0. p.151 57 These differences are closely related to the number of receptors that respond to the stimulus at each of these body loci. (tradução livre)
Idem, p.50
33
Fig.12 Pavilhão da Suíça, para a Expo 2000 em Hannover, projectado pelo arquitecto Peter Zumthor. Fig.13 Vista interior do pavilhão, cujo material dominante é a madeira.
Fig.14 Pormenor do método de encaixe das vigas de madeira.
Verdadeiro artista em matéria de escolha de texturas, Wright ligou os tijolos mais rugosos com um cimento macio e dourado, com a espessura de pelo menos um centímetro (…) Wright visava apenas magnificar a experiência do espaço, provocando uma relação pessoal directa do visitante com as superfícies do edifício58. A importância do tacto na apreensão e compreensão sensorial do lugar não reside apenas no facto de contribuir para a colecta de informação específica que por via dos restantes sentidos não seria possível recolher. Mais do que o seu próprio contributo enquanto receptor sensorial, o tacto assume-se como a extensão da nossa percepção visual e das nossas intenções perante o que da visão recolhemos. Numa determinada experiência espacial, identificamos a presença de materiais, texturas e cores. Embora a quantidade de informação recolhida seja considerável e diversificada, é distante e intangível. É através do toque que se dá a aproximação corporal, ponte entre a recepção e a interacção. A pele lê a textura, o peso, a densidade e a temperatura da matéria. O olho é o sentido da separação e distância, enquanto o tacto é o sentido da proximidade, intimidade e afeição59. Com a aproximação táctil à arquitectura, afirma-se parte da identidade arquitectónica. Sentimos o desejo de tocar o betão armado extremamente liso e brilhante, de sentir a textura dos veios da madeira nas nossas mãos, ou a rugosidade da pedra. Podemos sentir directamente no corpo, a anatomia da arquitectura. A temperatura tem, também, bastante importância na criação das atmosferas, tal como refere Peter Zumthor, salientado a necessidade de temperar a arquitectura. Para a execução do Pavilhão da Suíça em Hanover utilizamos muita, muita madeira, muitas vigas de madeira. E quando havia calor, estava fresco neste pavilhão como uma floresta, e quando fazia frio, havia mais calor lá dentro do que lá fora, mesmo não estando fechado. O facto de que os materiais retiram mais ou menos do nosso calor temporal é conhecido60 (fig.12 a 14). A temperatura dos espaços relaciona-se directamente com o bem estar do homem, influênciado activamente as experiências de conforto e desconforto derivadas do frio e do calor. A temperatura encontra-se, também, interligada com a noção de intimidade de um espaço. Existe uma forte identidade entre a pele e a sensação de casa, uma vez que se associa, habitualmente, a experiência de casa a uma experiência de calor.
58
HALL, Edward T. - A Dimensão Oculta. Lisboa: Relógio d ‘Água Editores Lda, 1986. ISBN 972-708-123-1. p.65
The eye is the sense of separation and distance, whereas touch is the sense of nearness, intimacy and affection. (tradução livre)
59
HOLL, S.; PALLASMAA, J. e PEREZ-GOMEZ, A. - Questions of Perception: Phenomenology of Architecture. 2ª ed. San Francisco: William K Stout Pub, 2006. ISBN 4-900211-48-6. p.34 60
ZUMTHOR, Peter - Atmosferas. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2006. ISBN 978-84-252-2169-9. p. 35
35
Olfacto
O nariz faz com que os olhos recordem61.
O cheiro encontra-se na base de um dos modos mais primitivos e mais fundamentais da comunicação62, afirma Edward T. Hall, defendendo a importância do olfacto no âmbito dos sentidos. Ainda que relevante, é o menos compreendido, o que deriva da difícil acessibilidade do aparelho olfactivo, localizado no cimo do nariz, bem como do facto de o ser humano, em comparação aos restantes animais, possuir um sentido olfactivo quase rudimentar. Mas, apesar de não ser tão sensível, fornece informação importante para a nossa sobrevivência. Permite, por exemplo, diferenciar os indivíduos e espaços, e identificar cheiros nocivos - alimentos podres, determinados venenos, animais ou fumos. Os mecanismos do olfacto são de natureza essencialmente química, e é por isso que é apelidado, também, de sentido químico. Os receptores olfactivos são quimioreceptores que são activados por moléculas em solução. De forma a serem detectadas, as substâncias odoríferas têm de ser voláteis (em forma de partículas do ar), para que possam ser inaladas pelas narinas. E devem ser parcialmente solúveis em água, para poderem transitar no muco nasal das células olfactivas. Finalmente, devem-se diluir em lípidos (substância gordurosa), para serem capazes de passar pela camada de lípidos que forma a superfície da membrana dos receptores olfactivos63. Nos humanos, os intermediários olfactivos estão localizados numa pequena membrana na parte superior de cada narina. Contrariamente às restantes células receptoras dos sentidos, as células olfactivas executam ambas as funções de recepção primária e de condução. Quando os cílios (estruturas semelhantes a fios de cabelos) entram em contacto com as moléculas odoríferas, dá-se um impulso eléctrico. Estes impulsos viajam ao longo das
61
Lo nariz hace que los ojos recuerden. (tradução livre)
PALLASMAA, Juhani - Los Ojos de la piel: La arquitectura e los sentidos. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2006. ISBN 9788425221354. p.55 62
HALL, Edward T. - A Dimensão Oculta. Lisboa: Relógio d ‘Água Editores Lda, 1986. ISBN 972-708-123-1. p.60
In order to be detected, the odoriferous substances must be volatile (shaped like air particles), so that they can be inhaled through the nostrits. And must be partially soluble in water, in order to move in the nasal mucus of the olfactory cells. Finally, should diluted in lipids (greasy substance) to be able to pass through the layer of lipids that forms the surface membrane of the olfactory receptors. (tradução livre) 63
BENNETT, Thomas L. - The Sensory World, an introduction to sensation and perception. 1ªed. California: Wadsworth Publishing Company, Inc, 1978. ISBN 0-8185-0262-2. p. 110
fibras nervosas do bulbo olfactivo64, uma região do cérebro que se situa imediatamente abaixo do lobo frontal. O bulbo olfactivo, por sua vez, encontra-se ligado ao córtex olfactivo, situado no interior do lobo temporal65. O sistema olfactivo tem características únicas, uma vez que efectua uma ligação ao cérebro mais directa do que qualquer outro sistema sensorial. Os receptores, situados na cavidade nasal (posteriormente mencionado), estão conectados ao cérebro sem recorrer ao processo de sinapse66. A íntima ligação entre os bolbos olfactivos na base do cérebro, o sistema límbico (responsável pelos humores, impulsos sexuais e emoções fortes) e o hipocampo (ligado às funções da memória) faz com que o olfacto seja o mais evocativo dos sentidos67, dependendo não só de processos cognitivos, mas também emocionais. Encontra-se interligado com outro sentido químico, o paladar, cuja capacidade se limita à distinção de seis a sete sabores, sendo que é o olfacto o responsável pela atribuição de sabores aparentes, os aromas.
O seu papel na Arquitectura
O antropólogo Edward Hall refere que, entre todos os sentidos que possuímos, o olfacto é o que nos aproxima mais directamente do ambiente que nos rodeia, actuando como um poderoso instrumento de informação. Salienta que a sua ausência contribui para a monotonia dos espaços e priva a nossa vida quotidiana de uma fonte considerável de riqueza e de variedade. Afecta igualmente o funcionamento da memória, na medida em que os cheiros têm o dom de evocar recordações muito mais profundas do que as imagens ou os sons68.
Parte esencial do aparelho olfactivo que consiste num largamento bulboso no fim do nervo olfactivo, situado na superficie inferior do lobo frontal, logo acima da cavidade nasal. (tradução livre)
64
MEDICINE NET INC. – MedTerms online medical dictionary A-Z list: Definition of Olfactory bulb [em linha]. New York: WebMed Network, 1996, actual. 4 Out. 2004. [Consult. 13 Julh. 2011]. Disponível em: http://www.medterms.com/script/ main/art.asp?articlekey=39584 These impulses travel along the nerves fibers of the olfactory bulb, a brain region that is located immediately below the frontal lobe. The olfactory bulb in turn, is connected to the olfactory cortex, located inside the temporal lobe. (tradução livre)
65
ATKINSON, Rita L., et al - Introdution to Psychology. 10ª ed. San Diego: Harcourt Brace Jovanovich, 1990. ISBN 0-15543688-0. p.146 66 É o ponto de conexão entre duas células nervosas. Especificamente, uma sinapse é uma junção especializada em que as células nervosas (neurónios) comunicam com as células-alvo. O neurónio liberta um transmisor químico (neurotransmisor) que se difunde através de uma pequeña abertura e activa os receptores da célula-alvo. (tradução livre)
MEDICINE NET INC. – MedTerms online medical dictionary A-Z list: Definition of Synapse [em linha]. New York: WebMed Network, 1996, actual. 27 Abr. 2011. [Consult. 13 Julh. 2011]. Disponível em: http://www.medterms.com/script/main/art. asp?articlekey=9246 67
MUGA, Henrique - Psicologia da Arquitectura. 1ªed. Canelas: Edições Gailivro Lda, 2005. ISBN 989-557-241-7. p.54
68
HALL, Edward T. - A Dimensão Oculta. Lisboa: Relógio d ‘Água Editores Lda, 1986. ISBN 972-708-123-1. p.60
37
Fig.15 Pastelaria e padaria em Montmartre, Paris. Fig.16 Vendedor de castanhas no Campo Grande em Lisboa. Fig.17 Biblioteca da Universidade Tama, projectada pelo arquitecto Toyo Ito e constru铆da em T贸quio entre 2004 e 2007.
O odor é a recordação mais persistente de qualquer espaço. Perante o bombardeamento de informação visual e auditiva a que somos sujeitos diariamente, independentemente da nossa localização, são os cheiros dos lugares por onde passamos e estamos que ficam gravados na nossa memória, permanecendo e durando no nosso íntimo até um possível reencontro. O que a memória visual esquece, o cheiro relembra. O olfacto assume-se, então, como um dos elementos definidores da identidade de uma cidade e, respectiva e consequentemente, da sua arquitectura. Le Corbusier atribuiu demasiada e devida importância ao conceito promenade architecturale69, assumindo a valorização do percurso na arquitectura, como mais-valia da sua interpretação. Assim, a percepção do espaço e dos elementos que nos rodeiam encontram-se em constante mudança, tornando a experiência muito mais apelativa. Paralelamente, os diferentes odores permitem a promenade olfactiva da cidade. (…) em França, verifiquei que o aroma do pão francês, acabado de sair do forno às 4 horas da manhã, era capaz de fazer parar um jeep (…) é possível saborear o perfume do café, das especiarias, dos legumes, da criação acabada de depenar, das lavagens de louça, bem como do cheiro característico das esplanadas70 (fig.15). Não deixamos passar impune o cheiro das castanhas assadas dos vendedores de rua (fig.16) num dia frio de inverno ou ignoramos o cheiro de maresia, enquanto passeamos pela marginal. As sensações olfactivas induzem o surgimento de impressões. O encontro e as transições entre variados cheiros permitem a criação de referências e a atribuição de significações aos espaços. E, porque é um sentido ligado ao foro emocional, como já foi referido previamente, acrescenta intensidade à vida quotidiana. O mesmo se verifica na própria arquitectura. De uma forma empírica, podemos reconhecer os espaços através de uma premonição olfactiva. Conseguimos, através do cheiro, descobrir pátios, cafetarias, bibliotecas, entre outros espaços, dentro de um edifício. Na biblioteca da Universidade Tama, apresentada na figura 17, o odor quente característico da concentração de diversos livros, contrasta com a frescura do betão, denunciando
69 A Arquitectura caminha-se, percorre-se e não é de modo nenhum, como advogam certas correntes de ensino, essa ilusão inteiramente gráfica organizada em torno de um ponto central abstracto que se pretenderia homem, um homem quimérico, dotado de um olho de mosca e cuja visão seria simultaneamente circular. Este homem não existe, e foi graças a esta confusão que o período clássico encetou o naufrágio da arquitectura. O nosso homem é, pelo contrário, dotado de dois olhos colocados diante de si, a 1,60 metros acima do chão, e olha em frente. (…) Dotado dos seus dois olhos e olhando em frente, o nosso homem caminha, desloca-se entregue às suas ocupações, registando assim o desenrolar dos factos arquitectónicos que se vão sucedendo. Sente o seu efeito, fruto de comoções sucessivas. De tal modo que, postas à prova, as arquitecturas se classificam em mortas ou vivas, se a regra do caminhar não foi observada, ou se pelo contrário foi brilhantemente explorada.
LE CORBUSIER - Le Corbusier: conversa com estudantes das escolas de arquitectura. Lisboa: Cotovia, 2003. ISBN 9789727950829. p.51 70
HALL, Edward T. - A Dimensão Oculta. Lisboa: Relógio d ‘Água Editores Lda, 1986. ISBN 972-708-123-1. p.64
39
claramente a função do espaço. Assim, com este exemplo, é possível compreender a suma importância da presença dos materiais na arquitectura. Contribuem activamente para a definição de uma atmosfera olfactiva específica. (…) as paredes de pedra de uma catedral gótica, em especial num dia quente de verão, libertam um odor rico em minerais que nos acompanha e nos enche de uma frescura retemperante71.
71
MUGA, Henrique - Psicologia da Arquitectura. 1ªed. Canelas: Edições Gailivro Lda, 2005. ISBN 989-557-241-7. p.54
1.2 | PERCEPÇÃO
A percepção visual não é um puro e simples reflexo do que é percebido. O nosso espírito/ cérebro está encerrado numa caixa preta: não ‘vê’ as coisas directamente, representa-as a si mesmo no termo de um processo complexo de codificação e tradução; os estímulos luminosos que impressionam a nossa retina são traduzidos, codificados em impulsos que, via os nervos ópticos, vão determinar os processos cerebrais bioquímico-eléctricos que determinam a nossa representação. Mas essa representação é ela própria coorganizada em função de estruturas e estratégias mentais que determinam a coerência e a inteligência da percepção (assim, o nosso espírito restabelece automaticamente a ‘constância’ dos objectos, os quais, conforme se encontram situados perto ou longe do nosso olhar, são enormes ou minúsculos na nossa retina)72. Assim, a informação cedida pelos receptores sensoriais não se converte numa reprodução do real, mas sim numa tradução/interpretação do mesmo. Com isto não se afirma que o real não seja efectivamente impresso nos receptores, mas sim que essas impressões da realidade são interpretadas, originando uma representação própria. Consequentemente, a percepção é um processo em cadeia que se completa na projecção, sob a forma de visão, da representação mental sobre os fenómenos exteriores de que provém73. Como foi previamente referido, a compreensão do que nos rodeia é inicialmente sensorial, mas é o que fazemos com as sensações que constitui o nosso conhecimento do mundo. Entende-se por sensação a detecção inicial de estímulos provenientes do meio em que nos inserimos, enquanto a percepção é a função cerebral que atribui significado a esses mesmos estímulos. Se o seu corpo for suficientemente sensível, pode alcançar uma qualidade que assegura a realidade do passado74. Se percepcionar significa entender o meio em que nos inserimos, quanto mais estímulos sensoriais determinado espaço providenciar, maior será a quantidade de informação que contribui para a compreensão do mesmo. E quanto maior for a variedade de receptores sensoriais estimulados ou activados, quando se experimenta esse mesmo espaço, mais completo e rico será o entendimento do que nos rodeia.
MORIN, Edgar in AMORIM, Carlos; AGUIAR, M. Isabel Chorão, MOREIRA, Maria Margarida – Introdução à Filosofia 11º ano. Porto: Areal Editores, 1998 . ISBN 972-627-462-1. p.122
72
73
Idem, p.122
74
ZUMTHOR, Peter - Pensar a arquitectura. 2ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2005. ISBN 978-84-252-2332-7. p.26
41
É possível apreender a arquitectura, mais especificamente, através da aquisição, interpretação, selecção e organização das informações sensoriais que a mesma nos transmite. Mas, ainda que a percepção dependa dos estímulos que activam os nossos órgãos dos sentidos, depende também da actividade própria do sujeito. Como tal, o mundo assumese diferente para cada um de nós. Cada pessoa percebe um espaço, uma forma ou uma situação de acordo com determinados aspectos que constituem maior importância para si. As pretensas condições da percepção só se tornam anteriores à própria percepção quando, em lugar de descrever o fenómeno perceptivo como primeira abertura ao projecto, nós supomos em torno dele um meio onde já estejam inscritas todas as explicações e todas as confrontações que a percepção analítica obterá, onde estejam justificadas todas as normas da percepção efectiva – um lugar de verdade, um mundo. Ao fazer isso, nós subtraímos à percepção a sua função essencial, que é a de fundar ou de inaugurar o conhecimento, e a vemos através dos seus resultados75. A riqueza estrutural da percepção humana deve-se, possivelmente, ao facto do homem ser o mais desprotegido dos animais, compensando as suas carências de adaptação ao ambiente através da acção. Assim, a nossa capacidade perceptiva encontra-se munida de uma capacidade de adaptação ao meio. O fenómeno da constância perceptiva constitui uma prova da herança previamente referida. Quando aquilo que percebemos de um estímulo não corresponde às propriedades objectivas do mesmo, a hipótese da constância obriga a assumir as sensações normais76. Assim, apesar de vermos um objecto aparentemente pequeno no céu, sabemos que é, efectivamente, um avião, reconhecendo-lhe as dimensões reais e não as percepcionadas. A percepção não actua individualmente, sofrendo influências de diversos factores, como a memória, a atenção, a motivação, as expectativas e, até, os aspectos fisiológicos. Mas, uma vez que a informação é recebida, existem outras fases de selecção77. A percepção assume-se, então, como um sistema selectivo na medida em que, devido aos factores previamente mencionados, filtra as informações sensitivas provenientes do exterior. Como refere Edward T. Hall, a percepção espacial não se cinge ao que pode ser percebido, contando também com o que pode ser eliminado78. A consciência humana encontra-se intimamente
MERLEAU-PONTY, Maurice – Fenomenologia da Percepção. 3ªed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ISBN 85-336-2293-7. p.40
75
76
Cfr. Idem, p.53
77
But, once that information is received, there are others phases of selection. (tradução livre)
HUNTER, Ian M. - Memory. 1ªed. Nova Iorque [etc]: Penguin Books Lta, 1978. ISBN 0-1402-0405-9. p.92 78
Cfr. HALL, T. Edward - A Dimensão Oculta. Lisboa: Relógio d ‘Água Editores Lda, [1986]. ISBN 972-708-123-1. p.61
ligada a todos os objectos que constituem o contexto em que o homem se encontra. É a atenção79 que se encarrega de seleccionar os objectos que interessam, como se fosse um foco a iluminar objectos na penumbra. Outra ferramenta que contribui para a estruturação da capacidade adaptativa é o juízo80, que é frequentemente introduzido como aquilo que falta à sensação para tornar possível uma percepção81. O desenho perceptivo é feito de acordo com a informação que resulta dos receptores sensoriais. Sabe-se que não reproduzem a realidade, mas reproduzem uma tradução de acordo com o que é exactamente percepcionado. Assim, perante uma caixa grande e uma caixa pequena, ambas de cartão, considera-se a maior, normalmente, a mais pesada. Mas, uma vez que não existiu um estímulo real que permitisse verificar o peso das mesmas, não se sente, julga-se que a caixa maior é a mais pesada. Neste caso específico não existiu um conhecimento sensível, mas sim um juízo82. Mas, não se pretende afirmar que a recepção sensorial é falível porque não conseguimos distinguir se perante algo, percepcionamos ou julgamos. O juízo é motivado em cenários específicos, actuando apenas como uma expressão facultativa da percepção. A informação adquirida é, posteriormente, organizada em esquemas cognitivos. Percebemos quando atribuímos a um objecto um significado específico, ou seja, quando o reconhecemos por meio de um esquema e lhe atribuímos uma designação, um nome. A percepção varia de indivíduo para indivíduo, ou de cultura para cultura. O contexto cultural e social em que nos inserimos permite que várias pessoas percebam o mesmo que nós, que nos percebam a nós e que percebam como nós. Assim, através desta partilha perceptiva, é-nos muitas vezes possível perceber coisas que nunca experienciamos. A abordagem da percepção no campo arquitectónico encontra-se, de certa forma, associada a interpretações de raiz fenomenológica. Victor Consiglieri refere que vários arquitectos, nomeadamente Frank Lloyd Wright e Louis Kahn, moldaram o seu trabalho apoiados nas teorias fenomenológicas existencialistas. Este método pretendia responder à crise vivida no século XIX, em que se acreditava que o conhecimento do meio só era validado por meios científicos e cuja validade universal era independente da cultura, da época ou
79
MERLEAU-PONTY, Maurice – Fenomenologia da Percepção. 3ªed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ISBN 85-336-2293-7. p.53
80
Idem, p.60
81
Idem, p.60
82
Idem, p.62 e 63
43
da religião83. A fenomenologia84 procurou, então, combater esta realidade autónoma, sem influência humana, repudiando a ciência e respectivos métodos, enquanto única fonte de saber. Desta forma, não procurava invalidar o conhecimento científico, mas sim exaltar a existência do homem, enquanto ser sensível e emocional, considerando a sua capacidade de experienciar como mecanismo de conhecimento do meio. A percepção deixa de ser uma ciência isolada, e de obedecer a um preconceito, para se relacionar com os nossos actos que se evidenciam e se interligam no mundo real e no meio natural. Passa a ser um conjunto de todos os pensamentos e das nossas sensações imaginativas, para encontrar um mundo que se conhece85. Assim, a perspectiva fenomenológica defende que o que se procura conhecer acerca de um objecto ou, neste caso específico, da arquitectura, é a sua essência, o conjunto de fenómenos86 que definem a sua existência. Os fenómenos, enquanto elementos da realidade, podem ser internos ou externos, ambos resultantes da percepção imediata do homem. Os fenómenos internos são os aspectos ocultos do objecto, a sua essência, que por sua vez, determinam os fenómenos externos - o reflexo imediato e objectivo da sua existência. A experiência arquitectónica associada aos princípios fenomenológicos, traduz-se num conceito intimamente ligado à filosofia e à estética, cujo objectivo é questionar um conjunto de princípios relacionados com o prazer estético da percepção. Assim, o acto de experienciar subdivide-se, assumindo um carácter emocional e um carácter físico, relacionado com os prazeres fisiológicos do homem. O carácter emocional fragmenta-se,
Cfr. CONSIGLIERI, Victor – A morfologia da arquitectura: 1920-1970. 1ªed. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. ISBN 97233-1005-8. p.209
83
Na época actual, quando se fala de fenomenologia, tende-se a associa-la à fenomenologia de Husserl e dos fenómenos que partiram de Husserl (…). A fenomenologia é uma pura descrição do que se mostra por si mesmo, de acordo com os ‘princípios dos princípios’: reconhecer que toda a intuição primordial é uma fonte legítima de conhecimento, que tudo o que se apresenta por si mesmo ‘na intuição’ (e, por assim dizer, em pessoa) deve ser aceite simplesmente como o que se oferece e como se oferece, embora apenas dentro dos limites nos quais se apresenta.
84
A fenomenologia não pressupõe, pois, nada: nem o mundo natural, nem o sentido comum das proposições da ciência, nem as experiências psíquicas. Coloca-se antes de toda a crença e de todo o juízo, para explorar simplesmente e ordenadamente o dado. (tradução livre) MORA, Ferrater – Diccionario de Filosofia, Vol. 4. 1ªed. Barcelona: Editorial Ariel, 2001. ISBN 84-344-0500-8. p.1240 CONSIGLIERI, Victor – A morfologia da arquitectura: 1920-1970. 1ªed. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. ISBN 972-331005-8. p.210
85
86 O termo fenómeno deriva do grego phainomenon. Significa ‘aquilo que aparece’; equivale, pois, à ‘aparencia’. (…) Contudo, dentro do marco do método fenomenológico, o fenómeno pode ser simplesmente definido como aquilo que ‘se dá’. (…) Fenómeno significa, de facto: 1. A vivência concreta da intuição (ter presente ou representado, intuitivamente, certo objecto); 2. O objecto intuído (aparente) como o que nos aparece hic et nunc. E, de um modo que induz em erro, também se chama fenómeno aos 3. Elementos reais do fenómeno no primeiro sentido, no sentido de acto concreto de aparição ou de intuição. Segundo Husserl, o conceito primitivo de fenómeno é o indicado no ponto 2, a saber, o aparente ou o que pode aparecer, o intuitivo como tal. (…) Seguindo-se a Husserl, Herbet Spielberg fez distinção entre fenómeno-realidade e realidade-fenómeno. Fenómeno é, disse Spielperg, tudo o que nos é dado directamente, sem inferências mediadoras, e tal como nos é dado; noutros termos, fenómeno é a coisa em si, como é apresentada. (tradução livre)
MORA, Ferrater – Diccionario de Filosofia, Vol. 4. 1ªed. Barcelona: Editorial Ariel, 2001. ISBN 84-344-0500-8. p.1237
também, em percepção vulgar e percepção imaginativa. Enquanto a percepção vulgar se limita à realidade e aos conceitos de ver e de acreditar, a percepção imaginativa não é uma atitude só do olhar, mas também um método mental onde se conjugam um tipo de análise, uma psicologia introspectiva e um raciocínio próprio da nossa experiência87. O objectivo primordial não é compreender os valores do objecto, ou respectiva problemática espacial, mas sim o gosto e a realização estética que definem as ideias dominantes na nossa teoria de arquitectura. A percepção imaginativa encontra-se intimamente ligada, relativamente ao âmbito arquitectónico, com a experiência estética de algo. Não interessa a experiência real de algo, mas sim os princípios do gosto que lhe são inerentes. Enquanto a experiência real se limita a perceber e criticar um caso isolado, a experiência estética pretende descrever o valor intrínseco à obra arquitectónica. O gosto, de acordo com os princípios da fenomenologia, não nasce por intermédio da funcionalidade, da lógica ou da crítica, mas sim do prazer retirado de um pormenor. Dos diversos pormenores que se podem manifestar na arquitectura, interessam os que se evidenciam, dominando, assim, o valor do individual e não o valor da objectividade88. São as emoções que ditam a qualidade de uma experiência específica, em que, ainda que nos seja apresentado o carácter real e objectivo de um edifício, é a nossa análise emocional que nos permite valorizar ou desvalorizar o mesmo. A fenomenologia, neste contexto específico, assenta no valor da vivência e, principalmente, na fusão dessa mesma vivência com a vida. É com base nesta premissa, segundo Victor Consiglieri89, que o arquitecto reproduz determinadas concepções espaciais e respectivas morfologias.
87 CONSIGLIERI, Victor – A morfologia da arquitectura: 1920-1970. 1ªed. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. ISBN 972-33-1005-8. p.211 88
Cfr. Idem, p.209 a 212
Chama-se na psicologia actual ao facto de experimentar, de viver algo, diferentemente da apreensão, do tomar posição de algo que está fora da consciência. Na vivência não há apreensão propriamente dita, porque o apreendido e o vivido são uma e a mesma coisa, e por isso as vivências são consideradas habitualmente como experiências afectivas. Só mediante a análise pode uma vivência ser desprendida do experimentado nela, na medida em que a apreensão se apresenta desde o primeiro momento como um movimento da consciência para algo heterogéneo, tanto se isso é constituído por um objecto sensível como por inteligível. (…) A vivência não é, portanto, algo dado; somos nós que penetramos no interior dela, que a possuímos de uma maneira tão imediata que até podemos dizer que ela e nós somos a mesma coisa.
89
Na fenomenologia, definida por Husserl como uma descrição das essências que se apresentam nas vivências puras, o fluxo do vivido é anterior ao físico e ao psíquico, que se encontram dentro dele. As vivências, entendidas como unidades de vivência e de sentido, devem ser descritas e compreendidas mas não explicadas mediante processos analíticos ou sintéticos, pois são verdadeiramente unidades e não só agregados de elementos simples. A vivência é efectivamente vivida, isto é, experimentada como uma unidade dentro da qual se inserem os elementos que a análise decompõe, mas a vida psíquica não é constituída unicamente por vivências sucessivas, antes estas e os elementos simples, juntamente com as apreensões, se entrecruzam continuamente. MORA, Ferrater in CONSIGLIERI, Victor – A morfologia da arquitectura: 1920-1970. 1ªed. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. ISBN 972-33-1005-8. p.214
45
1. Informação recebida
2. Informação acede aos sistemas sensoriais da memória
A informação perde-se após uma fracção de segundo
NÃO
3.
A
pessoa
presta
atenção à informação?
SIM MEMÓRIA A CURTO PRAZO
A informação perde-se após quinze segundos
Não há 5. Como é processada Processamento processamento raso
a informação?
Processamento a fundo
A informação é mantida na memória a curto prazo durante mais tempo
MEMÓRIA A LONGO PRAZO
5. Se a informação armazenada na memória a longo prazo for necessária mais tarde, será transferida para a memória a curto prazo
Fig.18 Esquema de funcionamento e armazenamento da memória, de acordo com a selecção da informação.
1.3 | MEMÓRIA
Todas as experiências implicam o acto de recolher, lembrar e comparar. Uma memória incorporada tem um papel essencial na base da recordação de um espaço ou lugar90.
A capacidade de recordar lugares é inata ao ser humano. A percepção, como foi previamente mencionado, encontra-se em constante interacção com a memória, uma vez que de nada serviria percepcionar o mundo que nos rodeia se, posteriormente, não o pudéssemos recordar. Tornar-se-ia impossível desenvolver uma identidade, na medida em que não teríamos elementos do passado para contextualizar a vida presente. Sem memória, o ser humano manteria a capacidade de ver e ouvir, mas os conteúdos da visão e da audição não teriam qualquer significado, uma vez que não existiria informação armazenada que lhes pudesse ser associada. Como refere Maurice Merleau-Ponty, o apelo às recordações pressupõe aquilo que deveria explicar: a colocação em forma dos dados, a imposição de um sentido ao caos sensível91. Memória é o nome que damos à nossa habilidade, boa ou má, de reter na nossa mente, quer experiências recentes quer experiências que constituem o nosso passado92. A memória assume-se, então, como um processo psicológico e biológico de extrema importância. O seu funcionamento desenvolve-se em três fases distintas. Procede primeiro à codificação de informação que se refere a todo o processo de preparo de informação para armazenagem93, seguindo-se o armazenamento, registando a informação cuja permanência pode variar, e concluindo com a recuperação da informação armazenada, recordando ou reconhecendo. Os psicólogos acreditam que os três processos de codificação, armazenamento e recuperação são necessários para todos os sistemas de memória94.
90 HOLL, S.; PALLASMAA, J. e PEREZ-GOMEZ, A. - Questions of Perception: Phenomenology of Architecture. 2ª ed. San Francisco: William K Stout Pub, 2006. ISBN 4-900211-48-6. p.34
MERLEAU-PONTY, Maurice – Fenomenologia da Percepção. 3ªed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ISBN 85-336-2293-7. p.44
91
Memory is the name we give to our ability, good or bad, to retain in our mind, either recent experiences or experiences that constitute our past. (tradução livre)
92
COFER, Charles N., et al - The structure of human memory. 1ªed. Nova Iorque: W. H. Freeman and Company San Francisco, 1976. ISBN 0-7167-0715-2. p.3 93
DAVIDOFF, Linda L. - Introdução à Psicologia. 3ªed. São Paulo: McGraw-Hill, 2001. ISBN 8534611254. p.294
94
Idem, p.294
47
Baseado no modelo de memória (fig.18) referido no livro Introdução à Psicologia de Linda Daviddoff, são identificáveis três tipos distintos de armazenamento: a memória sensorial, a memória a curto prazo e a memória a longo prazo. O processo de arquivo da memória sensorial é imperceptível ao ser humano e a informação é recepcionada pelos órgãos sensoriais. A psicóloga refere que os dados armazenados por este tipo específico de memória caracteristicamente desaparecem em menos de um segundo, a não ser que sejam imediatamente transferidos para um segundo sistema de memória, a memória a curto prazo95. A memória a curto prazo é representada como o centro da consciência humana. Presumivelmente, contém todos os pensamentos, informações e experiências que se encontram na mente de uma pessoa96. Encarrega-se dos armazenamentos temporários e genéricos, fazendo uma triagem da informação momentânea e permanente que transfere para a memória a longo prazo e recuperando dados dos vários sistemas de memória97. Por último, a memória a longo prazo é o depósito do qual temos a capacidade de extrair maior quantidade de informação e a mais duradoura - horas, dias, semanas, anos ou para sempre. A vida também é composta de lembranças e as coisas são as suas portadoras (…) Assim, a linguagem da arquitectura é a linguagem da memória98.Compreende-se que a memória, então, é imprescindível enquanto um dos mecanismos que possibilitam ao homem interrelacionar-se com a envolvente e, consequentemente, com a arquitectura. Mas, apoiando-se num princípio de cooperação mútua, também a arquitectura exerce um papel fundamental no processo construtivo da memória, quer colectiva quer individual. É praticamente inconcebível a formação da identidade cultural de um determinado lugar sem a existência de arquitectura. Perante a sua ausência, a compreensão das origens e da evolução de uma cidade ou país seria significativamente limitada, uma vez que cabe à arquitectura a materialização de manifestações culturais e sociais específicas. Aldo Rossi reconhece a sua importância na definição de um lugar que, juntamente com os registos históricos que lhe são associados, clarificam a complexidade dos feitos urbanos99. Neste contexto, a transformação do espaço levada a cabo pela sociedade, constitui a memória colectiva de um lugar. Aldo Rossi separa a arquitectura da arte enquanto elemento que existe por si mesmo. Define-a desta forma na medida em que os maiores monumentos
95
DAVIDOFF, Linda L. - Introdução à Psicologia. 3ªed. São Paulo: McGraw-Hill, 2001. ISBN 8534611254. p.295
96
Idem, p.307
97
Idem, p.307
Life is also made up of memories and things are their carriers (...) Thus, the language of architecture is the language of memory. (tradução livre) 98
NORBERG-SCHULZ, Christian - The Language of Memory. in PAVAN, Vincenzo (coord.) - Architettura Monumento Memoria: Architecture as Memoria and Monument. Veneza: Arsenale Editrice, 1987. ISBN 88-7743-018-4. p.34 99
Cfr. ROSSI, Aldo - A Arquitectura da Cidade. Lisboa: Edição Cosmos, 2001. ISBN 972-762-126-0. p.193 e 194
arquitectónicos, que expressam poderes como o estatal ou religioso, estão consequentemente vinculados à cidade incorporando o património100, a história e o carácter de uma civilização e de uma determinada época. E assim, a união entre o passado e o futuro está na própria ideia da cidade que a percorre, tal como a memória percorre a vida de uma pessoa, e que para se concretizar se deve sempre formalizar, mas também conformar com a realidade. E esta conformidade permanece nos seus factos singulares, nos seus monumentos, na ideia que deles temos101. John Ruskin afirma que a arquitectura e a poesia são as únicas coisas imunes ao esquecimento humano. Como tal, define a memória como a sexta das sete lâmpadas da arquitectura102, consagrando à arquitectura o poder da cristalização, não dos sentimentos humanos, mas sim de todas as acções que constituem a sua vida. Desta forma, qualquer criação arquitectónica, independentemente da sua função, atinge a perfeição tornandose memorável. A arquitectura é o lar e a protecção dessa influência sagrada, e a título disso devemos consagrar-lhe as nossas meditações mais sérias. Podemos viver sem ela, adorar sem ela, mas não podemos recordar sem ela103. Mais do que objecto de contemplação, a arquitectura é incorporada no presente, consciente ou inconscientemente, com o intuito de recordar e influenciar a actualidade. Mais do que uma herança cultural e o seu indissociável valor, fornece um contexto ao desenrolar da vida humana. Contudo, o homem não carece apenas de uma contextualização, mas também da existência de um quotidiano. Alberto Roa refere o hábito e a rotina como exercícios da memória intimamente ligados à noção de lugar, uma vez que o lugar vive da relação das pessoas com o espaço e a arquitectura. O funcionamento de uma sociedade apoia-se numa imagem de um mundo estável e concreto, em que há uma ordem estabelecida que permite ao cidadão comum uma existência estável e conformista. Da mesma forma que os registos sensoriais precisam de uma base de dados para que possam ser identificados posteriormente, também a essência do lugar e o quotidiano das pessoas precisam da arquitectura para significar. Desde tempos remotos que a arquitectura tem
(…) Conjunto dos bens materiais e imateriais transmitidos pelos antepassados e que constituem uma herança colectiva. Compete ao Estado e a cada cidadão a salvaguarda e valorização do património cultural. + nacional, mundial; + artístico, arquitectónico, cultural, natural. (…) 100
Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea. Academia das Ciências de Lisboa e Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa: Verbo, 2001. ISBN 972-22-2046-2. p. 2784 101
ROSSI, Aldo - A Arquitectura da Cidade. Lisboa: Edição Cosmos, 2001. ISBN 972-762-126-0. p.193 e 194
102
RUSKIN, John - Las siete lâmpadas de la arquitectura. 1ªed. Barcelona: Alta Fulla, 1987. ISBN 84-86556-17-1
La arquitectura es como el hogar y la protección de esta influencia sagrada, y á titulo de ello debemos consagrarle nuestras más graves meditaciones. Podemos vivir sin ella, adorar sin ella, pêro no podemos sin ella recordar. (tradução livre) 103
Idem, p.206 e 207
49
ajudado o homem a dar significado à sua existência104. Muito antes de o homem fazer parte da construção da memória colectiva de um determinado lugar, assim como ser capaz de a adquirir, tem de lidar com os seus registos pessoais, aos quais, mais uma vez, a arquitectura surge indissociável. Todos temos memórias de arquitectura. Ou, melhor, todos temos fundos de arquitectura, agarrados, atrás e aos lados das nossas memórias105. Todas as nossas recordações estão associadas não só a um acontecimento específico, ou fragmentos do mesmo, mas também ao cenário onde o mesmo teve lugar, cenário cujo papel oferece mais do que um mero suporte, atribuindo também significação à memória evocada. Alberto Roa defende que a imagem do que nos rodeia não é estática, sofrendo transformações ao longo do tempo e da vida das pessoas. Possui uma dimensão espaciotemporal que incorpora o passado, o presente e o possível106. A memória desempenha um papel fundamental, actuando como ponte entre essas dimensões, registando, armazenando e eliminando dados, imagens, noções, referências. O espaço e o tempo assumem-se como os componentes mais importantes da experiência existencial do ser humano, recorrendo constantemente à memória, uma vez que se desenrola em locais específicos, espaços arquitectónicos diversos, cujas imagens ingressam não apenas como recordações, mas também como referências espaciais básicas. Essas recordações influenciam, substancialmente, a forma como o sujeito capta a realidade. (…) é no espaço que encontramos os belos fósseis de duração concretizados por longas permanências. O inconsciente permanece nos locais. As lembranças são imóveis, tanto mais sólidas quanto mais bem espacializadas107. Gaston Bachelard corrobora a necessidade da referência espacial na constituição das memórias, mas atribui especial importância à casa natal reconhecendo-a como o primeiro universo e, consequentemente, como génese das memórias mais primárias da vida humana. A consideração que Bachelard lhes atribui advém não só do facto de constituírem a base da atribuição de sentido às coisas, o primeiro contacto com o mundo, mas também porque ao acto de registar informação se junta o acto de imaginar: (…) a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz108.
