Arquitetura e Participação - TCC 2017.2

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ARQUITETURA E PARTICIPAÇÃO JOANA MARTINS Orientação: ANA LUIZA NOBRE Trabalho de Conclusão de Curso 2017.2


AGRADEÇO à minha família, que apoiou tanto, às amigas e amigos de sempre, que aguentaram tanto, às amigas e amigos do curso, que dividiram tanto, e à Ana, pela dedicação, pela paixão e, principalmente, pela imaginação.


ÍNDICE

Introdução

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Projetar “para” e projetar “com”

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Análise de projetos selecionados

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Bairro da Bouça

37

COPROMO

73

Quinta Monroy

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Análise comparativa entre os projetos selecionados

123

Categorias e níveis de participação

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Gráfico de avaliação

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Considerações finais

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Anexos

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INTRODUÇÃO


“Um processo de participação move-se entre conflitos, tensões, choques, entrega, saltos, paragens; compreende erros e também a sua crítica; acumula experiência; tende à globalidade.” Álvaro Siza.

SIZA, Álvaro. O 25 de Abril e a transformação da cidade. Revista Crítica de Ciências Sociais: Portugal 1974-1984: Dez anos de transformação social, Coimbra, n. 18/19/20, p.37-40, fev. 1986.


A motivação para esse trabalho surgiu em 2013. Quando eu ainda estava na metade do curso de graduação em arquitetura, uma movimentação começou a tomar as ruas da minha cidade. As manifestações de junho de 2013 começaram em São Paulo, mas logo foram tomando o país. Era tudo muito novo, pulsante, múltiplo e rápido demais. Os jornais tentavam relatar em tempo real, sem sucesso. Os analistas políticos tentavam explicar, sem sucesso. À minha volta, as pessoas trocavam dicas de como se proteger do spray de pimenta, bombas de efeito moral e cassetetes, sem sucesso. Durante semanas vivemos um estado de exceção em que não se falava em outra coisa. Menos na escola de arquitetura. Na disciplina de projeto, estávamos projetando um espaço público (uma escola de ensino fundamental) e a maioria dos alunos estava presente na sala de aula, no mesmo horário das manifestações. Pareciam mundos paralelos, poucos professores comentavam o que acontecia no centro da cidade, a poucas quadras do terreno para o qual projetávamos. A apatia e a desconexão com a realidade indicavam, para mim, que algo não estava bem. As manifestações de 2013 começaram com a pauta da mobilidade urbana, questionando a qualidade dos transportes públicos e sua relação com a falta de direito à cidade. Logo foi acrescentada, principalmente no Rio de Janeiro, a insatisfação com a Copa do Mundo em um momento de crise econômica do país. Para a nossa cidade, o cenário era ainda mais assustador, um calendário de eventos de grande porte estava marcado para os próximos anos, prometendo muitas transformações. Enquanto os políticos defendiam a oportunidade e os empresários comemoravam os investimentos, uma parcela da população já tinha dúvidas sobre os custos desse “progresso”. O ímpeto de ir à rua e a euforia inicial se transformaram em um grande ponto de interrogação quando as pautas dos manifestantes deixaram de ser claras e se voltaram para pedidos de impeachment da presidente e intervenção militar. Esse momento de questionamento e receio nos alertou para os perigos da falta de representatividade e para a possibilidade de manipulação da participação popular. A organização difusa, anônima e apartidária, que tantos exaltaram a princípio, revelou sua vertente conservadora rapidamente. A dificuldade de leitura e de aproximação com o tema da participação tinha total relação com a sua complexidade e a proximidade e rapidez dos acontecimentos, não permitindo uma análise embasada. A minha participação na pesquisa RioNow1, que tratou exatamente das transformações urbanas oriundas dos megaeventos no Rio de Janeiro, permitiu ampliar o debate e aprofundar o entendimento sobre os impactos desse momento. Os protestos anunciaram a 1 Pesquisa acadêmica sediada no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio, entre 2013 e 2016, com coordenação da Profa. Ana Luiza Nobre. Produção disponível em: rionow.org.

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desconfiança da população com relação à imagem de cidade que era vendida. As decisões foram tomadas de forma obscura e a cidade se transformava em um canteiro de obras, do qual ninguém conhecia o projeto. Uma parcela da população percebeu, rapidamente, que não estava presente no novo cartão postal da cidade. Tão logo começaram as remoções forçadas, as repressões culturais e o aumento da violência nas favelas, começaram também as reações. Mapeamos na pesquisa os movimentos que se organizavam em resposta e resistiam da forma que podiam. Assim como as manifestações de 2013 foram uma eclosão, essa efervescência de mobilização social repercutiu ao longo de meses e anos. A dificuldade em acompanhar esse processo se evidenciou na complexidade dos diagramas criados ao longo da pesquisa, retratando as muitas camadas e dúvidas encontradas. A reivindicação popular por maior participação nas decisões sobre a cidade e na construção da imagem de cidade que queremos voltou o meu olhar para os usuários da arquitetura. Durante a minha formação, nunca projetei para pessoas reais, sempre atuando no campo da abstração. Talvez isso explique a desconexão com o mundo fora da academia e com o grito das ruas. Percebo que há uma repercussão do cenário político e econômico do país nos últimos 5 anos nos alunos da escola de arquitetura. Muitos colegas começaram a questionar a metodologia de projeto ensinada e a tentar de diferentes maneiras contrariála. Esse movimento é percebido nos temas de TCC e na crescente mobilização política do curso. Porém, assim como em 2013 houve um momento de desvirtuação, também podemos identificar uma falta de alternativas no campo da arquitetura. A partir da descrença e da frustração com uma metodologia, encontramos, facilmente, o caminho da paralisia. Esse trabalho busca fugir da impotência, entendendo que a recusa a um modelo de projeto não pode ser a recusa ao projeto em si. “(...) não podemos ficar de braços cruzados na caverna da arquitetura tal-como-ela-é, à espera da arquitetura como-deve-ser. Temos de mudar toda a gama de objetos e sujeitos que atualmente participam no processo arquitetônico. Não há outra forma de recuperar a legitimidade histórica da arquitetura ou, no fundo, de restaurar sua credibilidade.” Giancarlo de Carlo2

2  DE CARLO, Giancarlo. O público da arquitetura. In: O Processo SAAL: Arquitectura e Participação 1974-1976. Porto: Fundação Serralves, 2014. p. 274

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PROJETAR “PARA” E PROJETAR “COM”



Contexto de efervescência do conceito de participação O tema da participação ganhou força na arquitetura após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), particularmente a partir da década de 1960, em um quadro marcado por grandes mudanças no cenário político, econômico e social de vários países. Nos EUA, a prosperidade econômica gerou grande crescimento da classe média, estimulada pela explosão do consumo. O bem estar econômico e o fim da Guerra resultaram em altas taxas de natalidade, dando origem ao assim chamado “Baby Boom”. A geração do Baby Boom nasceu junto com a Guerra do Vietnã (1954-1975), uma batalha marcada, entre outras coisas, pela maior rapidez na divulgação das notícias e imagens - o que provocou uma forte oposição pública, sobretudo entre os jovens. O movimento Hippie se espalhou pelos EUA e pelo mundo como uma alternativa à sociedade vigente, pregando a paz, o amor e a experimentação - incluindo novas formas de habitar, consumir, relacionar-se e locomover-se. Prevalecia um forte sentimento de liberdade e transgressão e a busca por novas formas de utilizar os espaços públicos. Esse também foi um momento de grandes conquistas para o movimento negro e o movimento feminista, com a libertação sexual promovida pelo advento da pílula anticoncepcional. Marcos políticos também aconteciam na Europa, como a Primavera de Praga e a Revolução de Maio de 68 na França. Todos esses acontecimentos realçavam as transformações sociais vividas ao redor do mundo, naquela época. Os conflitos apontavam para mudanças centrais na sociedade da época. Na Europa, o enfrentamento às autoridades foi muito forte. As novas demandas exigiram uma redefinição das estruturas vigentes. Também na arquitetura, esse foi um momento de profundos questionamentos. “Construir para o povo ou construir com o povo; erguer a bandeira do regresso à cidade contra as propostas dos urbanistas oficiais, flics du pouvoir, que, um pouco por todo o lado, iam suprimindo a rua, a praça, a cidades e a vida; lutar contra a redutora sublimação do espaço a um mero produto de mercado; tais eram as grandes prerrogativas que, mais ao jeito de palavra de ordem, se iam colocando aos arquitetos militantes de Maio de 68.”1 José António Bandeirinha O problema da participação emergiu, assim, na esteira do questionamento das bases do Movimento Moderno na arquitetura. Seu caráter técnico, universalista e funcional parecia não responder às aproximações com as disciplinas de ciências sociais que contagiavam os pensadores da época. A busca por outras áreas do conhecimento humano indicava o desejo de um entendimento mais amplo do papel social da arquitetura, fugindo do 1 BANDEIRINHA, José António. O Processo SAAL e a arquitectura no 25 de abril de 1974. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2007. Pág. 36

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pragmatismo modernista. Os CIAMs (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna), criados, em 1928, para definir, promover e propagar os princípios da arquitetura moderna em termos internacionais, tiveram papel fundamental nesse debate. Em 1953, no CIAM IX, o tema da habitação no pós-guerra foi motivo de preocupações. Foi nesse congresso que um grupo formado pelos membros mais jovens começou a demonstrar divergências quanto ao posicionamento dos fundadores da organização. O principal objetivo do encontro era formular um documento suplementar à Carta de Atenas, a Carta do Habitat; porém, os arquitetos mais jovens e a velha guarda2 da instituição discordavam dos caminhos a serem tomados e o impasse ficou claro. O CIAM X, em 1956, seguiu com o mesmo tema, mas, dessa vez, foi organizado pelos membros mais jovens, que deram origem ao Team X. Esse é considerado, por muitos, o último CIAM, embora uma outra edição ainda tenha sido realizada3. O encontro acabou por discutir os rumos do Congresso diante das preocupações do grupo quanto ao futuro das cidades e da habitação nesse situação de crise. A arquitetura modernista dava claras demonstrações de seu colapso. Um momento emblemático foi a implosão do conjunto residencial de Pruitt Igoe, projetado pelo arquiteto Minoru Yamasaki, em Missouri, EUA, e inaugurado em 1954. O conjunto de 33 prédios foi construído no intuito de melhorar a situação social da cidade e prover habitação de qualidade para pessoas de baixa renda. Contudo, a esperança logo se transformou em desilusão. O conjunto foi rapidamente se deteriorando e se transformando em um reduto de violência e segregação. Em 1972, diante desse cenário, optou-se pela implosão de todo o conjunto. As divergências introduzidas pelo Team X representaram um momento de transição importante na história da arquitetura, no entanto, podemos perceber que há elementos que permaneceram. Tanto o Team X quanto os arquitetos fundadores do CIAM defendiam a importância do papel social do arquiteto, embora de modos muito diferentes. Não podemos dizer que há uma ruptura total, e, sim, uma postura crítica com relação à forma de atuação. O pensamento de uma arquitetura internacionalista e que buscava solucionar todos os problemas sociais, considerado bastante autoritário, depositava enormes responsabilidades e expectativas à profissão. Essa liberdade dos arquitetos em trabalhar de maneira personalizada e com grupos distintos, contrariamente ao universalismo moderno e seu modelo de homem ideal, é abordada pelo geógrafo britânico David Harvey, em seu livro “Condição pós-moderna”. O “igualitarismo forçado de gostos”, como o autor denomina a universalização das demandas, 2  Entende-se como o grupo formado pelos arquitetos mais velhos e fundadores do CIAM, como Le Corbusier e Gropius. 3  Em 1959, o Team X - que já vinha se articulando desde 1953 -, decreta o fim dos congressos, no CIAM XI, em Otterlo.

