Hieróglifos Contemporâneos

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Hieróglifos contemporâneos Joana Quiroga Artigo originalmente publicado no caderno Pensar de A Gazeta, em 10 de junho de 2013. Foto de capa: Alex Gouvea “Na noite de São Paulo, há muitos bandidos a solta, com armas das mais diversas. Mas há um tipo de bandido muito especial que é o grafiteiro. O grafiteiro não produz feridas, ele produz letras. O graffiti é uma das modalidades mais importantes da literatura dos anos 70 e 80 nos meios urbanos no Brasil.”1 Há 25 anos o poeta, escritor, crítico e tradutor Paulo Leminski abria assim sua coluna no “Jornal Vanguarda” da TV Bandeirantes. Empunhando uma lata de spray, escreveu no muro sua homenagem aos grafiteiros: “Quem tem Q.I. Vai”. Talvez à época ainda não tivéssemos “Q.I.”, mas o fato é que mudamos de década, século e milênio, e não fomos muito longe. A afirmação de Leminski permanece ininteligível: para a maioria incompreendida e enigmática, esta “arma” – a escrita urbana, ou graffiti – parece perturbar mais do que aquelas de fogo. Divisões de polícia são criadas para combatê-la, manchetes em jornais incitam a população a denunciá-la, campanhas (privadas e institucionais) promovem a caçada aos produtores de letras: se não causam feridas, por que incomodam assim? Antes que desmereçamos esta intervenção enclausurando-a apressadamente em nossas anti1 http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=ZkS3LzXGIk0

O artista húngaro Brassaï iniciou seu trabalho Foto: divulgação.

na década de 1930.

gas gavetas, devemos concordar com Leminski em ao menos um aspecto: o graffiti já é, mundialmente, um fenômeno indissociável da paisagem urbana. Mesmo que o consideremos como meros garranchos, rabisco mal feitos, desqualificados como ofensa delinquente, se num exercício de ficção momentâneo esvaziássemos as cidades contemporâneas e puséssemos alguém como Champollion – francês que em 1822 decifrou por primeira vez os hieróglifos dos antigos egípcios dando a chave de acesso à monumental cultura deste povo – incumbido de sondar os mistérios da civilização que ali habitara, certamente consideraria os escritos de graffiti os hieróglifos de nossa história.


so à informação e que a virtualidade de nossos dias tenha ampliado enormemente os recursos disponíveis para se pesquisar e refletir, esta forma de comunicação, com seus códigos, grafia e intencionalidades tão particulares, continua ignorada, sendo expelida como um intruso do nosso aparato interpretativo tradicional. Nisso, as oportunidades, simbólicas e concretas, de pensarmos os desafios das cidades contemporâneas oferecidas por esta manifestação, têm sido sistematicamente perdidas sob a pecha de vandalismo e com isso deixamos de ver que sob sua insígnia de rebeldia, inconformismo e desobediência à lei pode estar escrita outra noção de cidade, entendida como uma obra aberta em que todos estejam convidados a intervir. Então sem uma pedra de Roseta como podemos decifrar o que essas escrituras nos diz?

Exemplo de lugar ocupado pelo Quiroga

na cidade de Vitória - ES. Foto: Joana

No entanto, se para as antigas civilizações desvendar as inscrições nas paredes de pirâmides e papiros, significou podermos conhecer a riqueza do passado, nas civilizações contemporâneas estes inscritos enigmáticos espalhados na superfície da cidade parecem exercer a função inversa: como mensagens criptografadas do futuro explicitam as limitações da ideia de cidade atual e convidam à necessária reformulação do modo que habitamos o mundo. Alheia ao nosso anacronismo, este tipo de manifestação seguiu zelosamente a contemporaneidade, pois com sua tinta escrevia a vida urbana na simultaneidade de sua expansão. Por isso, seus rastros nos fornecem indícios dos limites e possíveis novos caminhos deste espaço inadvertidamente naturalizado de concreto e aço, pois organicamente acompanhou o crescimento da cidade com sua tinta. Isso não é pouca coisa. Ao contrário de Champollion, todavia, apesar de termos expandido vertiginosamente o aces-