104 CNS in NORBERG-SCHULZ, Christian - Arquitectura Occidental. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, SL, 2004. ISBN 84-252-1805-5. p.7 105 DIAS, Manuel Graça - Querer ficar um pouco mais lá. J.A 217 - Livro do Desassossego. Lisboa. ISSN 0870-1504. nº 217, (Out./Nov./Dez. 2004). p.40 106
Tiene una dimensión espacio temporal que incorpora el pasado, lo presente e lo posible. (tradução livre)
SALDARRIAGA ROA, Alberto - La arquitectura como experiencia: espacio, cuerpo y sensibilidad. 1ªed. Colombia: Villegas Editores S. A., 2002. ISBN 958-8160-24-3. p.162 107
BACHELARD, Gaston - A Poética do Espaço. 3ªed. São Paulo: Martins Fontes, 1993. ISBN 9788533624191. p.29
108
Idem, p.26
Na infância, o relacionamento com o mundo está livre da imposição de moldes racionais, permitindo que a visão da criança adopte uma realidade baseada apenas no seu entendimento do espaço, onde o campo onírico interfere significativamente. É nesta recolha de informação imaculada que talvez se encontre a justificação para a disparidade encontrada na evocação das memórias infantis e na comparação estabelecida com a realidade: as recordações de grandeza, quando na realidade as dimensões se apresentam tão modestas; o mistério (e o medo que dele resulta) de um espaço místico que agora é somente mais uma divisão; (…) e quando a casa se complica um pouco, quando tem um porão e um sótão, cantos e corredores, nossas lembranças têm refúgios cada vez mais bem caracterizados109. Residem nestas memórias as bases para a significação de lar e do que o conceito de habitar implica, memórias obtidas na primeira casa e transportadas como bagagem para as casas que se seguem. São adquiridas novas recordações, mas o sentimento inicial do habitar acompanha o ser humano ao longo da sua vida. Levamos para a casa nova nossos deuses domésticos110. Paralelamente à relevância das memórias de infância e da casa natal no relacionamento do homem com a arquitectura, Alberto Roa reforça a importância de um arquivo mais geral, com recordações resultantes de diversas experiências espaciais. É a partir dessas memórias que se torna possível ao ser humano materializar imagens em conceitos, permitindo-lhe, assim, o acto de identificar. A percepção e reconhecimento dos espaços tornam-se automáticos perante o confronto com o desconhecido, que o autor supracitado interpreta como tudo aquilo que se encontra temporariamente sem nome e que ainda não foi experienciado. A chegada a um lugar nunca antes visto, a uma cidade desconhecida, exige um reconhecimento que permite o desenvolvimento gradual de um sentido de familiaridade com o lugar. A experiência prévia fornece as bases para esse desenvolvimento. A familiaridade com um lugar permite estabelecer familiaridade com outros lugares111. Essa recolha empírica permite ao homem, posteriormente, compreender e orientarse, assim como exprimir juízos de valor, dependendo da aceitação ou recusa da experiência. Alberto Roa define juízo como um acto de avaliação instantâneo, resposta directa e imediata ao que se percepciona, que depende de factores inerentes ao observador: enquadramento sociocultural, carácter pessoal, disposição anímica, circunstância e memória. É na sua
109
BACHELARD, Gaston - A Poética do Espaço. 3ªed. São Paulo: Martins Fontes, 1993. ISBN 9788533624191. p.28
110
Idem, p.25
La llegada a un lugar antes no visto, a una ciudad desconocida, exige un reconicimiento que permite el desarrollo gradual de un sentido de familiaridad con el lugar. La experiencia previa suministra las bases para ese desarrollo. La familiaridad con un lugar permite establecer familiaridad con otros lugares. (tradução livre) 111
SALDARRIAGA ROA, Alberto - La arquitectura como experiencia: espacio, cuerpo y sensibilidad. 1ªed. Colombia: Villegas Editores S. A., 2002. ISBN 958-8160-24-3. p.131 e 132
51
conjugação que emerge o sentimento pelo lugar112. A memória contribui, desta forma, para o processo de aceitação de um determinado espaço ou edifício, onde a informação sensorial e a experiência vivida actuam conjuntamente. Roa refere-se a este processo como aquisição de simpatia ou antipatia pela arquitectura, uma vez que simpatia significa sentimento de atracção ou afeição natural e instintiva por alguém ou alguma coisa113. Desta forma permitese ao homem que a arquitectura signifique muito mais do que o seu aspecto funcional, intensificando a sua relação e permitindo a atribuição de carácter aos espaços.
No campo da arquitectura o espaço é experimentado através da observação, na qual os sentidos da vista e do tacto estão entrelaçados. Em primeiro lugar trata-se de uma simples declaração de um facto. Mas através das relações dos elementos mais diversos e do seu grau de acentuação - linhas rectas ou curvas, planos, estructuras, solidez, proporções, formas de todas as classes -, um assunto de simples observação física pode ser trasladado para outra esfera. Estes elementos diversos são contemplados subitamente como uma entidade única, como uma unidade imbuída de qualidades espirituais. Esta transformação de um feito físico numa experiência emocional deriva-se de um nível superior da nossa faculdade de abstracção114. Assim, ao longo do presente capítulo foi possível compreender de que forma o homem se relaciona com a sua envolvente e, específicamente com a arquitectura. Dispõe de um conjunto de receptores sensoriais que lhe permite assimilar os estímulos que o rodeiam, e recorre mecânicamente à percepção e à memória como ferramentas de clarificação e contextualização. Mas, para que exista interacção, têm de existir agentes externos dotados da capacidade de, através das suas características materiais ou imateriais, estabelecer uma ligação com o homem.
112 Cfr. SALDARRIAGA ROA, Alberto - La arquitectura como experiencia: espacio, cuerpo y sensibilidad. 1ªed. Colombia: Villegas Editores S. A., 2002. ISBN 958-8160-24-3. p.132 113 Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea. Academia das Ciências de Lisboa e Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa: Verbo, 2001. ISBN 972-22-2046-2. p.3416
En el campo de la arquitectura el espacio es experimentado por medio de la observación, en la cual los sentidos de la vista y el tacto están entrelazados. En primer lugar se trata de una simple declaración de hecho. Pero a través des las relaciones de los elementos más diversos y del grado de su acentuación - líneas rectas o curvas, planos, estructuras, solidez, proporciones, formas de todas clases -, un asunto de simple observación física puede ser trasladado a otra esfera. Estos diversos elementos son contemplados súbitamente como una sola entidad, como una unidad imbuida de cualidades espirituales. Esta transformación de un hecho físico en experiencia emocional se deriva de un nivel superior de nuestra facultad de abstracción. (tradução livre)
114
GIEDION, Sigfried - El presente eterno: Los comienzos de la arquitectura. 3ªed. Madrid: Alianza Editorial, 1992. ISBN 84206-7999-2. p.466
Capítulo II | O ESPAÇO E A SUA MENSAGEM - VALORES ARQUITECTÓNICOS
53
A arquitectura, de uma forma mais plena do que outras manifestações de arte, envolve
o imediatismo das nossas percepções sensoriais (...) apenas a arquitecura consegue acordar simultâneamente todos os sentidos - todas as complexidades da percepção104.
Considerando que o relacionamento entre o homem e a arquitectura se baseia numa permuta de informação e de influências, ambos se assumem como protagonistas de um acto de comunicação, composto por um receptor e um emissor. Tendo em conta que o capítulo anterior evidência as estruturas inatas ao homem que o definem como um receptor de informação, considera-se, então, neste contexto, a arquitectura enquanto entidade emissora. Como tal, urge compreender qual o papel da concepção arquitectónica na manipulação da essência dos espaços e que sensações transmitem a quem os experiência, uma vez que a comunicação pressupõe a transmissão de uma mensagem. Embora a arquitectura deva ser encarada como um todo e não a soma das suas diversas partes, é necessário uma fragmentação de valores arquitectónicos para uma melhor compreensão do papel dos mesmos na definição e caracterização do espaço. Desta forma, a análise compreende a concepção espacial, temporal e formal, bem como questões materiais, nomeadamente a selecção dos materiais para um projecto ou a manipulação cromática, e questões imateriais, não palpáveis, como a luz e o som. Todos estes valores funcionam em conjunto, moldando as vivências dos espaços e contribuindo em uníssono para a criação de uma essência espacial específica, de uma mensagem. A tarefa intemporal da arquitectura é criar metáforas existenciais que concretizem e estruturem o nosso estar no mundo (…) a arquitectura permite-nos percepcionar e compreender os dialectos da permanência e da mudança, para nos resolvermos no mundo e para nos posicionarmos na continuidade da cultura e do tempo105.
104 Architecture, more fully than other art forms, engages the immediacy of our sensory perceptions (…) only architecture can simultaneously awaken all the senses – all the complexities of perception. (tradução livre)
HOLL, S.; PALLASMAA, J. e PEREZ-GOMEZ, A. - Questions of Perception: Phenomenology of Architecture. 2ªed. San Francisco: William K Stout Pub, 2006. ISBN 4-900211-48-6. p.41 105 The timeless task of architecture is to create embodied and lived existential metaphors that concretize and structure our being in the world... architecture enables us to perceive and understand the dialectics of permanence and change, to settle ourselves in the world, and to place ourselves in the continuum of culture and time. (tradução livre)
Idem, p.41
55
2.1 | CONCEPÇÃO ESPACIAL E FORMAL
A pintura actua sobre duas dimensões, a despeito de poder sugerir três ou quatro delas. A escultura actua sobre três dimensões, mas o homem fica de fora, desligado, olhando do exterior as três dimensões. Por sua vez, a arquitectura é como uma grande escultura escavada, cujo interior o homem penetra e caminha106. Segundo Bruno Zevi, o carácter essencial da arquitectura reside no facto de recorrer ao que apelida de vocabulário tridimensional, distinguindo-se das outras actividades artísticas, não só pela sua condição espacial e temporal distinta, mas também porque nela inclui o homem e respectivas vivências. Frank Lloyd Wright corrobora, constatando que a realidade arquitectónica não reside apenas na sua configuração formal e afirmando que a essência da arquitectura é o seu espaço: a realidade da arquitectura tem de ser procurada no espaço encerrado pela cobertura e pelas paredes, e não nelas mesmas107. Com isto, não se pretende atribuir todo o protagonismo à concepção espacial, reconhecendo o devido valor a todos os elementos que participam activamente na concepção e materialização arquitectónica. O seu papel reside, essencialmente, na atribuição de individualidade existencial, contando que diferentes opções formais, materiais e estruturais contribuirão para um resultado muito específico108. Desta forma compreende-se que o espaço (arquitectónico), de acordo com a complexidade de valores que o materializam, é algo que não pode ser conhecido, a não ser através da experiência e vivência directas. A dimensão espacial é, então, carente de materialidade que só a arquitectura consegue converter em algo concreto, perceptível e compreensível. Experiencia-se enquanto elemento que precede os objectos, como um meio em que todas as coisas se posicionam, e a vida do ser humano decorre - uma vez que o factor tempo também o influencia directamente. Desta forma, pode assumir diferentes concepções, de acordo com os contextos a que se encontra exposto e com as funções que lhe são atribuídas. Para uma melhor compreensão do seu papel enquanto realidade física e enquanto resultado de
106
ZEVI, Bruno – Saber ver a arquitectura. 5ªed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ISBN 85-336-0541-2. p. 17
La realidad de la arquitectura hay que buscarla en el espacio encerrado por la cubierta y las paredes antes que en ellas mismas. (tradução livre) 107
WRIGHT, Frank Lloyd – The natural house. 1ªed. New York: Horizon Press, 1954. ISBN 978-0818000072. p.220 108
Cfr. ZEVI, Bruno – Saber ver a arquitectura. 5ªed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ISBN 85-336-0541-2. p. 17 a 28
ideologias arquitectónicas distintas, o estudo é divido em valores espaciais e formais, assim como materiais e imateriais.
2.1.1
Espaço enquanto realidade
O espaço é objecto da experiência humana, ao qual se pode atribuir definições distintas. Neste caso específico, interessa compreender a sua capacidade enquanto meio de relacionamento do homem com a realidade construída. Primordialmente, surge a necessidade de fazer uma breve alusão ao conceito base, desligado de qualquer tipo de interpretação e âmbito, o espaço físico, ou seja, o espaço em si, que foi referido até agora como o ambiente que resulta da conjugação de paredes, pavimento e cobertura, um intervalo entre limites109. Uma vez que o meio cultural e social onde o homem se insere tem influência no meio construído, torna-se pertinente referir o espaço pessoal que, ainda que não seja uma definição estritamente arquitectónica, interfere directamente na conceptualização projectual dos espaços. Designa-se, então, pela distância fixa que separa uma pessoa de outra110, distância que muda de acordo com as crenças culturais, com as regras sociais, com os traços de personalidade individuais ou até com o tipo de relacionamento entre indivíduos. A experiência da arquitectura estabelece-se a partir de uma base de dados perceptíveis que constituem os parâmetros básicos da referência do espaço físico. Os sentidos providenciam a informação acerca da materialidade do mundo e permitem construir a sua imagem111. O espaço que o ser humano percebe através dos seus mecanismos sensoriais, é o espaço perceptível, a realidade que se lhe depara como existencialmente verdadeira, resultado de uma experiência psicológica que depende da forma como o observador a concebe. O
109 Cfr. ROTH, Leland M. – Entender la arquitectura: sus elementos, historia y significado. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, SA, 2005. ISBN 84-252-1700-8. p.49 110
Cfr. HALL, Edward T. – A dimensão oculta. Lisboa: Relógio d’Água, [1986]. ISBN 972-708-123-1. p.137
La experiencia de la arquitectura se establece a partir de una base de datos perceptuales que constituyen los parâmetros básicos de referencia del espacio físico. Los sentidos proveen la información acerca de la materialidad del mundo y permitem construir su imagen. (tradução livre)
111
SALDARRIAGA ROA, Alberto – La arquitectura como experiencia: espacio, cuerpo y sensibilidad. 1ªed. Bogotá: Villegas Editores, 2002. ISBN 958-8160-24-3. p.127
57
Fig.1 Perspectiva do projecto original para o Cemitério de San Cataldo em Modena, Itália. Projectado pelo arquitecto Aldo Rossi e construído entre 1971 e 1984. Fig.2 Vsta do interior do ossário do cemitério.
Fig.3 Ossário do Cemitério de San Cataldo.
Fig.4 Corredor lateral que conduz à zona das sepulturas.
Fig.5 Ossário do Cemitério de San Cataldo. Fig.6 Alçado do projecto para o Cemitério de San Cataldo.
espaço é organizado, então, pelos edifícios e respectivas distâncias entre eles, bem como pelas suas formas, limites e eixos. Mas, mais do que um resultado de percepções, é uma realidade apoiada por feitos físicos, associados à estrutura arquitectónica, dimensionados através da atribuição de características específicas ao conjunto construído112. Os arquitectos recorrem à manipulação formal das suas obras, tendo conhecimento de que a percepção humana irá atribuir a essas características uma significação espacial específica, manipulação essa que se caracteriza pelo domínio de determinados valores, como a escala, as forças verticais e horizontais presentes num edifício, a dinâmica dos volumes e o ritmo.
Escala
A partir de uma certa escala, a arquitectura adquire as propriedades de Grandeza. A melhor razão para abordar a Grandeza é a que é dada pelos alpinistas do monte Everest: porque está lá113. O território, a paisagem, a cidade, a restante edificação e o homem são as principais referências do meio que influenciam e caracterizam a arquitectura, cuja hierarquização dos elementos pode variar de acordo com as características da realidade em questão. A relação de escala do construído é claramente distinta se se comparar a cidade, em que predomina a construção em massa, com o meio rural, em que predomina o campo visual aberto da paisagem. A arquitectura é a manifestação artística visual que ocupa mais espaço, à qual a vivência do ser humano não é alheia. Pode-se denominar de escala humana a procura da relação significativa das propriedades físicas do espaço arquitectónico com o corpo humano, uma vez que a dimensão de um edifício tem de responder a um conjunto de valores psicológicos, sociais e culturais que dão origem a um sentimento de comodidade, segurança e beleza114. A escala arquitectónica é responsável por imprimir no ser humano uma sensação relativamente à experiência de diferentes dimensões espaciais. Desta forma,
112 Cfr. ARNHEIM, Rudolf – La forma visual de la arquitectura. 1ªed. Barcelona: Gustavo Gili Editorial, 1978. ISBN 84-2520728-2. p.16 113 Beyond a certain scale, architecture acquires the properties of Bigness. The best reason to broach bigness is the one given by climbers of Mount Everest: because it is there. (tradução livre)
KOOLHAAS, Rem in MÁRQUEZ CECILIA, Fernando; LEVENE, Richard (eds.) – Oma /Rem Koolhaas: 1992-1996, El Coquis. Nº79. Madrid: El Croquis Editorial, 1996. ISSN 0212-5683. p.11 114 Cfr. SALDARRIAGA ROA, Alberto – La arquitectura como experiencia: espacio, cuerpo y sensibilidad. 1ªed. Bogotá: Villegas Editores, 2002. ISBN 958-8160-24-3. p.129 e 130
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Fig.7 Sede da Central Televisiva Chinesa em Pequim, CCTV, China, projectada pelo arquitecto Rem Koolhaas e construída entre 2004 e 2008.
Fig.8 É possível compreender a escala imponente do edifício através da comparação das suas dimensões com os edifícios que constituem a envolvente.
Fig.9 Desenhos técnicos do projecto.
Fig.10 Maquete da Central Televisiva.
dimensões projectuais que se aproximem das medidas do corpo humano, atribuem ao espaço um ambiente seguro e cómodo, de proximidade à sua realidade. Quando as dimensões são significativamente grandes comparativamente ao corpo humano, transmitem magnificência e afastamento, conferindo ao espaço dinamismo e imponência que podem resultar, de acordo com questões formais e materiais, em desconforto e insegurança. A compreensão da escala de um edifício pode ser feita através da leitura de determinados elementos que lhe são inerentes, como os vãos de um alçado que permitem estabelecer uma referência específica: se o número de pisos de um edifício for denunciado por uma sucessão de vãos poder-se-á compreender, à partida, se é uma construção em altura ou não. Mas, na ausência dessas mesmas chaves visuais, perceber a escala deixa de ser um acto automático, para requerer um exercício de relações, confrontando-o visualmente com outros edifícios ou com as pessoas que se encontram perto dele. Analisando o Cemitério de San Cataldo em Modena, desenhado por Aldo Rossi e construído entre 1971 e 1984, é possível fazer uma leitura intensa e dramática do conjunto, influenciada pela escala titânica, denunciada pela sucessão interminável de pilares e o segmento extenso de vãos (fig.1 e 4). O edifício cúbico central assume o papel de referência dimensional, contrastando a sua verticalidade, com a horizontalidade intensiva do restante cemitério (fig.3, 5 e 6). Mesmo sem envolvente construída à sua volta, facilmente se compreende a sua presença imponente115. Pode-se verificar o efeito contrário na sede da Central Televisiva Chinesa em Pequim, projectada por Rem Koolhaas e construída entre 2004 e 2008, onde o edifício não apresenta nenhum elemento arquitectónico que possa actuar como referência na leitura das suas dimensões (fig. 8 e 10). Enquanto conjunto construído isolado, é impossível determinar a sua escala apenas através da sua condição formal, sendo necessário recorrer à envolvente construída, ou ao relacionamento dimensional entre homem e edifício, para compreender as suas gigantescas proporções (fig.7).
Forças verticais e horizontais
As propriedades psicológicas da verticalidade e horizontalidade dificilmente mereceriam a nossa atenção se a sua dinâmica não contribuísse significativamente na conversão dos edifícios em imagens simbólicas, onde o homem vê condições fundamentais da
115 Cfr. MONEO, Rafael – Inquietude teórica y estratégia projectual en la obre de ocho arquitectos contemporâneos. Barcelona: Actar, 2004. ISBN 84-95951-68-1. p.119
61
Fig.11 Chicago Federal Center, EUA, projectado pelo arquitecto Mies van der Rohe e construído entre 1959 e 1964.
Fig.12 Chicago Federal Center.
Fig.13 Aproximação edifício.
Fig. 14 e 15 Pormenor do posicionamento dos perfis metálicos, à vista, acentuando o eixo vertical do edifício através da sua evidência nas fachadas.
da
fachada
do
sua própria existência116. Existe a tendência de atribuir conotações específicas às expressões visuais da arquitectura, o que normalmente se deve à resposta corporal cinestésica do homem à constituição linear e formal de um edifício. Assim, a linha horizontal117 produz uma sensação de empatia e repouso, tal como nessa orientação específica o ser humano encontra o posicionamento ideal para o descanso. O plano horizontal representa a capacidade de adoptar movimentos livres em qualquer direcção, sem necessidade de deslocações ascendentes ou descendentes permitindo a sensação de extensão infinita, plano esse que, segundo NorbergSchulz, representa o mundo concreto da acção humana118. Contrariamente, a linha vertical119 produz um sentimento de aspiração, de elevação mística, com um carácter marcadamente dinâmico, enquanto aparente resultado de forças concorrentes ao meio. O corpo humano, as árvores, as montanhas e, principalmente os edifícios, assumem a postura dinâmica da verticalidade, rompendo com a sugestão horizontal presente no meio terreno. A diferença fundamental entre horizontal e vertical é introduzida pela atracção gravitacional120. Optando pela supremacia do eixo vertical num edifício, a sobreposição numerosa dos seus pisos não corrobora a leitura pretendida, uma vez que as camadas horizontais que definem os andares resistem à tendência visual de lhes atribuir um dimensionamento orientado verticalmente. Assim, para reforçar a verticalidade, recorre-se a elementos como os contrafortes, as colunas, os pilares ou os vãos que, alinhados verticalmente, contrastam com o corte horizontal do edifício. Assim, o eixo vertical predomina, formando com a terra um ângulo recto, cujos elementos lineares partem energeticamente do solo, lançando-se na direcção do céu e contrariando o princípio visual da gravidade. O Chicago Federal Center, desenhado por Mies van der Rohe e construído entre 1959 e 1964, manifesta claramente esse princípio da verticalidade. No sentido de contrariar a horizontalidade das lajes de cada andar, o arquitecto recorreu à evidenciação da estrutura
116 Las propriedades psicológicas de verticalidad y horizontalidad dificilmente merecían nuestra atención su su dinâmica no contribuyera en gran manera a convertir los edificios en imágenes simbólicas, en las que el hombre ve condiciones fundamentales de su própria existência. (tradução livre)
ARNHEIM, Rudolf – La forma visual de la arquitectura. 1ªed. Barcelona: Gustavo Gili Editorial, 1978. ISBN 84-252-0728-2. p.54 117
Representa a inércia, a quietude e a morte. Marca um âmbito de acção usual, ordinário.
REVILLA, Federico – Diccionário de iconografia y simbologia. 2ªed. Madrid: Cátedra, 1995. ISBN 84-376-0929-1. p.419 e 420 Cfr. NORBERG-SCHULZ, Christian – Existencia, espacio y arquitectura. 1ªed. Barcelona: Editorial Blume, 1975. ISBN 847031-233-2
118
Representa a dinâmica, a afirmação, a transcendência e a vida. Materializa a união entre a terra e o céu, simbolizando o homem perfeito, em que na perspectiva cristã representa Jesus de Nazaré.
119
Idem, p.419 120
ARNHEIM, Rudolf – Arte e percepção visual. 2ªed. São Paulo: Pioneira, 1984. ISBN 8522101485. p.174
63
Fig.16 Caja General de Granada, Espanha, projectada pelo arquitecto Alberto Campo Baeza e construída em 1999.
Fig.17 Escritórios da Caja General.
Fig.18 Confronto do volume amplo e imponente correspondente ao átrio, com a organização e disposição espacial rítmica dos escritórios.
Fig.19 Átrio da Caja General.
Fig.20,21,22 e 23 Planta do piso de acesso, planta do piso-tipo, planta do último piso e corte transversal, respectivamente.
(fig.14 e 15), aliada a uma cortina de vidro que, para além de uniformizar toda a superfície,
reforça o sentido de verticalidade no conjunto visual da construção (fig.11, 12 e 13). Quando se pretende que o eixo horizontal se evidencie como dimensão dominante da arquitectura, os pisos seguem a sua direcção natural. A estrutura do edifício não se evidencia, ou caso contrário, subordina-se à restante composição, contornando as formas horizontais. Todas as suas componentes acompanham o movimento que Frank Lloyd Wright descreve como tranquilizador, e que achou ser perfeito para aplicar ao ambiente doméstico das suas Casas da Pradaria121.
Dinâmica dos volumes A vertente palpável da arquitectura traduz-se em linhas e superfícies que, ainda que constituam referências físicas do mesmo, não devem ser vistas apenas como elementos formais que integram a concepção arquitectónica. A percepção visual do homem reage às formas, atribuindo-lhes dinâmicas específicas, de acordo com as suas qualidades genéricas, como a leveza ou solidez, a retidão ou flexibilidade e a expressão ou contracção. A mente humana tem a capacidade de atribuir dinamismo ao comportamento volumétrico de uma construção, atribuindo-lhe uma expressividade, de acordo com as variantes que a compõem122. Existe um processo de ordenação segundo as energias das componentes volumétricas de uma obra arquitectónica. Resulta geralmente na procura de um eixo intuitivo na constituição das mesmas e numa consequente análise, livre de influências externas, de acordo com as propriedades dinâmicas ou estáticas dos volumes. Assim, a estrutura da forma possui um centro de gravidade que interfere com a intuição sensorial do ser humano, permitindo-lhe estabelecer a leitura do seu equilíbrio. Numa composição construtiva, formas cúbicas transmitem inércia, devido à ortogonalidade das suas faces e arestas. As formas cilíndricas traduzem-se em estabilidade, enquanto as semiesferas manifestam um equilíbrio natural, absoluto e harmonioso. Os
121 Cfr. ARNHEIM, Rudolf – La forma visual de la arquitectura. 1ªed. Barcelona: Gustavo Gili Editorial, 1978. ISBN 84-2520728-2. p.30-55
Cfr. ROTH, Leland M. – Entender la arquitectura: sus elementos, historia y significado. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, SA, 2005. ISBN 84-252-1700-8. p.63 122 ARNHEIM, Rudolf – La forma visual de la arquitectura. 1ªed. Barcelona: Gustavo Gili Editorial, 1978. ISBN 84-252-07282. p.198 a 201
65
Fig.24 Museu Guggenheim de Bilbao, Espanha, projectado pelo arquitecto Frank Gehry e construído entre 1992 e 1997.
Fig.25 As curvas de titânio dos volumes que compõem o museu.
Fig.26 As formas orgânicas características não só do museu, mas de todo o trabalho de Frank Gehry.
Fig.27 O dinamismo formal do conjunto construído verifica-se, também, no interior do museu.
Fig.28 Planta do projecto do Museu Guggenheim, em Bilbao.
paralelepípedos assumem um nítido contraste entre a sua ortogonalidade e o dinamismo do seu alongamento, e as formas piramidais ou cónicas contêm um carácter dinâmico, devido à sua força visual ascensional. Apesar da expressividade de alguns dos elementos volumétricos referidos, habitualmente o recurso a estas opções formais traduz regularidade construtiva e, consequentemente, uma vivência espacial estável e harmoniosa123. A Caja Generale de Granada, edifício projectado por Alberto Campo Baeza, e construído em 1999, é um exemplo exímio das capacidades harmoniosas das formas intensamente regulares124. O edifício funciona como uma caixa cúbica (fig.26) que, ainda que formalmente compacta, atribui flexibilidade e simplicidade espaciais ao seu interior (fig.17 e 19). É constituído por um volume central amplo e regular, o átrio do edifício, em
torno do qual os pisos com os escritórios se organizam (fig.20 a 23). Permite experienciar a amplitude e serenidade de uma escolha volumétrica equilibrada e ponderada, em que o único contraste é estabelecido pelos feixes de luz diagonais que penetram o interior, intensificando a agradável atmosfera do edifício (fig.18). Contrariamente às características dos volumes previamente referidos, existem opções formais que contribuem para uma leitura mais diversificada que pode variar de acordo com o facto do seu posicionamento ser completo ou relativo. Desta forma, pode-se referir o equilíbrio dúbio da esfera que, apesar da sua perfeição simbólica e harmoniosa, sugere instabilidade pelo facto de o seu apoio se resumir a um ponto. A elipsóide, para além do carácter instável semelhante ao da esfera, que pode ser acentuado caso o seu eixo se encontre perpendicular ao solo, ou atenuado caso se encontre paralelo. As formas oblíquas simbolizam sempre instabilidade e dinamismo, sem meios de mediação possíveis125. Como exemplo da materialização de dinamismo formal, o Museu Guggenheim de Bilbao, projectado por Frank Gehry e construído entre 1992 e 1997, representa a acção de uma concepção espacial nitidamente orgânica: o plano, os sólidos platónicos, esquecem-se e as superfícies agitam-se na mais animada das danças126 (fig.25 e 26). O museu assume-se como um corpo palpitante, cuja manipulação livre das formas permite originar um espaço expressivo e monumental, caracterizado pelo movimento e dinamismo (fig.27 e 28).
Cfr. CONSIGLIERI, Victor – A morfologia da arquitectura: 1920-1970. 1ªed. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. ISBN 97233-1005-8. p.258 e 259
123
124 HAMMOND, Paul; THORNE, Stephen – Alberto Campo Baeza: Works and projects. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1999. ISBN 84-252-1781-4. p.160 125 Cfr. CONSIGLIERI, Victor – A morfologia da arquitectura: 1920-1970. 1ªed. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. ISBN 97233-1005-8. p.259 e 260 126
El plano, los sólidos platónicos, se olvidan y las superfícies se agitan en la más animada de las danzas. (tradução livre)
MONEO, Rafael – Inquietude teórica y estratégia projectual en la obre de ocho arquitectos contemporâneos. Barcelona: Actar, 2004. ISBN 84-95951-68-1. p.305
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Fig.29 Instituto Tecnol贸gico de Massachusetts, ou Baker House, Fig.30 EUA, projectado por Alvar Aalto e constru铆do entre 1946 e 1948. m Fig.31 Planta do piso tipo do instituto. Fig.33 Maquete do Instituto Tecnol贸gico de Massachusetts.
Instituto
Tecnol贸gico
de
Massachusetts.
Fig. 32 Pormenor da fachada ondulante do instituto.
Ritmo
Na composição arquitectónica, o ritmo é um valor que organiza o relacionamento entre espaços, volumes ou elementos arquitectónicos, de acordo com a procura de resultados específicos, harmoniosos ou dissonantes. O ser humano encontra-se munido de uma predisposição para a aceitação do ritmo, uma vez que rapidamente memoriza esquemas e se habitua a estímulos repetitivos. Ritmo: Movimentos ou sons cadenciados em intervalos periódicos. (...) Movimento com periocidade de elementos fortes ou fracos127. A vertente rítmica da arquitectura pode ser estabelecida pela semelhança ou pela diferença, através da repetição de um elemento ou da repetição de uma variação de elementos, respectivamente. É interessante a forma como, perante determinado registo rítmico, após o primeiro impacto na implantação de volumes, na concepção espacial ou na própria fachada, os elementos parecem encadearse numa relação sucessiva e perceptivamente mais fácil de entender128. A capacidade das manipulações rítmicas da arquitectura atribuírem dinamismo às formas junta-se ao facto de despoletarem emoções significativas no observador. Na concepção volumétrica, o ritmo pode-se materializar nas suas dimensões, verificando-se uma repetição de altura e largura nos edifícios, ou na variação das mesmas sequencialmente. A manipulação rítmica dos espaçamentos entre os edifícios, atribui uma vivência mais dinâmica do espaço exterior, e da forma como o mesmo se relaciona com o construído. Se os espaçamentos forem longos e dilatados, contribuem para uma transição demorada entre um edifício e o outro, resultando numa vivência do espaço mais relaxada e diluída. Quando a separação entre volumes é significativamente curta, cria-se uma sensação de aceleração espacial, de impetuosidade. Formalmente, o recurso a ritmos simultâneos que se sobrepõem entre si, criam uma leitura igualmente ambígua e dinâmica: um jogo de alternâncias entre cheios e vazios, entre estruturas maciças e leves, pode estabelecer uma cadência interessante na leitura de um edifício. No período Barroco o planeamento espacial dinâmico caracterizava-se pelas séries rítmicas de aposentos, em que nenhum se assumia individualmente, fazendo parte de um todo129.