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propiciou a repressão de desejos - que explodiriam nos anos 1960. A heterogeneidade de vozes trouxe novos desafios à arquitetura, que, ao tentar satisfazê-las, optava, muitas vezes, por uma fragmentação, segundo Harvey. Harvey ressalta ainda como os movimentos revolucionários podem abarcar um aspecto espetaculoso, identificando, já na década de 1970, possíveis manipulações da participação nas mobilizações políticas: “Nas cidades americanas, o espetáculo urbano dos anos 60 se constituiu a partir dos movimentos sociais de oposição de massa na época. Manifestações pelos direitos civis (...) eram trigo para o cortante moinho do descontentamento urbano que girava em torno da base dos projetos modernistas de habitação e renovação urbanas. Mas, mais ou menos por volta de 1972, o espetáculo fora capturado por forças bem diferentes e empregado para fins bem distintos.”4 O geógrafo identifica, a partir de diversos exemplos, uma associação entre as reivindicações identitárias de minorias étnicas no mundo globalizado e uma arquitetura do espetáculo pós-moderna. Como forma de conter a pulsante fragmentação, esses movimentos foram capturados por projetos que os envolviam de alguma maneira - no que ele chamou de “prazer participativo transitório”: “(...) essa forma de desenvolvimento exigia uma arquitetura totalmente diferente do modernismo austero da renovação do centro das cidades que dominara os anos 60. Uma arquitetura do espetáculo, com sua sensação de brilho superficial e de prazer participativo transitório, de exibição e de efemeridade (...) se tornou essencial para o sucesso de um projeto dessa espécie.”5

4  HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992. p. 88 5  Ibid. p. 91

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Novas concepções de projeto e de autoria A crítica ao papel dos arquitetos no processo projetual é resumida por Giancarlo De Carlo - arquiteto italiano, membro do Team X - em seu texto “O público da Arquitetura”, de 19696. Ele argumenta que os arquitetos modernistas pensavam apenas no “como” e não no “porquê”. Segundo ele, isso gerava uma universalização das demandas e um conformismo por parte dos arquitetos, que tendiam a não questionar o que lhes era passado. Da mesma forma, ignorava-se a percepção dos usuários em favor da dos clientes, distanciando ainda mais a arquitetura da realidade social. De Carlo usa como exemplo o tema da habitação mínima no CIAM II, de 1929, para ilustrar como os arquitetos modernistas tendiam a se concentrar no “como”, sem questionar os “porquês” – tidos como já respondidos. Almejava-se o projeto com a menor metragem quadrada, sem pensar nos motivos que os levaram a projetar para a maior eficiência em menor custo. O embate não solucionado entre qualidade e quantidade habitacional levou os arquitetos a evitar a realidade e a propor ficções e utopias, como se pode ver nos trabalhos dos Metabolistas, Situacionistas, Archigram, entre outros grupos que questionavam de alguma forma a rigidez modernista. Para Giancarlo de Carlo, havia uma paralisia no campo da Arquitetura gerada pela retirada do arquiteto do centro das soluções e pelo incremento de outras disciplinas na resolução dos problemas sociais. O caminho para sair dessa paralisia seria reformular os papéis dos agentes envolvidos no processo de projeto. Ao envolver os usuários no processo, a lógica deste seria revista e as necessidades e desejos daqueles seriam finalmente considerados e os critérios não seriam mais mercadológicos. Isso implicaria em uma redistribuição do poder nas tomadas de decisões, forçando o arquiteto a sair de sua zona de conforto e superar sua ilusão de poder. A questão habitacional havia se tornado urgente em todo o mundo, a partir dos anos 1950. Países ricos e emergentes se deparavam com a grande migração para as cidades e o aperfeiçoamento dos meios de comunicação tornava a miséria, a desigualdade e a precariedade dos alojamentos informais urbanos ainda mais visíveis. A crise habitacional e o fenômeno urbano se consolidavam como tema de diversos estudos sociais, antropológicos e econômicos. A aproximação dos destinatários no projeto de arquitetura começou a ser apontada como forma de promover uma maior credibilidade à disciplina. Esse interesse, através das ciências sociais, buscava ampliar e qualificar a interferência social da arquitetura (BANDEIRINHA, 2007). “Durante a segunda metade da década de sessenta, vários foram os indícios 6  DE CARLO, Giancarlo. Architecture’s public. In: JONES, Peter Blundell; PETRUSCO, Doina; TILL, Jeremy (Ed.). Architecture and participation. Kentucky: Routledge, 2005. p. 3-18.

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argumentativos que tendiam a considerar a prática arquitetônica como o resultado directo da vontade dos destinatários, (...) sem passar pelo crivo da autoria e da imposição de um ‘técnico’ ou de uma ‘equipa técnica’. Por um lado, era uma posição suportada pelo crescente reconhecimento da diversidade cultural, pela convicção que a presunção universalista do Movimento Moderno tinha redundado numa das suas maiores fraquezas.”7 José António Bandeirinha Um dos projetos pioneiros a utilizar processos participativos foi o Villaggio Matteotti, de Giancarlo de Carlo, iniciado em 1970 e inaugurado em 1975, na cidade de Terni, Itália. A exigência do envolvimento dos moradores veio do arquiteto. O projeto de reestruturação da vila operária teve início a partir da eleição de um modo de intervenção, votado a partir de 5 hipóteses trazidas pelo arquiteto. Dessa maneira, o arquiteto dividiu a autoria do projeto com os moradores, projetando junto com eles e não para eles. Esse reposicionamento retira os moradores do lugar de quem apenas recebe um objeto concluído para o de quem constrói junto, assim como retira o arquiteto do lugar de fornecedor de soluções e o faz trabalhar coletivamente. Os relatos de De Carlo8 acerca do processo de participação indicam um problema que se repetirá em diversos outros projetos: resistência por parte dos moradores em imaginar projetos fora do padrão de baixa qualidade dos programas governamentais ao qual estavam acostumados. Eles queriam casas novas muito semelhantes às anteriores, não concebendo que projetos tidos como caros e complexos pudessem ser destinados à classe operária. De Carlo, então, em uma segunda etapa, apresentou projetos residenciais existentes com diversos preços, contextos e de países diferentes, para estimular o repertório dos moradores. Assim, ele promoveu uma discussão mais ampla, fora dos estereótipos da habitação de caráter social e com maior capacitação dos seus participantes. Essa metodologia se relaciona muito com o discurso pedagógico de De Carlo, que defendia a participação como meio de proporcionar educação e cultura. Esse processo pedagógico buscava enfrentar o abismo técnico, cultural e imaginativo que o separava dos moradores, além de uma histórica desqualificação devido às diferenças econômicas. Em Villaggio Matteotti, a opção pelas passagens de pedestres suspensas e interligadas, a variação tipológica e a escala urbana (840 unidades previstas, 250 realizadas) agregaram um nível de complexidade grande ao projeto. De Carlo não abriu mão do seu controle e escolhas quanto ao desenho da arquitetura, sem que isso impedisse os moradores de 7 BANDEIRINHA, José António. O Processo SAAL e a arquitectura no 25 de abril de 1974. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2007. Pág. 31 8  “Quartiere Matteotti, Terni, 1970-1975” RAI SAT art / 2003 In collaborazione con: Architettura a Valle Giulia - Università degli Studi “La Sapienza” MEDIATECA https://vimeo.com/32628698

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participarem nas tomadas de decisões. Para tal, a equipe era interdisciplinar, contando com um sociólogo, Domenico de Masi, o que foi fundamental para um entendimento melhor do perfil dos usuários. Durante o processo, uma pesquisa social foi realizada a fim de conhecer melhor as demandas da população e elaborar um programa de reuniões. A abordagem de De Carlo difere de outras práticas realizadas nesse momento. O arquiteto inglês John F. C. Turner trabalhou, a partir dos meados dos anos 1950, desenvolvendo projetos de assistência técnica à assentamentos informais no Peru. Em sua leitura das construções informais, ele concluiu que as soluções formais de acréscimo e adaptações desenvolvidas pelos peruanos eram inovadoras e que os arquitetos tinham muito o que aprender com elas. Invertendo a lógica colonizadora, Turner reconheceu nelas uma revelação da capacidade de ajuda mútua dos moradores, em cenários de abandono por parte dos governos. Contrário ao paternalismo tecnocrático, ele defende a autoridade do morador ao invés do arquiteto ou do poder público. “Partindo dessa premissa radical, aprofundada e ratificada por um quotidiano de permanente contacto com a realidade, Turner procuraria nunca ceder ao uso da supremacia que a sua qualificação técnica e profissional lhe sugeria. A sua descoberta residia não nas potencialidades do apoio técnico que os arquitectos e os urbanistas podiam conferir às implantações existentes, mas sim na capacidade que as populações revelavam para resolver os seus graves problemas habitacionais, sem recurso a subvenções do Estado (...).”9 José António Bandeirinha Em 1966, também no Peru, foi lançado um concurso internacional de habitação social. O Proyecto Experimental de Vivienda (PREVI) contou com a participação de diversos arquitetos renomados mundialmente, como Aldo Van Eyck, Christopher Alexander, Candilis Josic Woods, dentre outros; sendo vários deles membros do Team X. Em um contexto muito favorável e único, com financiamento da Organização das Nações Unidas e sendo um arquiteto o presidente do país, essa era a chance para os arquitetos responderem à crise habitacional na América Latina. O PREVI, criado pelo arquiteto inglês Peter Land, sofreu diversas reviravoltas, como o golpe militar em 1968, o empate de três finalistas e a ideia de construir um piloto em menor número dos projetos finalistas antes da construção em larga escala. No final, apenas esse piloto foi construído, com aproximadamente 500 casas, em Lima. As ideias de Turner estão nas bases do PREVI, mesmo ele não tendo se envolvido. As premissas do projeto eram a habitação em escala humana, em unidades unifamiliares que 9 BANDEIRINHA, José António. O Processo SAAL e a arquitectura no 25 de abril de 1974. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2007. Pág. 45

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pudessem ser incrementadas com adições no decorrer do tempo. Esse crescimento gradual pode ser lido como uma lição aprendida com os assentamentos informais peruanos10. Lição essa de entender a casa não como um objeto estático, mas em constante transformação; não como o fim, mas como o início de um processo. 10  MCGUIRK, Justin. From Lima to Santiago: A Platform for Change. In: MCGUIRK, Justin. Radical Cities: Across Latin America in Search of a New Architecture. Londres: Verso, 2014. p. 67-99.