História do graffiti Se recorrermos à história da arte, o graffiti representa o ato de usar as superfícies da cidade como suporte da palavra, do nome, do protesto, prestando obediência somente à necessidade de expressar-se. Neste sentido, portanto, o termo abrange dos antigos egípcios ou romanos à Basquiat, dos protestos parisienses em 1968 à pichação, dos maias a Brassaï, fazendo do graffiti um dos mais vastos testemunhos de nosso processo civilizatório. Porém, o que consolidou o graffiti como sinônimo de intervenção urbana contemporânea, foi o movimento de contracultura nascido há mais de 40 anos nos subúrbios de Nova Iorque, em que jovens segregados e invisíveis pelo crescimento da metrópole – que impunha sua lógica de exprimi-los e esquecê-los –, escreveram por toda parte o único que elemento capaz de lhes conceder a individualidade de maneira irrevogável: seu nome. Como se sua tinta pudesse desenhar uma outra cidade, apossavam-


se ilicitamente de cada centímetro, conquistando uma “propriedade” que jamais alcançariam desde as restrições que estavam desacatando. Estavam escrevendo a partilha do espaço negado, e para poder habitá-la e exigi-la como tal, já haviam internalizado um outro conceito de cidade: “crime” seria ficar calado diante disto.

A escrita da cidade Cabe, então, voltar à pergunta: se não causam feridas, por que estes bandidos-escritores tanto incomodam? O que é que não queremos ver ao exigir que suas letras sejam apagadas? O receio parece estar em que estas intervenções uniformizem cidade que se supõe democrática, fazendo de toda a sua superfície um abaixo-assinado daqueles cuja existência é mantida interditada à força por exclusões muito antigas. Vivemos numa cidade sitiada, com cercas elétricas, câmeras e alarmes, porque criamos e incentivamos estruturas excludentes e desumanas: “Uma cidade cujas praças e cujas estradas são controladas por videocâmeras não é mais um lugar público: é uma prisão,” disse Giorgio Agamben 2, um dos mais importantes pensadores da atualidade. Ainda não nos dispusemos a ver por cima do ensimesmento fantasioso de nossos muros para pensar na complexa multiplicidade que há do lado de fora, e detrás das paredes evitamos de nos comprometer na construção de uma cidade de fato coletiva. Ideologicamente sustentamos uma cidade que está nos mostrando suas deficiências e limitações, mas que a um alto preço evitamos confrontá-las. É nesta trincheira disfarçada de progresso que a tinta no muro nos fere mais que bala. Ao “ferir” com letras os muros da cidade, o 2 http://blogdaboitempo.Com.Br/2012/08/31/deus-naomorreu-ele-tornou-se-dinheiro-entrevista-com-giorgioagamben/

na divergência da cidade, Vitória - ES. Foto: Joana Quiroga

graffiti explicita o esquecimento-vivo a que condenamos regiões e pessoas da cidade que recusam-se a seguir este destino. Por isso, simbólica e concretamente, o graffiti nos atenta para o absurdo de nossas cidades, enquanto o lugar que não abriga a polissemia de seus habitantes. Por outro lado, ao fazer isso ele nos mostra uma vida urbana de fato democrática, mas que ainda não somos capazes de exercer, pois, na cidade dos bandidos das letras, a partilha do espaço é lei. Ao espalhar-se pela cidade, o graffiti age ignorando as estratificações que julgamos naturais, e com isso as está cartografando um só plano, como uma cidade imaginária que desconhece a segregação. Estes hieróglifos contemporâneos estão escrevendo a história de uma cidade possível em um futuro urgente não muito remoto, mas que cabe a nós decidirmos se vamos ou não.


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