127
Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, volume 2. Lisboa: Círculo de Leitores, 1985. p.999
Cfr. CONSIGLIERI, Victor – A morfologia da arquitectura: 1920-1970. 1ªed. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. ISBN 97233-1005-8. p.338 e 339
128
129 Cfr. ROTH, Leland M. – Entender la arquitectura: sus elementos, historia y significado. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, SA, 2005. ISBN 84-252-1700-8. p.69 a 73
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Relativamente aos valores arquitectónicos, o ritmo pode estar presente na repetição ou variação sequencial de formas, de elementos de suporte, vãos ou até linhas de composição, rectas ou curvas. A sua manipulação contribui para a atribuição de um sentido de unidade e, paralelamente, de dinamismo. O Instituto Tecnológico de Massachusetts, ou Baker House, projectado por Alvar Aalto e construído entre 1946 e 1948, materializa as possibilidades rítmicas da arquitectura. Tendo em conta as condições naturais da envolvente, Aalto quis que todos os dormitórios usufruíssem de uma vista para o rio, resolvendo a situação com um edifício em tijolo vermelho, dotado de uma parede ondulada que, para além de resolver a adaptação à exposição solar reduzida, atribui grande dinamismo formal ao conjunto construído (fig.33). Encontra-se presente na fachada um ritmo longo e ininterrupto, resultante da sucessão de vãos, evidenciando-se na superfície de textura áspera e rugosa do edifício130 (fig.30 e 32). Mas, mais do que o recurso à repetição, Aalto distribui a sequência ininterrupta, quer de vãos no exterior e de quartos no interior, ao longo de uma forma sinuosa, permitindo uma distribuição rítmica peculiar que, tal como a vida de estudante, contrasta o rigor com o dinamismo (fig. 29 e 31). Aalto criou esta forma específica para evitar o uso de quartos estereotipados, proporcionando para cada estudante um quarto espacialmente distinto dos outros, e permitindo-lhe assim a afirmação da sua individualidade.
2.1.2
Espaço enquanto domínio arquitectónico
A história da arquitectura é primordialmente uma história da configuração do espaço pela mão do homem131. Tendo em conta a importância, já referida, da dimensão espacial de um edifício, ou da relação do mesmo com o meio, ao longo da história da arquitectura foram experimentados
130 Cfr. RASMUSSEN, Steen Eiler – Viver a arquitectura. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2007. ISBN 978-989-8010-99-5. p.132 e 133 131 La historia de la arquitectura es primordialmente una historia de la configuración del espacio por la mano del hombre. (tradução livre)
PEVSNER, Nicolau in ROTH, Leland M. – Entender la arquitectura: sus elementos, historia y significado. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, SA, 2005. ISBN 84-252-1700-8. p.49
vários conceitos de interpretação e materialização da mesma, de acordo com determinados princípios e ideais, e influenciados pela evolução das capacidades construtivas. Naturalmente, as diversas possibilidades nascidas desta busca deram origem a vivências completamente distintas do espaço. Mais do que compreender a manifestação construída do mesmo, tornase essencial compreender o conceito que o envolve, enquanto motor da sua organização e leitura. O espaço arquitectónico tem a capacidade de configurar, poderosamente, os comportamentos do homem: Damos forma aos nossos edifícios e depois os nossos edifícios dão-nos forma a nós132.
Espaço positivo e espaço negativo (em planta e em corte)
Rudolf Arnheim refere que, claramente, não existem limites fixos, nem de espaço nem de tempo e que, perante a infinidade vazia do meio (espaço negativo), é necessário estabelecer uma ordem através do uso da arquitectura (espaço positivo)133. É complicado conceber a ideia de praça, se não existirem edifícios que a limitem e configurem. Assim, espaço construído e não construído assume-se como elemento positivo e negativo de uma composição, em que os elementos positivos são unidos e organizados através da força estabelecida pelos elementos negativos. Como as árvores são magníficas, porém o mais magnífico ainda é o espaço sublime e patético entre elas134. Oscar Niemeyer recorre a esta citação como forma de reforçar que, tão importante como a concepção construtiva de dois edifícios, é também a concepção espacial entre os mesmos, não se podendo assumir o espaço como um mero resultado, mas sim como consequência cogitada. Assim, o trabalho do arquitecto não se cinge necessariamente ao trabalho dos sólidos de um edifício, podendo trabalhar também com o espaço vazio, articulando-o e equilibrando-o com o construído135. Surge, assim, um jogo entre positivo e negativo que se pode materializar no alçado, na constituição construtiva ou até a nível urbanístico.
132
Damos forma a nuestros edificios y después nuestros edificios nos dan forma a nosotros. (tradução livre)
CHURCHILL, Wiston – Onwards to victory: War Speeches by the Right Hon. 1ªed. Boston: Brown & Co, 1944. ISBN 0304930164. p.317 133 Cfr. ARNHEIM, Rudolf – La forma visual de la arquitectura. 1ªed. Barcelona: Gustavo Gili Editorial, 1978. ISBN 84-2520728-2. p.58
RILKE, Rainer in NIEMEYER, Oscar – Conversa de arquitecto. 6ªed. Porto: Campo das Letras Editores, 1997. ISBN 972610-036-4. p.19
134
135 Cfr. RASMUNSSEN, Steen Eiler – Viver a arquitectura. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2007. ISBN 978-989-8010-99-5. p.37 e 38
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Fig.34 Vista geral do Rolex Learning Center em Lausanne, Alemanha, projectado pelo atelier Sanaa e construído em 2009.
Fig.35 A superfície ondulante de betão denuncia a sua profundidade através das perfurações pontuais.
Fig.36 Apesar de, em planta, se apresentar como um rectangulo perfeito, as curvas e ondulações, assim como as perfurações circulares atribuem-lhe um carácter essencialmente orgânico.
Fig.37 Vista do espaço interior do Rolex Learning Center.
Fig.38 Pormenor do Rolex Learning Center.
Fig.39 Os locais de apoio do edifício são pontuais, sendo possível atravessá-lo em determinadas zonas.
O Rolex Center, centro comunitário da Escola Politécnica Federal de Lausanne, projectado pelo atelier Sanaa e construído em 2009, é um edifício multiusos que representa uma das várias possibilidades da materialização do conceito de espaço positivo e negativo. O edifício é formalmente simples e orgânico, distribuindo-se leve e horizontalmente no terreno. É definido por uma cobertura de betão ondulada, cuja estrutura é de aço, que abrange todo o programa e é pontualmente perfurada por pátios de diferentes formas e alturas (fig.34). A opção formal apresenta-se como uma plataforma de carácter uniforme, não denunciando a localização das diferentes funções que integra no seu interior. Evidenciamse perfurações circulares de diferentes dimensões (fig.35), distribuídas ao longo do edifício, com o intuito de organizar os interiores de acordo com as áreas programáticas136 (fig.37). A obra pode ser interpretada, então, como um sólido maciço, no qual foram escavados pequenos espaços circulares que correspondem aos pátios (fig.36, 39 e 39). Assim, o edifício surge como uma forma positiva maciça, horizontal e orgânica, pontuada por espaços negativos circulares que permitem atenuar a imposição da forma global, denunciando a sua espessura e atribuindo leveza à composição. Da mesma forma que os vazios perfuram o sólido, definindo assim a sua hierarquia espacial, também o vazio pode ser estruturado pelo posicionamento de sólidos, onde a concepção espacial é definida, contrariamente ao exemplo anterior, pela adição e não pela subtracção, como é possível verificar no Centro de Tratamento para crianças com distúrbios mentais em Hokaido, projectado por Sou Fujimoto e construído em 2006. Sou Fujimoto propõe um espaço que proporcione, através das suas características formais, a aliança entre a sensação de intimidade que só uma casa pode transmitir, e o dinamismo e diversidade de uma cidade137. De maneira a materializar o seu objectivo, recorre a um método conceptual livre e sem regras, que consiste na distribuição aleatória de volumes cúbicos num espaço vazio (fig.40 e 41). Esses mesmos volumes assumem o programa específico do centro de tratamento, enquanto os espaços sobrantes se destinam às zonas de estar e de refeições (fig.42). Consegue, assim, espaços imprevisíveis, substituindo a repetição pela individualidade.
O resultado da conjugação dos elementos negativos (cubos) com o elemento positivo (o vazio) origina uma ambiguidade espacial intensa, em que os diferentes volumes surgem separados formalmente, mas interligados espacialmente (fig.43).
Cfr. MÁRQUEZ CECILIA, Fernando; LEVENE, Richard (eds.) - Sanaa, Kazuyo Sejima + Ryue Nishizawa: 2004-2008, El Croquis. Nº 139. Madrid: El Croquis, 2008. ISSN 13 978-84-88386-48-9. p.174 136
Cfr. SAJEH, Nico. Children’s Center for Psychiatric Rehabilitation / Sou Fujimoto [em linha]. © ArchDaily LLC, 20082011, actual. 3 Nov. 2008. [consult.25 junh.2011]. Disponível em: http://www.archdaily.com/8028/children%E2%80%99scenter-for-psychiatric-rehabilitation-sou-fujimoto/
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Fig.40 Vista geral do Centro de Tratamento em Hokaido, Japão, projectado pelo arquitecto Sou Fujimoto e construído em 2006.
Fig.41 Esquema da implantação do centro, e respectiva distribuição das unidades que o definem.
Fig.42 Zona de estar definida pelos espaços entre os edifícios de forma cúbica.
Fig.43 Planta do primeiro piso do centro.
Fig.44 Divisões mutáveis das habitações inseridas no projecto “Espaço Vazio/Espaço Articulado Habitacional”, em Fukuoka, Japão, projectadas por Steven Holl e construídas entre 1989 e 1991. Neste exemplo específico, é possível verificar o resultado do espaço enclausurado.
Fig.45 A flexibilidade e versatilidade do espaço, através da movimentação de planos e móveis.
Espaço conexo ou estático
O tipo de relacionamento entre diferentes espaços de um edifício contribui, também, para a manipulação da sua essência global, bem como para a possibilidade de vivências específicas, de acordo com o seu carácter. Os espaços podem entrelaçar-se, assumindo uma postura de fluidez em que se torna difícil apontar os seus limites, ou apresentar um carácter mais estático, enclausurando-se conforme as suas funções e exibindo-se como células separadas, com fins e limites bem definidos, que constroem o todo arquitectónico. Steven Holl projectou para Fukuoka, Japão, no decorrer do evento Nexus World Housing, um conjunto de cinco edifícios destinados a habitação plurifamiliar, construídos entre 1989 e 1991. Apelidou o projecto como “Espaço Vazio/Espaço Articulado Habitacional”. Era seu objectivo que os 28 apartamentos que neles se inserem se organizassem de acordo com o princípio do espaço articulado, materializado numa organização espacial aberta em que, tal como as habitações tradicionais japonesas, as divisões não fossem definitivas, podendo alterar os seus limites conforme as necessidades138 (fig.44 e 45). Assim, durante o dia, através de painéis deslizantes ou rotativos, é possível alterar a disposição das divisões, variando e ampliando as zonas de estar, resultando numa melhor adaptação dos espaços às actividades diurnas (fig.49). À noite, a organização espacial assume um carácter mais funcional e adequado, restituindo a intimidade dos espaços enclausurados (fig.47). Este dinamismo espacial permite, ainda, acompanhar a evolução do agregado familiar, consoante a necessidade de definir mais ou menos divisões. Esta capacidade de mutação constante atribui uma vivência espacial mais criativa, em que os espaços se encontram, de certa forma interligados, nunca definindo limites perentórios (fig.48). O Centro de Convenções Columbus em Ohio, projectado por Peter Eisenman, e construído entre 1990 e 1993, encontra-se situado numa área de transição entre o centro histórico da cidade e a periferia, composta por várias e longas vias automóveis e dominado pela indústria. Tendo em conta a envolvente do projecto, o arquitecto achou importante que o edifício assumisse características formais, assim como uma escala, que corroborassem com as exigências da sua implantação num local de definição urbana relativamente ambígua. A construção apresenta uma frente composta por sucessivas fachadas, com o intuito de reproduzir o carácter do meio urbano, fachadas (fig.52 e 53) que se extrudem em formas alongadas, formalmente dinâmicas e desencontradas, simbolizando o carácter industrial
Cfr. HOLL, Steven – Entrelazamientos: obras y proyectos, 1989-1995. Barcelona: Gustavo Gili Editorial, 1996. ISBN 84252-1711-3. p.18
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Fig.46 Perspectiva, em aguarela, dos edifícios destinados à habitação em Fukuoka, Japão, projectados pelo arquitecto Steven Holl e construídos entre 1989 e 1991. Fig.48 Planta tipo da unidade habitacional, com as possíveis mudanças espaciais.
Fig.47 e 49 A utilização de portas, planos e armários pivotantes, permite a reconfiguração e acomodação de cada habitação de acordo como ciclo diurno e nocturno, bem como o ciclo da vida, do utilizador.
Fig.50 Vista geral do Centro de Convenções Columbus em Ohio, EUA. Projectado pelo arquitecto Peter Eisenman e construído entre 1990 e 1993.
Fig.51 Planta do piso térreo do centro de convenções.
Fig.52 As múltiplas fachadas do centro que procuram a integração do projecto num contexto urbano.
Fig.53 Pormenor das fachadas do centro.
(fig.50). A associação destas duas realidades, resultou numa obra formal e cromaticamente
variada, que materializa a essência do não-lugar139. Mas, relativamente à organização dos interiores, a opção residiu numa interpretação mais funcional. Todas as funções se encontram devidamente distribuídas por espaços delimitados, divisões criadas estritamente para determinado conteúdo programático, isoladas entre si140 (fig.51). Apesar da conotação dinâmica da obra, do ponto de vista exterior, o espaço interior é espacialmente estático. Espaço direccional ou não direccional
O espaço, de acordo com a sua própria configuração, pode determinar ou sugerir possibilidades de percursos ao longo de um edifício, independentemente da distribuição programática ser simples ou complexa. Assim, a experiência espacial conduzida, materializa a vontade do arquitecto de sugerir ou impor determinadas perspectivas do edifício ou percursos específicos, para um melhor entendimento conceptual do mesmo. Mas, mais do que a condução, estabelecer percursos específicos significa, consequentemente, uma materialização espacial e formal mais abstracta. Tentando responder às relações funcionais entre os espaços distribuídos ao longo de um percurso, o resultado arquitectónico é sempre dinâmico. As relações entre estes recipientes, mais do que canais de direcção, são conexões, e o seu desenho concretiza-se, mais à frente, não como uma rede de caminhos, mas sim como uma aglomeração de espaços141. As obras de Álvaro Siza Vieira destacam-se pela sua capacidade de orientar o observador através de disposições volumétricas, rampas, espaços, mas sem nunca encerrar as possibilidades de circulação, como se nos seus edifícios existissem apenas sugestões de percursos.
139 Se um lugar se pode definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode definir-se nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico, definirá um não lugar (…) O lugar e os não lugares são antes polaridades fugidias: o primeiro nunca é completamente apagado e o segundo nunca se consuma totalmente. (…) Os nãolugares são todavia a medida da época; medida quantificável e que poderíamos tomar, adicionando, ao preço de algumas conversões entre superfície, volume e distância, as vias aéreas, ferroviárias, das auto-estradas e os habitáculos móveis ditos “meios de transporte” (aviões, comboios, autocarros) (…).
AUGÉ, Marc – Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da sobremodernidade. 1ªed. Lisboa: 90 Graus Editora, 2005. ISBN 972-8964-02-01. p.68 140
Cfr. CASAMONTI, Marco – Peter Eisenman. 1ªed. Milano: Motta Architettura srl, 2007. ISBN 978-88-6116-007-1. p.62
Las relaciones entre estos recipientes son conexiones más que canales de dirección,y el diseño se concretiza más adelante, no como una red de caminos, sino como una aglomeración de espacios. (tradução livre)
141
ARNHEIM, Rudolf – La forma visual de la arquitectura. 1ªed. Barcelona: Gustavo Gili Editorial, 1978. ISBN 84-252-0728-2. p.120
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Fig.54 Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, Portugal, projectada pelo arquitecto Álvaro Siza Vieira e construída em 1986.
Fig.55 Rampa de acesso ao primeiro piso.
Fig.56 Planta do piso -1.
Fig.57 Rampa de acesso à biblioteca.
Fig.58 Planta do piso térreo.
Fig.59 Acesso sudoeste à Faculdade.
Fig.60 Secção longitudinal do alçado norte, ala sul.
Na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, construída em 1986, Siza Viera organiza o espaço através da disposição de volumes autónomos. Três torres com salas de aula e um volume maior destinado à biblioteca, auditórios, sala de exposições, salas de aula, funções administrativas e bar. Relativamente ao edifício principal, Siza refere que a estrutura está orientada a oeste para marcar claramente a entrada principal do recinto triangular situado no centro dessas instalações142 (fig.54). O arquitecto Adalberto Dias refere que todos estes edifícios autónomos são apoiados e servidos por uma promenade architecturale143, em que cada um tem a sua própria porta, forma, volume e programa, ajustando-se às variações de escalas entre os mesmos. Siza Vieira consegue estabelecer um domínio sobre a condução dos edifícios, estabelecendo não só percursos interiores (fig.55 e 57), através de uma sucessão de conteúdos programáticos que assim o justificam,
como também articular o espaço exterior (fig.59), de acordo com as suas intenções para caracterizar as trajectórias entre volumes. Estabelece-se, desta forma, uma ordem específica no conjunto construído, em que a sugestão de percurso interior e exterior se articulam, complementando-se. O resultado é uma arquitectura clara, que oferece aos alunos um conjunto de experiências instrutivas e simbólicas, imbuída de uma simplicidade resultante do domínio da complexidade e das contradições do programa144. Contrariamente à definição de um ou mais percursos, na concepção de um projecto ou obra, pode optar-se por não estabelecer nenhum, criando um espaço não-direccional, deixando as opções em aberto, no que toca ao deslocamento espacial. Contrariamente à Faculdade de Arquitectura, que se caracteriza pela experiência do espaço através da condução, neste caso específico a vivência assume o dinamismo da escolha e criatividade de cada indivíduo. A Glass House em Connecticut, projectada por Philip Johnson e construída em
142
SIZA, Álvaro in JODIDIO, Philip – Álvaro Siza. Colónia: Taschen, 1999. ISBN 3-8228-7392-6. p.87
A Arquitectura caminha-se, percorre-se e não é de modo nenhum, como advogam certas correntes de ensino, essa ilusão inteiramente gráfica organizada em torno de um ponto central abstracto que se pretenderia homem, um homem quimérico, dotado de um olho de mosca e cuja visão seria simultaneamente circular. Este homem não existe, e foi graças a esta confusão que o período clássico encetou o naufrágio da arquitectura. O nosso homem é, pelo contrário, dotado de dois olhos colocados diante de si, a 1,60 metros acima do chão, e olha em frente. (…) Dotado dos seus dois olhos e olhando em frente, o nosso homem caminha, desloca-se entregue às suas ocupações, registando assim o desenrolar dos factos arquitectónicos que se vão sucedendo. Sente o seu efeito, fruto de comoções sucessivas. De tal modo que, postas à prova, as arquitecturas se classificam em mortas ou vivas, se a regra do caminhar não foi observada, ou se pelo contrário foi brilhantemente explorada. 143
LE CORBUSIER - Le Corbusier: conversa com estudantes das escolas de arquitectura. Lisboa: Cotovia, 2003. ISBN 9789727950829. p.51 Cfr. DIAS, Adalberto in TRIGUEIRO, Luis (ed.) – Álvaro Siza: 1986-1995. Lisboa: Editorial Blau Lda., 1995. ISBN 972-831100-1. p.52 e 59
144
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Fig.61 Planta da Glass House em Connecticut, EUA, projectada pelo arquitecto Philip Johnson e construĂda em 1949.
Fig.62 Vista geral da Glass House.
Fig.63 Vista geral da Glass House.
Fig.64 Zona de estar com lareira.
Fig.65 Zona de estar.
Fig.66 Zona de estar.
1949, representa fielmente o princípio do não condicionamento espacial. Construção paralelepipédica, solidamente assente no terreno sobre um pódio maciço, com estrutura metálica pintada de negro e cortinas de vidro145 (fig.62 e 63), apresenta uma planta completamente livre, organizada funcionalmente de acordo com a disposição dos móveis, oferecendo ambiguidade espacial à deslocação no seu interior, como se se assumisse como uma extensão do próprio espaço natural (fig. 64, 65 e 66). Tudo o que a compõe limita-se a estar, sem procurar definir percursos objectivos. Assim, parte exclusivamente do utilizador, definir as trajectórias necessárias de acordo com as suas necessidades, livre de qualquer condicionamento formal e espacial.
Espaço funcional
Quando a organização espacial de um edifício responde, essencialmente, a funções específicas, de acordo com um programa preestabelecido, é como se existisse uma decomposição prévia da realidade em elementos simplificados para que, posteriormente, se articulem de forma complexa para gerar a essência do espaço, tal como diversas peças podem fazer parte da montagem de uma máquina146. Assim, numa obra onde prime a idealização métrica e funcional, o espaço é o resultado de uma coordenação motora completamente em sintonia com o funcionamento específico, com um objectivo delineado à partida. A experiência do espaço não procura a estimulação sensorial, mas sim o apoio directo às necessidades das pessoas. Ainda que não tenha passado da fase de projecto, a Casa Citrohan, desenhada por Le Corbusier em 1920 (fig.67), materializa perfeitamente a condição do espaço associado a opções funcionais, uma vez que era seu objectivo, enquanto resposta às condições económicas e políticas imperantes da época, transformar a habitação numa máquina, passível de ser estandardizada e produzida em série. Desta forma, a sua configuração rectilínea subdivide-se em duas formas cúbicas, em que uma comporta a zona de estar e a outra as restantes dependências, ordenando os elementos assimetricamente conforme uma combinação funcional (fig.70 e 72). A distribuição é feita por escadas exteriores e interiores (fig.68), dando acesso à cozinha, à área de refeições, aos quartos e à zona de hóspedes,
organizadas em sentido ascendente. Estes três pisos são acompanhado pela área de lazer
145
Cfr. LAMBERT, Phyllis; GOLDEBERGER, Paul – Modern Views. New York: Assouline, 2010. ISBN 9782759404674. p.10
Cfr. MARIA MONTANER, Josep – As formas do século XX. Barcelona: Gustavo Gili Editorial, 2002. ISBN 84-252-1897-7. p.82 146
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Fig.67 Perspectiva geral da Casa Citrohan, desenhada pelo arquitecto Le Corbusier em 1920.
Fig.68 Esquema dos acessos exteriores e interiores.
Fig.69 Planta do rés do chão da Casa Citrohan.
Fig.70 Esquema de zoneamento da Casa Citrohan.
Fig.71 Planta do primeiro piso.
Fig.72 Esquema da organização dos espaços privados.
Fig.73 Planta do segundo piso.
Fig.74 Esquema da relação entre os espaços (ligação feita pela escada em caracol).
de pé direito duplo, culminando num pátio. Esta distribuição funcional procura satisfazer as necessidades funcionais do quotidiano do homem, bem como alcançar uma composição estética funcional147. A organização de uma habitação, interpretando o conjunto construído como se tratasse de uma máquina, associada a uma concepção formal simples, cúbica e sem decoração, como uma caixa, conduz a uma experiência espacial igualmente mecânica, em que as deambulações pelo edifício seguem sempre um princípio funcional, respeitando a divisão dos espaços de acordo com os respectivos usos (fig.74). A linguagem abstracta do edifício apoia-se numa lógica funcional que valoriza os novos materiais, tendo em conta o rendimento da habitação, manipulando a luz e o espaço para complementar a vivência da casa que é uma máquina.
Para nós, o espaço arquitectural é a própria arquitectura, e, para realizá-la, nele interferimos externa e internamente, integrando-a na paisagem e nos seus interiores, como duas coisas que nascem juntas e harmoniosamente se completam148. A manipulação dos diversos valores associados à concepção arquitectónica contribui para uma definição espacial específica, não procurando apenas a estruturação física da essência arquitectónica, mas também um conjunto de significações que molda a experiência humana e, consequentemente, os seus comportamentos.
Cfr. BAKER, Geoffrey H. – Le Corbusier: Analisis de la forma. 7ªed. Barcelona: Gistavo Gili Editorial, 2000. ISBN 84-2521808-X. p.88-95 147
148
NIEMEYER, Oscar – Conversa de arquitecto. 6ªed. Porto: Campo das Letras Editores, 1997. ISBN 972-610-036-4. p.19
83
2.2 | CONCEPÇÃO MATERIAL 2.2.1
Materiais
Arquitectura é uma questão de material, o verdadeiro uso ou as necessidades que moldam o estilo, o qual é criado pelas qualidades dos materiais que têm de ser aplicados149. Os materiais são o meio físico através do qual a arquitectura se expressa. Independentemente do tipo de função que lhes é destinada, podem assumir um carácter estrutural com contribuição específica para as questões formais e espaciais do edifício, ou funcionar como revestimento, procurando atingir determinados resultados estéticos. Assim, os materiais podem ser moldados segundo os princípios arquitectónicos vigentes, ou ditar, de acordo com as suas características físicas e estruturais, as suas próprias regras. A influência dos materiais na idealização arquitectónica é evidente, na medida que os mesmos determinam, ou corroboram, os princípios de uma filosofia arquitectónica específica. Banister Fletcher refere que sucessivos períodos arquitectónicos foram caracterizados pela sua selecção de materiais, dos quais exploraram possibilidades de aplicação até à exaustão e cujos métodos resultantes de todas essas experiências se tornaram nas suas linhas de interpretação. Mudando o material, mudam-se os resultados, muda-se a forma de pensar, evolui-se150. Como um exemplo mais específico, o aparecimento das estruturas metálicas ou do betão armado veio acrescentar ao mundo arquitectónico todo um conjunto de novas possibilidades tectónicas que, até então, simplesmente não podiam fazer parte da vontade projectual de um arquitecto. A escolha de materiais revê-se no resultado final de um edifício, permitindo a experiência de valores formais e espaciais específicos. Assim, associados a princípios culturais e sociais, ou a ideologias arquitectónicas, os materiais caracterizam a arquitectura, definindo desse modo a sua leitura . Se, para a concepção de um edifício, se optar por recorrer a paredes maciças e tridimensionais, de pedra ou de betão armado, o resultado será uma aparência sólida e compacta, em que os limites entre exterior e interior se
149 Architecture is an affair of material, the true use or needs of which mould the style, which is created out of the qualities of the materials that have to be employed. (tradução livre)
FLETCHER, Banister F. – The influence of material on architecture. London: B. T. Batsford, 1987. [s/ISBN]. p.5 150
Cfr. Idem, p.5
encontram bem definidos. Mas, se pelo contrário, a opção residir numa construção com uma estrutura metálica delgada, reduzida ao essencial que, associada a planos leves, como o vidro, madeira ou gesso cartonado, promova ambiguidade na compreensão espacial, quer ao nível dos limites, quer do espaço interior, então o resultado será uma leitura de leveza151. Os materiais influenciam igualmente a plasticidade arquitectónica. Se revelarem as suas texturas e cores, ou outras características naturais, assumindo a sua presença no contexto do edifício e participando activamente na definição espacial, originam uma plasticidade essencialmente orgânica. Mas, recorrendo a materiais de superfícies e cores mais homogéneas, que procuram materializar determinado conceito espacial sem se evidenciarem, o resultado pode ser considerado mais puro e conceptual. A leitura dessas mesmas características só é possível porque o ser humano reage à presença dos materiais nos diversos contextos. A relação entre o ser e a arquitectura é uma relação entre dois corpos, um vivo e sensível, outro inerte e insensível. A relação entre esses corpos estabelece-se em vários planos, a partir da capacidade dos lugares para responder adequadamente às necessidades físicas das pessoas e oferecer protecção, segurança, estabilidade e comodidade152. A materialidade é uma fonte de sensações, uma vez que para além da dimensão visual, oferece ao tacto a sua textura, ao olfacto os seus cheiros característicos, e à audição os ecos sobre as suas superfícies, contribuindo, ainda, para a manipulação térmica dos espaços. Tendo em conta a capacidade sensorial da manipulação material, Peter Zumthor utiliza-a com objectivos específicos, procurando atingir um ambiente arquitectónico corroborado pela sua essência natural. Tento usar os materiais desta forma no meu trabalho. Acredito que podem assumir uma qualidade poética no contexto de um objecto arquitectónico (…) O sentido que tento incutir nos materiais vai além das regras da composição, e a sua tangibilidade, o seu cheiro ou as suas qualidades acústicas são meros elementos da linguagem que somos forçados a usar. O sentido emerge quando sou bem sucedido a fazer surgir significados específicos de certos materiais, significados que só podem ser percebidos apenas de uma forma e apenas neste
151 Cfr. DEPLAZES, Andrea (ed.) – Constructing architecture: material processes structures. 2ªed. Boston: Birkhauser, 2009. ISBN 978-3-7643-8631-3. p.14 152 La relación entre el ser y la arquitectura es una relación entre dos cuerpos, uno viviente y sensible, outro inerte e insensibile. La relación entre esos cuerpos se establece en vários planos, a partir de la capacidad de los lugares para responder adequadamente a las necesidades físicas de las personas y ofrecer protección, seguridad, estabilidad e comodidade. (tradução livre)
SALDARRIAGA ROA, Alberto – La arquitectura como experiencia: espacio, cuerpo y sensibilidad. 1ªed. Bogotá: Villegas Editores, 2002. ISBN 958-8160-24-3. p.192
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Fig.75 Planta do piso térreo da Casa da Cascata na Pensilvânia, Fig.76 Vista geral da Casa da Cascata. EUA, projectada pelo arquitecto Frank Lloyd Wright e construída em 1935. Fig.77 Distribuição das varandas em betão, destacando-se do Fig.78 Sala de jantar. corpo de suporte em pedra. Fig.79 Caixilhos metálicos.
Fig.80 Contraste nítido entre o Fig.81 Escadaria de acesso ao piso superior da casa. betão e a pedra.
edifício153. Peter Zumthor experimenta as diferentes reacções de um determinado material inserido num contexto arquitectónico específico, retirando as suas conclusões, de acordo com as qualidades sensoriais que resultam dessa relação. Se for bem sucedida o arquitecto suíço acredita que é possível fazer qualquer material brilhar e vibrar na arquitectura. Adolf Loos defende o facto de que os materiais, ainda que se devam assumir como igualmente valiosos aos olhos de um arquitecto, não são igualmente adequados para todas as finalidades. Uma vez que os materiais influenciam a essência de um espaço, o arquitecto deve ponderar a sua escolha, apoiando-se primeiramente numa análise empírica do lugar, para depois procurar um resultado lógico e definir que sentimentos transmitir. O efeito que se quer criar sobre o espectador, seja apenas medo ou espanto como numa prisão; temor a Deus como na igreja; respeito do poder do estado como num palácio; piedade como quando estamos perante um monumento funerário; sensação de comodidade como em casa; alegria como numa taberna; esse efeito é conseguido através dos materiais e da forma154. Loos acrescenta que cada material tem a sua própria forma de expressão, resultante da sua funcionalidade e da sua fabricação, e, como tal, não pode ser encarado ou aplicado segundo as formas de outro tipo de material. Frank Lloyd Wright é conhecido como um arquitecto que projectava de acordo com a natureza dos materiais155. O recurso aos mesmos é de suma importância para a constituição da sua expressão arquitectónica, tendo em conta as propriedades técnicas, mas, principalmente, a sua capacidade de atribuir beleza a um determinado espaço através das suas texturas e cores. Wright enquadrava a sua filosofia de trabalho dentro dos parâmetros da arquitectura orgânica, não devido a questões formais e espaciais, mas sim na procura da utilização de materiais, sem entrar em conflito com a sua essência natural. Estudava a envolvente de cada projecto, optando pelo recurso a materiais locais ou cuja presença e contraste com o lugar fosse harmoniosa. Condenava o ornamento, uma vez que identificava nos materiais
153 I try to use materials like this in my work. I believe that they can assume a poetic quality in the context of an architectural object (…) The sense that I try to instill into materials is beyond all rules of composition, and their tangibility, smell and acoustic qualities are merely elements of the language we are obliged to use. Sense emerges when I succeed in bringing out the specific meanings of certain materials in my buildings, meanings which can only be perceived in just this way in this one building. (tradução livre)
YOSHIDA, Nobuyuki (ed.) – Peter Zumthor. Tokyo: a+u Publishing Co., 1998. ISBN 4-900211-50-8. p.8 154 El efecto que quiere crear sobre el espectador, sea solo miedo o espanto como en el cárcel; temor de Dior como en la iglesia; respeto del poder del Estado como en el palácio; piedad como ante un monumento funerário; sensación de comodidad como en casa; alegria como en una taberna; esse efecto viene dado por los materiales y por la forma. (tradução livre)
OPEL, Adolf; QUETGLAS, Josep (eds.) – Adolf Loos: escritos I. 2ªed. Madrid: El Croquis, 2004. ISBN 84-88386-04-4. p.152 155
Frank Lloy Wright is known as an architect who designed within the nature of his materials. (tradução livre)
PATTERSON, Terry L. - Frank Lloyd Wright and the meaning of materials. New York: V.N.R, 1994. ISBN 0-442-01298-5. p.241
87
em si, maior potencialidade para contribuir na plasticidade que procurava para as suas obras, rejeitando qualquer tentativa de imitação de um material. Apontava este tipo de manipulação como uma falsidade, um ponto fraco na elaboração do todo arquitectónico156. A beleza do que se cria surge se se honrar o material por o que ele verdadeiramente é157. A escolha de materiais na Casa da Cascata na Pensilvânia, construída em 1935, bem como o respectivo carácter natural da paisagem que a envolve, permite uma primeira introdução visual à sua implantação peculiar, surgindo e surpreendendo, como se os seus terraços acentuadamente horizontais flutuassem sem recurso a nenhum tipo de suporte. O ênfase do horizontal tende a promover a qualidade linear de materiais que aumentam a expressão dessa característica, como a madeira e o aço, mas subjuga o peso visual da pedra, do tijolo e do bloco de betão158. Mais do que comungar com a envolvente, os materiais utilizados por Wright assumem a construção como uma extensão da envolvente. Desta forma, acentua a dicotomia entre as paredes verticais de pedra, interrompidas pelos terraços de betão, de uma cor clara e que aparentam não ter qualquer peso estrutural. A propriedade da pedra mais importante para Wright é a sua forma, maciça e resistente, normalmente expressa em condição de compressão, como se verifica neste caso, em que as paredes assumem a sustentação dos vários terraços. O ferro, vermelho, aplicado pontualmente nos vãos responde à necessidade de Wright em estabelecer sempre uma ligação com uma imagem mais industrial, mas pontual e limitada159. A pedra e a sua textura grave prolongam-se no interior da casa, convivendo harmoniosamente com a madeira do tecto e dos móveis, e com a estrutura metálica pintada de vermelho. Cada material tem a sua própria mensagem160. Assim, o recurso a determinados materiais, de acordo com a sua realidade natural, juntamente com os princípios espaciais e formais patentes na sua arquitectura, procuram contribuir para uma sensação de unidade e de simplicidade projectual.