Experiências brasileiras: Acácio Gil Borsoi e Carlos Nelson

Entre 1963 e 1964, no Recife, é realizada a experiência de projeto e construção do núcleo habitacional de Cajueiro Seco. Unindo preceitos modernos às técnicas vernaculares, o projeto de Acácio Gil Borsoi é tido como pioneiro no uso da taipa pré-fabricada. Aliando a técnica local ao conhecimento especializado, o projeto foi construído em mutirão a partir da racionalização de fabricação e montagem de painéis de madeira e barro. A modulação dos painéis permitiu aos moradores definir de forma autônoma o desenho de suas casas. Também em 1964, o arquiteto brasileiro Carlos Nelson Ferreira dos Santos começa a trabalhar na urbanização da favela Brás de Pina, no Rio de Janeiro. Junto com sua equipe e após realizarem um diagnóstico do local, Carlos Nelson propõe aos moradores que desenhem as plantas de como queriam suas casas. A tipologia unifamiliar havia sido definida pelas famílias e os 300 desenhos foram feitos das mais diversas maneiras. A equipe, então, classificou os desenhos em tipologias a serem escolhidas por cada família. Esse modelo de participação é bastante literal ao conferir ao morador a responsabilidade pelo desenho. Carlos Nelson entendia que o papel do arquiteto era apenas assistir os moradores no processo de projeto. “Não havia restrições à construção das habitações propriamente ditas. Sempre que eram solicitados, os arquitetos aconselhavam, mas o tom era, evidentemente, deixar que a intervenção ao nível das opções para a casa própria fosse completamente liberalizada. Carlos Nelson dos Santos partilhava da turneriana opinião que, nestes casos, a normativa para a construção da habitação deveria ser eminentemente prescritiva e nunca proscritiva, ou seja, o acompanhamento técnico deveria assistir e aconselhar a obra, nunca criar inibições ou proibições.”11 José António Bandeirinha Assim como Turner e diferentemente de De Carlo, Carlos Nelson defendia uma diminuição na atuação do arquiteto do ponto de vista formal. Há uma supervalorização dos ditos saberes populares e uma redução do saber do arquiteto apenas a uma função 10  MCGUIRK, Justin. From Lima to Santiago: A Platform for Change. In: MCGUIRK, Justin. Radical Cities: Across Latin America in Search of a New Architecture. Londres: Verso, 2014. p. 67-99. 11 BANDEIRINHA, José António. O Processo SAAL e a arquitectura no 25 de abril de 1974. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2007. Pág. 51

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Construção e detalhes construtivos do Cajueiro Seco. Fonte: DE SOUZA, Diego Beja Inclez. Reconstruindo Cajueiro Seco: Arquitetura, Política Social e Cultura Popular em Pernambuco (1960-64). São Paulo: Annablume, 2010.

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Planta de uma casa da urbanização de Brás de Pina Fonte: SANTOS, C. N. F. Movimentos urbanos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro; Zahar, 1981.

Vista aérea do PREVI

Villaggio Matteotti Fonte: lombardiabeniculturali.it

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técnica, abdicando da imposição de superioridade e, também, do seu critério estético. Tal como Turner, Carlos Nelson assume o papel de advogar em nome dos moradores, nos termos do que se entende como “advocacy planning” - conforme veremos adiante. Essa visão do papel do arquiteto diante das questões sociais fez com que Carlos Nelson se aproximasse mais do campo das ciências sociais e da antropologia. Sua trajetória profissional mostra um desapontamento com a capacidade da arquitetura em promover mudanças sociais. As melhorias que ele seria capaz de efetuar como arquiteto pareciam muito pequenas diante do sistema capitalista que produzia tais desigualdades. Ao tratar apenas de um objeto, e não das relações, a arquitetura seria limitada. Ampliam- se, portanto, as expectativas em torno dos efeitos que o objeto proporciona e impulsiona. Essa visão pode levar tanto a uma redução da arquitetura a um segundo plano de importância, quanto a uma exigência exacerbada da mesma. Ao considerar apenas o objeto final e formal como propulsor ou resultado social, Carlos Nelson não está considerando o processo de projeto como agente de transformação indireta.

Projeto como processo social Para Giancarlo de Carlo, a arquitetura não está acabada quando está construída. O processo é cíclico e sempre se renova, estando em constante transformação e revisão, voltando à fase de hipóteses de projeto. Não haveria, portanto, uma única solução, e, sim, várias hipóteses com validade momentânea. Enquanto os arquitetos modernistas acreditavam que a arquitetura era capaz de mudar os indivíduos, Giancarlo de Carlo defende que os indivíduos também devem ser capazes de modificar a arquitetura, sem que isso seja tratado como desordem. Não por acaso, essa ideia de De Carlo tornou-se referência, a partir de então, para as críticas em torno de uma concepção de projeto que valoriza sobretudo o produto final, em detrimento da fase de análise e do processo como um todo. O arquiteto e educador britânico Jeremy Till, em texto recente (“The Negociation of Hope”12, de 2005), argumenta que os arquitetos diagnosticam um “problema” e fornecem uma solução. Extremamente técnico, autoritário e autoral, esse pensamento pressupõe uma arrogância do arquiteto que, apesar de não se envolver ou vivenciar o contexto, supostamente sabe dizer o que é “melhor” para aquelas pessoas. A crítica a essa postura envolve a redefinição da concepção de projeto, o que abre uma série de questionamentos sobre os agentes que participam do processo projetual – incluindo, naturalmente, o usuário. Mas quem é esse usuário? Podem ser indivíduos ou coletividades com diferentes níveis 12  TILL, Jeremy. The Negociation of Hope. In: JONES, Peter Blundell; PETRUSCO, Doina; TILL, Jeremy (Ed.). Architecture and participation. Kentucky: Routledge, 2005. p. 23-43.

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de organização e ligações entre as pessoas. Um grupo social pode ter objetivos em comum e formas de viver que se assemelham de alguma forma ou ser completamente diverso e fragmentado, sendo incluídos em uma coletividade apenas por fatores geográficos. Mas o que define uma comunidade? Reinier de Graaf, no texto “From CIAM to Cyberspace: Architecture and the Community”13, de 2013, questiona se o que une as pessoas em uma comunidade são as semelhanças entre si ou suas diferenças em relação aos outros. Muitas vezes, o termo “comunidade” tem uso apenas retórico, sugerindo algo comum a todos. A comunidade é um recorte definido por alguns agentes de acordo com seus interesses. No mundo atual, a comunidade pode, inclusive, não estar ligada a uma noção de territorialidade, segundo De Graaf. Afinal, essa relação varia muito conforme o número de pessoas envolvidas, que quase sempre é maior do que o corpo técnico, composto pelos profissionais especializados e contratados para determinado projeto. Na tentativa, ainda que bem-intencionada, de ouvir a todos, opta-se muitas vezes pelo sistema de representação. Porém, como esses representantes são escolhidos? Qual a garantia que eles de fato são porta-vozes? Como representar uma comunidade com múltiplos interesses? 13  DE GRAAF, Reinier. From CIAM to Cyberspace: Architecture and the Community. In: BAIRD, Laura et al. The Community Issue. S/l: Hunch, 2013. p. 45-51.

Participação e política

Hoje, para discutir o conceito de participação, é preciso considerar os conceitos relacionados de representação e de democracia, buscando sua compreensão mais ampla do ponto de vista das ciências sociais e da crise de representatividade contemporânea. Para esse propósito, é preciso fazer um apanhado geral de como se dava o debate sobre a participação cidadã em paralelo nas ciências sociais. No fim dos anos 1960 - período que corresponde à emergência do tema da participação no campo da arquitetura, como vimos -, a palavra “participação” estava em alta no debate político ocidental. Havia uma onda de reivindicações por mais abertura à participação popular nas esferas governamentais, oriunda do pós-guerra e de processos de redemocratização para muitos países. A massificação da palavra ampliou o conceito, dando origem a vários significados e interpretações. “Participação” passou a denominar uma série de situações que poderiam até se contradizer. De acordo com a cientista política inglesa Pateman14, essa popularização do termo nos anos 1960 deve-se, sobretudo, aos jovens, já que a maior parte dos cientistas políticos da época não compartilhavam da mesma visão. Pateman aborda a aproximação 13  DE GRAAF, Reinier. From CIAM to Cyberspace: Architecture and the Community. In: BAIRD, Laura et al. The Community Issue. S/l: Hunch, 2013. p. 45-51. 14  PATEMAN, Carole. Participação e Teoria Democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

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e distanciamento da ideia de participação com a ideia de democracia. Os autores clássicos da teoria democrática associam os dois conceitos quase como complementares, sendo a participação um fator constituinte da ideia de governo democrático. No entanto, os autores modernos tendem a afastar os dois conceitos. Isso se deve, segundo a autora, ao desenvolvimento da sociologia política e a emergência de governos totalitários na metade do século XX. Pateman identifica também duas preocupações das teorias atuais: a convicção da necessidade de uma revisão das teorias clássicas e a preservação da estabilidade política. Essa última deriva, segundo ela, do fato de que, atualmente, só reconhecemos duas formas de governança possíveis: democracia e autoritarismo, sendo a democracia entendida como a única opção válida. Para a autora, o desenvolvimento das sociedades pós industrialização tornou suas relações mais complexas e multiplicou sua dimensão, o que, sob o argumento sociológico, começou a ser usado para questionar a aplicação prática da ideia de democracia como um governo com participação da maioria dos cidadãos. Por volta da metade do século XX, surgem regimes totalitários com grande envolvimento da população. Ao contrário do que nos indica o senso comum, os regimes fascistas frequentemente tinham forte adesão das massas, tendo o voto como principal mecanismo de participação. Nesses cenários, a participação eleitoral era quem permitia a chegada de ditadores ao poder – exceto em casos como o golpe de Franco, na Espanha -, no entanto não se pode dizer que a população tinha qualquer tipo de controle nas tomadas de decisões. O nazifascismo alemão, por exemplo, distorcia formalidades institucionais, como as votações no parlamento, para gerar uma aparência de legitimidade. As mobilizações populares, alimentadas por organizações juvenis e sindicatos em manifestações, marchas e comícios, geravam um forte apoio popular que também foi fundamental para afirmar o papel dos ditadores como líderes fortes que atuavam pelo bem da nação. Tais experiências, ressalta a autora, aproximaram a ideia de participação do conceito de totalitarismo, distanciando-a da ideia de democracia. Para corroborar esse cenário, estudos sociológicos da época indicavam o desinteresse político dos grupos menos abastados, indicando inclusive comportamentos não democráticos ou autoritários. Instaurase, portanto, o receio de que uma maior participação desses grupos poderia colocar em risco o Estado democrático. A autora traz ainda outros pensadores (Berelson, Dahl, Sartori e Eckstein) que não veem a máxima participação possível como um dos pilares da democracia. Pelo contrário, há quem entenda que “a participação limitada e a apatia têm uma função positiva no conjunto do sistema ao amortecer o choque das discordâncias, dos ajustes e das mudanças”15. 15  PATEMAN, Carole. Participação e Teoria Democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. Pág. 16

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Assim sendo, a participação funcionaria como um mecanismo de controle da estabilidade do sistema ao exigir envolvimento apenas de uma minoria. A massa exerceria algum tipo de controle por intermédio da escolha dos líderes. A competição entre os líderes, visto que há cargos limitados para essa função, garantiria o não-autoritarismo por parte deles, já que podem ser trocados, caso não agradem. O que Pateman quer trazer com esses autores é a ideia de que a “teoria contemporânea da democracia” - como ela denomina a teoria vigente em 1970, ano em que a autora escreve - entende o ato eleitoral como principal característica da democracia, pois é através da competição entre líderes e da alternância de mandatos que se obtém o controle pela maioria. “A ‘igualdade política’, na teoria, refere-se ao sufrágio universal e à existência de igualdade de oportunidades de acesso aos canais de influência sobre os líderes.”16 Carole Pateman De acordo com essa teoria, “participação” é a participação na escolha de quem irá tomar as decisões, o que protege o cidadão de autoritarismos por parte de seus líderes. Pateman ressalta que essa teoria contemporânea é criticada por ser claramente normativa, pois considera esse sistema democrático como o ideal ou como a melhor alternativa, mesmo que não seja perfeita, quando oposta apenas ao totalitarismo; concluindo, portanto, que o sistema que deveríamos ter é exatamente o que temos. Pateman identifica que o problema está na falta de questionamento à base das teorias, em não analisar o que os autores anteriores formularam. Pateman, analisando os - assim considerados - autores da teoria clássica da democracia, percebe haver discordâncias fundamentais em suas teorias, que costumam ser ignoradas pelos teóricos contemporâneos. James Mill e Bentham, por exemplo, entendem a função da participação apenas como um instrumento de proteção do representado, sendo a democracia garantida realmente através dos “arranjos institucionais”, como a alternância de poder e a competição entre a elite de líderes – conforme já abordado acima. Autores como Rousseau e John Stuart Mill, por outro lado, dão à participação um papel muito mais central na manutenção do Estado democrático. Para Rousseau, o poder dos representantes origina do povo. Ele vê todo poder originalmente como ilegítimo, apenas se tornando legítimo quando há um pacto de consentimento com o povo, e não através da submissão a um soberano. A participação, portanto, tem aqui um papel central na estruturação da democracia: ela não apenas protege, mas tem uma função psicológica sobre os que participam, como defende Pateman. A participação para Rousseau é educativa, na medida em que cada indivíduo 16 PATEMAN, Carole. Participação e Teoria Democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. Pág. 25

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tem sua importância e é o coletivo de indivíduos que cria as leis que os limitam. A lei emerge do processo participativo e atua sobre todos igualmente, garantindo o controle. Rousseau, contudo, pensa a democracia de forma direta e não representativa, sendo a participação de todos os cidadãos nas tomadas de decisão possível apenas no seu modelo de sociedade não-industrial. Essa ideia de participação como ferramenta didática e política assemelha-se aos argumentos de Giancarlo De Carlo. Seu entendimento do envolvimento dos moradores no processo de projeto passa por uma capacitação do indivíduo. Desse modo, os indivíduos detêm o controle ao invés de estarem submetidos a uma relação de dominância. A participação, para De Carlo, garante o consentimento e a legitimação por parte do povo, assim como para Rousseau.

Desafios da representação na contemporaneidade O cientista social brasileiro Luis Felipe Miguel começa seu livro, “Democracia e Representação: Territórios em disputa”17, afirmando que a democracia vem se apresentando, após a Segunda Guerra Mundial, como o único regime possível a garantir a aceitação dos governados. Porém, ele destaca que o que entendemos hoje por democracia difere da ideia clássica de democracia grega, para a qual processos como as eleições e o parlamento são totalmente estranhos. Esse processo de mutação do conceito é o que o autor identifica como “democracias adjetivadas”, no qual os mais diversos regimes buscam o carimbo democrático, resultando em aberrações como a “democracia autoritária”18. As sociedades são, há bastante tempo, numerosas demais para propor uma democracia direta, sendo necessária a representação. Da mesma forma, a política se tornou mais complexa, exigindo mais conhecimento especializado e uma dedicação de tempo inviável para a maioria dos cidadãos. A representação é, portanto, incontornável, como defende Miguel, e traz consigo novos desafios a serem enfrentados; seja no entendimento mais comum de “representação política”, seja no sentido político mais amplo, que envolve, por exemplo, a habitação ou a arte ou a educação. O primeiro desafio identificado pelo autor está na relação entre os interesses de indivíduos e de grupos. Busca-se, normalmente, alcançar uma hipotética “vontade coletiva” que manifestaria uma unidade diante dos interesses conflituosos. O segundo desafio é a diferença de recursos entre os indivíduos, impedindo a igualdade de acesso às decisões vença as diferenças sociais. A apropriação da participação é prejudicada pela falta de capacitação. O último desafio está na manipulação da “vontade coletiva”, através das 17  MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: Territórios em disputa. São Paulo: Unesp, 2014. 18 http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-democracia-autoritaria-imp-,948686

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regras que regem nossas decisões. Tais desafios também se fazem presentes nos processos arquitetônicos. O arquiteto inglês Markus Miessen aborda a questão do consenso coletivo em suas pesquisas sobre participação. Miessen identifica a busca pelo consenso como algo contra produtivo e defende a participação conflituosa. Esse dissenso, segundo ele, poderia e deveria ser incentivado e até mesmo desenhado pelos arquitetos. Para isso, ele usa a analogia do Crossbench como modelo de prática. O Crossbench é uma parcela de membros do parlamento inglês que não pertence a nenhum partido, sendo assim, não estaria ligada a nenhuma amarra ideológica prévia e pode agir de forma independente e autônoma, sem alianças. O nome origina da organização espacial do parlamento, que posiciona esses membros em assentos neutros no meio, ilustrando que eles não estão de nenhum lado específico. Miessen também nos lembra que a quantidade de mecanismos políticos de participação vem aumentando na Inglaterra, enquanto a vontade das pessoas em participarem vem diminuindo. Isso é o que ele classifica como “pesadelo da participação”, quando há uma obrigação em participar e a autonomia do participante não é estimulada. A chamada “participação convidada” representaria uma espécie de violência participativa, pois impõe uma necessidade ao invés de nascer de uma demanda. Miessen, então, propõe uma inversão na lógica dos processos participativos, tentando fugir da banalização da prática. O autor busca, em sua trilogia de livros, desconstruir a ideia estereotipada da participação, qualificar o debate, alertar para os perigos da participação como legitimação e despertar desse pesadelo que criamos. Para isso, todavia, é necessário despertar do sonho da participação: “Despertar de um pesadelo é perceber que você realmente está sonhando. Você não pode escapar do pesadelo pela lógica do próprio sonho; você deve sair do mundo dos sonhos.”19 Luis Felipe Miguel dialoga com a antropóloga britânica Andrea Cornwall20 ao tratar de quem participa e representa. Cornwall também reconhece que poucos tem disponibilidade para essas ações no mundo contemporâneo. Miguel problematiza a “formação de uma elite política distanciada da massa da população” e credita isso à especialização funcional. Antes, os governantes também eram governados e havia uma rotatividade, hoje, essa função se transformou numa classe. A distância entre representantes e representados é muito maior hoje em dia e esbarra na diferença dos interesses de cada um desses atores. A cientista política americana Hanna Pitkin enfatiza a polêmica entre mandato e 19  BEAUDRY, Jeremy; BARONI, Bassam El. Postscript. In: MIESSEN, Markus. The nightmare of Participation: Crossbench Praxis as a mode of criticality. Londres: Sternberg Press. 2010. p. 253 20  CORNWALL, Andrea. Unpacking “Participation”: models, meanings and practices. Community Development Journal. Oxford, p. 269-283. jul. 2008.

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independência21. Uma vez que os representantes deixaram de falar em nome de um grupo específico e passaram a falar em nome de um povo, surge a questão se eles devem responder às necessidades de seus eleitores ou ao que eles acham melhor. Se representação significa falar em nome de um outro que está ausente, a partir de uma confiança depositada normalmente através do voto -, deve-se representar o que é melhor para seus eleitores ou para a nação, seguindo seu entendimento especializado? Para alguns autores, a função dos representantes é ouvir as queixas de seus representados, mas não cabe aos representados elaborar soluções, pois não seriam capacitados para isso. “De modo geral, as pessoas sabem quando algo vai mal em suas vidas, de forma que as informações sobre queixas e necessidades devem ser transmitidas por um representante que seja simpático aos seus problemas; no entanto, quanto às causas e soluções, as pessoas são irremediavelmente ignorantes.”22 Hanna Pitkin Dessa maneira, o voto seria o mecanismo mais usual de autorização. O sistema eleitoral funciona como um contrato, onde o povo abre mão de falar por si mesmo e deposita confiança em figuras escolhidas pela maioria. A autonomia do representante estaria, portanto, legitimada, autorizando-o a agir de acordo com seus ideais. A ausência do representado nunca será suprida pelo representante, pois “cada indivíduo é o melhor guardião do seu próprio interesse, seja porque os outros são muito egoístas para defendêlo, seja porque não podem conhecê-lo”23. Miguel realça ainda como a tensão entre representantes e representados deve ser preservada. A extinção dela levaria a uma utopia representativa perigosa e própria do autoritarismo, podendo considerar que os representantes se identificam totalmente com os representados, a ponto de buscar supri-los. Uma representação que se pretende absolutamente fiel aos representados é, na verdade, um autoritarismo disfarçado. Pitkin, em seu estudo sobre a origem e os significados da palavra representação, nos lembra que há também o sentido de amostra representativa de um todo. Essa amostra pode ser estatística e aleatória, como nas pesquisas de opinião, em que um grupo de pessoas sorteadas representa o total da população. Porém, isso se contrapõe a amostragens onde se escolhe por mérito, por exemplo: escolhe-se o melhor samba para representar o total de músicas desse gênero musical. Na escolha por mérito, não está proporcionalmente representada a diversidade dos sambas, que costumam ser medianos ou banais em sua maioria. Da mesma forma, a escolha por lideranças em qualquer circunstância, costuma se 21  PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: palavras, instituições e ideias. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 67, p.15-47, abr. 2004 22 Ibid. 23 Ibid.

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dar por mérito ou expertise. Como pode-se perceber, a questão da especialização paira sobre o debate da representação. Na arquitetura, há ainda um outro significado para a representação, que seria a representação gráfica. Os instrumentos abstratos, que usamos para representar algo que não está ali ainda, aumentam a distância entre os profissionais e os leigos. O arquiteto e educador britânico Jeremy Till24 defende que essa é uma estratégia muito conveniente para valorizar a nossa profissão e que nos sentimos mais confortáveis quando lidamos com objetos abstratos. Pelo argumento de autoridade, os profissionais podem atuar sem serem questionados, com a prerrogativa de um saber superior. Mesmo para as práticas que buscam considerar outras formas de conhecimento como válidas e inserir leigos no processo, a representação gráfica é uma barreira de linguagem. Abrir mão desse recurso ou repensá-lo é extremamente complexo, como será tratado mais adiante. Luis Felipe Miguel analisa a conjuntura da representação na política, mas podemos facilmente aplicar seus argumentos à representação dentro dos processos participativos da arquitetura. Quando o autor disserta sobre o conceito de advocacy, esse paralelo fica ainda mais evidente. “Advocacy” é um termo em inglês, sem tradução correspondente no português, que se refere a pessoas, instituições ou organizações não governamentais que atuam em favor de uma causa ou grupo, seja por sua influência entre os agentes ou expertise. O advocate tem um vínculo “apaixonado” com a causa e possui autonomia de julgamento, como define a cientista política italiana Nadia Urbinati25. O representante nesse caso se diferencia ainda mais do representado, pois a busca é pelo melhor defensor, não pelo mais semelhante. Há um entendimento, nesse caso, de que se deve priorizar a expertise em detrimento da identificação com o representante. A valorização da técnica como método mais efetivo de se garantir os interesses dos representados leva a uma provável elitização dos advocates, visto que há uma desigualdade de oportunidades de especialização. Luis Felipe Miguel critica o fato de Urbinati ignorar essa questão e levanta ainda três complementos críticos à defesa da cientista. Para ele, o advocacy pode acentuar a assimetria de poder entre representantes e representados; o julgamento por parte dos representados pode ser comprometido devido à falta de capacitação política; e, por fim, a representação via advocacy pode retirar a autonomia dos representados em construir suas preferências políticas. Ou seja, para ele, esse modelo, apesar de seu discurso pela eficácia, é sempre atravessado pelos problemas da desigualdade social entre os dois grupos. Em posição menos favorecida de diálogo, organização e julgamento, os 24  TILL, Jeremy. The Negociation of Hope. In: JONES, Peter Blundell; PETRUSCO, Doina; TILL, Jeremy (Ed.). Architecture and participation. Kentucky: Routledge, 2005. p. 23-43. 25  MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: Territórios em disputa. São Paulo: Unesp, 2014.