Cfr. PATTERSON, Terry L. - Frank Lloyd Wright and the meaning of materials. New York: V.N.R, 1994. ISBN 0-442-012985. p.237-242
156
157
The beauty of what you create comes if you honor the material for what it really is. (tradução livre)
LOBELL, John – Between silence and light: Spirit in the architecture of Louis I. Kahn. Boston: Shambhala, 1979. ISBN 1-57062-582-4. p. 40 Emphasis of the horizontal tends to promote a linear quality in materials that boosts the expression of that characteristic in wood and steel but subdues the blockiness of stone, brick and concrete block. (tradução livre) 158
PATTERSON, Terry L. - Frank Lloyd Wright and the meaning of materials. New York: V.N.R, 1994. ISBN 0-442-01298-5. p.239 159
Cfr. Idem, p.210 a 219
160
Each material has its own message. (tradução livre)
WRIGHT, Frank Lloyd in PATTERSON, Terry L. - Frank Lloyd Wright and the meaning of materials. New York: V.N.R, 1994. ISBN 0-442-01298-5. contracapa
Como refere Hiroshi Nakao, a acumulação de materiais nas obras de Zumthor relembra a acumulação de pinceladas numa tela, a tentativa de captar uma realidade através da própria realidade, uma existência palpável que promove mais do que a experiência visual. Aquando da execução do projecto das Termas de Vals na Suíça, construídas entre 1990 a 1996, Zumthor referiu que, tendo em conta a envolvente natural, tornou-se clara a exigência de estabelecer uma relação intensa com o poder natural da montanha, a respectiva substância geológica e as suas condições topográficas. Surgiu no arquitecto a vontade de criar um edifício que gerasse a sensação de sempre ter pertencido àquele lugar161. Como tal, grande parte do processo de criação do edifício subjugou-se ao recurso à pedra local (fig.84 e 85), à sua cor escura que espelhava a luz solar, quer no exterior como no interior. O
resultado é um carácter monolítico, como se as termas fossem uma extensão da montanha, em que os espaços interiores surgem como escavações ou grutas (fig.82 e 83). Na concepção dos interiores, tendo em conta que a função do edifício está associada a tratamentos terapêuticos ou lazer, essencialmente através de banhos termais, revelou-se importante o estudo da relação próxima entre a pedra e o corpo humano, mais especificamente, a pele. A exposição humana à pedra é constante, proporcionando uma experiência táctil íntima, através da variação de texturas, firmes e ásperas, que contrastam com a leveza e suavidade da água, reforçada pelo calor armazenado na pedra. O som da água ecoa nos espaços e contribui para a atmosfera relaxante das termas (fig.86 e 87). Associado ainda ao contexto dos contrastes presentes no interior, Zumthor refere a necessidade que sentiu, de pontuar este universo de pedra em determinados espaços com outros materiais como o bronze, o latão, o aço escurecido e o cromo brilhante, ou outros tipos de revestimento, como o betão pigmentado com azul, vermelho e preto ou o basalto negro, que permitem intensificar a teatralidade espacial162. O arquitecto concluiu que tudo se resume à criação de um espaço extremamente sensual, através do recurso a uma atmosfera monolítica (fig.88 e 89) que permite a exaltação da suavidade do corpo humano, não competindo com ele, mas sim exultando-o. O material assume, então, um papel vital na concepção arquitectónica. Contribuindo com características formais exclusivas, é utilizado de acordo com factores geográficos e culturais, respondendo à mentalidade típica de uma época e sendo influenciado equitativamente. Materializa os desejos do arquitecto na criação do espaço, contribuindo para
161 Cfr. MULLER, Lars (ed); ZUMTHOR, Peter – Peter Zumthor works: buildings and projects 1979-1997. Baden: Lars Muller Publishers, 1998. ISBN 3-907044-58-4. p.156-160
Cfr HAUSER, Sigrid; ZUMTHOR, Peter – Peter Zumthor: therme Vals. Zurich : Scheidegger & Spiess, 2007. ISBN 978-385881-704-4. p. 136-142 162
89
Fig.82 Fachada principal das Termas de Vals, Suíça, projectadas pelo arquitecto Peter Zumthor e construídas entre 1990 e 1996.
Fig.83 Espaço exterior das termas, com piscina e zona de estar.
Fig.84 Pormenor do uso da pedra na fachada.
Fig.85 Acessos termas.
das
Fig.86 Um dos espaços interiores destinado ao tratamento com águas termais.
Fig.87 Um dos espaços interiores destinado ao tratamento com águas termais.
Fig.88 Pequenas salas utilizadas para descanso entre tratamentos.
Fig.89 Acessos interiores às diferentes divisões que constituem as termas.
interiores
um objectivo construtivo que visa uma leitura específica da edificação. Mas, essencialmente, os materiais permitem ao homem que todos os seus sentidos penetrem nas superfícies e respectivas texturas, capacitando-o de uma experiência verdadeira da materialidade do espaço, delimitando-o e cedendo-lhe todo um conjunto de características decorrentes das sua morfologia natural.
2.2.2
Cor
A cor é o sabor da arquitectura163. A contribuição cromática foi, e é, imprescindível a todas as manifestações artísticas existentes, inclusivamente a arquitectura. A cor, enquanto resultado do reflexo da luz nos objectos, participa activamente na percepção espacial: impõem ordem na complexidade de estímulos visuais que o cérebro recebe. Quando a incidência da luz sobre um objecto varia, produzem-se diversas percepções do mesmo, as quais, em conjunto com outras informações sensoriais, constroiem a ideia da sua estrutura: formas, volumes e texturas164. O que a luz expõe, a cor descodifica. Enquanto elemento definidor do entendimento espacial, foram diversas as formas de aplicar e manipular a cor no construído ao longo do tempo. Steen E. Rasmussen refere o facto de, originalmente, o uso da cor estar ligado aos materiais de construção. Não existia um controlo cromático na produção arquitectónica, mas antes um resultado directo do tipo de construção e respectivos materiais, associados a um contexto geográfico específico, com resultados cromáticos algo limitados165. Naturalmente, a cor mantém uma relação intensa com os materiais, mas é quando o homem a começa a controlar, eliminando por completo a dependência da natureza, que se evolui significativamente na criação arquitectónica.
163
El colore es el sabor de la arquitectura. (tradução livre)
BARRAGÁN, Luis in TÁBOAS VELEIRO, Teresa – El color en arquitectura. La Coruña: Ediciós do Castro, 1991. ISBN 84-7492512-6. p.7 164 Cfr. PERNÃO, João Nuno; DURÃO, Maria João - Elementos para um novo entendimento do espaço e do tempo. Artitextos 03. Lisboa: FAUTL. ISBN 972-97354-7-6 (nº3, Mar., 2006). p.159 e 160
Cfr. RASMUSSEN, Steen Eiler – Viver a arquitectura. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2007. ISBN 978-989-8010-99-5. p.180
165
91
Fig.100 Cidade Proibida, em Pequim, China. Fig.101 Habitações na cidade de Campeche, México. Fig.102 Piazza del Campo, em Siena, Itália.
Vários princípios se estabeleceram no que toca à interpretação cromática, como se verificou no Classicismo grego e no Renascimento, cujo conceito era o estabelecimento da lei absoluta da natureza, conseguida através da relação harmoniosa entre as proporções do construído, as formas e as cores166. Em Pequim (fig.100), o privilégio policromático era reservado às construções nobres, palácios e templos, em que, paralelamente, as habitações assumiam um perfil incolor, resultante de um processo de descoloração dos tijolos e ladrilhos, que eram os principais materiais de construção167. Desta forma, tornava-se evidente o contraste entre a magnificência colorida e a monotonia cromática, em que a cor assumia a função de legendar a hierarquia social e cultural vigente. A arquitectura popular latino-americana (fig.101) recorre a cores intensas e variadas, cuja explosão colorida traduz a necessidade da população afirmar a sua individualidade, recorrendo à habitação como forma de a materializar. Contrariamente, o norte da Europa assume alguma contenção na sua escolha cromática, no decorrer de uma maneira de estar em sociedade distinta que procura o respeito da comunidade. Determinadas cidades são caracterizadas por uma cor específica. Siena (fig.102), em Itália, é um exemplo tendo, inclusive, registado a sua própria cor (terra di Siena)168. O amarelo-terra que se distribui pela cidade deriva da pigmentação do solo local, a que os artistas recorrem e aplicam um processo químico através do aquecimento, resultando nos amarelos escuros e avermelhados típicos de Siena. Esta opção cromática, associada ao recurso a tijolos castanhos ou vermelhos rosados, distribui-se pelo solo e fachadas, absorvendo e reflectindo a luz do sol. O resultado é um contraste harmonioso entre o azul do céu e os tons amarelos dos edifícios medievais169. No decorrer dos exemplos previamente referidos, verifica-se claramente a forte relação, e até dependência, entre os princípios culturais e sociais e a manipulação do fenómeno que é o recurso à cor. Independentemente dos propósitos variarem segundo o pensamento da população, condições geográficas a que se encontra exposta e respectivos princípios arquitectónicos, o facto de se presenciar este tipo de apropriação advém do facto de as cores serem associadas, desde sempre, a símbolos específicos. A simbologia cromática surge ligada a diversos valores, sejam ideologias religiosas ou imposições sociais, entre outras possibilidades. A cor não tem uma natureza descritiva mas sim evocativa, sempre
166
Cfr. TÁBOAS VELEIRO, Teresa – El color en arquitectura. La Coruña: Ediciós do Castro, 1991. ISBN 84-7492-512-6. p.20
Cfr. RASMUSSEN, Steen Eiler – Viver a arquitectura. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2007. ISBN 978-989-8010-99-5. p.181
167
168
Cfr. TÁBOAS VELEIRO, Teresa – El color en arquitectura. La Coruña: Ediciós do Castro, 1991. ISBN 84-7492-512-6. p.21
Cfr. SWIRNOFF, Lois – The color of cities: an internacional perspective. New York : McGraw-Hill, 2000. ISBN 0-07063348-7. p.130 169
93
simbólica. É o objectivo, não um meio170. Associam-se as cores de uma bandeira a um país, as cores dos sinais luminosos a regras de circulação, a cor de um uniforme a uma função específica e até se estabelece a ligação de determinadas cores aos géneros femininos e masculinos171. Mais do que compreender a génese da simbologia atribuída, é importante referir que a mesma é reforçada pelo facto de o ser humano reagir física e psicologicamente à cor. O cérebro humano responde de acordo com a avaliação da cor, da sua luminosidade e do seu brilho, associando essa informação aos conteúdos emocionais relacionados com determinados arquétipos172. A experiência da cor resulta, então, de uma dialéctica entre questões objectivas que derivam do funcionamento cerebral, e questões subjectivas que se encontram ligadas à resposta emocional a determinada escolha cromática, balizada por informação prévia e pelos moldes incutidos pela sociedade e pela cultura. Esta capacidade humana de resposta à cor torna-a um factor imprescindível na compreensão e definição espacial, uma vez que participa activamente na definição do carácter de determinada concepção arquitectónica. Estudos revelam que o vermelho, por exemplo, é uma cor excitante, enquanto o verde tem a capacidade de apaziguar173. A cor pode, então, ditar a tolerância humana, sendo que uma má escolha pode ser suficiente para tornar negativa a experiência de um espaço. A cor é um poderoso meio de acção, pode destruir um muro, ou pode ornamentálo; pode fazer recuar ou avançar, criando um novo espaço174. A intervenção da mesma num espaço não se cinge à leitura emocional, mas afecta também a leitura visual e, consequentemente, a sua qualidade espacial. Rasmussen refere a capacidade que a cor tem de interferir na experiência de um determinado espaço, de forma a corrigir determinadas falhas ou resultados inesperados. Assim, opções cromáticas específicas podem alterar a percepção de leveza ou peso de um objecto, ou até mesmo de proximidade ou afastamento.
Colour is not of a descriptive but rather of an evocative nature, always symbolic. It is the goal, not a means. (tradução livre) 170
MOOS, S. von; RUEG, Arthur (eds.) – Le Corbusier before Le Corbusier. New Haven: Yale University Press, 2002. ISBN 9780300093575. p.30 171 Cfr. RASMUSSEN, Steen Eiler – Viver a arquitectura. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2007. ISBN 978-989-8010-99-5. p.181 e 182 172 Cfr. TÁBOAS VELEIRO, Teresa – El color en arquitectura. La Coruña: Ediciós do Castro, 1991. ISBN 84-7492-512-6. p.16 e 17
Cfr. RASMUSSEN, Steen Eiler – Viver a arquitectura. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2007. ISBN 978-989-8010-99-5. p.182 173
La couleur est un puissant moyen d´action, elle peut dêtruire un mur, elle ouet l´orner; elle peut le faire reculer ou avancer, elle cree un nouvel espace. (tradução livre)
174
LEGER, Fernand in TÁBOAS VELEIRO, Teresa – El color en arquitectura. La Coruña: Ediciós do Castro, 1991. ISBN 84-7492512-6. p.18
Se uma divisão é inconvenientemente pequena, o uso de uma cor clara pode aumentar aparentemente o seu espaço. Quando determinados elementos estruturais ficam expostos, interferindo negativamente com o espaço, o recurso a uma cor mais escura permite apagar a sua presença ou, pelo menos, atenuar a sua evidência. A cor pode, inclusive, colmatar a fraca exposição solar de uma sala com o recurso a tons quentes, como o marfim ou o corde-laranja, produzindo artificialmente a luz solar. Mas, apesar deste poder fascinante da cor, Rasmussen condena o uso dessa mesma capacidade para propósitos de camuflagem, alegando ser insatisfatório experimentar uma realidade manipulada. O autor afirma que, tendo em conta as possibilidades que a variação cromática oferece, deve então ser usada para reforçar e realçar a arquitectura em si e não para manipular determinadas características. O quarto pequeno deve ser pintado em tons profundos, saturados, para que sintamos realmente a intimidade de quatro paredes próximas à nossa volta. E o esquema cromático do quarto ou da sala grande deve ser arejado, para ficarmos duplamente conscientes da amplidão de espaço de parede a parede175. Muitos foram os movimentos e arquitectos que, compreendendo as dimensões do uso da cor associada à construção, recorreram à mesma como forma de intensificar as suas ideias e respectivos princípios. A arquitectura Neoplástica, inserida no movimento de vanguarda criado pelo grupo De Stijl176, procurava assumir-se como unificadora de todas as formas de expressão. Apenas uma ideia era vital: a ideia de inovar em todos os aspectos177. Neste contexto, a cor assumiu-se como um meio fulcral na harmonização das relações arquitectónicas. Uma vez que este tipo de arquitectura condenava a ornamentação, a cor não visava a dramatização de uma superfície específica ou de um plano. Era utilizada como um meio de expressão inteiramente arquitectónico que permitia uma completa abstracção das formas, criando assim um universo muito específico e fechado a qualquer tipo de influência. As obras de De Stijl tinham como finalidade, independentemente de serem pinturas, móveis ou edifícios, atingir uma harmonia derivada da criação total de uma obra. Os artistas neoplásticos acreditavam que era possível fundir a cor com a arquitectura, onde mais
175 RASMUSSEN, Steen Eiler – Viver a arquitectura. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2007. ISBN 978-989-8010-99-5. p. 182 176 De Stijl foi um movimento holandês, compreendido entre 1917 e 1931, e que esteve centrado na obra de três homens: os pintores Piet Mondrian e Theo van Doesburg e o arquitecto e designer Gerrit Rietveld.
FRAMPTON, Kenneth - História crítica da Arquitectura Moderna. 2ªed. São Paulo: Martins Fontes Editora Lda, 2000. ISBN 9788533624269. p.145 177
Only one idea was vital: the idea to innovate in every aspect. (tradução livre)
BOUWEN, Het Nieuwe – Neo-Plasticism in architecture: De Stijl. Delft: Delft University Press, 1983. ISBN 90-6275-104-0 p.18
95
Fig.103 Vista lateral da maquete do projecto Composição-Espaço-Cor, desenhado pelo arquitecto Gerrit Rietveld e pelo designer Vilmos Huszar em 1923.
Fig.104 Vista frontal da maquete do projecto ComposiçãoEspaço-Cor.
Fig.105 Fachada lateral da Casa Schröder em Utreque, Holanda, projectada pelo arquitecto Gerrit Rietveld e construída em 1924.
Fig.106 Fachada frontal e lateral da Casa Schröder.
Fig.107 Vista do interior da Casa Schröder.
Fig.108 Vista do interior da Casa Schröder.
do que fazer parte de um espaço ou até protagonizar o espaço, definia-o sem recurso a limites físicos178. Profundamente influenciados pelo trabalho de Piet Mondrian, usavam as cores primárias devido à sua capacidade de abstracção geométrica, transpondo-as para a arquitectura. Uma das primeiras experiências levada a cabo pelo arquitecto e designer Gerrit Rietveld, e pelo pintor e designer Vilmos Huszar, foi o projecto Composição-Espaço-Cor (fig.103), para uma exposição em Berlim, em 1923. Este projecto neoplasticista foi elaborado
com a intenção de ser uma criação efémera destinada a materializar o ideal de espaço habitável, completo e universal. O espaço tinha uma área de aproximadamente 81 metros quadrados (nove por nove metros) e apresentava um percurso indefinido que permitia acentuar a complexidade e abstracção espaciais. Neste projecto, a cor aplicava-se em planos independentes que invadiam as paredes, dando origem a superfícies suaves e brilhantes179 (fig.104). Como não se denunciavam texturas ou características específicas de materiais
distintos, não existia individualidade dos elementos, resultando numa definição espacial una. Um dos melhores exemplos de materialização do entendimento conceptual neoplástico é a Casa Schröder desenvolvida por Rietveld em 1924, e que representa fielmente a integração das cores e das formas no espaço em arquitectura (fig105 e 106). As paredes, os planos, os tabiques e os móveis encontram-se pintados com as cores primárias, assim como o pavimento e a fachada, enquanto os quartos se definem e articulam através de paredes móveis que tornam os espaços mutáveis (fig.107 e 108). Uma vez que o dinamismo espacial é evidente e versátil, de acordo com as necessidades dos utilizadores, cabe à cor criar definitivamente os diferentes espaços da casa, sendo que cada tom identifica uma função específica associada ao universo do habitar, tornando-se assim parte integrante do construído180. Devemos compreender que a vida e a arte já não são domínios separados181. Esta procura específica no mundo arquitectónico, de forma a criar um ambiente e um espaço perceptível específico, advém do facto de compreenderem que o ser humano tem a capacidade de experienciar a realidade de uma forma sensorial e espiritual, e que a
178 Cfr. RUIZ BARBARIN, Antonio – Luis Barragán frente al espejo: la outra mirada. Barcelona: Caja de arquitectos, 2008. ISBN 978-84-935929-2-9. p.137 e 138
Cfr BOUWEN, Het Nieuwe – Neo-Plasticism in architecture: De Stijl. Delft: Delft University Press, 1983. ISBN 90-6275104-0 p.53
179
180
Cfr. Idem, p.143
181
Debemos compreender que la vida y el arte ya non son domínios separados. (tradução livre)
VON DOESBURG, Theo in FRAMPTON, Kenneth - História crítica da Arquitectura Moderna. 2ªed. São Paulo: Martins Fontes Editora Lda, 2000. ISBN 9788533624269. p. 149
97
Fig.109 Exterior da Casa Gilardi , na cidade do México, México, projectada pelo arquitecto Luis Barragán e construída em 1976.
Fig.110 As opções cromáticas garridas verificam-se, também, no exterior da casa.
Fig.111 Corredor de ligação entre a entrada da casa e a sala de jantar.
Fig.112 Ligação do corredor com a sala de jantar.
Fig.113 Contraste cromático da sala de jantar.
Fig.114 A água reflecte as cores da sala, contribuindo para um ambiente transcendente.
reacção do homem ao espaço é proporcional ao tipo de experiência que vive182. O arquitecto mexicano Luis Barragán, após ter projectado durante alguns anos de acordo com os preceitos do funcionalismo (estilo internacional específicamente), criou o seu próprio ideal arquitectónico, recorrendo à cor como um dos instrumentos indispensáveis à sua concepção projectual. Defendendo que a arquitectura, mais do que responder a funções e problemáticas, deve servir emocionalmente o homem, utilizou as cores, consciente dos efeitos físicos que podem causar, com o intuito, não só de fomentar determinadas reacções, como de proporcionar experiências que tocassem a alma. A sua utilização variada e constante acontece apenas pelo prazer que proporciona desfrutar da cor que também é útil para acrescentar esse toque de magia que um sítio necessita183. Tão única como a sua forma de encarar a arquitectura é a gama de cores que usualmente integra os seus projectos, influências das opções cromáticas do seu país. Recorre a toda uma variedade de cores, quentes ou frias, desde o anil ou o roxo ao rosa mexicano ou ao laranja. A única cor que não utiliza é o verde, justificando que é um tom predominante na natureza, realidade com a qual nunca poderia competir, e que provavelmente não teria um bom resultado. Assim, o processo de atribuição cromática nas suas obras visa constantemente a motivação de determinados estados de ânimo, normalmente a alegria, serenidade, consolo e reflexão, sempre associados a uma pesquisa e cogitação intensas por parte do arquitecto. Não são o resultado de um ímpeto momentâneo. Decorre de diversas tentativas com diferentes cores, examinadas ao longo de vários dias, de acordo com a variação da exposição solar e com o contraste com outras cores. Então visito o lugar constantemente, a diferentes horas do dia, e começo a imaginar a cor, a imaginar as cores, desde as mais loucas e incríveis. Regresso a livros de pintura, à obra dos surrealistas, vou em particular à De Chirico, Balthus, Magritte, Delvaux à de Chucho Reyes184. As cores de Barragán actuam emocionalmente, não por si só mas ligadas a todo um conjunto espacial muito específico: simplicidade e geometria formais associadas a materiais e texturas graves. A Casa Gilardi na cidade do México (fig.109 e 110), construída em 1976, representa bem a união desses elementos, reforçada por uma organização espacial peculiar
Cfr BOUWEN, Het Nieuwe – Neo-Plasticism in architecture: De Stijl. Delft: Delft University Press, 1983. ISBN 90-6275104-0 p.53
182
183
También es útil para añadir esse toque de magia que necesita un sitio. (tradução livre)
BARRAGÁN, Luis in RIGGEN, Antonio (ed.) – Luis Barragán: Escritos y Conversaciones. Madrid: El Croquis Editorial, 2000. ISBN 84-88386-17-6. p.126 184 Entonces visito el lugar constantemente, a diferentes horas del dia, y comienzo a imaginar el color, a imaginar los colores, desde los más locos e increíbles. Regreso a libros de pintura, a la obra de los surrealistas, voy en particular a De Chirico, Balthus, Magritte, Delvaux y a la de Chucho Reyes. (tradução livre)
Idem, p.126
99
Fig.115 Altar da capela inserida no Convento das Capuchinhas Sacramentárias em Tlalpan, México, projectada pelo arquitecto Luis Barragán e reconstruída entre 1952 e 1955.
Fig.116 Único vitral da capela cuja cor do vidro reforça a opção cromática definida por Barragán para o seu interior.
Fig.117 Uma das entradas de luz da capela.
Fig.119 Contraste entre o dourado e as sombras da capela contribui para uma atmosfera intensa e, paralelamente, relaxante.
Fig.118 Cruz do interior da capela.
e uma distribuição cromática de acordo com os usos de cada espaço. A sala de jantar é definida como a divisão mais importante da casa, enquanto lugar de reunião, meditação e silêncio. O acesso à divisão é feito através de um corredor amarelo banhado de luz dourada que intensifica o percurso até à mesma (fig.117 e 118). Barragán optou por atribuir à sala de jantar, tendo em conta a sua importância, um sentido surrealista185. Conseguiu-o através da peculiar opção de dispor uma piscina na divisão, rodeada de paredes azuis e interrompida por um pilar vermelho (fig.113). A luz zenital invade o espaço e reforça o contraste cromático que se afirma na sala, espelhando o azul e o vermelho na água (fig.114). Enquanto o amarelo invoca um estado de atenção, uma reacção intensa e excitante, o azul, por sua vez, conduz à reflexão e à serenidade. Estes jogos cromáticos de Barragán, apesar de ousados, convivem harmoniosamente com a função específica de cada edifício. O Convento das Capuchinhas Sacramentárias em Tlalpan, reconstruído entre 1952 e 1955, a partir de uma preexistência, leva ao extremo a capacidade da cor, associada à luz, de carregar um espaço de intensidade emocional, proporcionando uma experiência repleta de sensações186. Uma vez que o projecto estava intimamente associado a funções religiosas, Barragán conseguiu manipular o espaço de acordo com a necessidade de atingir a plenitude da reflexão e do misticismo. Recorrendo a jogos de luz e de cor, envolveu a capela em tons alaranjados, dourados e amarelados, proporcionando uma atmosfera de extraordinária elevação (fig.115, 118 e 119). A entrada de luz principal faz-se através de vitrais amarelos (fig.116 e 117) que forçam uma luz intensa sobre as cores quentes das paredes, as madeiras do mobiliário e o altar dourado, envolvendo o pequeno espaço num deleite sensorial de fé, reflexão e oração. A cor mantém uma importância elevada entre os fenómenos naturais. Entra na nossa faculdade de sentir, assumindo a natureza ou a forma de um material cuja superfície não é apenas perceptível, como também constitui um efeito muito importante e decisivo; encontra-se em comunicação directa com a moral187.
Cfr. BARBARIN, Antonio Ruiz – Luis Barragán frente al espejo: la outra mirada. Barcelona: Caja de arquitectos, 2008. ISBN 978-84-935929-2-9. p.159
185
REVERTÉ, Ramón; LABANDA, Jordi (eds.) – Luis Barragán. 3ªed. México D.F.: Editorial RM, 2001. ISBN 968-5208-02-6. p.140 186
187 El color se mantiene un rango muy alto de los fenómenos originales. El entra en nuestra facultad de sentir teñiendo la naturaleza ó la forma de un material cuya superfície no es solo perceptibile sino que, se constituye en un efecto importante y decisivo; en comunicación directa con la moral. (tradução livre)
GOETHE, Wolfgang von in VELEIRO, Teresa Táboas – El color en arquitectura. La Coruña: Ediciós do Castro, 1991. ISBN 84-7492-512-6. p.16
101
2.3 | CONCEPÇÃO IMATERIAL 2.3.1
Luz
A luz não é algo vago, difuso, que se toma por adquirido porque está sempre presente. Não é em vão que o sol nasce todos os dias188. A luz e, consequentemente, a sombra, são os elementos responsáveis pela animação da componente física da arquitectura. É através da sua acção no espaço e na matéria que os mesmos se tornam perceptíveis aos olhos do homem, expondo a sua existência. A importância da presença da luz na arquitectura advém, primeiramente, de factores fisiológicos. Os principais receptores sensoriais do ser humano encontram-se nos olhos, o que faz com que a iluminação de um espaço transmita uma quantidade significativa de informação acerca do mesmo. O espaço faz parte de um conjunto de valores arquitectónicos considerados na execução de um projecto e obra, determinados pelo arquitecto189. Mas, enquanto o arquitecto exerce um controlo sobre questões palpáveis e definíveis, como as formas, os materiais ou as estruturas, a luz do dia altera-se constantemente, impondo-se na arquitectura, mas não permitindo uma manipulação directa. A intangibilidade luminosa responde à sua condição natural, variando com a rotação terrestre e a sua situação geográfica. Durante a translação da terra em torno do sol, produz-se uma inclinação do eixo de rotação que dá lugar às estações. Este simples fenómeno determina o modo de vida na terra, e determina que os pólos da nossa esfera podem ter noites de sol durante meses, e meses de escuridão190. Desta forma, enquanto a arquitectura nórdica procura exaustivamente a exposição solar nos seus edifícios, a arquitectura mediterrânica, por contraste, rende-se a uma tentativa de controlo e mediação da iluminação. Segundo Bruno Zevi, o Gótico resistiu mais nos países nórdicos que nas regiões do sul, uma vez que os raios de sol incidem perpendicularmente, o que resulta num maior contraste de sombras
188
CAMPO BAEZA, Alberto – A ideia construída. 2ªed. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2008. ISBN 972-8801-22-X. p.15
Cfr. ROTH, Leland M. – Entender la arquitectura: sus elementos, historia y significado. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, SA, 2005. ISBN: 84-252-1700-8. p.77 189
RASMUSSEN, Steen Eiler - Viver a arquitectura. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2007. ISBN 978-989-8010-99-5. p.156 Durante la translácion de la tierra alrededor del sol se produce una inclinación del eje de rotación que da lugar a las estaciones. Esse simple fenómeno determina el modo de vida en la tierra, y determina que los pólos de nuestra esfera puedan tener noches de sol durante meses, y meses de oscuridad. (tradução livre) 190
VALERO RAMOS, Elisa – La matéria intangible: reflexiones sobre la luz en el proyecto de arquitectura. Valencia: Ediciones Generales de la Construccion, 2004. ISBN 84-933540-1-5. p.23 e 25
proveniente das cornijas e das saliências horizontais. Na região norte, o sol encontra-se mais baixo, incidindo tangencialmente, evidenciando as linhas verticais luminosas. Da rotatividade terrestre surge, também, a definição do dia e da noite, o que atribui à luz natural a capacidade de materializar o factor tempo, especificamente na arquitectura191. Embora também seja possível compreender a acção do tempo dos edifícios, a longo prazo, através da sua condição física de desgaste, quer estrutural quer material, a luz actua diariamente, denunciando o avançar do dia num espaço arquitectónico, de acordo com a sua exposição solar e respectivas sombras. Quando se pretende caracterizar a luminosidade de um determinado espaço, não é necessariamente a quantidade de luz que vai definir o índice de qualidade. A intensidade e a direcção da luz são factores definitivos na revelação de um determinado espaço, das suas formas, das texturas que os seus materiais apresentam, ou até da simbologia que permite evocar. Desta forma, uma iluminação intensa, frontal, devido ao tipo de incidência, produz pouca sombra, diminuindo significativamente a plasticidade espacial. A sombra é essencial na percepção de um espaço, permitindo um conhecimento tridimensional, através da denúncia de volumes e texturas. As suas saliências, quer formais quer dos seus relevos, só se evidenciam se contrastarem com a superfície192. Para o arquitecto japonês Tadao Ando, a luz é a origem de tudo: logo que atinge a superfície das coisas, delineia os seus perfis; produzindo as sombras por detrás dos objectos, desvenda a sua profundidade193. Luz e sombra têm como objectivo, no contexto arquitectónico, evidenciar as formas exactas dos objectos, definindo o espaço, e permitindo que se estabeleçam relações entre todos os valores que o integram. Tendo em conta o carácter mutante da luz, como já foi previamente referido, cada momento pode proporcionar novas formas e novas conexões, corroborando assim o facto de que a arquitectura encontra na luz a sua essência. Estruturar o espaço, segundo o arquitecto, não é mais do que gozar do poder da luz. O poder da luz reside, igualmente, no facto de influenciar o homem, não só emocionalmente, mas também fisiológicamente. Torna-se importante,então, ajustar a manipulação da luz às funções que lhe são destinadas194. Steen E. Rasmussen refere que
Cfr. VALERO RAMOS, Elisa – La matéria intangible: reflexiones sobre la luz en el proyecto de arquitectura. Valencia: Ediciones Generales de la Construccion, 2004. ISBN 84-933540-1-5. p.11 191
Cfr. RASMUSSEN, Steen Eiler - Viver a arquitectura. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2007. ISBN 978-989-8010-99-5. p.159 192
ANDO, Tadao in DAL CO, Francesco – Tadao Ando: as obras, o texto, a crítica. 1ªed. Lisboa: Dinalivro, 2001. ISBN 972576-217-7. p.470 193
194
CAMPO BAEZA, Alberto – A ideia construída. 2ªed. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2008. ISBN 972-8801-22-X. p.17
103
Fig.120 Planta do Panteão romano, mandado reconstruir pelo Imperador Adriano em meados de 121 d.C., Itália.
Fig.121 Corte longitudinal do Panteão romano.
Fig.122 Enquadramento do Panteão na pequena praça e respectiva envolvente.
Fig.123 Vista interior do Panteão.
Fig.124 Óculo no topo da cobertura.
Fig.125 As grandes colunas que marcam a transição entre o exterior do Panteão e o seu interior.
as aberturas feitas numa construção são suficientes para proporcionar uma essência espacial específica, podendo mesmo influenciar a leitura dimensional do espaço. Assim, se a iluminação de uma zona de trabalho for intensa e directa, sem elementos que apaziguem a sua incidência, os olhos cansam-se rapidamente. É preferível uma exposição mais alta e uniforme que resulte numa iluminação difusa. Mas, para outras actividades, um foco de luz intensa e dirigida sobre um fundo escuro, chama a atenção sobre esse mesmo ponto. Esta manipulação luminosa é normalmente utilizada não só na arquitectura, como também na pintura, teatro ou cinema195. A luz ao longo da história da arquitectura, associada aos princípios defendidos nesses momentos específicos, permitiu a criação de diferentes tipos de espaços, condicionando e determinando a percepção dos mesmos. Embora a exposição luminosa seja determinante, é na forma como é manipulada que reside maior importância na concepção de um espaço. Podemos dirigir, filtrar, reflectir, dominar o sol, com a finalidade de fazer a luz aparecer da maneira mais conveniente ao artifício arquitectónico. A apresentação da arquitectura à medida (classicismo), à emoção (barroco), ou ao símbolo (gótico), implica um jogo em que a luz servirá para ver, para observar ou para contemplar a arquitectura, concebida não só como a matéria que nos encerra, mas também o ar que está dentro196. Uma das obras edificadas capaz de transmitir fielmente a força da luz associada à da arquitectura em si, é o Panteão, situado em Roma e mandado reconstruir pelo imperador Adriano em meados de 121 d.C.197. O contraste evidente entre a envolvente, ruas pequenas que desaguam na praça, também de dimensões recatadas, e o edifício, maciço e imponente, cuja área de ocupação totaliza uma nova praça, constitui uma convivência urbana que já é, por si só, um confronto admirável entre escalas (fig.122). Mas, é na transição do espaço exterior para o interior que reside a verdadeira experiência do Panteão. Abandona-se o ambiente diurno, gradualmente, enquanto se avança pelo peristilo
195 Cfr. ROTH, Leland M. – Entender la arquitectura: sus elementos, historia y significado. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, SA, 2005. ISBN 84-252-1700-8. p.78 196 Podemos dirigir, filtrar, reflejar, dominar el sol, com el fin de hacerla aparecer de la manera más conveniente al artificio arquitectónico. El sometimiento de la arquitectura a la medida (clasicismo), a la emoción (barroco), o al símbolo (gótico), implica un juego en el que la luz servirá para ver, para mirar o para contemplar la arquitectura, concebida no solo como la materia que nos encierra sino también el aire que queda dentro. (tradução livre)
VALERO RAMOS, Elisa – La matéria intangible: reflexiones sobre la luz en el proyecto de arquitectura. Valencia: Ediciones Generales de la Construccion, 2004. ISBN 84-933540-1-5. p.47 197 Existia, onde o Panteão, ou Panteão de Agripa, se encontra situado, um santuário rectangular com o mesmo propósito, mandado construir pelo general e ministro Agripa, a 25 a.C.. O edifício sofreu dois grandes incêndios, tendo sido, mais tarde, substituído pelo actual Panteão, do qual se desconhece o arquitecto. O imperador Adriano mandou reconstruir o Panteão, tendo utilizado a inscrição do antigo templo no seu novo edifício: M.AGRIPPA.L.F.COSTERIUM.FECIT – Construído por Marcus Agrippa, filho de Lucius, três vezes cônsul.
Cfr. MACDONALD, William L. - The Pantheon: Design, Meaning, and Progeny. 2ªed. Cambridge: Harvard University Press, 2002. ISBN 9780674010192. p.11 a 14
105
Fig.126 Vista exterior da capela de Ronchamp, França, projectada pelo arquitecto Le Corbusier e construĂda entre 1950 e 1954.
Fig.127 Vista interior da parede sul.
Fig.128 Vista interior doa parede sul e respectivas entradas de luz, de formato e posicionamento distintos.
Fig.129 Vista exterior da parede sul.
Fig.130 Entrada de luz indirecta da capela orientada a norte.
Fig.131 Luz indirecta e inconstante da capela orientada a norte.
repleto de grandes colunas que vão inibindo a entrada da luz exterior no edifício, conduzindo à penumbra de um interior magnificente (fig.121 e 125). Alcançado o interior do Panteão, a sua planta circular absoluta (fig.120), experimenta-se uma luminosidade tímida, a que os olhos forçam a habituação, enquanto perscrutam, procurando compreender a dimensão espacial do que rodeia. Mas, esta transição luminosa contrastante, do claro para o escuro, rapidamente se dissolve, quando se torna perceptível uma luz moderada proveniente de uma abertura circular situada no topo, consideravelmente mais alto do que o tecto do peristilo. Do enorme óculo situado no culminar da cúpula, a luz do sol penetra resultando num foco luminoso nítido ou numa luminosidade difusa que invade o espaço suavemente, consoante as condições climatéricas e a hora do dia (fig.123 e 124). Mais do que uma experiência de contrastes, o óculo do Panteão confere ao espaço uma essência divina, como se a única abertura fosse uma entrada directa para um mundo celestial, do qual só podemos conhecer as reminiscências do seu poderoso rasto luminoso. As condições luminosas desta obra, associadas ao construído, evocam um equilíbrio harmonioso e surpreendente e manterializam o factor tempo no seu interior. Le Corbusier compreendeu perfeitamente o papel fundamental da luz na execução de qualquer projecto, independentemente da função a que se destinava. Durante a sua fase expressionista, caracterizada pela procura de um sentido plástico e cromático que permitisse impressões intensas na experiência dos espaços, concebeu a Capela de Ronchamp, realizada entre 1950 e 1954198. O essencial da sua construção consiste numa cobertura orgânica e peculiar de betão armado, constituída por duas membranas separadas por 2,26 metros que repousam sobre paredes de pedra local, sem recurso a contrafortes, assumindo contornos curvilíneos que estabilizam a alvenaria rústica (fig.126). A dimensão espiritual do recinto expressa-se mediante a luz199. Constatando o dinamismo formal impresso no edifício, que confere ao espaço arquitectónico uma leitura expressiva, assume-se como uma obra cenográfica. A luz relaciona-se com as formas, procurando animar o espaço e criar uma atmosfera distinta, consoante o momento do dia ou do ano. Le Corbusier opta por considerar a luz como o material mais importante, o qual manipula com o intuito de criar marcados contrastes entre momentos de penumbra e de exposição luminosa intensa. A dimensão espiritual do edifício também é intensificada, na medida que a iluminação é regulada para direccionar a atenção para o ponto mais
198 Cfr. CIRLOT, Juan-Eduardo – Le Corbusier: 1910-1965. 7ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili SA, 2001. ISBN 84-2521316-9. p. 256 199
La dimension espiritual del recinto se expresa mediante la luz. (tradução livre)
BAKER, Geoffrey H. – Le Corbusier: Analisis de la forma. 7ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili SA, 2000. ISBN 84-2521808-X. p.258
107
Fig.132 Vista geral do interior da Capela da Luz em Osaka, Japão, projectada pelo arquitecto Tadao Ando e construída em 1989.
Fig.133 Planta da Capela da Luz.
Fig.134 Entrada de luz definida pela intersecção do plano de betão com uma das paredes da capela.
Fig.135 Entrada de luz pontual, rasgada, atribui um forte efeito cénico ao espaço.
Fig.136 Espaço exterior da capela.
Fig.138 Entrada de luz proveniente do espaçamento entre a cobertura e a parede.
Fig.137 Espaço exterior da capela.
importante da capela, o altar, e porque existe uma grande variedade de entradas de luz, com direcções distintas que conferem à capela uma atmosfera de mistério200. A parede sul controla a iluminação da nave, através de uma manipulação precisa da queda dos raios luminosos sobre o espaço, através do recurso a vitrais distribuídos pontualmente. A intensidade da luz varia consoante o momento do dia, tendo em conta o posicionamento das diversas aberturas que, de profundidade e ângulos distintos, faz com que os raios de luz penetrem a parede e se projectem em direcções diferentes. Assim, promove-se uma iluminação variada e multicolor que enriquece e aquece a composição espacial (fig.127 e 129). Contrariamente à inundação luminosa proveniente do lado sul, a luz oriunda das capelas orientadas a este e oeste, é indirecta e muda de intensidade consoante a exposição solar, enquanto a capela orientada a norte (fig.130 e 131) mantém uma luz constante e uniforme, contribuindo para um ambiente luminoso mais atenuado que incide sobre a austeridade pétrea do altar. A parede oriental é pontualmente perfurada por pequenas aberturas, dando lugar a fontes luminosas puntiformes, que enquadram o altar como se fossem pequenas estrelas brilhantes. No encontro da cobertura com as paredes, existe uma fissura contínua que contorna todo o espaço e que, embora não seja perceptível do exterior, confere à cobertura, e respectiva massa, leveza, e ao tecto uma leitura celeste, amplificando o carácter dinâmico das formas da capela (fig.128). A organização da capela responde, então, a um ímpeto de teatralidade luminosa, cromática e formal, cuja composição gera uma atmosfera de acolhimento e espiritualidade201. Le Corbusier demonstra, com este projecto, que a luz pode ser um maravilhoso meio de expressão para um arquitecto. Tadao projectou um pequeno templo, a Capela da Luz em Osaka, construída em 1989, com a finalidade de complementar uma igreja já existente. O programa da nova construção viu-se condicionado pela sua relação, não só com a envolvente edificada, mas também com a luz solar. O projecto consiste num volume em forma de prisma, perfurado obliquamente por um muro de altura inferior à do edifício principal. O muro que intersecta o volume define a trajectória de aproximação, permitindo o acesso ao seu interior, através de uma abertura estreita e consideravelmente alta (fig.133). Tadao Ando defende que, na concepção de um espaço sagrado, homem e espaço devem estar em contacto com a natureza, relacionando-se com o vento, a água, a vegetação
Cfr. BAKER, Geoffrey H. – Le Corbusier: Analisis de la forma. 7ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili SA, 2000. ISBN 84252-1808-X. p.258 200
201
Cfr. Idem, p.261 e 262
PAULY, Daniélle – Le Corbusier: la capella di Ronchamp. Basel: Birkhauser, 1997. ISBN 3-7643-5760-6. p.117-119
109
e a luz. A comunhão do espaço arquitectónico com a natureza permite atinjir uma harmonia espacial e uma essência de equilíbrio com a sua envolvente202. Neste caso específico, a luz foi a ponte entre o construído e a natureza, penetrando pelas fendas em forma de cruz, situadas na parede frontal, e cravando a sua silhueta no pavimento (fig.132). Como que filtrada por um diafragma, a luz abundante do exterior difunde-se suavemente nos interiores, dilatando-se e misturando-se com a escuridão (fig.134 a 136). Mas, mais do que a tentativa de criar uma atmosfera específica, Tadao Ando refere que foi seu desejo desafiar as tendências construtivas da época. No contexto tão materialista como se vive, segundo a sua opinião, tentou provar que se podia criar um espaço rico, dispondo de um orçamento mínimo. Assim o fez, recorrendo não só à luz, mas também a uma escolha de material justificada: o betão armado. Justifica a sua opção ao considerar o betão desprovido de características escultóricas contribui para a produção de uma luminosidade específica, resultante da reflexão nas suas superfícies homogéneas (fig.137 e 138). Trabalho o betão como um material inorgânico, frio, dotado de uma energia
escondida e não me preocupo tanto em exprimir a natureza como em submete-lo ao espaço. Quando a luz se projecta nele, o espaço frio e tranquilo rodeado de elementos arquitectónicos claramente definidos, torna-se doce e transparente, indiferente aos materiais203. Desta forma, o espaço rodeado de paredes sólidas em betão armado, escuro e inerte, serve de fundo para a projecção luminosa isolada proveniente da cruz, um esforço notório de abstracção espacial que, para além de reforçar a ligação com a natureza através das mudanças luminosas manifestadas pelo decorrer do dia, introduzem tensão espacial, sacralizando a divisão. A energia da luz torna a vida possível204. A luz desvenda a arquitectura. Expõe o seu espaço, realça a textura dos materiais, intensifica as suas cores e, essencialmente, reúne todas estas acções na procura de uma leitura espacial abstracta que fundamente a arquitectura e intensifique a sua experiência. Oferece à concepção arquitectónica, então, as suas características físicas, enquanto elemento intangível e em constante mutação, que permite perceber o universo espacial, assistindo à percepção geométrica das formas e contribuindo para a sua exaltação. A sua conotação simbólica transforma o entendimento do espaço, transmitindo-lhe conceitos imateriais. A
202 Cfr. ANDO, Tadao in MÁRQUEZ CECILIA, Fernando; LEVENE, Richard (eds.) - Tadao Ando: 1983-2000, El Croquis. Madrid: el Croquis Editorial, 1996. Nº 44+58. ISSN D212-5083. p.106 a 114 203 ANDO, Tadao in DAL CO, Francesco – Tadao Ando: as obras, o texto, a crítica. 1ªed. Lisboa: Dinalivro, 2001. ISBN 972576-217-7. p.458 204
Light is the energy that makes life possible. (tradução livre)
VALERO RAMOS, Elisa – La matéria intangible: reflexiones sobre la luz en el proyecto de arquitectura. Valencia: Ediciones Generales de la Construccion, 2004. ISBN 84-933540-1-5. p.164
luz une-se aos materiais e às estruturas, separando-se do exterior através dos filtros criados pelo arquitecto, entregando-se ao do interior do edifício. Por último, a reacção emocional do homem à luz, transforma-a num instrumento que converte o espaço num cenário, dramatizando-o através do contraste da exposição luminosa com as sombras. A luz adquire significado no interior da relação com as coisas (…)205.
2.3.2
Som
A arquitectura pode ser ouvida? A maioria das pessoas diria provavelmente que, como a arquitectura não produz sons, não pode ser ouvida. Mas ela também não irradia luz e, no entanto, podemos vê-la206. Ainda que a arquitectura seja estrutural e formalmente estática, permite que nela se projectem e, consequentemente, reflictam determinadas energias, como o som e a luz, assumindo-se como uma das suas capacidades dinâmicas. E, uma vez que a arquitectura implica espaço, exterior ou interior, o homem desloca-se nele e, perante a sua manifestação física no mesmo, despoleta ruídos arquitectónicos. Desta forma, torna-se conveniente compreender que a relação entre o ser humano e a percepção audível da arquitectura se resume a uma trilogia comunicativa em que figura um emissor, um canal de transmissão e um receptor. Consciente ou inconscientemente, o homem assume o papel de emissor, na qualidade de sujeito que usufrui dos espaços, cujos movimentos ou acções, individuais ou combinadas despoletam reacções acústicas específicas, desde uma simples deambulação por um museu, como o decorrer de uma peça de teatro ou de um concerto. Consequentemente, a arquitectura é o canal que permite a transmissão auditiva dessas mesmas acções. Condiciona a reflexão dos sons através das suas características formais, estruturais e espaciais, cuja condução pode variar caso o som seja um resultado de contacto, como passos sobre um pavimento específico, ou um resultado aéreo, vozes ou música. Na qualidade de único sujeito a quem a experiência do espaço
ANDO, Tadao in DAL CO, Francesco – Tadao Ando: as obras, o texto, a crítica. 1ªed. Lisboa: Dinalivro, 2001. ISBN 972576-217-7. p.458 205
206
RASMUSSEN, Steen Eiler - Viver a arquitectura. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2007. ISBN 978-989-8010-99-5. p.186
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arquitectónico se destina, e concluindo esta estrutura comunicativa, o homem é também o receptor207. Considerando a arquitectura, então, como meio de condução dos sons, é a dimensão dos espaços que concebem o edifício, assim como os materiais que o constituem, que participam activamente na manipulação acústica das suas divisões. Um espaço ou uma superfície possuem características reverberantes208, a partir do momento que reflectem um som, independentemente da intensidade e duração. O desvanecimento gradual do som após ter sido reflectido apelida-se tempo de reverberação. Assim, o recurso a materiais de superfícies rígidas, como mármore, mosaico ou betão armado, aumentam o período de reverberação que, se se associar a um espaço vazio ou de grandes dimensões, intensificam o resultado209. Contrariamente, existem espaços que contribuem para uma melhor absorção sonora, não só pela escolha de materiais como a madeira, mas também aliado à presença de elementos como grandes cortinados, tapetes, móveis, eliminando a quantidade de espaço vazio na divisão através do recurso a barreiras. Tendo em conta que as características espaciais influenciam directamente a projecção dos sons de um edifício, é imprescindível que o carácter acústico seja concordante com as funções que lhe são destinadas. Steen E. Rasmussen, relativamente ao tema das capacidades reverberantes de determinados espaços, refere a Basílica di San Pietro, maior igreja da cristandade primitiva e antecessora do actual edifício construído durante o Renascimento em Roma que, ainda que não fosse abobadada, era uma enorme construção de cinco naves e estrutura em pedra. O resultado das dimensões e dos materiais associados à basílica, mandada construir pelo imperador Constantino entre 326 e 333 d.C., resultavam num obstáculo muito específico: se o sacerdote, durante uma cerimónia religiosa, usasse a voz de uma forma suficientemente poderosa que se fizesse ouvir em toda a igreja, as palavras reverberariam durante bastante tempo, sobrepondo-se às palavras seguintes. Para evitar um resultado desastroso, teve de aprender a falar de acordo com um ritmo muito específico que contrariasse as tendências acústicas da igreja. Com o tempo, o homem realizou diversos estudos sobre as condições sonoras dos espaços, sendo que, depois da reforma protestante, foi descoberta a capacidade de absorção sonora da madeira, tendo sido adicionada em grandes quantidades às paredes de
Cfr. DOMÈNECH, Francesc Daumal – Arquitectura Acústica: Poética y Diseño. 1ªed. Barcelona: Edicions UPC, 2002. ISBN 84-8301-638-9. p.15 e 16
207
208
Reverberação, persistência do som audível, após a cessação de um som directo da fonte produtora.
Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, volume 2. Portugal: Círculo de Leitores, 1985. p.981 209 Cfr. ROTH, Leland M. – Entender la arquitectura: sus elementos, historia y significado. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, SA, 2005. ISBN 84-252-1700-8. p.95 e 96
pedra nuas das igrejas210. Relativamente às obras de arquitectura associadas a programas como teatros e auditórios, é imprescindível um controlo perfeito das características da reverberação espacial, de acordo com as necessidades que exige uma peça, uma palestra, um concerto ou um musical. Mas o som, para além de todas as repercussões funcionais que possa ter em relação à arquitectura, invoca também uma reacção emocional no ser humano. Embora a percepção auditiva não se evidencie perante as outras reacções sensoriais, desempenha, ainda assim, um papel fundamental na experiência de um espaço, contribuindo para um entendimento global enriquecedor. Os sons, associados ao meio, podem servir de referências espaciais. O homem consegue, através das referências auditivas que reúne das suas vivências, identificar se se encontra num espaço exterior, identificando o turbilhão de sons provenientes da rua, como as vozes, os passos das pessoas, o ruído dos transportes, os toques dos telemóveis ou os gritos das crianças. No interior do edifício, os sons podem denunciar os acontecimentos ligados a cada divisão e, paralelamente, se o carácter da mesma é público ou privado. O som da máquina de café, do tilintar de chávenas e das vozes não moderadas anuncia, possivelmente, uma cafetaria, enquanto o silêncio de uma divisão pode caracterizar uma biblioteca ou uma sala de museu. Como foi referido previamente, a audição não detém o papel principal na experiência da arquitectura, mas é imprescindível à percepção visual. De forma a clarificar, imagine-se uma pessoa a passear pela já referida Basílica de San Pietro, com recurso apenas à visão. Perceberia o espaço, as dimensões, as cores, os materiais e a profundidade da igreja, mas, como quando se vê um filme sem som, sentir-se-ia a falta da validação sonora, em que o ecoar dos seus passos e sussurros no edifício reforçariam o facto de o perceber grande e profundo. A acústica arquitectónica manipula, então, a forma como se sente um espaço, positiva e negativamente. O desconforto espacial pode ser um resultado da escolha de materiais, ou até das suas cores, mas uma acústica áspera, proveniente de um espaço que reflicta bastante os sons, também contribui para uma atmosfera indesejada. Mas, se no mesmo espaço, forem acrescentados móveis e até tapetes, o resultado acústico é mais acolhedor211. O som tem a capacidade, então, de intensificar qualquer atmosfera, de acordo com os respectivos materiais, cores e formas, fazendo o ser humano experimentar o conforto e o bem-estar, ou sentir-se incomodado com o mesmo.
Cfr. RASMUSSEN, Steen Eiler - Viver a arquitectura. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2007. ISBN 978-989-8010-99-5. p.191 e 192 210
211
Idem, p.186
113
Fig.139 Vista lateral da Capela de Santa Maria dos Anjos no monte Tamaro, Suíça, projectada pelo arquitecto Mario Botta e construída entre 1992 e 1996.
Fig.140 Percurso exterior em pedra.
Fig.141 Zona do altar, no Fig.142 Vista do interior da interior da capela. capela.
Fig.143 Sino da capela.
Fig.144 Corredor interno de Fig.145 Escadaria de acesso acesso à capela. ao miradouro.
Fig.146 Escadaria de acesso ao percurso exterior da capela e ao miradouro.
Ainda que se tenha considerado, até aqui, a importância do som, também a sua ausência em determinados contextos é fulcral no diálogo emocional entre o homem e o espaço. Luis Barragán acreditava que, para que todos os sentidos se possam concentrar na própria obra arquitectónica enquanto perscrutam a beleza espacial, necessitam de silêncio. Enquanto factor fundamental em todos as suas obras, o silêncio é responsável por atribuir uma qualidade atmosférica baseada na sensação de serenidade e de harmonia que conduz a um estado de meditação. Mas, mais do que influenciar emocionalmente a vivência espacial, atribui-lhe uma qualidade quase transcendente, em que aquele momento aparenta desligar-se de tudo o que o possa envolver212. Contudo, silêncio não significa necessariamente a ausência completa de sons. A amenização sonora, permite a convivência suave do murmúrio da natureza com o espaço, resultando numa abstracção conceptual da obra arquitectónica e contribuindo, essencialmente, para determinadas funções destinadas ao descanso, à contenção social ou ao culto. Construir uma catedral não é construir apenas a igreja do bispo (…). É a vontade de realizar um espaço para o espírito, estreitamente integrado no tecido urbano, que pode ajudar-nos a enfrentar a vida e a luta quotidianas213. Mario Botta projectou a Capela de Santa Maria dos Anjos, no Monte Tamaro, construída entre 1992 e 1996, que materializa na perfeição a sua vontade de criar um espaço que alimentasse as necessidades espirituais. O impacto emocional que se estabelece decorre da forma como a igreja se apropria da envolvente e da paisagem, e da articulação organicista entre o construído e o natural (fig.139). A capela encontra-se escavada na encosta, organizada em anfiteatro, desenvolvendo-se gradualmente até culminar no espaço do altar, enquanto a sua cobertura se transforma num percurso exterior longo e contínuo que oferece, a quem o percorre, uma paisagem imensa e magnífica (fig.140). O edifício sugere, então, uma manipulação da natureza, de acordo com as suas necessidades, em que a forma plástica, os cortes transversais, as novas configurações geométricas, modelam-se em negativo, por debaixo da linha do horizonte traçada pela paisagem de comunicação214. O espaço interno vive do grande contraste entre os muros circulares, materializados pelas paredes em cal negra e as molduras lineares brancas, com a luz zenital intensa que inunda a pequena abside, fazendo sobressair o altar (fig.141 e 142). O imaginário criado por
212 Cfr. RUIZ BARBARIN, Antonio – Luis Barragán frente al espejo: la outra mirada. Barcelona: Caja de arquitectos, 2008. ISBN 978-84-935929-2-9. p.215 213 Construir una catedral no es construir solamente la iglesia del obispo (…). Es la voluntad de realizar un espacio para el espíritu, estrechamente integrado en el tejido urbano, que puede ayudarnos a afrontar la vida y la lucha cotidianas. (tradução livre)
PIZZI, Emilio – Mario Botta. 4ªed. Barcelona: Gustavo Gili Editorial, 1997. ISBN 84-252-1718-0. p.85 214
MOLINARI, Luca (ed.) – Mario Botta: edificios públicos, 1990-1998. Milan: Skira, 1998. ISBN 88-8118-358-7. p.182
115
Fig.147 Implantação do Museu Judaico de Berlim, Alemanha, associado ao edifício preexistente. Projectado pelo arquitecto Daniel Libeskind, cuja construção terminou em 1999.
Fig.148 Cruzamento de dois percursos internos.
Fig.149 Um dos vazios do museu, cujo pavimento se encontra coberto por chapas que representam as vítimas do holocausto.
Fig.150 Estes vazios interrompem a organização dos interiores, contribuindo para uma distribuição espacial arrítmica.
Fig.151 Entrada de luz na cobertura que intensifica o impacto do silêncio do vazio.
Fig.152 Percurso interior do museu.
Fig.153 Percurso interior do museu.
Fig.154 Os rasgos presente nas fachadas contribuem para a atmosfera desconcertante do museu.
Botta corresponde, então, a um mundo evocativo mas, ao mesmo tempo, real e emotivo215. Contudo, reforçando essa condição de espaço transcendente, Mario Botta promove, também, o contraste entre duas realidades acústicas distintas, associadas ao poder do silêncio. Os interiores, revestidos a madeira e cal, resultando de dimensões não muito ousadas, criam uma resposta acústica quente e silenciosa, promovendo um sentimento acolhedor que sugere protecção e permite ao utilizador viver intensamente o momento de reflexão que se associa ao culto. Mas, na extensão exterior da capela, em que o percurso em pedra parece perder-se na paisagem, o silêncio recatado desvanece-se para dar lugar a um silêncio quase esmagador, em que os sons da natureza surgem sem barreiras nem manipulações, murmurando e complementado o momento de contacto visual com a envolvente. Transitase, de um silêncio protector para um silêncio exposto (fig.144 a 146). O caminho ao longo do percurso, juntamente à paisagem que avança sobre o homem, ganha significado com a presença dos sons naturais. A arquitectura, além de ser espacial, também é musical216. Barragán assim o afirma, na medida em que, nos seus projectos, recorre à água, aos grandes muros e à envolvente natural, para criar melodias que melhor se adequem ao espaço que tenciona criar. O exemplo anterior materializa eficazmente o recurso ao silêncio enquanto elemento essencial à serenidade espacial e fundo da musicalidade proveniente dos sons naturais. Mas, a ausência de sons pode assumir uma conotação negativa. Frequentemente, o silêncio está associado a sentimentos desagradáveis como o medo, o vazio, a morte, tendo a capacidade de contribuir para o desconforto de uma vivência espacial. No Museu Judaico de Berlim, de Daniel Libeskind, terminado em 2001, o silêncio assume uma participação claramente activa e intensa, essencialmente na criação da atmosfera específica delineada pelo arquitecto. Esta obra arquitectónica é, acima de tudo, como refere Libeskind, uma tentativa de dar voz à inevitável relação entre a história de vida dos judeus e a história de Berlim, apesar das contradições do ordenado e do desordenado, do eleito e do não-eleito, do ruído e do silêncio, dos vivos e dos mortos217. O edifício é uma ampliação de uma estrutura preexistente, ainda que se evidencie como um elemento completamente separado. Libeskind apelidou o museu ‘entre linhas’ que, embora não seja o nome oficial da obra, para o arquitecto fez sentido uma vez que é espacialmente
215
Cfr. MOLINARI, Luca (ed.) – Mario Botta: edificios públicos, 1990-1998. Milan: Skira, 1998. ISBN 88-8118-358-7. p.182
216
La arquitectura, además de ser espacial, también es musical. (tradução livre)
BARRAGÁN, Luis in RIGGEN, Antonio (ed.) – Luis Barragán: Escritos y Conversaciones. Madrid: El Croquis Editorial, 2000. ISBN 84-88386-17-6. p.124 217 Despite the contradictions of the ordered and the disordered, the chosen and the not chosen, the vocal and the silent, the living and the death. (tradução livre)
LIBESKIND, Daniel – Radix-Matrix: architecture and writings. Munich: Prestel, 1997. ISBN 3-7913-1727-X. p.34
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organizado, de acordo com a relação entre duas linhas (fig.147). Uma é uma linha recta, mas dividida em vários fragmentos; a outra é uma linha tortuosa, que continua infinitamente. Estas duas linhas desenvolvem-se arquitectonicamente e programaticamente através de um diálogo limitado, mas definitivo. Também se desmoronam, desligam-se uma da outra e são vistas como elementos separados. Desta forma, as linhas expõem um vazio que atravessa todo o museu, um vazio descontínuo218. Perante um programa tão peculiar e emocionalmente exigente, Libeskind optou por materializar toda a angústia e dor proveniente de uma realidade opressiva recente, e materializá-la no museu. Do ponto de vista formal, propôs uma composição baseada na distorção da estrela de David, resultando numa construção de contracções tortuosas e ângulos agressivos, recorrendo a uma fachada de zinco e a betão armado para os interiores219 (fig. 151 e 154). Os interiores do museu resultam extremamente complexos, definidos por percursos tortuosos que atravessam galerias, grandes vazios e espaços sem saída. Ao longo dos percursos experimenta-se uma variação de escalas, em que a um espaço pequeno e sufocante se sucede um vazio imenso e desconcertante. As formas rígidas e angulares e o monocromatismo, contribuem para intensificar uma experiência perturbadora, evitando qualquer manifestação arquitectónica de bem-estar e serenidade (fig.148 a 153). O betão armado é pontualmente rasgado por vãos estreitos, um gesto simbólico que, segundo Libeskind, representa a réstia de esperança luminosa, num dos momentos mais negros da história220. Perante este cenário cuidadosamente montado pelo arquitecto, o silêncio funciona como elemento intensificador da atmosfera vigente. A estrutura do museu isola os interiores, impedindo qualquer som natural, representante da vida, de penetrar no espaço. Resta, apenas, uma ausência sonora gélida. As paredes rígidas e a variação das dimensões espaciais reflectem intensamente os passos e os murmúrios dos visitantes e prolongam-nos, repetidamente, criando uma vivência ambígua e abstracta do museu. Como num filme de terror, o silêncio encarrega-se de animar a opressão que se adivinha nas opções formais, espaciais e materiais feitas pelo arquitecto. Os sons têm, então, a capacidade de validar as informações visuais, complementandoas. No mundo da arquitectura, essa capacidade traduz-se na autenticação da experiência
218 One is a straight line, but broken into many fragments; the other is a tortuous line, but continuing infinitely. These two lines develop architecturally and programmatically through a limited but definite dialogue. They also fall apart, become disengaged and are seen as separated. In this way, they expose a void which runs through the museum, a discontinuous void. (tradução livre)
LIBESKIND, Daniel – Radix-Matrix: architecture and writings. Munich: Prestel, 1997. ISBN 3-7913-1727-X. p.34 219
Cfr. Idem, p.34
Cfr. ROQUE, Lídia Tauleigne – Arquitectura e música: uma visão estruturalista. Porto: Papiro editora, 2008. ISBN 978989-636-174-1. p.25 220
visual dos espaços, tornando-a mais intensa, resultando num maior apelo ao foro emocional do ser humano. O recurso ao som, provenientes do homem ou da natureza, e ao silêncio, para a definição de determinadas atmosferas, permite que o espaço enriqueça sensorial e conceptualmente.
O espaço arquitectónico e respectivos valores considerados ao longo do presente capítulo, materiais ou imateriais, permitem estabelecer uma ligação com o homem. Mas, este relacionamento acenta num princípio recíproco, em que a intervenção humana é responsável pela criação e manipulação arquitectónica, cujo resultado, por sua vez, interfere e condiciona as vivências humanas. Embora os receptores sensoriais actuem de forma mecânica, permitindo ao homem receber a informação proveniente da interacção com o espaço arquitectónico, a percepção e a memória encarregam-se de a tornar inteligível. Neste sentido, a condição social, cultural e territorial, e as vivências decorrentes de uma realidade específica, interferem activamente no processo de interpretação, influenciando a compreensão do mundo. Se o entendimento humano é moldado por tais factores, então a arquitectura, enquanto caracterizadora da realidade e enquanto criação humana, será igualmente influênciada pelos mesmos.
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Capítulo III | O MEIO ENQUANTO DIMENSÃO ACTIVA NA EXPERIÊNCIA ARQUITECTÓNICA
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Penetrar toda a espécie de fenómeno, a acumulação da história, as oscilações do presente, aquilo que está presente no futuro, ou o bater do coração da terra, as vibrações da luz, o dinamismo de uma cidade, ou ainda o tempo e o espaço, é possível se se puser à prova a sensibilidade da maneira mais profunda219.
Norberg-Schulz defende a arquitectura enquanto fenómeno concreto, que consiste em paisagens, em edifícios e consequentes articulações. Mais do que um conjunto de funcionalidades práticas, ajuda o homem a atribuir significado à sua existência, uma vez que uma das necessidades fundamentais do homem é experienciar significados associados ao seu contexto cultural, social e espacial. Essas vivências específicas, permitem que o espaço se converta em lugar, termo a que o autor se refere enquanto determinação de algo conhecido e concreto. A arquitectura providencia, então, um conjunto de definições que permitem ao homem apreender e compreender um espaço específico220, assumindo-se, também, como um objecto cultural. Esta presença evidente e imprescindível na vida humana, poderá justificar o porquê de, desde sempre, ter sido utilizada para absorver a simbologia adjacente às diferentes estruturas sociais e comportar os respectivos códigos morais, religiosos, ideológicos e económicos. O propósito da arquitectura é dar ordem a certos aspectos do ambiente221, assumindo assim o controlo do relacionamento do homem com o meio. O homem interage com os valores reais e materiais de um determinado espaço arquitectónico, através de mecanismos que lhe são inatos. Mas, o relacionamento entre o homem e a arquitectura não se encontra isolado de contexto, e a respectiva comunicação sofre diversas interferências associadas a valores psicológicos, sociais e culturais. Mais do que uma transição imediata de informação, a existência de um contexto permite transitar da simples percepção momentânea ao reconhecimento do mesmo, resultando na sua definição222. Se a experiência define o lugar, surge o interesse de perceber de que forma a arquitectura pode manipular a vivência humana e que diferentes significados pode assumir
219 ANDO, Tadao in DAL CO, Francesco – Tadao Ando: as obras, o texto, a crítica. 1ªed. Lisboa: Dinalivro, 2001. ISBN 972576-217-7. p.467 220 Cfr. NORBERG-SCHULZ, Christian - Arquitectura Occidental. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, SL, 2004. ISBN 84252-1805-5. p.223 221
El propósito de la arquitectura es dar orden a ciertos aspectos del ambiente. (tradução livre)
NORBERG-SCHULZ, Christian – Intenciones in arquitectura. 2ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, SA, 1998. ISBN 84252-1750-4. p.71 222 Cfr. SALDARRIAGA ROA, Alberto – La arquitectura como experiencia: espacio, cuerpo y sensibilidad. 1ªed. Bogotá: Villegas Editores, 2002. ISBN 958-8160-24-3. p.131
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em contextos culturais, sociais e temporais distintos. A selecção dos exemplares arquitectónicos contemplados no presente capítulo advém do facto de se considerar que materializam, de uma forma relevante para o estudo em curso, a influência do meio nas respectivas características espaciais, formais e estruturais, bem como no relacionamento entre o homem e a arquitectura. Tendo em conta que o meio é definido por diversos valores, tornando-o consequentemente ambíguo, tentou-se explorar a influência de quatro pontos específicos na arquitectura: a religião, as condições territoriais e ambientais, a sociedade e a política na arquitectura. Surge a necessidade de compreender qual o seu papel enquanto elemento mediador e definidor do âmbito em que cada existência arquitectónica se desenvolveu, e que tipo de experiência proporcionaram através da manipulação dos instrumentos cognitivos do homem. A complexidade das conotações humanas – religiosas, sociais e sexuais– contrasta de modo significativo com a simplicidade do tema arquitectónico que as gera. É, de facto, a rígida visibilidade das condições básicas que dá às afirmações artísticas um rasgo tão indispensável para o espírito, quando este luta por encontrar o tema que se esconde na multiplicidade esmagadora de experiências individuais223.
223 La complejidad de las connotaciones humanas – religiosas, sociales y sexuales – contrasta de modo significativo com la simplicidad del tema arquitectónico que las genera. Es, de hecho, la rígida visibilidad de las condiciones básicas lo que da a las afirmaciones artísticas un rasgo tan indispensable para el espíritu cuando este lucha por encontrar el tema que se esconde en la abrumadora multitud de experiencias individuales. (tradução livre)
ARNHEIM, Rudolf – La forma visual de la arquitectura. Barcelona: Gustavo Gili Editorial, 1978. ISBN 84-252-0728-2. p.55
3.1 | EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO NA ARQUITECTURA EGÍPCIA: ORDEM ETERNA
O misticismo e a reverência que envolvem a arquitectura e cultura egípcias advêm, certamente, da monumentalidade e longevidade que lhes são associadas, ostentando justificada importância, visto que o Egipto marcou o início da arquitectura ocidental. A aparição dos primeiros povoados remontam ao ano de 5500 a. C.. O que permanece da sua arquitectura são edificações dedicadas a temáticas e práticas funerárias, construções megalíticas, pirâmides e templos, posicionadas ao longo do rio Nilo. É perceptível um equilíbrio formal, aparente resultado de uma conjugação de forças verticais e horizontais que, associadas a repetições infinitas de colunas, pátios e câmaras, parecem colaborar para o estabelecimento de uma ordem eterna. Para dizer a verdade, ordem e constância são os termos que melhor expressam as intenções fundamentais da arquitectura egípcia224. Estes valores manifestavam a sua crença religiosa nas construções, uma vez que não se assumia como uma parte da sua existência, mas sim como a sua vida. Na antiga sociedade egípcia, homem e natureza possuíam um vínculo profundo, em que o faraó era eleito o representante divino dessa mesma relação. A materialização arquitectónica da sua religião resultou em formas maciças, geométricas, nítidas e imponentes, características que os egípcios admiravam por simbolizarem durabilidade, como uma garantia de indestrutibilidade e infinidade. Entre todos os elementos que constituíam uma construção ou uma organização espacial específica, como as colunas, os obeliscos ou os pórticos, entre outros, não era possível identificar um elemento orgânico, na medida que o seu entendimento das coisas sempre foi pragmático225. Aparentemente, os egípcios nunca conseguiram, ou tencionaram, estudar o objecto arquitectónico e reflectir sobre a sua forma abstracta, uma vez que não viam a pedra, mas sim o símbolo226. É de sublinhar a imutabilidade cultural e material arquitectónica egípcia, tendo em conta que, apesar de se ter verificado um certo desenvolvimento histórico com o decorrer do tempo, os princípios base mantiveram-se constantes ao longo de quase três mil anos.
A decir verdad, orden y constância son los términos que mejor expresan las intenciones fundamentales de la arquitectura egípcia. (tradução livre) 224
NORBERG-SCHULZ, Christian - Arquitectura Occidental. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, SL, 2004. ISBN 84-2521805-5. p.8 225 Cfr. ROTH, Leland M. – Entender la arquitectura: sus elementos, historia y significado. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, SA, 2005. ISBN: 84-252-1700-8. p.190 226
No veían la piedra, sino el símbolo. (tradução livre)
Idem, p.190
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A sua posição geográfica pode explicar, de certa forma, a permanência da civilização, uma vez que se encontravam isolados das restantes povoações, por extensões significativas de deserto a este e a oeste, pelas montanhas a sul e pelo mar Mediterrâneo a norte. O vale da Mesopotâmia foi invadido por vários povos, mas o Egipto permaneceu intocado. Mais do que representar uma protecção efectiva para a civilização, a paisagem egípcia é a chave para uma melhor compreensão e fixação dos fenómenos base da arquitectura. O Nilo, para além de ser a única fonte de água e permitir o crescimento de vegetação no espaço que invade durante as cheias, foi um factor vital no estabelecimento de um eixo organizativo: corria de sul para norte, das terras altas, Alto Egipto, até às planícies do delta, Baixo Egipto. Paralelamente, o sol exercia a sua superioridade, enquanto elemento natural divino, com um percurso imutável de este para oeste. Rio e sol estabeleceram dois eixos perpendiculares que dominaram a arquitectura egípcia227. Assim, a estrutura geográfica do Egipto, tão simples e evidente, facilitou a abstracção e a simbologia de conceitos existenciais fundamentais. Espacialmente, concretizavam-se em recintos organizados axialmente e estruturados ortogonalmente, dispostos ao longo do grande vale longitudinal do Nilo. Também é válido no que se refere ao traçado das cidades e assentamentos228. Analisando o contexto geral paisagístico e arquitectónico do antigo Egipto, a arquitectura popular foi pouco relevante relativamente à arquitectura religiosa, o que se verificou tanto a nível conceptual como construtivo. Baseava-se em pequenas construções de barro prensado, reforçado com palha que, associado a um clima seco com precipitação extremamente reduzida, se revelava um material relativamente resistente e duradouro. O recurso a materiais locais, associado a construções de formas e dimensões modestas, bem como cores pouco contrastantes, permitiu aos centros urbanos diluírem-se na paisagem, camuflando a sua existência, deixando a afirmação visual para os templos e pirâmides. Pensase que as muitas cidades eram construídas apenas com o objectivo de albergar os lavradores e os operários, servindo de apoio às construções religiosas, não existindo vestígios de nenhum tipo de indústria ou de habitação destinada a uma classe média associada aos negócios229. Assim sendo, o estudo da arquitectura egípcia incidirá nos templos e nos túmulos.