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representados tendem a abraçar as preferências de seus advocates. A representação através do advocacy evoca a profusão de intermediários entre o Estado e a sociedade. Para entender essa questão, o autor usa os conceitos de “autorização” e “accountability”. Autorização seria a permissão concedida pelo representado ao seu representante, ou o “contrato” que permite que se fale em nome de outra pessoa. Normalmente, a autorização se dá através do voto, por ser a forma mais eficiente em democracias numerosas. O termo accountability não tem tradução correspondente no português e traz o sentido de “responsividade” do representante perante os interesses de seus representados, como uma espécie de “prestação de contas” que deve existir para averiguar a aprovação de seu trabalho. Encontrar formas de accountability fora da representação eleitoral é o grande desafio detectado pelos autores políticos. Apesar de suas falhas, o modelo eleitoral, dentre os que conhecemos, é o mais eficaz nesse sentido. A rotatividade de mandatos permite que a accontability seja colocada em prática quando da reeleição ou não de um candidato – isso quando ela não se dá durante o mandato. A suposta igualdade de acesso à propaganda política e concorrência permite que a autorização ocorra de forma democrática. A defesa de mecanismos alternativos corre o risco de se transformar em uma defesa da representação sem eleições, caindo na contradição de resgatar um argumento préeleitoral para legitimar a representação pós-eleitoral. Outro risco destacado por Miguel é a ideia de que o representante transcende os interesses do representado. O representante teria uma competência superior, o que o levaria a defender o bem maior e não interesses particulares e egoístas dos indivíduos. A supervalorização da capacidade de intermediação dos advocates é duramente criticada pelo autor. Ela não se diferencia o suficiente das relações de clientela, em que os beneficiados das ações são escolhidos de acordo com a própria vontade e conveniência. Em processos participativos de qualquer natureza, podemos encontrar representantes que não receberam autorização via eleições ou outros mecanismos, como lideranças comunitárias, ONGs e empresas. Os participantes não detêm o controle sobre quem está representando seus interesses, sendo facilmente manipulados caso não haja accontability. Os arquitetos, quando atuando como representantes dos moradores, podem usufruir dessas falhas para “advogar” por interesses pessoais através da participação popular. Felipe Miguel dialoga com autores, como Leonardo Avritzer, que entendem a eleição como algo indispensável, mas não excludente à outras formas de representação. O voto em candidato tem a limitação do mandato, o que leva a uma escolha voltada para questões momentâneas, enquanto o advocacy, por exemplo, estaria mais ligado a escolha por discursos e causas de longa duração. Faltam mecanismos de autorização e accountability,

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mas isso seria relevado ou atenuado pela ampliação das instâncias de representação civil. Resta-nos, então, questionar se essas formas de representação são democráticas. O autor aqui faz uma diferenciação crucial para esse debate. Ele argumenta que essas organizações podem ser democráticas e representativas, mas não simultaneamente. Normalmente, vemos como sinônimos os adjetivos “democrático”, “representativo” e “legítimo”, Miguel nos chama atenção para as suas singularidades. “Governos legítimos não são necessariamente democráticos ou representativos (...)”, assim como “(...) formas legítimas de ação não são necessariamente representativas, como é o caso de lobbies, da busca por reparações individuais etc.”26 “É nociva a indiferenciação entre democracia, representação e legitimidade, que faz que, identificada uma característica, as outras sejam assumidas sem discussão. Em particular, a ideia de que todo falante representa, por definição, um discurso “possível” acaba por esvaziar de sentido a noção de representação política. A presença dos diferentes discursos no debate político é legítima, mas a questão do quanto e de quem esses discursos são representativos não se esgota nessa constatação. Ela também impede tematizar de que maneira os diferentes agentes lutam para que seus discursos obtenham representatividade, mobilizando recursos diferenciados de acordo com a posição de seus emissores, o que é um dos momentos mais cruciais da luta política.”27 Luis Felipe Miguel O autor ressalta ainda a importância da adaptação da fala aos discursos dominantes. O padrão discursivo exclui quem não está capacitado. Cabe ao dominado a escolha entre a marginalidade designada aos autênticos e rebeldes, que se recusam à adaptação, ou a eficácia de ser ouvido. Há um discurso pronto que pode facilmente ser comprado pelos dominados sem a menor consciência. Os advocates são mais eficientes em suas conquistas se agirem em um campo de paternalismo e autoritarismo de especialização. Afinal, esses agentes, além de instrumentalizados e influentes, são profissionais da luta política. Essa questão faz relação direta com o papel exercido pelos movimentos sociais na luta política. Os movimentos têm um histórico de organização e de protagonismos na resistência contra a perda de direitos e nas conquistas por melhorias para as classes mais baixas. Não se pode negar que tais conquistas não seriam possíveis sem a organização interna e a força de líderes que dedicam sua vida à luta. No entanto, não podemos deixar de observar que há uma profissionalização das lideranças. Em muitos casos, é preciso que essas pessoas imponham seu modus operandi e evoquem sua experiência política. No filme “Era o Hotel

26  MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: Territórios em disputa. São Paulo: Unesp, 2014. Pág. 257 27 Ibid.

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Cambridge”28, essa questão é retratada dentro de uma ocupação de um prédio vacante em São Paulo. O movimento de luta por moradia responsável pela ocupação se articula com demais movimentos e ocupações, mantendo uma rede de segurança e cooptação. Fica evidente a necessidade de liderança e organização imposta pelo movimento, de forma quase autoritária. Miguel identifica uma espécie de atalho na definição das preferências quando ela é feita a partir de presunções externas. Essas presunções vêm carregadas de certezas por experiências prévias ou visões de mundo muitas vezes viciadas. Pode ser quase automático para o especialista “identificar” esses interesses, pois ele se vê como um profissional daquela função. A interlocução e a produção autônoma acabam esquecidas devido ao cansaço, à emergência ou à descrença. “O paternalismo subjacente implica a percepção de que a incapacidade política dessas pessoas é um dado de uma realidade que não vale a pena combater ou questionar.”29 Luis Felipe Miguel O autor advoga que esses novos modos de representação não venham para substituir interesses dos grupos representados. As demandas devem surgir de forma autônoma e deveria ser papel dos advocates estimular essa autonomia. Para ele, a advocacy é um obstáculo nesse processo ao priorizar benefícios a curto prazo e colocar as necessidades frente aos interesses. A autonomia é importante não apenas na construção dos interesses, mas também na capacidade de renegociar as identidades do grupo. Miguel reforça que a autonomia é tanto individual quanto coletiva, é a capacidade de crítica em relação ao conjunto qual pertencemos. A autonomia individual reforça o coletivo ao tornar mais claros os compromissos e pactos. No entanto, por mais ideal que seja a representação – que os representantes espelhem a diversidade de representados -, esta é sempre uma relação de poder e a capacidade de ação estará necessariamente concentrada em poucos indivíduos diferenciados. Miguel nos lembra que as perspectivas sociais estão diretamente relacionadas à produção das preferências. Para ele, a advocacy deixa de lado essa questão ao não valorizar os processos de formação autônoma dos interesses. A crítica do autor ao modelo de advocacy não é uma defesa do processo eleitoral como única forma legítima de representação, mas, sim, que a autorização e a accountability existam nesse meio também. É comum enxergarmos apenas nas eleições a aplicação desses mecanismos de controle, porém eles podem e devem existir fora do pleito. Para se ter mais legitimidade, é preciso aprimorar e expandir esses mecanismos, e não descartá28  ERA O Hotel Cambridge. Direção de Eliane Caffé. São Paulo: Aurora Filmes, 2017. Son., color. 29  MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: Territórios em disputa. São Paulo: Unesp, 2014. Pág. 261

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los em nome da expertise dos representantes. O diálogo constante entre as partes é fundamental, visto que não se trata de manifestações prévias, e, sim, de um processo de troca e construção; do contrário, seria uma falsa solução: “Aqueles que possuem menos recursos (materiais, em primeiro lugar, mas também culturais, no sentido do ‘capital cultural’ de Bourdieu) para a participação política encontram porta-vozes dispostos a prover suas necessidades e seu bem-estar. É uma falsa solução, que perpetua a exclusão política e não valoriza a conquista da autonomia.”30 Luis Felipe Miguel Miguel aborda ainda que o ode às novas formas de participação tende a desconsiderar os modelos tradicionais de representação. Isso se deve à frequente desesperança com os velhos modelos e à necessidade de novos caminhos que não estejam contaminados pela lógica anterior. Poucos autores abordam o convívio entre os dois e suas complementariedades. Permanece uma relação dicotômica que se abstém de questionar as práticas viciadas do modelo eleitoral e não problematiza as questões trazidas pelas novas formas de participação. Essa acomodação confere a esses espaços participativos um caráter secundário, visto que nunca terão a abrangência do sistema tradicional. Cabe a eles agendas específicas e conquistas locais, sem interferirem no sistema social e político que os rege e sem aprofundar a democracia. No Brasil, é notável uma esperança na participação política após a Constituição de 1988. O período de redemocratização foi rico em tentativas e produção acadêmica sobre novas formas de envolvimento da sociedade civil. Hoje, podemos dizer que estamos em um momento de revisão crítica a essas experiências. Nossa história é marcada por vários governos autoritários, sendo nossa democracia muito jovem e frágil. No entanto, nossa Constituição é uma das mais progressistas e participacionistas do mundo. Esse descompasso é abordado por Simon Schwartzman31, cientista social brasileiro, ao tratar da constituição do Estado brasileiro. Ele argumenta que antes de nos entendermos como nação, tivemos Estados fortes. Desde a colonização, passando por Vargas e culminando com a Ditadura Civil-Militar de 1964, criamos uma base autoritária em nossas instituições e no nosso ser político. Durante muitos anos de nossa história as decisões foram tomadas pelas instâncias superiores, sem a participação da população. Essa herança contamina nossas instituições até hoje e ainda há muitas revisões a serem feitas. O exemplo mais direto é a permanência da Polícia Militar em nossa atual democracia. Contudo, esse mesmo autoritarismo também pode ser encontrado dentro dos próprios mecanismo de participação criados na democracia. 30  MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: Territórios em disputa. São Paulo: Unesp, 2014. Pág. 267 31  SCHWARTZMAN, Simon. Bases do autoritarismo brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 1982.