227 Cfr. ROTH, Leland M. – Entender la arquitectura: sus elementos, historia y significado. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, SA, 2005. ISBN 84-252-1700-8. p.168 228 Así, la estructura geográfica de Egipto, tan simple y evidente, facilito la abbstración y la simbolización de conceptos existenciales fundamentales. En el entorno físico se los concretaba en recintos organizados axialmente y estructurados ortogonalmente, dispuestos a lo largo del gran valle longitudinal del Nilo. Esto también es válido en lo referente al trazado de ciudades y asentamientos. (tradução livre)
NORBERG-SCHULZ, Christian - Arquitectura Occidental. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, SL, 2004. ISBN 84-2521805-5. p.9 229 Cfr. CENIVAL, Jean-Louis; STIERLIN, Henri - Egypt. Lausanne: Benedikt Taschen Verlag GmbH, [1987-1990]. ISBN 3-8228-9306-4. p.11
Esta organização deriva do facto da sociedade egípcia ter vivido de acordo com um conceito de fusão integral entre vida quotidiana e vida religiosa. O seu dia-a-dia desenvolviase de acordo com os seus preceitos religiosos de culto dos deuses e dos faraós. Claramente, foram as suas ideias religiosas, a sua certeza de que o destino do seu país e cultura dependiam da boa vontade e do poder de deuses e que era possível um tipo de sobrevivência após a morte, que os levaram a construir templos e túmulos. Contudo, a construção de grandes templos de pedra, pirâmides e túmulos reais era um assunto colectivo, cuja responsabilidade era atribuída a um rei230. O desejo patente nas construções egípcias, de concretizar uma ordem eterna era essencial na fundamentação da crença de que a vida continuava após a morte. Os túmulos e os templos funerários, ou moradas da eternidade como assim o entendiam, eram efectivamente as tipologias arquitectónicas mais importantes do Antigo Egipto, uma vez que era sua função assegurar as cerimónias de culto e a preservação dos corpos das entidades importantes, pois só assim se tornariam imortais231. Desta forma, era seu objectivo que as formas e os espaços tivessem um efeito espiritual, associado a um conteúdo simbólico, ou seja, que despertassem reacções específicas. Os egípcios compreendiam a magnitude da manipulação simbólica e o poder que residia na intensificação de experiências espaciais232. A beleza dos edifícios e as suas grandes dimensões ajudavam a transformar uma mera construção humana num resultado divino, que encorajaria a generosidade dos deuses. Assim, mais do que cumprir as suas funções religiosas, os templos egípcios materializavam o encontro entre a terra e o celestial, recorrendo à estimulação sensorial para aproximar o plano divino da realidade humana. Os edifícios egípcios organizavam-se segundo quatro ideias fundamentais: o oásis encerrado, a massa megalítica, a ordem ortogonal e o percurso axial. Estes elementos encontravam-se presentes em todos os edifícios, procurando representar a essência do cosmos egípcio. Assim, todos os templos eram precedidos de um portal monumental, o pórtico (fig.1), composto por dois blocos maciços de paredes inclinadas, unidos por uma porta cujo topo se encontra a metade da sua altura. Normalmente orientados a este, os
230 Quite clearly, it was their religious ideas, their certainty that the destiny of their country and culture depended on the good will and power of superhuman beings and that some form of survival was possible for them after death, that drove all of them to the construction of temples and tombs. Nevertheless, this building of great stone temples, pyramids and royal tombs was a collective matter, the responsibility for which devolved on a king. (tradução livre)
CENIVAL, Jean-Louis; STIERLIN, Henri - Egypt. Lausanne: Benedikt Taschen Verlag GmbH, [1987-1990]. ISBN 3-82289306-4. p.14 Cfr. NUTTGENS, Patrick - The Story of Architecture. 2ªed. London: Phaidon Press Limited, 1997. ISBN 071483615 (H/b). p.35 231
232
Cfr. Idem, p.86
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Fig.1 Pilone do Templo de Hórus em Edfu, construído entre 237 e 57 a.C.. Fig.2 Planta e corte longitudinal do Templo de Hórus em Edfu. É possível verificar neste registo a organização tripartida típica dos templos em que a entrada é seguida do pátio, sala hipostila e santuário.
Fig.3 Secção, em perspectiva, do Templo de Khonsu em Tebas, construído entre 1184 e 1153 a.C., onde é possível perceber a diminuição sequencial da escala dos espaços ao longo do edifício.
pórticos representavam simbolicamente a entrada para o céu, transportando os primeiros raios de luz do sol directamente para o templo. A planta dos templos era usualmente tripartida, dela constando um pátio delimitado por colunas, uma sala hipostila233 e um santuário, organizados axialmente (fig.2). Ao longo do percurso, os espaços iam diminuindo de escala, verificando-se uma elevação do piso enquanto o tecto desce paralelamente. Este encerramento gradual terminava no santuário, uma célula associada ao extremo do eixo, onde o deus morava. Assim, contrariamente a uma condução progressiva direccionada a um espaço monumental, era invertido o processo, em que as dimensões iam diminuindo substancialmente, assim como a iluminação (fig.3). Este caminho simboliza o curso da vida e o retorno inquestionável às origens234, uma vez que a diminuição sequencial do espaço procurava transmitir uma sensação de proximidade, de conforto e de segurança, próximo do ventre materno. A experiência do espaço correspondia exactamente às crenças egípcias mais profundas, uma vez que não reconheciam nenhuma interrupção na vida ou na morte. À excepção da pequena e escura câmara situada no final do templo, os restantes espaços eram concebidos como local de passagem, não procurando responder à necessidade de estar ou habitar num lugar. Pelo contrário, o seu modo de tratar a estrutura interior expressa a ideia de que o homem egípcio se sente sempre a caminho. O espaço converte-se num cenário de peregrinação eterna235. A sucessão de salas, de pátios e de pórticos, dispostas axialmente ao longo dos templos, procurava enfatizar o conceito egípcio de continuidade (fig.5). Assim, apesar de extremamente regular e geométrico, o espaço egípcio não era estático, uma vez que se revelava uma procura incessante de articulação espacial, quer entre o interior e o exterior quer entre divisões distintas. A expressão mais notória deste desejo manifestava-se no uso intensivo de colunas (fig.4). Contribuíam para a concepção de massa, solidez e grandiosidade das construções e, paralelamente, permitiam tornar os espaços acessíveis e possíveis de atravessar, ainda que acentuando o percurso axial original. Como as plantas representadas nos seus capitéis, cresciam livremente, como se a sua função não fosse o suporte mas sim a definição espacial. Na tentativa de eliminar qualquer
O termo hipostilo foi utilizado já por Diodoro no Século I a.C. para designar a sala cujo tecto era sustentado por colunas. Estas salas de colunas, ou salas hipostilas, são muito frequentes na primeira concepção espacial: no Egipto, na Pérsia e na Grécia. 233
GIEDION, Siegfried – La arquitectura, fenomeno de transicion: las tres edades del espacio en arquitectura. Barcelona: Gustavo Gili Editorial, 1975. ISBN 84-252-0845-9. p.19 234 Cfr. NORBERG-SCHULZ, Christian - Arquitectura Occidental. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, SL, 2004. ISBN 84252-1805-5. p.11 235 Por el contrario, su modo de tratar la estructura interior expresa la idea de que el hombre egípcio se sentia sempre en camino. El espacio se convierte en el escenario de un eterno peregrinaje. (tradução livre)
Idem, p.21
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Fig.4 Sala hipostila do Templo de Khnum em Esna, construído durante a 13ª Dinastia. Nesta imagem é possível perceber a desmaterialização espacial imposta pela sucessão de colunas.
Fig.5 Templo de Ramsés III em Medinet Habu, construído entre 1184 e 1153 a.C.. A organização axial é evidente, desde o pórtico que marca a entrada até à conclusão do percurso, o que permite a penetração directa da luz proveniente de este, estabelecendo continuidade.
Fig.6 Sala hipostila do Templo de Karnak em Tebas, construído entre 1580 e 1085 a.C..
possível limite físico, os egípcios comparavam o tecto dos templos à abóboda celeste, razão pela qual pintavam sempre estrelas, procurando atribuir-lhe leveza estrutural236. Na sua imaginação, os espaços com tectos planos que assentavam nas colunas estavam abertos ao céu, permitindo-lhes experienciar o infinito em qualquer divisão. As salas hipostilas (fig.4 e 6) materializavam o extremo da recusa ao espaço delimitado. Ocupadas por um conjunto interminável de colunas, tanto as suas dimensões como os seus limites não podiam ser claramente percepcionados. As divisões desmaterializavam-se em segmentos de espaço extremamente estreitos, anulando qualquer possível sentimento de permanência. Como consequência, a sensação do espaço, apesar do tamanho considerável das salas, era muito reduzida, e a vista era solicitada pela impressão das colunas individuais237. A experiência espacial resultava então num contraste entre a liberdade da imensidão do deserto e dos volumes, com o desconforto dos espaços reduzidos e obscuros. A concepção espacial egípcia preocupava-se, essencialmente, com a disposição dos volumes que compunham os edifícios e não com o espaço que resultava dessa associação. O modo como modulavam e dirigiam a luz era concebido de acordo com a concepção espacial, aliando-se às formas que constituíam as diversas divisões para caracterizar o espaço arquitectónico. Os egípcios não temiam a noite, pelo contrário, consideravam-na sagrada. Assim, quanto mais escura fosse uma sala, mais importante e restrita era. Utilizavam eixos luminosos, focos teatralmente direccionados para estátuas e divisões entregues à penumbra que iam escurecendo, contribuindo para um ambiente misterioso. Os majestosos pórticos são um exemplo da restrição luminosa, uma vez que cobriam o templo com a sua sombra, permitindo que a luz penetrasse num único ponto, a entrada. A luz tinha como função, igualmente, evidenciar as incrições nas paredes dos templos, os hieróglifos238 (fig.7 e 8). Quando a luz incidia sobre os relevos, automaticamente os seus contornos eram intensificados pelo jogo entre a zona iluminada e a zona em sombra. O resultado eram espaços obscuros, carregados de intensidade emocional e, por vezes, desconcertantes: Foi um dos aposentos mais sinistros que alguma vez entrei, um lugar mesmo horrível, e poderia muito bem acreditar que estava assombrado (...). Ainda
Cfr. GIEDION, Sigfried - El presente eterno: Los comienzos de la arquitectura. 3ªed. Madrid: Alianza Editorial, 1992. ISBN 84-206-7999-2. p.333 e 334 236
Como consequencia, la sensación de espacio, a pesar del considerable tamaño de las salas, quedó muy reducida, y la vista era solicitada por la impresión de las columnas individuales. (tradução livre)
237
RIEGL, Alois cit in Idem, p.478 238
Cfr. Idem, p.165
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Fig.7 A luz solar é filtrada por uma pequena abertura na parte superior do Templo de Hórus e Sobek em Kom Ombo. Construído entre 180 e 145 a.C., foi o único templo edificado para prestar culto a duas divindades. Fig.8 Parede de um templo egípcio, coberta de hieróglifos que ganham vida com a luz solar. Fig.9 Reminiscênsias das cores garridas egípcias no Templo de Ramsés III em Medinet Habu.
que esta divisão (a câmara mortuária) esteja a 43 metros acima das colinas de areia, iluminadas pelo sol, dá a impressão de estar nas profundezas da terra... era a escuridão de um túmulo, associado a um silêncio de morte239 (descrição da visita e consequente experiência do túmulo de Kéops). O impacto da arquitectura egípcia reside não só na sua monumentalidade, mas também no mistério e ligação ao oculto que os seus interiores sugerem, atribuindo-lhes uma essência penetrante. Mas, o recurso à luz não se baseava na iluminação propriamente dita, mas sim no simbolismo associado ao renascimento. Intimamente ligada ao culto do sol, tinha um papel muito importante para a arquitectura e uma significação mais profunda e necessária. Sempre que um templo era concluído, era submetido a um ritual, em que as suas colunas, paredes e relevos eram trazidos à vida pela luz (fig.6 e 7), assim como as estátuas dos deuses que jaziam no edifício eram ressuscitadas sempre que o dia nascesse e os raios de sol penetrassem o santuário, como se fossem manifestação divina. Perante esta devoção na concepção espacial, aprenderam a manipular a luz na perfeição, bem como a sombra240. A ornamentação presente na arquitectura procurava impregnar as construções de simbolismo, através do recurso a materiais como diferentes tipos de pedra ou metal, e através da gravação de hieróglifos em quase todas as superfícies das edificações, quer interiores quer exteriores, com mensagens sobre a vida, força ou estabilidade. Recorriam à evocação de esculturas e objectos que consideravam sagrados, associando a sua existência à vontade dos deuses241. Os templos eram intensamente coloridos, contrastando cores como o castanho, o amarelo e o vermelho com os intensos azuis e verdes, retratanto assim o carácter optimista egípcio (fig.9). As suas opções cromáticas tinham objectivos claramente estéticos, mas representavam uma simbologia específica, associando as cores a diversos significados: o verde constituía prosperidade e crescimento, o dourado simbolizava a eternidade, o vermelho representava o medo, o amarelo simbolizava a mulher e o castanho o homem, existindo ainda mais cores e respectivas significações. Os egípcios consideravam importante o tratamento da pele, fosse a pele humana propriamente dita, ou o revestimento dos edifícios, pintando não só as paredes mas também o próprio corpo.
239 It was one of the most sinister apartments I have ever entered, a really horrible place, and I could well believe it might be haunted (...). Although this room (the burial chamber) is 140 feet above the level of the sunlit sandhills outside, it gives the impression of being in the depths of the earth... It was indeed the darkness of the grave, and joined to the darkness of the silence of death. (tradução livre)
NUTTGENS, Patrick - The Story of Architecture. 2ªed. London: Phaidon Press Limited, 1997. ISBN 071483615 (H/b) Cfr. CENIVAL, Jean-Louis; STIERLIN, Henri - Egypt. Lausanne: Benedikt Taschen Verlag GmbH, [1987-1990]. ISBN 3-8228-9306-4. p.91 240
241
Cfr. Idem, p.87
133
Fig.10 Templo de Hatshepsut em Deir-el-Bahari, construĂdo entre 1473 e 1458 a.C. Fig.11 Planta do Templo de Hatshepsut.
A arquitectura egípcia gozava de uma harmonia extraordinária com a paisagem em que se inseria. Os templos, com as suas formas simples, proporções limpas e extensas, coberturas horizontais, reflectem a progressão calma e o domínio das linhas horizontais das escarpas242. Nunca foi possível entender se esta convivência tão concordante entre construção e natureza era intencional, ou uma influência inconsciente da paisagem e da topografia nos seus habitantes. Sendo um resultado consciente ou não, o Templo de Hatshepsut em Deir-el-Bahari é um bom exemplo de arquitectura perfeitamente adaptada à sua envolvente, dando origem a uma percepção contraditória do seu conjunto: apesar da sua monumentalidade visual, dissolve-se na escarpa (fig.10). Norberg-Schulz refere o avanço notório na concepção deste templo, referente à materialização do espaço organizado axialmente: o sistema ortogonal foi executado como uma sequência aberta de colunas e vigas, verificando-se uma ordem abstracta repetitiva, contrária à habitual concepção maciça da maioria dos templos. A sua organização obedece a um eixo longitudinal, ao longo do qual se dispunham os três terraços e as largas rampas de acesso centralizadas, exibindo uma imponente repetição de colunas243 (fig.11). Esta estrutura específica visava, como já foi referido, implementar o sentido de movimento, oferecendo ao homem uma experiência contínua do espaço. Intensificando a ideia de não haver limites, o templo evidencia-se pela completa fusão com a envolvente. Os terraços encontravam-se integrados nas variações de cota do terreno, como se tivessem sido esculpidos directamente na montanha, enquanto a pedra utilizada na sua construção, produz um resultado cromático e textural semelhante ao da envolvente. Embora todas as manifestações arquitectónicas com funções religiosas partilhem de uma existência magnífica, as pirâmides são, sem dúvida, o expoente da construção egípcia. Sujeitas a uma evolução relativamente significativa, as primeiras manifestações eram constituídas por um tronco piramidal e uma base rectangular, como se pode verificar na pirâmide organizada em degraus, de Zoser em Saqqara. Mas, é nos túmulos reais em Gizé (fig.12), datados entre 2680 e 2560 a.C., que as intenções egípcias atingiram a sua realização
máxima. As Pirâmides de Gizé são, segundo Leland M. Roth, o culminar da edificação piramidal, que jamais viria a ser superada por outra edificação egípcia244.
242 The temples, with their simple shapes, extended proportions and clean, horizontal rooflines, echo the calm progression and dominating horizontal lines of the cliffs. (tradução livre)
CENIVAL, Jean-Louis; STIERLIN, Henri - Egypt. Lausanne: Benedikt Taschen Verlag GmbH, [1987-1990]. ISBN 3-82289306-4. p.88 243 Cfr. NORBERG-SCHULZ, Christian - Arquitectura Occidental. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, SL, 2004. ISBN: 84-252-1805-5. p.17
Cfr. ROTH, Leland M. – Entender la arquitectura: sus elementos, historia y significado. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, SA, 2005. ISBN 84-252-1700-8. p.172 244
135
Fig.12 e 13 Pirâmides de Gizé, construídas entre 2680 e 2560 a.C.. As três pirâmides correspondem aos túmulos dos faraós da quarta dinastia, Kéops, Kefrén e Mikerinos.
As
três
pirâmides
encontram-se
plenamente
desenvolvidas,
conjugando
harmoniosamente a horizontalidade das suas bases, com a verticalidade dos seus vértices, enquanto as suas faces se encontram perfeitamente orientadas de acordo com os quatro pontos cardiais. As estruturas mais pequenas que lhes são associadas, demonstram o mesmo enquadramento formal, inequívoco e elementar. A Pirâmide de Kéops é, possivelmente, a maior massa de pedra que alguma vez foi construída pelo homem. As suas medidas originais são assombrosas, elevando-se a 146,6 metros de altura, enquanto a sua base ocupa aproximadamente cinco hectares. Leland M. Roth245 estabelece uma referência que torna possível uma melhor compreensão das medidas previamente descritas, referindo que dentro da sua área caberiam as Catedrais de Florença e Milão, a Basílica de São Pedro de Roma, a Catedral de São Paulo e a Abadia de Westminster em Londres, e ainda sobraria espaço. As Pirâmides de Gizé caracterizam-se por representarem o auge das formas puras e simples, mas a sua importância no contexto da arquitectura egípcia reside na sua intensa carga simbólica: a ligação extrema entre o terreno e o divino. Este impulso de ligar o destino humano com a eternidade é materializado pelo formato piramidal da sua estrutura que, quando visualizado pelo observador não é percepcionado enquanto volume, mas sim como um plano triangular, o símbolo máximo da ascensão divina (fig.13). Assim, as pirâmides, mais do que servirem de túmulo, contribuíam para alimentar uma experiência visual específica do conjunto, com um impacto emocional significativo246. A exposição à luz solar encarregavase de ir salientando os diversos planos que constituem as pirâmides ao longo do dia. Reforçando a sua carga simbólica, as pirâmides apoiam-se num princípio de sucessivas dualidades formais. Contrastam a sua verticalidade com a horizontalidade eterna do deserto e da sua própria base, e com o seu carácter megalítico. Assim, apesar da sua escala monumental, do recurso a um material que normalmente intensifica o peso visual de uma construção, as pirâmides assumem uma presença dinâmica e leve, como se fossem parte integrante do deserto. Em parte, esta condição justifica-se pelo material que a reveste. A escolha da pedra presente nas diversas construções egípcias e, essencialmente, nas pirâmides, era feita com o intuito de intensificar a sua presença visual, reflectindo a luz do sol, apesar da sua textura rugosa247: construções megalíticas de formas puras que quase tocam o céu e que, paralelamente, brilham e fundem-se no dourado da planície arenosa. Os
Cfr. ROTH, Leland M. – Entender la arquitectura: sus elementos, historia y significado. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, SA, 2005. ISBN 84-252-1700-8. p.174 245
Cfr. GIEDION, Sigfried - El presente eterno: Los comienzos de la arquitectura. 3ªed. Madrid: Alianza Editorial, 1992. ISBN 84-206-7999-2. p.475 e 476 246
247
Cfr. Idem, p. 475 e 476
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espaços interiores surgem como se resultassem de escavações dentro das grandes massas de pedra que são as pirâmides. Mais uma vez, o espaço interior visa responder a uma função muito específica e não transmitir uma sensação de estar, de habitar. Não obstante, a forma essencial continua a ser o símbolo vigorosíssimo e semiconcreto da pirâmide, que unifica a montanha primitiva com o sol radiante (…). A sua síntese de poder megalítico elementar e estereometria eterna transmite, uma mensagem humana de significação arquetípica248. A arquitectura egípcia foi, então, a manifestação material das crenças de um povo que viveu uma realidade muito distinta da actualidade e, efectivamente, muito especial. As condições geográficas de que dispunham, associadas ao facto de terem persistido mais de 3000 anos, onde homem e natureza eram unos e a religião não era uma parte, mas sim a vida de cada egípcio, formularam as bases e princípios que moldaram a sua arquitectura. A simplicidade geométrica formal e espacial adquirida pela métrica que sol e rio estabeleciam, assim como as dimensões poderosas que melhor serviam a materialização da presença divina na terra, permitiram criar edificações magníficas, cuja experiência era intensificada pela decoração, iluminação e articulação espacial. Os egípcios procuravam um ritmo eterno, uma ordem colossal e tornaram-nas possíveis através de uma interpretação realista e paralelamente criativa das suas condições249. O resultado eram vivências espaciais de continuidade, onde os limites entre o interior e o exterior, entre o terreno e o divino, se encontravam esbatidos. Mas, a importância da sua condição arquitectónica residia principalmente na experiência visual resultante da conjugação dos seu volumes megalíticos no deserto e do carácter misterioso dos interiores dos templos. Não consideravam as suas partes, mas sim a experiência arquitectónica e simbólica do todo.
248 No obstante, la forma esencial sigue siendo el símbolo vigorosísimo y semiconcreto de la pirâmide, que unifica la montaña primigenia com el sol radiante (…). Su síntesis de poder megalítico elemental e estereometría eterna transmite aún un mensaje humano de significación arquetípica. (tradução livre)
NORBERG-SCHULZ, Christian - Arquitectura Occidental. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, SL, 2004. ISBN 84-2521805-5. p.16 249
Idem, p.23
3.2 | EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO NA ARQUITECTURA TRADICIONAL JAPONESA: HARMONIA SENSORIAL
No Período Edo ou Era Tokugawa250, compreendido entre 1603 e 1868, durante o governo dos Tokugawa251 em Edo, actualmente denominado Tóquio, foi implementada uma política de reclusão. Devido a razões políticas vigentes, o Japão fechou-se às influências externas, isolando-se do desenvolvimento intelectual, tecnológico e científico europeu, facto possibilitado pela condição geográfica que lhe é inerente: a de ser um arquipélago. Foi nesse período específico que o Japão desenvolveu e preservou, quase até ao final do século XIX, uma tradição cultural, estética e artística, e uma mentalidade absolutamente originais. Consequentemente, a arquitectura tradicional japonesa assumiu-se (e assume-se) exclusiva, singular e peculiar. André Corboz invoca a importância de um desenvolvimento em contexto político e económico feudal, numa sociedade que desconhece o conceito de individualismo, associado a um clima volúvel e a uma exposição intensa a desastres naturais, essencialmente terramotos e tufões. Assumindo o grupo complexo de variáveis previamente referido, é de salientar a profunda relação e associação que a arquitectura estabelece com a natureza, a simplicidade e flexibilidade da concepção e compreensão espacial, bem como a subtileza sensorial que lhe é inerente. Henri Stierlin justifica em Architecture of the world – Japan que o carácter sensível e susceptível, assim como intuitivo e emocional da mentalidade japonesa, deve-se às variações climáticas instáveis: quer tropical ou glacial, continental, oceânico ou sazonal, bem como abrupto, no caso dos tufões (…) os japoneses não têm liberdade de escolha; todo o clima é dado: é um facto físico, e actual252. Como tal, dificilmente são estabelecidos vínculos. Uma vez que num regime feudal a acumulação de riqueza não se proporcionava, era natural que essa condição se reflictisse na capacidade de viver sem recurso a mobiliário, apenas
250 Perído Edo é uma divisão da história do Japão marcada pelo regimento do Xogunato Tokugawa, estado feudal de poder centralizado e autoritário. Caracterizado pelo isolamento do Japão (renuncia ao comércio marítimo ou a qualquer tipo de contacto com o exterior) e pela perseguição e expulsão de estrangeiros e respectivas manifestações religiosas, adquiriu um estilo cultural inigualável, desenvolvendo, paralelamente, um alto nível educacional no país, baseado nas premissas da honra e da verdade.
Cfr. COLLCUTT, Martin; JANSEN, Marius; KUMAKURA, Isao - Japão: O império do sol nascente. Lisboa: Círculo de Leitores Lda, 1992. ISBN 972-42-0580-0 251
Xogunato ou Bakufu é o termo utilizado para governo militar, cuja administração cabe a um Xogum (marechal imperial)
Cfr. Idem 252 Both tropical and frigid, continental, oceanic and seasonal, as well as sudden, in the case of the typhoon (…) but the Japanese has no freedom of choice; the entire environment is given: it is physical fact, and actual. (tradução livre)
STIERLIN, Henri; MASUDA, Tomoya - Japan. Lausanne: Benedikt Taschen Verlag GmbH [1987-1990]. ISBN 3-8228-9658-6. p.9
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Fig. 14 Habitação da família Chiba, na cidade de Tono. Fig. 15 Exemplos, em planta, da organização das habitações tradicionais japonesas.
com o indispensável, procurando situações espaciais flexíveis para albergar grandes famílias em pequenas dimensões (fig.15). Relativamente à relação intensa que a arquitectura japonesa estabelece entre o interior e o exterior, Heinrich Engel defende que a adoração e respeito pela natureza actuais terão emergido do receio que os primeiros japoneses manifestavam perante as exigências climáticas e o desconhecido, tendo resultado, mais tardiamente, em veneração. No entanto, contrariamente ao ocidente, onde os ensinamentos cristãos dissolveram a veneração da natureza (…) no Oriente, o Budismo refinou a identificação precoce do homem com os animais e a natureza, e estabeleceu com a mesma uma unidade absoluta. No Japão, foi o ensino do Zen que estimulou tremendamente os sentimentos pela natureza, não só por intensificar a sensibilidade ambiental, mas também por providenciar um cenário metafísico e religioso que pudesse satisfazer a curiosidade crescente do homem na sua evolução intelectual253 . É possível compreender, tendo em conta o enquadramento histórico, social e cultural, que a essência tão característica e exclusiva da arquitectura tradicional japonesa, que ainda hoje desperta interesse na arquitectura ocidental devido às suas propriedades sensoriais e espirituais, bem como à sua simplicidade e flexibilidade espacial, não surgiu num contexto de materialização de crenças religiosas ou princípios filosóficos de vida. Segundo o autor supracitado, essas propriedades peculiares eram os lógicos, ainda que acidentais, resultados dos esforços para lidar com as condições climatéricas austeras e volúveis, e com as limitações rígidas impostas por um nível de vida pobre. Defende, portanto, que o gosto arquitectónico japonês ter-se-á cristalizado e afirmado no decorrer de uma expressão arquitectónica nascida da necessidade e da funcionalidade. Apesar da arquitectura japonesa englobar também santuários Shinto254, templos budistas e castelos feudais, as casas tradicionais japonesas (fig.14 e 15), denominadas Minka, são as que melhor traduzem a condição e tradição contextual arquitectónica previamente referida, pelo que se revela pertinente um breve estudo do domínio fenomenológico
253 However, contrary to the west, where the teaching of Christianity dissolved nature worship (…) in the East Buddhism refined the early identification of man which animal and nature and stated this absolute oneness. In Japan, it was especially the teaching of the Zen sect of Buddhism that tremendously stimulated the feeling for nature, not only by sharpening sensitivity to environment, but by providing the metaphysical and religious background that could also satisfy the growing inquisitiveness of man in his intellectual evolution. (tradução livre)
ENGEL, Heinrich - The japanese house – A tradition for contemporary architecture. 1ªed. Tokyo: Charles E. Tuttle, [1964]. ISBN 10: 0804803048. p.256 254 Shinto é a palavra japonesa para designar Xintuísmo (“Caminho dos Deuses”), distinguindo-se de entre as diversas crenças religiosas que influenciaram o Japão como a mais antiga e profunda. Tocou todos os aspectos da vida emocional nipónica, apelando à virtude da simplicidade e pureza de coração. Venera os Kami, divindades associadas à natureza e às forças do crescimento e da renovação.
Cfr. COLLCUTT, Martin; JANSEN, Marius; KUMAKURA, Isao - Japão: O império do sol nascente. Lisboa: Círculo de Leitores Lda, 1992. ISBN 972-42-0580-0
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Fig.16 Painéis deslizantes, opacos, essenciais para o controlo térmico e acústico, e para manter a privacidade. Habitação da família Ishii, na cidade de Yakage.
Fig.17 Habitação da família Toshima, na cidade de Matsuyama. A estrutura de madeira que suporta a cobertura está firmemente fixada com cordas.
Fig.18 Habitação da família Osumi, na cidade de Ritto. A varanda de cerca de um metro de largura situada em frente à entrada chama-se shikidai.
Fig.19 Estrutura em madeira para suporte da cobertura da habitação da família Kita, na cidade de Nonoichi.
sensorial que lhes é inerente255. Independentemente das suas origens, as características marcantes da arquitectura tradicional visam, além da funcionalidade e simplicidade, o apelo às emoções e à sensibilidade humanas. Todos os elementos que participam na concepção e construção do espaço são utilizados de acordo com a impressão sensorial que irá influênciar a vivência espacial do homem. Para a poder compreender integralmente, deve ter-se em consideração três factores: Primeiro, a forma ou material do objecto percebido pelos sentidos; segundo, a ideia, conteúdo ou significação espiritual do objecto; e, finalmente, o sujeito psicológico da experiência estética, isto é, o humano que contempla256. Complementando estes princípios que estabelecem a importância da ligação entre a arquitectura e a experiência humana, existe um conceito arquitectónico inerente às construções tradicionais designado shibui. Significa contraste, materializando-se em binómios como doce-amargo, luz-escuridão, simplicidade-refinamento, rude-suave. Como menciona Hengel, textura contrasta com geometria, cor contrasta com diferenciação, luz contrasta com distinção, procurando estabelecer, em conjunto, uma atmosfera harmoniosa de opostos. Assim, cada par destes elementos contrastantes produz uma expressão homogénea, sem ligação nenhuma ao carácter original de cada um dos elementos. O espaço arquitectónico característico do Japão tradicional é, essencialmente, discreto e delicado. Contrariamente a outros tipos de arquitectura estudadas neste capítulo, não são utilizadas manipulações que permitam intensificar determinada característica espacial, procurando, em vez disso, atenuar as evidências espaciais. Opta-se por assumir a veracidade dos elementos que constituem a habitação, maximizando as suas capacidades e qualidades. Uma das formas de materializar esta opção de expressividade arquitectónica é conseguida através da aplicação dos materiais com respeito pela sua textura natural: não se recorre a acabamentos da superfície e respeita-se a estereotomia que lhe é inerente, para que assim os materiais assumam a sua verdadeira identidade (fig.17 e 19). A madeira mostra a sua irregularidade material e o envelhecimento; as paredes de gesso expõem os seus
255 A palavra minka refere-se às habitações tradicionais habitadas pelo povo. Significa que se inserem na mesma categoria dos edifícios habitacionais contemporâneos e as habitações pré-fabricadas. Mas as minka aqui estudadas são as habitações tradicionais japonesas construídas em meados do período Edo (durante os anos de 1800) e o período Taisho (durante os anos de 1920). (tradução livre)
TAKAI, Kiyoshi - MINKA: The Quintessential Japanese House. 1ªed. Tokyo: F.T. Style, 1998. ISBN 4-309-90288-X. p.7 256 First, the form or material object as perceived by the senses; second, the idea, content, or spiritual significance of the object; and, finally, the psychological subject of aesthetic experience, i.e., the contemplating human. (tradução livre)
ENGEL, Heinrich - The japanese house – A tradition for contemporary architecture. 1ªed. Tokyo: Charles E. Tuttle, [1964]. ISBN 10: 0804803048. p.440
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Fig. 20 Habitação da família Nakamura, na cidade de Morioka. Os painéis opacos no fundo da divisão escondem o santuário Shinto. Fig. 21 Habitação da família Yoshijima, na cidade de Takayama. A sala de recepção é rodeada por painéis, constituídos por uma zona central translúcida, enquanto a restante é opaca. Os painéis podem ser removidos, caso seja necessário aumentar a área da sala. Fig.22 Habitação da família Ishii, na cidade de Yakage. A sala de recepção reflecte o estatuto social da família, denunciado pela dimensões superiores e pelo refinamento dos painéis divisórios.
ingredientes bem como as marcas do trabalho manual; os painéis translúcidos exibem as fibras do seu papel e os repetidos remendos das suas partes danificadas; e os tatame257 mostram o trançado de erva natural e o desgaste do uso258. Esta dimensão, mais natural, afirmase pela irregularidade dos materiais e contrasta com a precisão da técnica, procurando reconciliar-se com os sentidos humanos. Assim, ao passo que a rigidez das formas apela ao intelecto, a imperfeição característica do humano estimula e concebe harmonia emocional (fig.16 e 18). Invocando novamente o contexto de pobreza e circunstâncias técnicas muito
rudimentares, é devido a estas condições que os materiais assumem formas essencialmente geométricas e uma aparência inacabada. A harmonia e o jogo sensorial permitidos pelas texturas, pelas cores, pelos cheiros e pelas formas, foram, mais tarde, interpretados e consequentemente refinados. Os pormenores característicos de cada material procuram corroborar e complementar a atmosfera resultante: o uso do bambu no seu estado natural, de forma arredondada e brilhante, confere uma variação no ritmo geométrico dos restantes materiais (fig.23); a expressividade da parede de argila, cuja substância é a cor, a proporção, a textura e a decoração; os painéis de papel denunciam o passar do tempo pela casa, e envelhecem com o homem. Nada se evidencia no espaço japonês, uma vez que o objectivo é um resultado sereno. A cor, como é referido em The Japanese House, é um instrumento de mediação que contrasta com a composição e organização rígida do espaço (fig.20 e 21). Todos os componentes que definem o seu limite são diferenciados, afirmando claramente a sua função e individualidade. Mas, contrastando com esta discriminação formal, na tentativa de equilibrar a claridade intelectual que dela resulta, todos os elementos respondem a uma gama de cores semelhantes. As madeiras expostas, os tatame, os painéis de papel opacos e translúcidos, as paredes de argila, todos oscilam entre os castanhos, os ocres e os brancos, assumindo uma unidade cromática e contribuindo para uma atmosfera sóbria, mas quente e harmoniosa (fig.23). Apesar das diferenças evidentes de cada elemento, nada se distingue e tudo se insere na serenidade espacial que as condições cromáticas sugerem. Esta convivência com o carácter natural das coisas atribui à arquitectura japonesa uma leitura de harmonia e de sensibilidade perante o relacionamento do construído com a envolvente.
257 Tatame é o piso tradicional japonês, de formato e medida específicos, que consiste numa esteira de palha de arroz prensada. Começou por ser um tapete portátil para acomodar dois homens sentados ou um deitado, tendo-se tornado, mais tarde, no próprio piso. 258 The wood shows its irregular grain and the wear of age; the clay wall shows its individual ingredients as well as the imprint of handicraft; the translucent paper panel shows the fiber of its pulp and the repeated patching of its damaged parts; and the floor mats shows the braded work of the natural grass and the wear from usage. (tradução livre)
ENGEL, Heinrich - The japanese house – A tradition for contemporary architecture. 1ªed. Tokyo: Charles E. Tuttle, [1964]. ISBN 10: 0804803048. p.440
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Fig.23 Habitação da família Kitamura, exposta no museu ao ar livre Nihon Minkaen. Fig.24 Akari-Shoji. Painéis deslizantes que, contrariamente aos coloridos fusuma-gama, têm sempre o papel de arroz branco. São usados para trazer luz para os interiores.
Fig.25 Os Akari-Shoji denunciam a importância da família japonesa e respectiva habitação, através do primor do trabalho decorativo na madeira.
Fig.26 Entrada da habitação da família Okuda, na cidade de Osaka.
Fig.27 Entrada da habitação da família Ishii, na cidade de Yakage. A sucessão de cordas não permite ver o interior a partir do exterior.