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A efetividade política fica, deste modo, descreditada perante a população, que não compreende esses elementos e relações. Pouco nos adianta ter uma Constituição moderna, se não temos uma sociedade de acordo com ela, porque surgem modos de burlar e emendas para que se perpetuem as hierarquias históricas. Essa descrença nas instituições leva a uma busca por líderes autoritários, como argumenta o cientista social brasileiro José Álvaro Moisés. O viés autoritário presente na população não é extinto com a Constituição ou mecanismos de participação, é um processo mais longo. A abertura à participação somente como um carimbo ou nas formas legais não garante sua efetividade e qualidade. A implementação não pode ser entendida de forma linear e sim através de um processo de qualificação da participação como mecanismo. Esse debate político acerca de conceitos tão caros à sociedade como um todo nos permite levantar relações diretas com a arquitetura, embora muitas sejam ignoradas pelos arquitetos. É possível construir novas formas de participação e representação que promovam a autonomia dos representados? Os novos mecanismos atuais são capazes de recuperar a confiança e envolvimento político dos cidadãos? É possível democratizar a linguagem técnica da arquitetura? E qual é o papel do técnico, arquiteto ou especialista na qualificação da participação como mecanismo político?

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ANÁLISE DE PROJETOS SELECIONADOS



Com base nas questões levantadas até aqui, partimos para a análise de projetos contemporâneos de habitação coletiva que envolvem algum nível de participação em seus processos. A partir de uma pré-seleção de 7 projetos paradigmáticos para o tema (Cajueiro Seco – 1964, Brasil; PREVI – 1968, Peru; Villaggio Matteotti – 1970, Itália; SAAL – 1974, Portugal; Quinta Monroy – 2001, Chile; Comuna Urbana Dom Helder Câmara – 2007, Brasil; e Plano Popular da Vila Autódromo – 2011, Brasil), escolhemos 3 projetos que se distinguem pela localização geográfica, pela data de elaboração e pelos modos como abordam a participação. Resultaram dessa seleção o Bairro da Bouça, de Álvaro Siza Vieira, iniciado em 1973, no Porto, Portugal; o Conjunto COPROMO, com assessoria técnica da Usina, iniciado em 1990, em São Paulo, Brasil; e o Quinta Monroy, do escritório Elemental, iniciado em 2001, em Iquique, Chile. O critério de escolha foi pautado na relevância dos projetos dentro da obra de cada arquiteto ou escritório, suas diferenças em termos de operações projetuais e de contextos. Sendo assim, foram selecionados um caso brasileiro, um europeu e outro na América Latina, tendo em vista a proeminência de cada um para a história de seus países e continentes. Esses três projetos também abarcam contextos sociais distintos e momentos históricos diferentes. O Bairro da Bouça se destaca dos demais projetos europeus pré-selecionados pelo programa no qual estava inserido e pela relevância que Álvaro Siza conquistou a partir desse momento. A obra também traz peculiaridades instigantes para o tema devido as suas duas fases de construção com intervalo de 30 anos entre cada uma. Julgamos fundamental analisar um projeto da Usina por trazer para a discussão o modelo das assessorias técnicas e processos de autogestão, bem como pela inovação construtiva desenvolvida através dos blocos cerâmicos. O COPROMO foi escolhido por ter uma escala pouco usual e pelos desafios da utilização de estrutura metálica, além de ser um dos primeiros projetos realizados por autogestão no Brasil. O Elemental traz um panorama mais atual ao debate, sendo o Quinta Monroy o primeiro projeto deles de “casa incrementais”. A solução projetual chilena se destaca dos demais projetos, enriquecendo a análise comparativa. O destaque midiático e o prêmio Pritzker atribuído a Alejandro Aravena em 2016 indicam a necessidade de um posicionamento crítico a essa abordagem da participação. Para guiar essa análise, estipulamos alguns parâmetros de avaliação que nos permitem comparar os projetos com mais facilidade e identificar onde residem suas diferenças, sejam elas de contexto histórico, contexto social e/ou proposta projetual. Os parâmetros são:

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Escala local: número de habitantes e área do município onde a obra está localizada. Contexto geral: dados gerais em relação ao contexto nacional e local, situação políticoeconômica e a política habitacional em questão. Duração: duração total do projeto (da concepção à ocupação). Escala: dimensão do projeto arquitetônico-urbanístico e número de unidades. Terreno: área do terreno e área construída total. Tipologia: tipos de unidades e área por unidade. Implantação: características do terreno, localização na cidade, relação com vizinhança e infraestrutura disponível. Grau de organização comunitária: como o grupo de pessoas em questão se organiza, seu grau de mobilização, identidade, comunicação e união. Sistema construtivo: técnicas empregadas na construção. Fase da participação/envolvimento dos moradores: em qual ou quais etapas do processo ocorre a participação dos moradores. Fonte de recursos: identificação da origem dos recursos ou financiamento (internos, externos, doações, investimento público ou privado). Remuneração dos participantes: trabalho remunerado, voluntário ou em troca de benefícios próprios. Processo de construção: construção com mão de obra terceirizada, por mutirão ou autoconstrução. Situação atual: como a obra se encontra atualmente em relação ao projeto original. A pesquisa também contou com a visita a dois dos três estudos de caso. Em São Paulo, visitei o COPROMO em 17/07/17, onde conversei com o Seu Neto, morador original do Bloco 1, e entrevistei o arquiteto João Marcos de Almeida Lopes na sede da Usina, em 14/07/17. Em Portugal, visitei o Bairro da Bouça nos dias 3, 4 e 7 de outubro do mesmo ano, onde conversei com alguns moradores, conheci duas tipologias de apartamento e fui recebida pelos arquitetos Filipa Guerreiro e Tiago Correia, sócios do Atelier da Bouça escritório que lá se localiza. Agradeço a todos por me receberem sempre tão entusiasmados.

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BAIRRO DA BOUÇA



Projeto: Álvaro Siza Vieira. Brigada técnica: Arq. Annie Gunther Nonell, Maria José Castro, Sérgio Gamelas, Jorge M. O. Moreira Local: Lapa, Porto, Portugal Escala local: população do município: 237.591 habitantes (2011); área do município: 41, 42 km². Contexto geral: inicialmente o projeto seria promovido pelo Fundo de Fomento à Habitação, depois foi incorporado ao SAAL - programa habitacional criado após a revolução do 25 de abril, em momento político conturbado e de grandes conquistas para a população Duração: 1973-1976 (56 unidades); 2001-2006 (72 unidades, estacionamento e equipamentos) Escala: 128 unidades habitacionais, em 4 blocos de 4 andares. Terreno: 12.900 m² (19.500 – conforme Livro Branco). Área construída 17.880 m² (satélite) ou 8.960 (unidades multiplicadas) Tipologia: duplex, 3 quartos, 70m²/unidade, com layout dos andares invertidos para a unidade superior. Na ponta dos blocos há unidades diferentes, variando o layout. Implantação: terreno plano, localizado em área valorizada no centro do Porto próxima a equipamentos públicos, estações de metrô e comércio Grau de organização comunitária: moradores, previamente organizados em associação, participaram da luta por melhores condições de moradia se organizando em movimentos sociais com pautas definidas. Estavam morando em “ilhas”, sendo realocados nas proximidades Sistema construtivo: blocos de concreto autoportante Fase da participação/envolvimento dos moradores: estruturação Fonte de recursos: financiamento parcialmente a fundo perdido através de programa federal de habitação, com terras expropriadas pelo poder público Remuneração dos participantes: terra e unidades concedidas pelo governo através de financiamento Processo de construção: terceirização

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Situação atual: a segunda fase resultou em leves alterações no layout da unidade, a construção de áreas comerciais e um estacionamento no subsolo. Não houve acréscimo de área nas unidades nem alterações nas fachadas.

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Um projeto de programa Portugal viveu um longo período de sua história moderna sob regime ditatorial, inaugurado com o golpe militar de 1926 e oficializado pelo Estado Novo, com a Constituição de 1933. Após 48 anos de opressão liderada por Salazar, um novo golpe militar, em 25 de Abril de 1974, deu início ao período democrático. Foi o Movimento das Forças Armadas (MFA) que liderou essa ação, mais conhecida como Revolução dos Cravos. Devido à grande articulação e organização interna e ao apoio imediato da população, houve pouca resistência por parte do governo. O povo se juntou à revolução durante a tomada de poder em Lisboa, lotando o Terreiro do Paço e somando no cerco ao Quartel do Carmo, para a rendição de Marcelo Caetano - então Presidente do Conselho do Estado Novo. Foi uma revolução considerada “pacífica”, sem grandes confrontos, tendo as forças aliadas do regime aderido ao movimento. O apoio da população, crucial para o desfecho, ficou eternizado pela imagem dos cravos oferecidos pelos cidadãos aos militares revolucionários. Quando estourou a Revolução, o panorama socioeconômico era crítico: em 1970, 20% da população masculina era analfabeta e o déficit habitacional chegava a 500.000 unidades1. Faltavam programas sociais que promovessem a mobilidade social e as 1  SARDO, Delfim. Espaços reais: O processo de uma utopia pragmática. In: O Processo SAAL: Arquitectura e Participação 1974-1976. Porto: Fundação Serralves, 2014. p. 25-41.

Militares revolucionários com cravos entregues pela população (Fig. 01)

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Cerco do Largo do Carmo, Porto, no 25 de Abril de 1974 (Fig. 02)

habitações extremamente precárias e informais eram ignoradas pelo governo. Em 1968, é lançado, pelo último presidente do regime, o Fundo de Fomento à Habitação. Essa medida derradeira pregava os preceitos modernistas de habitação, como o realojamento das famílias para bairros isolados nas periferias das cidades. A luta por moradia torna-se, portanto, uma questão central no processo revolucionário desencadeado com o 25 de Abril, uma vez que mobiliza a conquista de outros direitos e afeta a relação com a cidade. Logo após a Revolução, houve uma série de ocupações por parte da população de edifícios em construção ou desocupados, como forma de protesto pela falta de habitação digna. Há registros, inclusive, de ocupações de edifícios para comunas infantis, em que moradores se organizam para propor diversas atividades em edifícios sem uso em regiões centrais – tal lógica imobiliária especulativa era contrastante com os ideais democráticos e revolucionários do 25 de Abril2. Em 16 de maio de 1974, é instaurado o 1º Governo Provisório, nomeando o arquiteto Nuno Portas como Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, devido a sua experiência anterior no Laboratório Nacional de Engenharia Civil e vasto conhecimento acerca do tema. A prévia articulação 2  Dossiê sobre a Comuna Infantil Soldado Joaquim C. Luís, expropriada pela LUAR (Liga de União e Ação Revolucionária) e ocupada pelos moradores das “ilhas” do Campo 24 de Agosto: Acervo de José Pacheco Pereira https://drive.google.com/ file/d/0B8qf4EMOlMBkZFpiRlFzX1VMejg/edit

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de Nuno Portas com demais arquitetos, em congressos e colóquios, e seu encontro, logo nos primeiros meses no cargo, com nomes importantes de diversas áreas (como Manuel Castells, Ignasi de Solà-Morales e Bernardo Secchi)3, lhe permite lançar, em julho de 1974, o Serviço de Apoio Ambulatório Local – SAAL.