A manipulação da luz funciona conjuntamente com os restantes factores na procura de uma expressão arquitectónica simples. Na arquitectura ocidental contemporânea, Hengel verifica uma discrepância entre a estrutura técnica e linear, e a mobília e decoração abundantes, ambas acentuadas por uma luz directa, ofuscante, da qual resultam sombras pronunciadas. Contrariamente, na habitação tradicional japonesa, a luminosidade é dissipada e subjugada. A distribuição da luz é feita pelas varandas que circundam a casa, cuja exposição é controlada pelas amplas saliências do telhado ou difundida pelos painéis de papel translúcidos (fig.24 e 25). Kiyoshi Takai refere o efeito pacífico, mas também mágico, das sombras das árvores reflectidas nos painéis em dias claros, enquanto as suas silhuetas balançam ao sabor do vento e geram formas bizarras, conferindo uma atmosfera luminosa peculiar. Mas, o papel da manipulação da luz não é exclusivo dos shoji-gami e fusuma-gami259. As entradas principais, normalmente compostas por portas deslizantes de dois metros de largura, devido à dificuldade de mobilização resultante do seu peso, permanecem abertas todo o dia. Enquanto protecção do vento e da curiosidade clandestina, e para mediar a entrada de luz que os grandes vãos permitem, são utilizadas cortinas de corda ou tecido, denominadas noren (fig.26 e 27). Sem brilhos intensos e sem sombras, permitem a criação de uma atmosfera tranquila. A dureza e rigidez da expressão geométrica sob essa influência é suavizada, e a severidade transforma-se em serenidade260. Se a luz é manuseada na busca da atenuação, a temperatura não encontra nenhuma barreira aquando da sua invasão. A casa japonesa nunca é aquecida, sendo constantemente cúmplice das condições ambientais em vigor. As barreiras térmicas não constam da composição arquitectónica, uma vez que o vidro só começou a ser utilizado no século XIX e o recurso aos painéis de papel é superior ao das paredes de argila, enquanto definidores de espaço (fig.28). A sensibilidade japonesa compactua com as variações térmicas e, consequentemente, com a natureza. Os painéis de papel deslizantes podem ser abertos para o jardim, sem efeitos adversos, em qualquer altura do ano, se for desejada uma vista para o exterior261 (fig.29 e 30).
259
Painel de papel translúcido e painel de papel opaco, correspondentemente.
Harshness and rigidity of geometric expression under such an influence become softened, and stern severity turns into serenity. (tradução livre) 260
ENGEL, Heinrich - The japanese house – A tradition for contemporary architecture. 1ªed. Tokyo: Charles E. Tuttle, [1964]. ISBN 10: 0804803048. p.443 261 The paper-covered sliding doors can be opened to the garden without adverse effects at any time of the year if a view to outside is desired. (tradução livre)
Idem, p.31
147
Fig.28 Habitação da família Toshima, na cidade de Matsuyama. Fig.29 Painel translúcido com aberturas para o exterior. Habitação da família Ogawa, na cidade de Kyoto.
Fig.30 Habitação da família Sasagawa, na na aldeia de Ajikata.
Fig.31 Habitação da família Uchiyama, na cidade de Toyama. O corredor exterior conduz a um mirante de forma quadrada, espaço destinado à observação da lua.
Fig.32 Habitação da família Yoshida, na cidade de Kyoto. O corredor serve de ligação entre a loja e os espaços privados da família de comerciantes.
E, da mesma forma que a habitação japonesa não oferece resistência térmica, também convive harmoniosamente com o som. Não lhe são impostos limites, uma vez que os diversos sons e o silêncio são entendidos como benesses sensoriais. O isolamento é um ritual essencial na vida japonesa, permitindo desfrutar de momentos de serenidade, meditação e elevação espiritual, em que o silêncio assume um papel importante no processo, sendo originado, não pela existência de barreiras acústicas mas sim pelo respeito das pessoas pelo ritual. Da mesma forma que apreciam o silêncio, identificam nos simples sons provenientes da natureza, água a pingar ou o uivo do vento, ou nos sons do dia-a-dia, como o som da chaleira a ferver ou de passos no tatame, a capacidade de purificação da mente humana262. Todos estes elementos atribuem ao espaço um valor teatral que transcende o seu entendimento básico. Tudo sugere a exaltação sensorial mas, ao mesmo tempo, a tranquilidade da alma. Devido ao seu contexto socioeconómico, os japoneses compreendem perfeitamente que o espaço é um requisito primário, fundamental para o conforto humano. Mas, enquanto na arquitectura ocidental o elemento humano é representado através de mobiliário e decoração, e as memórias residem nas fotografias e pinturas, sem que a presença do homem seja imediatamente necessária, o espaço japonês obtém significação, apenas, através da presença imediata do homem. O homem assume-se como uma componente essencial, em que a arquitectura é somente construção que o sustenta. O espaço japonês não se resume, apenas, ao construído, constituindo uma relação íntima, básica e necessária com o exterior. Esta devoção e admiração pela natureza constitui, como recorda Heinrich Engel, as bases filosóficas da relação entre a casa e o jardim no Japão, expressando, de forma convincente, a relação física, funcional e espacial da casa com o exterior. O jardim pode constituir um plano exterior que assegura a intimidade e protege a casa da exposição solar veemente, providenciando sombra e frescura ou absorvendo as chuvas intensas (fig.31 e 32). Serve, também, como elemento transitório entre o interior e o exterior, assegurando através da sua delimitação espacial, a segurança e serenidade da escala humana inerente ao espaço arquitectónico263. Mas, apesar de todas estas funcionalidades consideradas mais práticas, a principal função do jardim japonês é satisfazer as necessidades psicológicas que o homem tem de presenciar beleza e viver harmoniosamente. A sua arte dos jardins reside em parte no facto de, na sua percepção do espaço, os japoneses aplicarem não apenas a vista, mas o conjunto
Cfr. ENGEL, Heinrich - The japanese house – A tradition for contemporary architecture. 1ªed. Tokyo: Charles E. Tuttle, [1964]. ISBN 10: 0804803048. p.278 e 284 262
263
Cfr. Idem, p.258
149
Fig.33 Jardim da habitação da família Watanabe, na cidade de Sekikawa. Fig.34 Jardim da habitação da família Kamihaga, na cidade de Uchiko.
dos outros sentidos. Os cheiros, as variações de temperatura, a humidade, a luz, a sombra e a cor, todos estes elementos se combinam de maneira a exaltar a participação sensorial do corpo inteiro264. Como refere Kiyoshi Takai, os jardins contêm uma grande variedade de elementos naturais, bem como objectos manufacturados pelo homem, normalmente em pedra, como esculturas, lavatórios, lanternas e pequenos trilhos (fig.33). Perante a sua constituição, podem nascer estímulos em todo o lado: as árvores e plantas pintam o cenário de verdes, vermelhos e amarelos, contrastando com os cinzentos e os castanhos da pedra e da madeira; o vento sacode as folhas e os ramos, criando uma musicalidade que soa e invade todos os espaços; a água espelha a beleza envolvente. A essência dos jardins japoneses abrange uma materialidade e funcionalidade espirituais, em que não é propriamente o conteúdo que importa, mas sim o que ele tem para acrescentar à vida humana. O objectivo principal da paisagem dos jardins é revelar os mistérios da natureza e da criação265 (fig.34). A experiência do espaço arquitectónico japonês invoca a participação e a entrega completas do homem ao que o rodeia. Os limites espaciais e pessoais encontram-se esbatidos devido ao carácter mutável e flexível das divisões, bem como à comunhão entre o exterior e o interior, como se um fosse a continuação do outro. Os materiais mantêm a sua essência original, as cores seguem as directrizes da envolvente natural e a luz envolve suavemente os espaços, onde a temperatura se faz sentir sem manipulações térmicas. A arquitectura japonesa evidencia-se pelo relacionamento de delicadeza quer entre os valores que a constituem, quer com o homem e a envolvente. Todas as suas partes se relacionam para a criação de um todo que existe, não enquanto uma afirmação construída e presente, mas sim como uma extensão da existência e convivência do homem com a natureza.
264
HALL, Edward T. - A Dimensão Oculta. 1ªed. Lisboa: Relógio d´Água Editores Lda, [1986]. ISBN 972-708-123-1. p.174
265
The ultimate aim of the landscape garden is to reveal the mysteries of nature and creation. (tradução livre)
ENGEL, Heinrich - The japanese house – A tradition for contemporary architecture. 1ªed. Tokyo: Charles E. Tuttle, [1964]. ISBN 10: 0804803048. p.257
151
3.3 | A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO NA ARQUITECTURA BARROCA: ÊXTASE TEATRAL
O edifício do renascimento é para ser admirado na sua esplêndida perfeição individual. O edifício do barroco só pode ser apreendido através da experimentação pessoal de toda a sua variedade de efeitos (...) O espaço barroco é independente e vivo: flui e conduz os espectadores a culminações266.
Os séculos XV e XVI compreenderam um período caracterizado por uma mutação significativa do pensamento humano: abandonavam-se os conceitos medievais de temor e
reverência divina absoluta, para abraçar os princípios do Humanismo267 e atribuir
renovada importância ao papel do ser humano e ao seu direito do livre arbítrio. Foi com base nesta metamorfose intelectual e respectivas premissas que surgiu o movimento Barroco, entre finais do século XVI e finais do século XVIII, marcado por conflitos sociais, guerras e lutas religiosas, e caracterizado por fortes contradições: ser e parecer, ostentação e ascetismo, poder e debilidade. Nascido num contexto tão intenso e instável, o Barroco foi metaforicamente associado a um grande teatro, o teatro do mundo, assumindo-se como uma manifestação de grandes sistemas, nomeadamente a Igreja Católica Romana e o Governo Absolutista Francês. A auto-dramatização do soberano, quer fosse o Papa ou o Rei, surgiu como resposta a uma vontade superior, divina, procurando assim simbolizar uma força irradiante de poder ilimitado e, ao mesmo tempo, de rigor e organização. Os homens actuam como actores na presença de Deus e da corte celestial; a obra que interpretam é a sua própria vida e o cenário é o mundo268. Assim, todos os acontecimentos públicos viviam
266 El edificio del renacimiento está para ser admirado en su espléndida perfección individual. El edificio del barroco sólo puede ser aprehendido a través de la experimentación personal de toda su vairedade de efectos (...) El espacio barroco es independiente y vivo: fluye y conduce a espectaculares culminaciones. (tradução livre).
MILLON, Henry A. cit in ROTH, Leland M. – Entender la arquitectura: sus elementos, historia y significado. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, SA, 2005. ISBN 84-252-1700-8 267 1. Hist. Conjunto de ideias e movimentos que atingem o seu apogeu no século XV e XVI, em que, através do estudo de autores greco-latinos e à semelhança de grandes modelos de sabedoria clássicos, o Homem pretendia desenvolver e valorizar as suas capacidades físicas, morais e intelectuais. (…) 2. Concepção ideal do mundo ou da existência que coloca no seu centro o ser humano. A ideia do humanismo radica no pensamento de Protágoras: o homem é a medida de todas as coisas.
Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea. Academia das Ciências de Lisboa e Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa: Verbo, 2001. ISBN 972-22-2046-2. p.2010 268 (...) los hombres actúan como actores en presencia de Dios Padre y de la corte celestial; la obra que interpretan es su propria vida y el escenario es el mundo. (tradução livre)
BORNGÄSSER, Barbara; TOMAN, Rolf in TOMAN, Rolf (ed.) - El Barroco: arquitectura, escultura, pintura. Köln : Könemann, 1997. ISBN 3-89508-920-6. p.7
de acordo com a eloquência social, realizando-se pomposos desfiles e materializando-se plasticamente as crenças de uma forma triunfal e exuberante. As manifestações artítiscas eram utilizadas como instrumentos de condução do pensamento das pessoas, com objectivos mais profundos de sugestão e persuasão. Serviam para impressionar, e até ofuscar, criando assim a ilusão de um mundo perfeitamente ordenado. A Igreja recorria à representação pictórica como meio de comunicação mais directo do que a demonstração lógica dos factos, o que se tornava mais acessível ao povo maioritariamente analfabeto, enquanto as monarquias absolutistas organizavam grandes festas e cerimónias para, desta forma, demonstrarem o seu triunfo e poder. O Barroco é a libertação espacial, é libertação mental das regras dos tratadistas, das convenções, da geometria elementar e da estaticidade, é libertação da simetria e da antítese entre espaços interior e exterior269. A persuasão arquitectónica que Bruno Zevi apelidou de jogo de difusão cultural270 almejava, essencialmente, a participação. Na grande representação barroca, independentemente da sua posição social, cada um tinha um papel a assumir. E, uma vez que a participação pressupõe imaginação, faculdade que se educa através da arte, as diversas manifestações artísticas existentes adquiriram um papel vital na concepção espacial barroca271. Como consequência, a arte barroca concentra-se em imagens vividas de situações reais e surreais, mais do que na história e na forma absoluta. Descartes disse: O encanto das fábulas desperta a mente272. Era objectivo primordial dos artistas barrocos envolverem o espectador numa atmosfera de dramatismo e excitação, pensando ser a melhor opção comunicar os seus ideais através da vitalidade da arte. Assim, o Barroco dirigia-se aos sentidos do homem, principalmente à visão, procurando ampliar e aprofundar, acima de tudo, o fenómeno da experiência que permitiu ao homem tornar-se mais consciente da sua existência. Os princípios arquitectónicos contrariavam o universo geometricamente ordenado do Renascimento, para assumirem uma concepção baseada no binómio do dinamismo e sistematização. Ainda que os edifícios se caracterizem pela sua riqueza plástica, espacial, revelam sempre uma organização metódica. A necessidade de pertencer a um sistema
269
ZEVI, Bruno - Saber ver a arquitectura. 5ªed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. ISBN 85-336-0541-2. p.114
270
Idem, p.115
271
Cfr. NORBERG-SCHULZ, Christian – Arquitectura Barroca. Madrid: Aguilar S A ediciones, 1972. ISBN 8403330243. p.12
En consecuencia, el arte barroco se concentra en imagines vivaces de situaciones, reales e subreales, más que en la história y la forma absoluta. Descartes dijo: El encanto de las fábulas despierta la mente. (tradução livre) 272
Idem, p.12
153
Fig.35 Fachada da Igreja San Carlo alle Quattre Fontane, em Roma, projectada por Francesco Borromini e construída entre 1638 e 1677.
Fig.36 Pormenor do carácter dramático que a linha curva atribui à fachada da Igreja San Carlo alle Quattre Fontane.
Fig.37 Planta da igreja. A fachada espelha o dinamismo curvo dos interiores.
Fig.38 Pormenor da fachada.
absoluto e integrado, mas aberto e dinâmico, foi a atitude fundamental da época Barroca273. As adversidades da época nem sempre eram mascaradas pela sumptuosidade teatral, havendo a necessidade de recordar que a par da ostentação material existia a seriedade profunda da fé e a par da fruição desinibida existia a consciência inevitável da morte274. A fulgência do Barroco, segundo Bruno Zevi, não residiu na reinterpretação de esquemas que lhe eram anteriores, mas sim na criação de uma nova concepção espacial. Zevi reforça que o entendimento da arquitectura barroca, enquanto expressão artística unitária, não significa apenas libertar-se do conformismo classicista, aceitar a ousadia, a coragem, a fantasia, a mutabilidade, a intolerância dos cânones formalistas, a multiplicidade de efeitos cenográficos, a assimetria, o acordo orquestral de arquitectura, escultura, pintura, jardinagem, jogos de água275, mas sim compreender o seu espaço. A experiência da arquitectura barroca vivia da articulação espacial, dominada pelo movimento e pela interpenetração e por uma dialética constante entre o real e o aparente. Renunciou à linha, ao plano, às formas fechadas e à clareza, para se entregar ao êxtase cromático da mancha, à profundidade, às formas abertas e à imprecisão276, procurando assim proporcionar vivências transcendentes e extremamente emotivas. Patrick Nuttgens dividiu a essência barroca em três acções distintas. Refere-se, primeiramente, ao abandono da simetria e do equilíbrio, procurando uma leitural geral de concentrações formais vigorosas, que proporcionassem impacto visual devido à sua forte carga expressiva. Por forma a complementar esta recusa de um registo estático, a segunda acção barroca negava as formas lineares, regulares e simples, para se entregar a um registo formal turbulento e dinâmico: curvas e contracurvas, fachadas ondulantes e planos ovais277. A fachada da Igreja San Carlo alle Quattro Fontane em Roma (fig.35), projectada por Francesco Borromini e construída entre 1638 e 1677, foi das primeiras fachadas onduladas do Barroco, materializando o superlativo e o extravagante que se desejava. Apesar de dispor de pouco espaco, a fachada da igreja contorce-se como se fosse influenciada por forças interiores e exteriores (fig.37), assumindo-se como uma forma plástica autónoma. A sua afirmação sinuosa invade não só o espaço interior, mas extende-se também ao
La necesidad de pertenecer a un sistema absoluto e integrado, pero abierto e dinámico, fue la actitud fundamental de la época barroca. (tradução livre)
273
NORBERG-SCHULZ, Christian – Arquitectura Barroca. Madrid: Aguilar S A ediciones, 1972. ISBN 8403330243. p.10 Cfr. BORNGÄSSER, Barbara; TOMAN, Rolf in TOMAN, Rolf (ed.) - El Barroco: arquitectura, escultura, pintura. Köln: Könemann, 1997. ISBN 3-89508-920-6. p.7 274
275
ZEVI, Bruno - Saber ver a arquitectura. 5ªed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. ISBN 85-336-0541-2. p.115
Cfr. NUTTGENS, Patrick - The Story of Architecture. 2ªed. London: Phaidon Press Limited, 1997. ISBN 071483615 (H/b). p.204 e 205 276
277
Idem, p.204 e 205
155
Fig.39 Basílica de Vierzehnheiligen, na Alemanha. Projectada por Balthasar Neuman e construída entre 1743 e 1472. Fig.40 Pormenor do interior da basílica.
espaço urbano, recortando-o e caracterizando-o. A intensidade dramática do conjunto é reforçada pelos motivos decorativos e pelas cornijas em perspectiva (fig.36 e 38) que, em vez de entrarem em contradição com a estrutura, cumprem uma função significativa análoga278. Por último, Patrick Nuttgens refere a capacidade barroca de transformar um edifício ou um espaço urbano num acontecimento teatral. A característica mais marcante do Barroco foi a criação magnífica de ilusões através de jogos espaciais e formais que, recorrendo à manipulação sensorial, criavam realidades fantásticas, em que verdade e mentira conviviam como iguais. Na tentativa de levar a experiência mística dos espaços ao seu expoente, a arquitectura deixa de se assumir como elemento autónomo, actuando de forma combinada e interpenetrando-se com todos os género artísticos, essencialmente a pintura e a escultura279. Este conceito de fusão das artes foi denominado por vários autores obra de arte total, cujo objectivo primordial era esbater o limite que dividia a realidade tridimensional da ilusão. Permitia, assim, experienciar a ambiguidade espacial criada pela fusão do real com o virtual. A arquitectura como marco racional independente, transformou-se numa fusão das artes ao serviço da propagação de uma ideia280. A concepção espacial acentava, então, num princípio essencialmente pictórico. Procurava criar uma realidade imensurável, ilimitada e dinâmica que desse origem a uma espacialidade profunda, composta por elementos aparentemente arbitrários ou incompletos, produtos do fantástico. Para que esta atmosfera se proporcionasse, recorria-se à sobreposição de planos, em que era definido um primeiro plano magnífico, constituído por diferentes objectos aparentemente alcançáveis, que criavam uma ligação de proximidade com o observador, justaposto a outros planos mais recuados e de dimensões reduzidas (fig.39). Utilizava-se, igualmente, o escorço pronunciado e as perspectivas multifocais com o intuito de criar um entendimento complexo e ambíguo do espaço, definindo uma dispersão perspéctica que induzia um entendimento espacial confuso. A manipulação destes instrumentos conduzia a uma liberdade e uma euforia espacial intensas, com o intuito de derrubar todas as regras preestabelecidas e proporcionar vivências que tocassem profundamente o homem. O que eu acho mais maravilhoso de tudo é a perspectiva, que
Cfr. CHECA CREMADES, Fernando; MORÁN TURINA, José Miguel - El Barroco. Madrid: Ediciones Istmo, 2001. ISBN 84-7090-122-2. p.80 278
Cfr. BORNGÄSSER, Barbara; TOMAN, Rolf in TOMAN, Rolf (ed.) - El Barroco: arquitectura, escultura, pintura. Köln: Könemann, 1997. ISBN: 3-89508-920-6. p.8 279
La arquitectura como marco racional independiente se há transformado en una fusión de las artes al servicio de la propagación de una idea. (Tradução livre)
280
ROTH, Leland M. – Entender la arquitectura: sus elementos, historia y significado. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, SA, 2005. ISBN 84-252-1700-8. p.395
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Fig.41 e 42 Trionfo del nome di Gesù, obra de Giovanni Battista Gaulli, na abóboda da Igreja del Gesú em Roma. A igreja foi projectada por Jacopo Vignola e a fachada por Giacomo della Porta, construída entre 1568 e 1584.
enganando a visão a seu prazer nos faz ver o que não existe, que derruba os nossos sentidos (...)281. A preferência pela diagonal, pela assimetria e pelas formas curvas e sinuosas, préviamente referida, possuía, por si só, uma carga dramática significante, quando aplicada à concepção dos interiores barrocos. Mas o recurso à luz, à cor e à variedade de materiais servia para aprofundar a expressividade da fusão entre a arquitectura , a escultura e a pintura, transmitindo uma mensagem de liberdade formal, em que não existiam limites definidos (fig.40 a 42). O princípio cromátivo consistia, habitualmente, num contraste intenso entre uma cor primordial, usualmente o dourado ou o branco, com a policromia resultante das representações pictóricas nos tectos, paredes e altares, e da selecção de materiais. As cores utilizadas eram sempre claras e intensas, permitindo um entendimento claro e vivido das cenas e espaços que coloriam, proporcionando euforia visual. Naturalmente, aliar a complexidade formal à diversidade cromática produzia um resultado exacerbado, conferindo surrealidade ao experienciar e fruir do espaço. Colmatanto as manifestações formais, a luz era manipulada como se se tratasse de um foco que ilumina uma peça de teatro, procurando enaltecer as cenas proporcionadas. Jean Castex estabelece uma comparação entre o edifício e uma máquina óptica282, a que os arquitectos recorriam para atribuir expressões diferentes ao espaco: agressividade dramática através do recurso a luz excessiva sobre as superfícies, serenidade conseguida através do desvanecimento delicado da luz sobre os espaços ou ideia de profundidade acentuada pelo uso de sombras. Os materiais também sofriam uma transmutação de acordo com o princípio ilusório que regia o Barroco, contribuindo para a liberdade espacial através da sinuosidade formal. A madeira era trabalha e pintada por forma a parecer tecido, ou revestida a talha dourada para sugerir a presença do ouro nos interiores, enquanto a pedra perdia a sua solidez, para assumir a leveza e o dinamismo das curvaturas283. A Basílica de Vierzehnheiligen (fig.39), na Alemanha, projectada por Balthasar Neuman e construída entre 1743 e 1472, materializa perfeitamente os princípios barrocos
Lo que me parece más prodigioso de todo es la perspectiva, que engañando a la vista a su placer nos hace ver lo que no existe, y hace caer a nuestros sentidos (...). (tradução livre)
281
PASCOLI, Leone cit in CHECA CREMADES, Fernando; MORÁN TURINA, José Miguel - El Barroco. Madrid: Ediciones Istmo, 2001. ISBN 84-7090-122-2. p.85 Cfr. CASTEX, Jean - Renacimiento, Barroco y Clasicismo. Madrid: Editions Hazan, 1990. ISBN 84-460-0317-1. p.200 282
Cfr. NUTTGENS, Patrick - The Story of Architecture. 2ªed. London: Phaidon Press Limited, 1997. ISBN 071483615 (H/b). p.211 283
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Fig.43 Corte longitudinal e planta da Basílica di San Pietro e respectiva praça, em Roma, cuja construção foi concluída a 1590. Fig.44 Colunata da Praça di San Pietro, Roma. Limita espacialmente a praça, mas paralelamente não bloqueia a passagem entre os espaços.
Fig.45 Passagem da colunata que rodeia a Praça di San Pietro.
previamente analisados, sugerindo uma união perfeita entre a arquitectura, a escultura e a pintura. Os tons claros e suaves preenchem o interior, aumentando a intensidade da sua expressão no altar que se evidencia não só pela sua sumptuosidade, mas também pela forte iluminação que se concentra à sua volta. A suavidade cromática e a claridade geral, associadas ao movimento alegre das componentes arquitectónicas sinuosas (fig.43) e respectiva ornamentação, confere ao seu interior uma atmosfera sobrenatural. Também na Igreja del Gesú, projecto de Jacopo Vignola, com fachada da autoria de Giacomo della Porta, em Roma, se verificam os resultados da ilusão barroca. A abóbada do interior da Igreja del Gesù (fig.41 e 42), de Battista Gaulli, representa a comunhão perfeita da pintura com a escultura, em que o fresco da nave transborda de uma forma dramática para fora da moldura, onde nuvens e personagens se sobrepõem à decoração. O contraste cromático da cena com a talha dourada, acentua não só a sua veracidade, mas também a sensação de profundidade, fazendo acreditar que se trata de uma passagem para o mundo celeste. Esta técnica chamava-se sotto in su, que se traduz para de baixo para cima. Este fresco representa a libertação e a exaltação presentes no espaço barroco, em que todos os elementos que o compõem são estruturados de forma a criar uma atmosfera de euforia sensorial, procurando seduzir o espectador. A cidade barroca não poderia ter sido mais espectacular284. A concepção de uma espacialidade dinâmica e teatral alastrou-se igualmente à estruturação urbana. Assim, a cidade consistia em centros interligados por ruas rectas e largas, cujo objectivo era permitir um trânsito mais intenso de pessoas e veículos, indo ao encontro das novas necessidades de participação285. Os edifícios faziam parte de um sistema de compreensão global, perdendo a sua individualidade plástica para se tornarem elementos constituintes da totalidade urbana. As novas realidades perceptivas concebidas pelos longos eixos, aliadas aos triunfos visuais das praças e das fontes, bem como as surpreendentes fachadas descritas anteriormente, procuravam, através da constante estimulação visual, impor uma percepção atenta e contínua do conjunto urbano286. Espantar o homem com esta encenação grandiosa através de toda a cidade, visava relembrar o constante poder absoluto do Rei. Essa leitura total da cidade fazia parte da tentativa de despertar uma sensação de ambiguidade espacial, em que os limites não eram perentórios, permitindo inúmeras
284
La ciudad barroca no podia ser sino espectacular. (tradução livre)
CASTEX, Jean - Renacimiento, Barroco y Clasicismo. Madrid: Editions Hazan, 1990. ISBN 84-460-0317-1. p.251 285 Cfr. NORBERG-SCHULZ, Christian – Arquitectura Barroca. Madrid: Aguilar S A ediciones, 1972. ISBN 8403330243. p.16 e 17
Cfr. CHECA CREMADES, Fernando; MORÁN TURINA, José Miguel - El Barroco. Madrid: Ediciones Istmo, 2001. ISBN 84-7090-122-2. p.76 286
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Fig.46 Fontana di Trevi, em Roma, mandada construir pelo Papa Clemente XII em 1730. Fig.47 Escadaria que faz a ligação entre a Praça della Trinità dei Monti com a Praça di Spagna, em Roma, projectada por Francesco de Sanctis e construída entre 1723 e 1726.
interpretações e vivências. Como na arquitectura egípcia, procurava-se atribuir a percepção de infinidade aos espaços, dramatizando a sua existência e simbolizando o domínio da imensidão divina sobre o homem. A escala barroca contribuía para a experiência de grandeza e ambiguidade espacial, uma vez que os vastos conjuntos urbanos ultrapassavam o limite da percepção visual humana287. Um olhar menos atento a uma praça ou a um edifício não era suficiente para os compreender na totalidade, obrigando a uma maior atenção e apreensão da envolvente. A Praça di San Pietro (fig.43), em Roma, construída por Lorenzo Bernini, o grande mestre da arte persuasiva barroca288, materializa a teatralidade característica da cidade barroca. Bernini, ao considerar a Basílica di San Pietro como a matriz de todas as outras igrejas, concebe a praça como uma extensão da mesma, simbolizando um pórtico através do uso de colunatas que circundam dois lados do espaço elíptico (fig.44 e 45), com o intuito de materializar uma recepção calorosa aos fiéis. A sua indubitável grandiosidade é conferida por um espaço oval principal que, embora com limites claramente definidos, gera ambiguidade na percepção da clausura ou abertura do mesmo. Esta interpenetração espacial permite intensificar a experiência de infinito, de magnificência, reforçada pela existência do obelisco enquanto referência central onde todas as direcções convergem e se conectam com o eixo longitudinal da basílica. A faceta teatral barroca estende-se a todo o espaço público, onde elementos centrais, como fontes e obeliscos, procuram corroborar o carácter dramático através da materialização de cenas que visam imitar a realidade. A magnificência da Fontana di Trevi (fig.46), em Roma, é um dos melhores exemplos de teatralidade espacial, onde a realidade
da fachada do edifício se funde com as esculturas da fonte, simulando um cenário natural com personagens cujos movimentos ganham vida com a projecção de água em diversos pontos289. A sua capacidade ilusória e a sua grande escala, associada a um espaço público comparativamente diminuto, resultante do convergir de diversas ruas de carácter secundário, intensifica o efeito de deslumbramento aquando da sua visualização. Francesco de Sanctis foi incumbido de fazer a ligação da Praça della Trinità dei Monti com a Praça di Spagna, igualmente em Roma, tendo recorrido a um dos elementos construtivos mais apreciados e figurativos da época barroca: uma imponente escadaria
Cfr. ROTH, Leland M. – Entender la arquitectura: sus elementos, historia y significado. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, SA, 2005. ISBN 84-252-1700-8. p.405 287
288 NORBERG-SCHULZ, Christian - Arquitectura Occidental. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, SL, 2004. ISBN 84-2521805-5. p.153 289 Cfr. RASMUNSSEN, Steen Eiler – Viver a arquitectura. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2007. ISBN 978-989-8010-99-5. p.64
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Fig.48 Palácio de Versailles e respectivos jardins, projectados por André Le Nôtre. O que começou por ser um pavilhão de caça, foi transformado pelo arquitecto Louis Le Vau num palácio barroco, a pedido do rei Luís XIV. Fig.49 Sala dos espelhos, um dos muitos magníficos salões do Palácio de Versailles.
(fig.47). Era o cenário mais apropriado para materializar a fantasia espacial barroca, recorrendo
à sucessão de linhas diagonais que dinamizavam o espaço. A escadaria promovia, então, a movimentação do espectador, permitindo-lhe vivenciar o espaço de uma forma interactiva, como se descer ou subir fizesse parte de um acto de representação. Assim, na Escadaria Espanhola, podemos ver uma petrificação do ritmo de dança de um período de galanteria; ela oferece-nos uma sugestão de algo que se passou (...)290. O Barroco procurava, desta forma, transformar o espaço público num acto teatral e dinâmico, que despoletasse surpresa e admiração nos trauseuntes. Os palácios urbanos eram, por excelência, a materialização da íntima relação entre a teatralidade, resultado de uma necessidade social de representação, e a cultura festiva barroca. A experiência do espaço infinito não pertencia exclusivamente às igrejas e às praças, tendo-se verificado, igualmente, na manifestação mais importante da arquitectura civil barroca. Normalmente estruturado ao longo de um eixo longitudinal (fig.48), a disposição axial específica reparte -se em três momentos distintos: o mundo civil, o lugar privado e a natureza infinita. O objectivo era proporcionar a transição de contrastes espaciais, na qual o posicionamento do palácio define o eixo de simetria. O jardim surge imediatamente associado à edificação, correspondendo à sua largura e assumindo-se como uma extensão do mesmo, sem limites aparentes. Materializava-se, assim, uma passagem de um contexto urbano para um ambiente refinado e privado, seguido de uma exposição total à natureza291. Todos estes elementos estavam organizados de acordo com um sistema axial específico, cuja meta era a ilusão da infinidade: o palácio que divide o percurso em duas metades distintas; a chegada do mundo urbano através do pátio aberto; a imersão no infinito, definida como um trânsito gradual através do ambiente ‘civilizado’ dos parterre292, a natureza domesticada do bosquete e a natureza natural do selvagem. Introduzem-se eixos transversais e esquemas radiais para dar a sensação de carácter aberto do sistema293. Os interiores dos palácios acompanhavam a magnificência do exterior, procurando a exarcebação sensorial dos espaços. O contraste da decoração dinâmica e dourada com
RASMUNSSEN, Steen Eiler – Viver a arquitectura. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2007. ISBN 978-989-8010-99-5. p.115 290
291
Cfr. NORBERG-SCHULZ, Christian – Arquitectura Barroca. Madrid: Aguilar SA ediciones, 1972. ISBN 8403330243. p.299
292
Tabuleiro de jardim ou jardim com os seus canteiros e repartições de buxo.
Grande Dicionário: Francês-Português. 12ªed. Lisboa: Livraria Bertrand, 1992. p.1076 293 El palácio que divide el ‘recorrido’ en dos mitades diferentes; la llegada desde el mundo urbano a través del pátio ‘abierto’; la inmersión en el infinito, definida como un tránsito gradual a través del ambiente todavia ‘civilizado’ de los parterres, la naturaleza ‘domesticada’ del bosquecillo y la naturaleza ‘natural’ de lo selvático. Se introducen ejes transversales y esquemas radiales para dar la sensación del carácter abierto del sistema. (tradução livre)
NORBERG-SCHULZ, Christian - Arquitectura Occidental. 1ªed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, SL, 2004. ISBN 84-2521805-5. p.152
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as paredes policromáticas permitia alterar a percepção perspéctica dos salões, rompendo as barreiras físicas e sugerindo uma continuidade espacial que na realidade não existia. O ambiente fictício era reforçado pela exposição luminosa natural e artificial, uma vez que todas as divisões eram percorridas por aberturas para o exterior e encontravam-se repletas de vistosos e brilhantes candelabros. A Galeria dos Espelhos do Palácio de Versailles (fig.49) conduz a uma ambiguidade perceptiva fascinante, esbatendo os limites reais do espaço através das ilusões espelhadas e manifestando o dinamismo e surrealismo próprio do movimento barroco. A sumptuosas divisões do palácio destinavam-se a receber as festas mais luxuosas e fantásticas, que duravam dias e noites, e onde ópera, ballet e fogo de artifício contribuíam para o esplendor e surrealidade dos momentos. Os salões, os jardins e as fontes eram manipulados, transformando-se constantemente em novos cenários, onde a corte festejava durante dias. Mas, o ambiente festivo verificava-se igualmente nas ruas, ainda que com dimensões mais modestas. Quando existiam festas religiosas, procissões ou até feiras anuais, a cidade era preenchida de construções efémeras de madeira abundantemente ornamentadas, enquanto a música e o teatro constribuíam para a animação do evento294. O Barroco, independentemente da classe social, viveu de um sentimento de contínua festividade e exultação. Torna-se claro que proporcionar uma experiência espacial rica ao ser humano resulta num sentimento de participação e, consequentemente, numa noção de existência mais activa e profunda. Assim, o espaço barroco, e todos os elementos que lhe estão associados, oferecem uma estimulação sensorial intensa, transformando tudo o que é comum em teatral. A liberdade, o dinamismo, a euforia e a surpresa, encontram-se materializados desde o planeamento urbano até à ornamentação meticulosa de um altar numa igreja. Todos os pormenores colaboram para uma experiência sensorial e perceptual global, cénica, onde o conceito de supremacia do infinito se assume como o principal motor do barroco: espaço infinito tem atitude infinita, e nessa atitude infinita a acção infinita da existência é elogiada295.
Cfr. BORNGÄSSER, Barbara; TOMAN, Rolf in TOMAN, Rolf (ed.) - El Barroco: arquitectura, escultura, pintura. Köln : Könemann, 1997. ISBN 3-89508-920-6. p.10 294
295
Infinito spacio ha infinita attitude, ed in quella infinita attitudine si loda infinito atto di existenza. (tradução livre)
BRUNO, Giordano cit in NORBERG-SCHULZ, Christian – Arquitectura Barroca. Madrid: Aguilar SA ediciones, 1972. ISBN 8403330243. p.10
3.4 | A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO NA ARQUITECTURA DO NACIONAL-SOCIALISMO:
IMPONÊNCIA ESPACIAL
A Arquitectura não é política. É um instrumento da política, para o bem e para o mal . 296
O recurso à arquitectura enquanto suporte de ideologias políticas e emanação de poder, manifestou-se ao longo de vários momentos da história, e ainda se verifica actualmente. Advém, naturalmente, da sua participação activa no contexto cultural e social humano, assim como, mais especificamente, no quotidiano do homem. Associada à sua capacidade de eternizar significados, vontades e ideais, contando com a sua longevidade e perenidade, a arquitectura tem um papel relevante no relacionamento com a sociedade. Perante esta sua faceta valiosa, três regimes específicos das décadas de 30 e 40 do séc. XX recorreram à sua manipulação como forma de materializar e impor os seus princípios: o Realismo Socialista Soviético (1931-38), o Fascismo Italiano (1931-42) e o Nacionalsocialismo Alemão (1929-1941). Embora aspirando a uma representação arquitectónica monumental da qual resultaria temor, veneração e glorificação, na União Soviética e em Itália a materialização dos ideais foi distinta. Encontravam-se num conflito entre modernidade e tradição, em que construtivismo e racionalismo, correspondentemente, se debatiam contra a reinterpretação da tradição clássica esperada, uma vez que era sua opinião que as pessoas eram incapazes de reagir à estética abstracta da arquitectura moderna297. Como refere Kenneth Frampton, esta luta não se verificou na Alemanha, que automaticamente rejeitou o mote racional do Movimento Moderno, procurando um estilo arquitectónico ideal para a reformulação da sociedade, de acordo com as políticas ideológicas do Führer298. Tendo em conta este contexto específico, pretende-se estudar, com mais pormenor, a experiência do espaço arquitectónico que serviu os ideais do Nacional-socialismo. A crença de que a sociedade tradicional se encontrava corrompida pela industrialização foi a principal premissa para o descontentamento de Adolf Hitler. O
296
Architecture is not political. It is an instrument of politics, for better or for worse. (tradução livre)
KRIER, Leon - Albert Speer Architecture: 1932-1942. Bruxelles: Aux Archives d´Architecture Moderne, 1985. ISBN 10: 2871430063. p.227 FRAMPTON, Kenneth - História crítica da Arquitectura Moderna. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes Editora, 2000. ISBN 9788533624269. p.260 297
298
Cfr. Idem, p.258 a 262
167
crescimento desenfreado das cidades devido ao êxodo rural, a consequente e crescente insalubridade urbana e a agitação das políticas vigentes, intensificavam o desejo de reformulação social e cultural, de purificação. Quando Hitler subiu ao poder, a 30 de Janeiro de 1933, uma das suas primeiras medidas foi o que considerou ser uma selecção artística do país. Condenava agressivamente a arte moderna como degenerada, associando qualquer manifestação artística de vanguarda a uma representação criada por deficientes mentais. Baseados na afirmação de que o mundo se encontrava contaminado pela decadência, foi sua prioridade proceder à restituição da beleza, em que só seria possível à humanidade desabrochar, se voltasse a abraçar os ideais clássicos. Hitler, nutrindo uma admiração irrestrita pela Antiguidade e admirando Esparta, Atenas e Roma, acreditava que a síntese das três culturas e respectivas cidades originaria uma nação imperecível. A afeição pelo mundo artístico permitiu-lhe compreender que a arte dava forma aos desejos sociais e culturais e, assim, apoiando-se na crença de que a arte devia ser um espelho da saúde racial e intelectual, iniciou a eliminação de tudo o que contrariasse este princípio. O que começou por ser uma purificação artística, revelou-se uma premissa aplicável a outros campos299. Sem restrições, Hitler transformou uma ideologia absurda numa realidade infernal300. Albert Speer, um dos principais arquitectos do Nacional-socialismo, mais especificamente, inspector-geral do urbanismo de Berlim, referiu a dedicação intensa pessoal de Hitler à tarefa da reforma cultural, social e política da Alemanha, onde a arquitectura era o seu instrumento preferido. Acrescentou ainda que o movimento era mais do que uma manifestação de poder político, era a reivindicação do domínio de uma nação, em que não se procurava a aceitação mas sim a submissão forçada. Mesmo que todos os documentos associados a esta reforma se extinguissem, a arquitectura encarregar-se-ia de eternizar os planos de Hitler para dominar o mundo. Era nesta capacidade da arquitectura que residia a paixão do Führer301. Para que tal se tornasse possível, a concepção arquitectónica deste desejo era caracterizada pela sua capacidade simbólica, didática e teatral, procurando influenciar constantemente a comunidade alemã através de vivências específicas. Da mesma forma que as ruínas gregas e romanas ainda existem, transmitindo a grandiosidade vivida nas épocas que retratam, também Hitler queria que a arquitectura
299
Cfr. COHEN, Peter - Architecture of Doom [Registo vídeo]. USA: First Run Features, 1991. (119 min.)
300
Without restraint, he transformed an absurd ideology into a hellish reality. (tradução livre)
Idem, (01:51:52) Cfr. SPEER Albert in KRIER, Leon - Albert Speer Architecture: 1932-1942. Bruxelles: Aux Archives d´Architecture Moderne, 1985. ISBN 10: 2871430063. p.213 301
alemã comunicasse através do seu espírito magnificente e perene, assegurando a sua presença no futuro enquanto ruína majestosa. As ruínas dos edifícios testemunharão a força da nova vontade e a magnitude da nossa fé302. Albert Speer tentou possibilitar este resultado evitando todos os elementos construtivos modernos, como as estruturas metálicas e o betão armado. Assim, recorrendo essencialmente à pedra, material visualmente pesado, procurava simbolizar essa vontade de permanência, assim como a imposição do poder, através dos edifícios do Nacional-socialismo. Este desejo de eternizar os seus ideais através da arquitectura foi denominado Word of Stone (Palavra de Pedra), uma vez que, para além do carácter simbólico da ruína, estas construções não seriam facilmente derrubadas303. O simbolismo gráfico e artístico, paralelamente com as inscrições feitas directamente nas fachadas, eram proeminentes em todas as formas arquitectónicas. A águia, com ou sem cruz suástica, as esculturas com poses heróicas que sugeriam a força militar e política e as citações de Hitler transformadas em slogans inundavam tanto a arquitectura como o espaço público, estando presentes em todo o lado304. O objectivo era suscitar um impacto emocional nas pessoas através desta omnipresença simbólica, lembrando-as que eram controladas e que nenhum espaço estava livre do olhar atento das autoridades. Apesar da beleza clássica que lhe era inerente, a sua presença no espaço urbano assumia, assim, um carácter imperioso que emitia hostilidade. Relativamente ao carácter didático da arquitectura, era intenção do Fürher que transmitisse uma mensagem muito específica: a superioridade da raça alemã e o seu domínio sobre tudo e todos. Desta forma, Hitler elaborou um plano de reestruturação que adquiriu proporções megalómanas, elegendo mais de quarenta cidades para uma reconstrução intensiva. As construções destinadas a este fim deviam expressar ordem e clareza, espelhar a vitalidade alemã através de manifestações de grandeza. Hitler deixou bem claro que, independentemente do espaço que se encontrava disponível, a arquitectura que ali fosse implantada deveria ter um impacto profundo, com poder de sugestão perante
302
The ruins of our buildings will bare witness to the strength of our will and the magnitude of our faith. (tradução live)
HITLER, Adolf cit in SPEER Albert in KRIER, Leon - Albert Speer Architecture: 1932-1942. Bruxelles: Aux Archives d´Architecture Moderne, 1985. ISBN 10: 2871430063. p.214 303 (…) Posteriormente expus a Hitler a teoria do valor como ruína de uma construção. O seu ponto de partida era que as construções modernas não eram muito apropriadas para constituir a ponte de tradição até às futuras gerações como Hitler desejava (…). A minha teoria tinha como objectivo resolver este dilema: a aplicação de materiais especiais, assim como a consideração de certas condições estruturais específicas, deveriam permitir a construção de edifícios que quando chegassem à fase de decadência, ao fim de uma centena ou milhares de anos (como calculávamos), se assemelhassem um pouco aos modelos romanos (…) Para atingir este fim, pretendíamos renunciar, na medida do possível, ao betão armado e às estruturas metálicas em todos os elementos construtivos que estivessem expostos à acção dos agentes atmosféricos.
SPEER, Albert – Memorias : los recuerdos del arquitecto y ministro de armamento de Hitler, una crónica fascinante del tercer reich . Barcelona: El Acantilado, 2001. ISBN 84-95359-43-X. p.104 e 105 304 Cfr. TAYLOR, Robert R. - The Word in Stone: The role of architecture in the National Socialist Ideology. Berkely: University of Californi, 1974. ISBN 0-520-02193-2. p.13 a 14
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Aeródromo do sul
Zona sul da cidade
Estação central Arco do Triunfo
Circo Eixo este-oeste Grobe Halle Grande lago Estação norte
Fig.50 Maquete de Berlim, no âmbito da criação da Nova Alemanha. Fig.51 Distribuição do conteúdo programático mais importante ao longo do novo plano urbano projectado, a pedido de Hitler, para Berlim.
o povo305. Tudo o que se construísse deveria subordinar-se a um conjunto planificado, em que cidades e paisagens assumiriam um especial sentido. E para que este resultado fosse possível, a desejada arquitectura monumental do estado não corresponderia às construções burguesas da actualidade, como escritórios, hotéis, armazéns, estabelecimentos comerciais, entre outros, incapazes, a seu ver, de assumir a grandiosidade que lhes era exigida, mas sim a edifícios de carácter público que, tal como na Antiguidade, assumiam a dominação e caracterização da urbe306. Neste contexto de reformulação, Berlim desempenhava um papel fundamental, uma vez que Hitler planeava transformar a cidade alemã na capital da Europa, como Roma para o Império Romano, cujo domínio político, económico, social e cultural pertenceria à Nova Alemanha. A cidade assumiria as funções de uma metrópole para a qual Albert Speer estava encarregue de preencher com monumentos, palácios e praças que estruturariam o centro simbólico de um continente centralizado, industrializado e mobilizado (fig.51). Infelizmente, os novos instrumentos de domínio, propaganda em massa e distribuição funcional, estavam prestes a provar a ideologia redundante da ‘Word of Stone’307. As pretensões da propaganda eram direccionadas para uma mensagem muito específica de submissão, em que tudo e todos que não se inserissem no conceito de beleza artística ou racial determinado, não tinham lugar nesta nova super cidade. O objectivo era purificar, independentemente dos recursos: o nosso objectivo não é fazer justiça, o nosso objectivo é destruir e exterminar308. A reestruturação urbana de Berlim respondia a uma organização axial, materializada pela grande avenida norte-sul que concretizava as ambições do Führer. De carácter monumental e com propósitos doutrinários, reunia ao longo do seu desenvolvimento todas as instituições mais importantes do estado, actuando como uma ferramenta de propaganda, em grande escala, dos princípios centralizados e egocêntricos do Nacional-socialismo309 (fig.50). Colmatada, na sua extremidade, norte pela cúpula do Grobe Halle e estendendo-
se para sul, esta avenida de superlativos encontrava-se definida por fachadas em granito, com monumentos, jardins, fontes e o colossal Arco do Triunfo (duas vezes maior que o de
Cfr. SPEER, Albert – Memorias : los recuerdos del arquitecto y ministro de armamento de Hitler, una crónica fascinante del tercer reich . Barcelona: El Acantilado, 2001. ISBN 84-95359-43-X. p.104 e 105 305
306
Cfr. SPEER, Albert - Moderna Arquitectura Alemã. Berlim: Editorial Volk und Reich, 1941. [s/ISBN]. p.11 e 12
Alas the new instruments of domination, mass propaganda and functional zoning, were soon to prove the ideological redundancy of the ‘Word of Stone’. (tradução livre) 307
KRIER, Leon - Albert Speer Architecture: 1932-1942. Bruxelles: Aux Archives d´Architecture Moderne, 1985. ISBN 10: 2871430063. p.45 308
Our business is not to do justice, our business is to destroy and exterminate. (tradução livre)
Idem, p.219 309
Cfr. Idem, p.47
171
Fig.52 Prora, estância balnear projectada pelo arquitecto Clemen Klotz, na ilha Rügen, na Alemanha. A sua construção foi ocorreu entre 1936 e 1939, não tendo sido concluída devido ao início da Segunda Guerra Mundial. Fig.53 Palácio do Marechal do Reich, Hermann Göring.
Paris), numa extensão de cinco quilómetros. Mais do que um mero corredor, o eixo era reforçado por sete monumentos distintos310. Este recurso à escala monumental, quer nas construções quer no espaço urbano, tinha como objectivo proporcionar uma experiência de distanciamento, desconforto e, igualmente, de admiração, na tentativa de incutir em cada pessoa alemã a sua insignificância enquanto individual, em relação ao poder de uma comunidade311. O distanciamento da escala humana em qualquer edifício, ou qualquer parte que o constituísse, intimidava de uma forma muito directa. A mensagem era constante e estava presente em qualquer situação ou contexto associado à vida alemã. A necessidade de imposição aproximou-se do absurdo numa estância balnear construída em Maio de 1936, na costa báltica alemã, em Prora (fig.52). Consistia numa sucessão de edifícios de betão armado com seis pisos, paralelos à costa, e com uma extensão de quatro quilómetros. Aos mesmos se associavam, perpendicularmente, uma sucessão de blocos com a mesma altura que se repetiam interminavelmente. Mais do que a exploração turística do local, a construção megalómana e austera, ironicamente associada a um programa de lazer, expressava avidamente a opressão política312. A verdadeira intenção na criação desta estância era atrair o povo alemão para um clima de maresia que se acreditava contribuir para a saúde do homem e respectivo fortalecimento físico. Esta grandeza colossal não resultava apenas da explosão de dimensões, mas sim da brilhante articulação entre escala e proporção, associada a uma linguagem classicista. A grandeza física que dela emanava só poderia conduzir a reacções de admiração e de submissão, uma vez que as suas formas imponentes se associavam a uma mentalidade movida por princípios opressivos. Recorria-se ao uso de colunatas de grandes dimensões, formadas por colunas ou pilares, com o intuito de reforçar a verticalidade dos edifícios e de acentuar a disparidade da escala com as vivências humanas. Enfatizavam-se as entradas com pórticos severos e concebiam-se os edifícios com aparência rectilínea, reforçando a horizontalidade intensa com sucessões intermináveis de vãos. O material mais usado era a pedra, cuja textura salientava peso real e visual destes edifícios, como se pode verificar no Palácio do Marechal313. Desta forma invadiam o espaço perceptivo dos trauseuntes, impondo
Cfr. KRIER, Leon - Albert Speer Architecture: 1932-1942. Bruxelles: Aux Archives d´Architecture Moderne, 1985. ISBN 10: 2871430063. p.49 310
Cfr. TAYLOR, Robert R. - The Word in Stone: The role of architecture in the National Socialist Ideology. Berkely: University of Californi, 1974. ISBN 0-520-02193-2. p.12 311
312 Em 1945, as tropas russas tentarem demolir esta construção colossal, assim como o que representava, o que se revelou impossível devido à sua resistência estrutural. Existe actualmente enquanto base este do Exército alemão.
Cfr. COATES, Stephen; STETTER, Alex (eds.) – Impossible worlds: The architecture of perfection. Basel: Birkhäuser, 2000. ISBN 3-7643-6317-7. p.83 Cfr. TAYLOR, Robert R. - The Word in Stone: The role of architecture in the National Socialist Ideology. Berkely: University of Californi, 1974. ISBN 0-520-02193-2. p.12 e 13 313
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Fig.54 Nova Chancelaria do Reich, em Berlim, projectada pelo arquitecto Albert Speer e construída entre 1938 e 1939. Fig.55 Sala dos Mosaicos, uma das divisões da Chancelaria. Fig.56 Galeria de Mármore que precede o escritório de Hitler.
a sua presença e a sua agressividade visual de várias formas. Em 1939, paralelamente à construção do eixo este-oeste, foi concluído, nove meses após a ordem de Hitler para a sua edificação, o primeiro edifício representativo da reforma: a Chancelaria do Reich. Nele, materializavam-se todos os elementos típicos da arquitectura do Nacional-socialismo. Apesar da imponência do exterior da Chancelaria (fig.54), estruturada por todos os elementos previamente referidos, era o seu interior que fascinava, uma vez que foi idealizado para chocar qualquer visitante314. Assim, a intervenção forçada na experiência da arquitectura ia além da imposição visual dos edifícios urbanos, estendia-se aos seus interiores. A zona oriental e ocidental do edifício era composta por escritórios administrativos e um pequeno pátio. Mas, entre estas duas alas encontravam-se as divisões cerimoniais que representavam a Chancelaria e que o visitante tinha de atravessar para chegar à sala de recepção ou ao próprio escritório do Führer. O atravessamento obrigatório destas divisões tinha um propósito dramático: aumentar a ansiedade e o receio durante o longo percurso. Após transpor os portões da Chancelaria, passava-se por um majestoso pátio, calmo e solene, que servia não só para impressionar mas também como parada militar. A entrada para o edifício era emoldurada por um pórtico com uma grande águia, delimitado por quatro colunas oito vezes maiores que um homem. Seguia-se uma sucessão de divisões, cada uma surpreendentemente mais imponente que a outra. O percurso iniciava-se na Sala dos Mosaicos (fig.55), cujas paredes e pavimentos eram revestidos por quadrículas de mármore vermelha, com símbolos do movimento, enquanto as duas únicas portas que existiam na sala eram emolduradas, mais uma vez, por águias. A iluminação era feita através de uma abertura no tecto, eliminando qualquer contacto visual com o exterior, sugerindo assim que o visitante se encontrava enclausurado e sem fuga possível315. Todos os elementos que constituíam a sala, articulados com as suas proporções monumentais, trabalhavam no sentido oprimir o observador. Seguidamente, passava-se para a Sala Redonda que estabelecia uma ligação com a divisão mais impressionante: a Galeria de Mármore (fig.56), mais longa que a Sala dos Espelhos, em Versailles. Era um corredor ritmado por 19 janelas situadas em profundos nichos de mármore do lado esquerdo, e cinco portas maciças e grandiosas na parede direita, uma das quais dava acesso ao escritório de Hitler. As extremidades permaneciam mergulhadas na penumbra, disso resultando a impressão de uma extensão ilimitada e
314
Cfr. SPEER, Albert - Moderna Arquitectura Alemã. Berlim: Editorial Volk und Reich, 1941. [s/ISBN]. p.16
Cfr. TAYLOR, Robert R. - The Word in Stone: The role of architecture in the National Socialist Ideology. Berkely: University of Californi, 1974. ISBN 0-520-02193-2. p.133 a 137 315
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Fig.57 e 58 Maquete do Volkshalle, ou Grobe Halle. Desenhado por Hitler e projectado por Albert Speer, nunca chegou a ser construído. Fig.59 Sátira ao Grobe Halle, assim como à arquitectura de Albert Speer, desenhada pelo arquitecto Leon Krier.
temerosa, assim como a incerteza gerada pela quantidade de portas distribuídas num espaço tão vasto316. Caso o visitante entrasse no escritório, experimentaria, mais uma vez, a exposição desenfreada à monumentalidade, uma vez que a grandeza da divisão contrastava com a secretária maciça situada num canto e com a ausência de iluminação, dando uma sensação de espaço vazio. Este tipo de vivência era proporcionado intensionalmente, para intensificar a presença e proximidade do Führer perante o visitante que se encontrava tão deslocado naquela vastidão. Por último, a arquitectura desempenhava uma faceta teatral. Muitos dos edifícios do movimento Nacional-socialista eram palcos para actividades públicas317. Juntavam-se multidões usando a arquitectura, para que pudessem experienciar a vivência em comunidade nestes espaços específicos. Como exemplo perfeito deste príncipio, foi projectado o grande centro cultural previamente referido, Grobe Halle (fig.57), responsável por colmatar o extremo norte do eixo norte-sul. O que era para Hitler a oitava maravilha do mundo, impunha uma cúpula majestosa cuja base se encontrava a 98 metros de altura e o seu arco interno fechava a 220 metros. Inspirado pela manifestação teatral da Basílica di San Pietro, decidiu transportar a ideia da cúpula para o seu grande plano urbano, reinventando-a dezassete vezes maior que a referência (fig.58), para que deste modo não fosse só magnífica, mas também insuperável. A lanterna, única fonte de iluminação, tinha 46 metros de diâmetro, enquanto o interior da arena apresentava 140 metros de diâmetro318. Mas, mais do que um espaço destinado à comunidade, era um palco gigante e magnífico onde entrariam 180 mil cidadãos, para poderem experienciar uma solene e quase mística união com o líder supremo da Nação. Quanto maior fosse o espaço, maior era a importância do acontecimento. O Zeppelinfeld, contrariamente ao Grobe Halle, chegou a ser construído, sendo a edificação que melhor materializou a necessidade de dramatização destes eventos, por forma a proporcionar uma experiência intensa do espaço e do acontecimento. O projecto de execução de Albert Speer, o primeiro de tão grande escala, foi especialmente ousado devido ao lançamento de uma linha de eixo quando a envolvente não impunha nenhum, e devido também à ampliação simultânea das dimensões do recinto319. A beleza das proporções presentes no projecto e na obra, assim como os materiais, tornaram-no uma autêntica concretização classicista. Construídas em travertino branco, as estruturas do Zeppelinfeld
Cfr. KRIER, Leon - Albert Speer Architecture: 1932-1942. Bruxelles: Aux Archives d´Architecture Moderne, 1985. ISBN 10: 2871430063. p.140 a 148 316
Cfr. TAYLOR, Robert R. - The Word in Stone: The role of architecture in the National Socialist Ideology. Berkely: University of Californi, 1974. ISBN 0-520-02193-2. p.10 a 12 317
Cfr. KRIER, Leon - Albert Speer Architecture: 1932-1942. Bruxelles: Aux Archives d´Architecture Moderne, 1985. ISBN 10: 2871430063. p.76 a 82
318
319
Cfr. SPEER, Albert - Moderna Arquitectura Alemã. Berlim: Editorial Volk und Reich, 1941. p. 14
177
Fig.60 Zeppelinfeld, ou Catedral da Luz, na noite de 11 de Setembro de 1937. Fig.61 Recinto do Zeppelinfeld, projectado pelo arquitecto Albert Speer e construĂdo entre 1935 e 1937.
Fig.62 Recinto do Zeppelinfeld, durante um evento.
Fig.63 Entrada do Zeppelinfeld.
Fig.64 Imponente colunata do Zeppelinfeld.
enclausuravam um espaço de aproximadamente 90 mil metros quadrados (fig.62), com a capacidade para 90 mil pessoas, em pé. A entrada do campo era definida por pórticos imponentes e mastros gigantes, marcando a transição do exterior para o interior (fig.64). Esta passagem era intensificada pela mudança da cota do terreno, onde, após se depararem com as estruturas megalíticas da entrada e depois de ascender ao patamar do campo, só restava contemplar a vastidão espacial, tão esmagadora como o longo altar, enquadrado por uma sucessão interminável de colunas320 (fig.62 e 63). A arquitectura do Nacional-socialismo era pensada para ser formalmente e emocionalmente poderosa. Speer, aquando da sua criação e construção, sabia que podia contar com o poder da iluminação para o complementar, tendo colocado projectores em redor de todo o campo321. Na noite de 11 de Setembro de 1937, os projectores foram activados, e focos de luz com um alcance de dezasseis quilómetros rodearam o Zeppelinfeld, apresentando assim a coreografia que Speer almejava322. O campo repleto de pessoas, pontos minúsculos perdidos na grandeza arquitectónica do espaço, as ovações de milhares e as bandeiras, contrastando com os focos de luz que pareciam infindáveis, criavam uma experiência absolutamente esmagadora (fig.60). Promovia uma vivência magnífica, conseguida por todos os elementos que comungavam para a criação de reacções que poucas obras de arquitectura conseguem despoletar. A experiência deste acontecimento pode ser considerada igualmente bestial e assombrosa pelo facto de simbolizar e evocar os princípios do Nacional-socialismo e demonstrar a adesão tão intensa e tão ardente de uma multidão imensa, a um modo de estar opressivo e animal. A propaganda foi das armas mais importantes do movimento Nacional-socialista, servindo-se de todas as manifestações artísticas para impor os seus ideais, recorrendo, inclusive, ao cinema. Leni Riefenstahl, actriz, bailarina e cineasta alemã, realizou o primeiro filme destinado à propaganda do Nacional-socialismo, Triumph des Willens, filmado em Nuremberg, Alemanha. O filme retrata um congresso do Partido Nacional-socialista em 1934, onde foram identificadas inúmeras técnicas de filmagem que tinham como objectivo muito específico, enaltecer o conteúdo visual. Eram exemplo as filmagens não estáticas, que acompanhavam os movimentos de Hitler e da parada, filmagens aéreas que permitiam compreender a vastidão dos seguidores, a diversidade de ângulos, ou o contraste entre as filmagens das massas humanas, com a filmagem isolada de Hitler enquanto ser superior
Cfr. KRIER, Leon - Albert Speer Architecture: 1932-1942. Bruxelles: Aux Archives d´Architecture Moderne, 1985. ISBN 10: 2871430063. p.173 320
321
Cfr. SPEER, Albert - Moderna Arquitectura Alemã. Berlim: Editorial Volk und Reich, 1941. [s/ISBN] p.14
Cfr. KRIER, Leon - Albert Speer Architecture: 1932-1942. Bruxelles: Aux Archives d´Architecture Moderne, 1985. ISBN 10: 2871430063. p.175 322
179
e dominador323. Uma das técnicas mais interessantes, consistia em deixar indicadores cruciais da realidade fora das filmagens, como mostrar apenas os topos dos edifícios de Nuremberg. Filmados apenas com o céu como fundo, os edifícios adquiriam um valor alado, surreal, sendo que apenas a parada era filmada fisicamente ligada ao solo. Assim, o evento e a participação de Hitler surgiam como acontecimentos intensificados, reais e palpáveis, enquanto tudo o resto apenas participava figurativamente324. O papel que Hitler desejava que a arquitectura desempenhasse na criação de uma nova ordem, era o de disponibilizar um espaço para passar uma mensagem, recorrer a símbolos que a transmitisse e ensinar a entender esses mesmos símbolos.
Foi uma
arquitectura essencialmente doutrinária que procurava produzir uma experiência espacial de imponência e temor. A propaganda nazi foi, de facto, tão bem sucedida que o nosso entendimento desse período é colorido pelas suas imagens e slogans até aos dias de hoje, seja de uma forma positiva ou negativa, e quer gostemos ou não325.
323
Cfr. MÜLLER, Ray - Die Macht der Bilder: Leni Riefenstahl [Registo vídeo]. Germany: Nomad Films, 1935. (180 min.)
KELMAN, Ken - Propaganda As Vision: Triumph of The Will [em linha]. New Jersey: © 2011 Logos International Foundation, 2003, [consult. 5. Julh. 2011]. Disponível em: http://www.logosjournal.com/kelman.htm 324
Nazi propaganda was in fact so successful that our understanding of that period is coloured by its images and slogans to this day, whether positively or negatively, and whether we like it or not. (tradução livre)
325
KRIER, Leon - Albert Speer Architecture: 1932-1942. Bruxelles: Aux Archives d´Architecture Moderne, 1985. ISBN 10: 2871430063., p.223
A concepção espacial é instintiva e encontra a sua expressão no modo como o homem situa os objectos tridimensionais, uns em relação aos outros. No geral, o homem é inconsciente da concepção espacial à qual responde. Por isso, a concepção espacial pode dar uma ideia da actitude do homem em relação ao cosmos, à natureza e à eternidade326 . Como é possível compreender ao longo deste capítulo, o relacionamento entre o homem e a arquitectura não actua isoladamente através da premissa da recepção e interpretação de estímulos, estando sempre entregue à influência de factores externos. Uma vez que a vivência humana responde a esses mesmos factores que moldam directamente a sua forma de estar e de pensar, e tendo em conta que a arquitectura é parte integrante da vivência humana, então é natural que o ser humano recorra à construção não só como forma de abrigo ou com objectivos funcionais, mas também para materializar ideiais e desejos. Desta forma, a arquitectura egípcia respondeu às crenças religiosas e à paisagem através da necessidade de viver a sua simbologia plenamente, a arquitectura japonesa respondeu às exigências climáticas e económicas, procurando a simplicidade e o respeito pela natureza, a arquitectura barroca respondeu à sociedade e ao contexto artístico através do dinamismo e da euforia em detrimento dos cânones clássicos e, por último, a arquitectura do Nacionalsocialismo respondeu às exigências políticas e sociais, procurando a subjugação e a manipulação da mentalidade alemã. Mas, recorrer à concepção arquitectónica como resposta aos contextos ideológicos, religiosos, políticos, económicos, sociais, culturais e condições naturais que definem os lugares, pressupõe a manipulação dos mecanismos que lhe são inerentes, recorrendo à estruturação dos valores materiais e imateriais de acordo com as experiências que se tenciona proporcionar. Desta forma, experienciar a arquitectura é viver, e talvez compreender melhor, diferentes culturas e maneiras de pensar, uma vez que a conjugação do espaço, dos materiais, das cores, da luz e do som espelham os seus ideiais. O homem, a arquitectura e o meio possibilitam a dialética que estrutura o acto de experienciar o espaço.
326 La concepción espacial es instintiva y halla su expresión en el modo en que el hombre sitúa los objectos tridimensionales en relación unos con otros. Por lo general, el hombre es inconsciente de la concepción espacial a cual responde. Por esto la concepción espacial de una época puede dar una idea de la actitud del hombre hacia el cosmos, hacia la natureza e hacia la eternidad. (tradução livre)
GIEDION, Sigfried - El presente eterno: Los comienzos de la arquitectura. 3ªed. Madrid: Alianza Editorial, 1992. ISBN 84-206-7999-2. p.467
181
Conclus達o
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A apropriação humana do meio e, consequentemente, o recurso à arquitectura durante esse processo, só é possível devido à capacidade que o homem tem de conhecer a realidade que o envolve através do acto de experienciar. Uma vez que a imagem do mundo contemporâneo é essencialmente definida pela arquitectura, o conhecimento do mesmo passa pela vivência dos espaços que o constituem. Desde que se nasce, o mundo constrói-se em torno da experiência da realidade construída, dando origem ao conceito de casa, com todas as sensações de comodidade, de intimidade e de segurança que lhe são associadas, e ao conceito de lugar, enquanto parte de um mapa mental, onde se reconhecem as suas componentes e respectivas representações e interpretações. O fenómeno de experienciar é o que permite estabelecer a comunicação entre o homem e a arquitectura. A presente dissertação, embora pretenda ser objectiva no âmbito do relacionamento humano com a arquitectura, não tem a pretensão de estabelecer uma leitura definitiva. Uma vez que a temática abordada é conjugada com dimensões não só arquitectónicas mas também cognitivas e fisiológicas, ou culturais, sociais e territoriais, nunca será uma realidade fechada, respondendo a um conteúdo de carácter mais subjectivo. Assim, sendo determinada e analisada à luz do entendimento humano, complementada com uma abordagem filosófica e estética, as considerações realizadas são passíveis de mudança, uma vez que as premissas que as definem também o são. Considerando o carácter volátil do fenómeno que é a experiência, a estrutura tripartida da presente dissertação permitiu isolar as variáveis que o definem, na tentativa de chegar a um resultado mais objectivo: o acto de experienciar em concordância com o homem, com a arquitectura e com o meio. Assim, o desenvolvimento do primeiro capítulo, cujo objecto de estudo é o homem, permite concluir que os mecanismos responsáveis pela relação humana com a sua realidade, os sentidos, a percepção e a memória, só funcionam se trabalharem interligados num processo de apreensão, descodificação e armazenamento de informação. Ainda que o estudo demonstre que o entendimento do meio pode ser essencialmente subjectivo, compreender estes mecanismos é compreender o homem e, consequentemente, compreender que qualidades espaciais suscitam diferentes reacções emocionais. Conclui-se, ainda, que apelar a todos os sentidos permite não só intensificar a qualidade da experiência dos espaços, devido à quantidade de informação disponibilizada, como também promover a aproximação do homem ao espaço físico, tornando-o tangível e proporcionando vivências mais intensas. No segundo capítulo, é possível compreender de que forma o funcionamento dos mecanismos previamente referidos se aplicam no campo arquitectónico. Os valores
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arquitectónicos associados ao espaço e às suas componentes materiais e imateriais activam esses processos cognitivos de uma maneira específica, estabelecendo assim uma ponte entre o conhecimento humano e a arquitectura. Conclui-se, desta forma, que a manipulação das formas, dos materiais, da cor, da luz e do som segundo a estimulação dos sentidos, da percepção e da memória, contribuem para o enriquecimento das vivências e, essencialmente, permitem comunicar com as necessidade humanas, quer funcionais quer emocionais, através do espaço. Estes valores são as ferramentas que permitem ao arquitecto construir a experiência em si. Mas, este processo de interacção entre o homem e a arquitectura não é um processo isolado, desenvolvendo-se num determinado contexto. Conclui-se no último capítulo que as características que geram esse mesmo contexto moldam tanto quem apreende como o que é apreendido. Os factores associados à existência humana, como a sociedade, a cultura e o território, expressam-se através da criação que lhes é exclusiva, a arquitectura. Assim, a experiência dos espaços responde à manipulação do meio, porque a própria arquitectura, e respectivos valores, é utilizada para materializar os ideais que caracterizam esses factores. Assim, absorver esses ideiais é permitir experiências com significado, é permitir uma melhor compreensão da história de um lugar através da arquitectura e viver conceitos espaciais diversificados, em detrimento da descaracterização arquitectónica. Assim, finda-se este estudo com a noção de que compreender a relação entre o homem e a arquitectura, e respectivo funcionamento, é mais do que satisfazer uma vontade de índole pessoal, derivada do gosto pelo tema. É, essencialmente, estabelecer a importância dessa comunicação, entre sujeito e espaço, numa perspectiva de enriquecer a concepção arquitectónica. Responder às necessidades perceptivas e emocionais humanas, resulta na procura de uma criação arquitectónica em consonância com o seu objectivo primordial de servir as carências do homem. Perante a análise de uma problemática tão vasta e complexa, emergem, naturalmente, perspectivas de abordagem futura. Tendo em conta que a presente dissertação procurou descobrir e problematizar as dimensões que estruturam a experiência, optando por uma segmentação em três domínios, o estudo assumiu um carácter holístico. Optou-se por uma abordagem de carácter transversal, com o intuito de encontrar uma resposta mais abrangente e, pessoalmente, mais esclarecedora. Assim, cada capítulo associa-se a uma matéria que se pode tornar no conteúdo primordial de outras pesquisas. O objecto de estudo do terceiro capítulo, a relação entre a experiência da arquitectura e o meio, é, de um ponto de vista pessoal, um tema interessante para uma análise mais intensa do carácter dinâmico da comunicação do homem com a sua realidade territorial, cultural e social, materializado através da arquitectura.
A satisfação pessoal, decorrente da elaboração da presente investigação residiu, essencialmente, no carácter de descoberta inerente ao seu processo de concepção. Apesar de se ter partido de um conjunto de premissas para o desenvolvimento do tema, as diversas pesquisas realizadas no âmbito do mesmo permitiram um conhecimento mais vasto e um confronto espontâneo com diferentes realidades, pensamentos, conceitos e definições. Assim, o processo criativo da dissertação não foi o resultado de uma estrutura definida à partida, mas sim a consequência de diversos encontros ao longo da pesquisa, orientada para o tema, que permitiram a construção do presente trabalho. Considerando que a experiência, enquanto forma de conhecimento, ainda que esclarecida teoricamente, é um acto exclusivamente humano, surge o interesse de o compreender além das considerações teóricas. Assim, o estudo da temática constitui uma mais valia, considerando a sua exploração uma ferramenta essencial para o futuro profissional. A análise da resposta humana aos espaços permite uma maior sensibilização para a importância de todos os valores que envolvem o método projectual, uma vez que a sua manipulação terá um impacto emocional específico. Não se pretende afirmar que a consciência dos mesmos permite, à partida, resultados positivos, mas a preocupação da sua existência e respectiva articulação trabalha a favor da qualidade da experiência espacial. A arquitectura, mais do que uma experiência, assume-se como uma presença que constitui um meio e um fim da experiência em si. Assim, poder vivenciar arquitectura é mais do que a perceber, é fazer parte da realidade por ela criada.
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1 de Janeiro, 2012 Joana Costa
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