Cartazes do 25 de Abril (Fig. 03 e 04)

Concebido como programa habitacional em nível federal, o SAAL tinha como propósito incluir os moradores na produção habitacional, desde a demanda até a construção, como uma resposta às vozes das ruas que pediam por maior poder popular nas tomadas de decisões do governo. No momento do lançamento do programa, o Estado democrático ainda estava muito instável e enfraquecido, com as instituições que permaneceram do governo anterior diminuídas ou desmanteladas. O SAAL marcava a “estréia” do novo governo e caracterizava esse Estado de transição, por isso tinha apoio expressivo da população. Os projetos eram realizados pela conjunção do grupo de moradores beneficiados com as assim chamadas “brigadas técnicas”. As brigadas eram formadas por técnicos de diferentes áreas, escolhidos pelo governo, e os moradores deveriam se organizar em associações ou cooperativas. Para uma operação SAAL ser realizada, deveria, portanto, haver um pedido por parte de um grupo de moradores, e apenas por eles. Isso exigia que 3  Cronologia. In: O Processo SAAL: Arquitectura e Participação 1974-1976. Porto: Fundação Serralves, 2014. p. 281

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Imagens das manifestações por habitação de qualidade e direito à cidade (Fig. 05 e 06)

a população se organizasse previamente e se unisse em torno de um interesse comum, sendo preciso formalizar o grupo. A esquerda mais extrema criticou esse mecanismo, por ser muito institucionalista. Porém, esse mecanismo foi fundamental para o fortalecimento de relações comunitárias e o envolvimento da população no programa.

A demanda se dava por dois níveis, pelo Estado e pela população, sendo duplamente

legitimada4. Uma vez designada a brigada, o corpo técnico e a associação se reuniam em assembleias para juntos elaborarem o projeto. Não havia um padrão a ser seguido pelo programa. O decreto de formação do SAAL não determinava nenhum alinhamento nacional, seja formal ou identitário, para os projetos. Pelo contrário, sua escala territorial não ameaçava a autonomia das brigadas e sua estrutura permitia grande flexibilidade. Do contrário, o envolvimento dos moradores seria apenas uma retórica, dada a diversidade nacional. O SAAL defendia a especificidade de cada caso. Os beneficiários deveriam ser protagonistas nesse processo, negociando ao lado dos técnicos. A abrangência nacional e as variações nos contextos de cada região impedem uma tipificação dos resultados. Mais do que caracterizado pelas regiões, o SAAL é diferente a cada bairro, a cada conjunto. Ele foi construído de forma praticamente artesanal e também deve ser analisado caso a caso. Nos anos 1960 e 1970, em uma crítica ao Modernismo, muitos arquitetos e teóricos, como o britânico John Turner e o belga Lucien Kroll, entendiam que o envolvimento com a construção era uma ferramenta importante para impulsionar a apropriação da arquitetura pelos usuários. Ao ampliar essa lógica para o bairro, se estaria gerando uma ligação maior do indivíduo com a cidade. O SAAL pretendia cumprir assim uma função social e pedagógica, ligada à formação política da população beneficiada. O compromisso do SAAL não era 4  BANDEIRINHA, José António. SAAL 1974-2014: Por uma arquitectura. In: O Processo SAAL: Arquitectura e Participação 1974-1976. Porto: Fundação Serralves, 2014. p. 43-63

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apenas com a arquitetura, mas também com o rompimento do pensamento determinista; ou seja, ele ia de encontro à ideia de que, transformando somente uma condição espacial precária, se alcançaria, por consequência direta, uma mudança comportamental e social nessas pessoas. Era preciso ir além: através da arquitetura, mobilizariam-se as comunidades, mudando a concepção do papel do destinatário na vivência e na construção das cidades. A autoconstrução estava prevista no decreto fundador, como decisão política e também como forma de viabilizar as obras. O Fundo de Fomento à Habitação - que permaneceu existindo mesmo após a Revolução, financiando o SAAL - garantia a expropriação de terras e uma estrutura de apoio econômico por meio de financiamento com uma parte a fundo perdido. A confiança e apoio depositados eram tão grandes que muitas obras começaram antes mesmo de terem seus recursos definidos. O processo de autoconstrução foi bem aceito em algumas regiões do país, como no Olhão – cidade da região do Algarve, no sul do país -, mas, em outras, enfrentou resistência. Na cidade do Porto, por exemplo, após fortes manifestações, essa ideia foi abandonada. Os moradores argumentavam estarem sendo expostos a dupla jornada, logo, a justificativa de geração de emprego era falha. Além das pressões populares, a ideia também sofria com o lobby das construtoras, receosas de serem excluídas do mercado habitacional que se abria. Muitos projetos, então, terminaram sendo construídos de forma terceirizada, evidenciando, mais uma vez, as variáveis existentes no programa. A notável rapidez com que o programa foi instaurado não é fruto apenas de um empenho dos governantes. Nuno Portas esclarece que o SAAL não nasceu no 25 de Abril5, mas já era pensado por um grupo de arquitetos afeitos à problemática habitacional e aguardava o momento propício para germinar. A Revolução e o SAAL atraíram os olhos do mundo para Portugal, porque as questões postas ali eram ecos de um debate internacional por maior horizontalidade, menos determinismo e maior valorização das iniciativas comunitárias e coletivas que explodiam em movimentos revolucionários na Europa e nos EUA na década de 1960. Portugal estava realizando esses anseios ao recuperar sua democracia com apoio popular e concretizando processos “bottom-up” – ou seja, que nasciam do poder das massas populares e não da elite governamental. “Num contexto histórico mais geral, e para muitos sectores culturais, a revolução portuguesa permitia renovar a esperança de transformações políticas abrangentes sugeridas – e nunca completamente logradas – pelos movimentos do maio de 1968.”6 Pedro Gadanho 5 03 Simpósio SAAL - Conferencia Introdutória. Porto, 2014. Son., color. Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=tou_7mqsoMc>. Acesso em: 05 maio 2017. 6  GADANHO, Pedro. Operações SAAL, Álvaro Siza, e a persistência de São Victor: Falhar, falhar novamente, falhar melhor. In: O Processo SAAL: Arquitectura e Participação 1974-1976. Porto: Fundação Serralves, 2014. p. 68

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Apesar do reconhecimento internacional obtido pelo SAAL, há muitas críticas ao programa. Isso porque, mesmo nascido do clamor popular, o SAAL é criado como um decreto, ou seja, é uma ação legislativa que parte de cima, do nível mais alto dentro da hierarquia institucional. Isso foi visto, por alguns, como contraditório com os ideais da esquerda revolucionária, principalmente da Europa, que prezavam pelo fortalecimento das associações e organizações locais como forma de participação ativa, mesmo em democracias representativas. No caso do SAAL, esse processo se deu ao avesso, com o surgimento da lei e, depois, das associações e cooperativas. A grande quantidade e qualidade dos projetos realizados durante o programa colocou Portugal no mapa da arquitetura. Porém, Nuno Portas foi o grande divulgador do programa no cenário internacional, tendo um papel político importante. Os projetos e arquitetos portugueses foram publicados nas principais revistas do mundo, com especial interesse por Álvaro Siza Vieira. Não podemos deixar de observar que os dois portugueses ganhadores do prêmio Pritzker participaram do SAAL: Álvaro Siza Vieira (1992) e Eduardo Souto de Moura (2011). Na verdade, o SAAL tornou-se decisivo para alavancar a carreira internacional de Siza, que foi chamado para importantes projetos de habitação em vários países nos anos seguintes: Wohnhaus Schlesisches Tor (Bonjour Tristesse), Berlim, 1980-84, e Shilderswijk, Haia, Holanda, 1983-88. Esses projetos se caracterizam por envolver contextos delicados, nos quais o diálogo com os moradores foi entendido como ferramenta política para gerar uma vivência mais democrática e menos conflituosa. No SAAL, as brigadas técnicas eram constituídas por arquitetos de diferentes gerações, envolvendo muitos estudantes no corpo técnico. O programa exerceu, desse modo, uma função pedagógica e proporcionou uma oportunidade de formação para os jovens arquitetos da época, ao colocá-los em contato direto com arquitetos mais experientes e permitindo sua efetiva contribuição num projeto de escala nacional. Para os arquitetos com maior experiência, que tinham como principal clientela, à época, a elite burguesa mesmo que enfraquecida pelo cenário econômico -, um programa que se propunha a suprir o déficit habitacional, engajando os arquitetos politicamente, abordando o debate arquitetônico sobre o papel social do arquiteto e com propulsão internacional, também se mostrou uma oportunidade excepcional. No entanto, a partir das eleições para Assembleia Constituinte, em 25 de Abril de 1975, a visão do governo quanto ao SAAL mudou. O programa começou a ser questionado pelo seu caráter experimental e sua dependência da militância, tanto dos arquitetos, quanto da população. Sua credibilidade como proposta capaz de solucionar a questão habitacional foi posta em cheque. Houve também pressões por parte do mercado imobiliário, devido

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à expropriação de terras em áreas centrais das cidades. Para se fortalecer, o programa buscou estreitar laços com os moradores beneficiados, defendendo sua função política (e não técnica) e a superação da expectativa por eficiência, pragmatismo e rapidez característica das soluções habitacionais modernistas. Em 31 de maio de 1976, Nuno Portas é substituído por Tomás Taveira na presidência da Subcomissão de Regulamentação do Planejamento Urbano. Nos meses seguintes, começam a circular na mídia notícias e depoimentos preocupados com o futuro do SAAL e suas dificuldades de financiamento, em meio a manifestações populares de apoio ao programa. No dia 27 de outubro de 1976, um despacho do Ministério de Habitação, Urbanismo e Construção extingue o SAAL. Em 11 de novembro de 1976, o Ministro da Habitação, Urbanismo e Construção cria uma Comissão de Sindicância para instaurar um inquérito sobre o programa. Dúvidas quanto à sua atuação e efetividade levaram técnicos e moradores a entrevistas minuciosas. Contudo, nenhuma irregularidade foi encontrada. Mesmo sendo interrompido bruscamente, é impressionante o impacto arquitetônico, social e político alcançado pelo SAAL. Em seus breves dois anos de existência, o programa iniciou 170 projetos, atingindo 41.665 famílias7. O volume construído é bastante significativo considerando a duração do programa e sua extensão, embora não tenha chegado nem perto de suprir o déficit habitacional de 500.000 unidades à época. A qualidade dos projetos chamou a atenção do mundo, marcou a história e a paisagem de Portugal e alavancou a carreira de arquitetos notáveis. O modelo participativo do programa é referência até hoje, embora dificilmente replicável, devido às particularidades do momento político e especificidades locais. O SAAL marcou várias gerações de arquitetos, cumprindo o sonho da época de construir com o povo e quebrar a lógica capitalista. Mesmo deixando 76 pedidos de operações em aberto, essa experiência mostrou que é possível, em larga escala e curto tempo, operar segundo uma lógica não mercantil da construção, atuando na cidade de forma não autoritária, com o arquiteto atuando como um intermediário entre poder público e moradores, e não como definidor do modo de vida nas cidades.

7  Livro Branco do SAAL 1974-1976. Porto: FAUP Publicações, 1976

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O projeto no Porto O SAAL assumiu características diferentes de acordo com o contexto de cada projeto. Havia uma subdivisão por regiões: Norte; Centro-Sul e Lisboa; e Algarve. A Direção de Habitação Norte ficou a cargo dos arquitetos Margarida Coelho e Alexandre Alves Costa e do jurista Mario Brochado8. No Norte, a Escola de Belas-Artes do Porto foi protagonista no processo, sediando importantes reuniões e assembleias. Os estudantes e arquitetos portuenses possuíam uma ligação forte com os bairros pobres da cidade, já que muitos trabalhos da faculdade tratavam dessa questão. Eles defendiam que a compreensão do espaço urbano deveria ser através de sua vivência. O SAAL, portanto, configura uma oportunidade prática desse pensamento, devido à sua metodologia processual, e uma possibilidade de ação, e não apenas teorização. No Porto, a população de baixa renda vivia majoritariamente em habitações precárias denominadas de “ilhas”. As “ilhas” eram caracterizadas por uma estrutura urbana derivada da expansão industrial do século XIX. Antes da revolução, 60% dos operários viviam em casas construídas nos fundos das residências burguesas. Os quarteirões possuíam duas realidades quase opostas: na frente da rua ficavam as construções das famílias abastadas e os miolos das quadras eram ocupados por essa espécie de cortiço, configurando as “ilhas”.

8  Livro Branco do SAAL 1974-1976. Porto: FAUP Publicações, 1976

Conformação espacial das “ilhas” e seus lotes (Fig. 07)

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Ilhas de Herculano em imagem de satĂŠlite em outubro de 2017 (Fig. 08)

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Ilhas de SĂŁo Victor em imagem de satĂŠlite de outubro de 2017 (Fig.09)

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Em geral, a entrada nas ilhas se dava por uma serventia de passagem dos lotes de frente para rua. Portões estreitos garantiam o acesso às diversas casas do interior do terreno. Essa configuração era, em grande parte, resultante do parcelamento do solo, que gerou lotes muito estreitos e profundos, com construções usualmente implantadas na frente, sobrando os fundos para área livre e quintais. É esse fundo de lote, menos apreciado por não ter acesso direto à infraestrutura viária, que era sublocado ou invadido para a construção das “ilhas”. Essa organização espacial em forma de pente, com as habitações em fiadas perpendiculares à rua, visava ao maior aproveitamento da infraestrutura para um número maior de unidades, ficando o miolo em uma espécie de “gueto” escondido aos olhos da rua. A mesma lógica se repetia no interior das “ilhas”, formadas por um corredor central ou lateral de circulação e unidades coladas lado a lado.

Ilhas do Porto (Fig. 10 e 11)

Entrada da Ilha de Herculano em outubro de 2017 (Fig. 12)

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Ilha de Herculano em outubro de 2017 (Fig. 13)

Banheiros coletivos atualmente em desuso (Fig. 14)

Ilha de SĂŁo Victor em outubro de 2017 (Fig 15)

LavatĂłrios coletivos atualmente em desuso (Fig. 16)

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Essa estrutura urbana – que, no caso do Porto, permitiu a permanência das populações pobres no centro da cidade - não se repetia em outras cidades como Lisboa, em que a população mais pobre vivia nas áreas periféricas. E, como o SAAL partia do princípio de realocar a população somente quando fosse necessário ou demandado por ela, priorizando a reconstrução das habitações em sítios o mais próximo possível ao local original, as “ilhas” do Porto fizeram com que as operações nessa cidade se dessem em meio ao ambiente urbano, em áreas valorizadas e condições muito diversas das operações que aconteciam no meio rural, por exemplo. Observando o mapa das operações por cidade, podemos constatar como as especificidades de cada lugar geraram um desenho diferente.

Localização das brigadas no Porto e em Lisboa (Fig. 17 e 18)

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Não há uma identidade formal única para o SAAL, mas, sim, uma busca pelas diversas identidades locais. No Porto, está presente a vontade de inverter a lógica de segregação socioespacial, trazendo à luz o interior das quadras, abrindo-o. As “ilhas” ocupavam o interior das quadras por serem a parcela menos valorizada do lote e ter o acesso dificultado à rua e à infraestrutura. Essa espacialização excluía seus moradores do contato com a cidade e de melhores condições de ventilação e iluminação. Abrir o interior das quadras é reverter esse quadro social, trazendo qualidade de vida. Outra característica que pode se dizer marcante do programa no Porto é a mobilização e a organização dos moradores. Havia uma entidade que coordenava todas as associações da região metropolitana, o Conselho Revolucionário de Moradores do Porto, cujas reuniões ocorriam na Escola de Belas-Artes. Essa força foi capaz de modificar o programa, questionando o uso do mutirão. Esse foi um ponto polêmico do programa, pois, ao mesmo tempo em que certas brigadas apresentavam sucesso nesse quesito, outras se recusavam, como aconteceu no Porto, onde as manifestações organizadas conseguiram mudar essa exigência, passando terceirizar as obras.

Crianças em assembléia do SAAL no Porto (Fig. 19)

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Manisfestação no Porto (Fig. 20)


O projeto de Álvaro Siza

O arquiteto Álvaro Siza Vieira (1933) fez apenas dois projetos para o SAAL, ambos no Porto: São Victor e Bouça. O terreno onde hoje se encontra o Bairro da Bouça estava inicialmente destinado a um empreendimento para funcionários do Ministério da Justiça. Esse projeto começou em 1973, ligado ao Fundo de Fomento de Habitação, com projeto dos arquitetos Siza e Francisco Guedes de Carvalho9. Após o surgimento do SAAL, os moradores de ilhas próximas, que já haviam se organizado para ocupar prédios ociosos, mobilizaram-se para incorporar esse projeto ao programa. Eles se articularam em forma de Associação e conseguiram que o projeto fosse englobado ao SAAL, recebendo uma brigada técnica em fevereiro de 1975. No entanto, com o fim do programa, em 1976, as obras foram paralisadas, tendo apenas 56 unidades, do total de 128, sido concluídas. O projeto permaneceu incompleto até 2001, quando foi retomado, tendo, agora, como cliente a Cooperativa Águas Férreas, e finalizado em 2006. O terreno está localizado em área central e muito valorizada do Porto. Sua forma trapezoidal é delimitada pela Rua Águas Férreas, pela Rua do Melo e pelo trilho do metrô de 9  LEITÃO, Maria Margarida de Albuquerque. O Bairro da Bouça: Um contributo para o entendimento do SAAL no debate da Habitação Social. 2010. 194 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Faculdade de Ciências e Tecnologia da Uc, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2010. Disponível em: <https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/14066>. Acesso em: 07 mar. 2017.

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superfície. As unidades, atualmente, estão implantadas em 4 blocos dispostos paralelamente entre si e alinhados a uma das ruas. Os blocos possuem comprimentos diferentes, indo de ponta a ponta do terreno, havendo quantidades diferentes de unidades em cada um deles. Todos os blocos são compostos por duas unidades duplex sobrepostas, totalizando 3 pavimentos. O acesso ao duplex superior se dá através de escadas nas laterais de cada bloco, que também possuem uma unidade comercial em sua extremidade. Traçando as linhas de força do projeto, fica clara a leitura que Siza faz do tecido urbano. O projeto não está solto no terreno, não foi desenhado a partir do branco. Siza busca referências no traçado das ruas, na volumetria dos quarteirões e nas pré-existências vizinhas. Ele faz uma releitura da tipologia das “ilhas”, pensando não na sua precariedade e insalubridade, mas no valor de comunidade que ele enxergou nessa espacialidade. Como era previsto pelo SAAL, o desenvolvimento do projeto deveria contar com a participação dos moradores na definição do programa, implantação e desenho das unidades. No entanto, nesse projeto, tal processo começa já em fase avançada, uma vez que o desenho e o programa já estavam definidos antes do SAAL, tendo sido apenas adaptado. A participação da população, nesse caso, está mais localizada na demanda pela incorporação do projeto existente ao programa. Não obstante, as adaptações foram discutidas entre o arquiteto e os moradores em reuniões. Porém, ele mesmo diz não concordar com a ideia de que os arquitetos seriam “a mão do povo”10. Siza não abre mão 10  AS OPERAÇÕES SAAL. Direção de João Dias. Portugal: Optec, Sociedade Óptica Técnica, 2007. (120 min.), son., color.

Linhas de força da implantação do projeto (Fig. 22)

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de seu ofício e do seu desenho, porque acredita que é isso que traz qualidade ao resultado. Defende o rigor técnico, mas sem limitar a dinâmica do processo, nem a criatividade coletiva ou a imaginação. “O rigor não é um limite à dinâmica do processo. O rigor deve estar estritamente ligado à possibilidade real de evolução, ao amadurecimento, à capacidade de responder ao processo, e deve estar sempre presente. O rigor deve ser directamente proporcional a esta capacidade de resposta. O rigor não é um limite à imaginação. O rigor não é um limite à criatividade colectiva. O rigor é a capacidade de resposta a um processo dinâmico. ‘A qualidade é o respeito pelo povo.’ (Che Guevara)”11 Álvaro Siza As plantas das unidades têm a mesma composição: 3 quartos, sala, cozinha integrada e 2 banheiros. Entretanto, a unidade inferior tem, no térreo, os dois quartos e banheiro e, no andar de cima, a sala, a cozinha e um quarto; enquanto a unidade superior tem sala, cozinha e quarto no primeiro pavimento e os outros 2 quartos e banheiros no último 11  Brigada de São Victor. A ilha proletária como elemento base do tecido urbano. In: O Processo SAAL: Arquitectura e Participação 1974-1976. Porto: Fundação Serralves, 2014. p. 265.

Planta das unidades da primeira fase (Fig. 23)

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Planta nĂ­vel 0 - segunda fase (Fig. 24)

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Planta nĂ­vel 1 - segunda fase (Fig. 25)

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Planta nĂ­vel 2 - segunda fase (Fig. 26)

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Planta nĂ­vel 3 - segunda fase (Fig 27)

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Cortes e fachadas - segunda fase (Fig 28)

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pavimento. Todos os apartamentos possuem entradas nos dois níveis, sendo a entrada principal do apartamento inferior feita pelas escadas individuais que marcam a fachada dos blocos. As unidades são organizadas em sentido transversal à circulação, com aberturas para os dois lados dos blocos. Essa implantação forma entre os blocos uma área de convívio aberta para a cidade: 3 pátios que podem ser acessados a partir de passagens no nível térreo de cada bloco, permitindo o cruzamento do espaço por qualquer um. Essa lógica espacial faz clara alusão à organização das ilhas, onde havia uma separação do espaço íntimo (interior das unidades) do espaço de convívio (pátio/corredor). Todavia, enquanto esse corredor nas “ilhas” era escuro, sem ventilação, muito estreito e insalubre, Siza agrega qualidade a esse espaço ao mudar sua proporção. Assim, o que antes era um beco foi transformado em um ambiente positivo e de qualidade, gerando uma nova relação com a cidade. O pátio é, portanto, um espaço de transição entre o espaço totalmente público da cidade e uma certa interioridade dos moradores. As unidades se abrem para esse pátio, tornando-o conectado com elas de forma visual e sonora. Festas, eventos e crianças brincando preenchem esse espaço de encontro e convívio comunitário. Em visita ao terreno, uma das moradoras nos relatou que os pátios apresentam diferentes funções, sendo um com as escadas, um arborizado e o outro seco. O pátio das escadas é chamado pelos moradores de “estádio”, se referindo à posição das escadas e ao hábito que se gerou de conversar sentado nas escadas. Esse também é o pátio onde acontecem as tradicionais festas de São João, organizadas por um grupo de moradores e que atrai pessoas de toda

Pátio sobre área de depósitos em outubro de 2017 (Fig 29)

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PĂĄtio com gramado e escadas de acesso Ă s unidades superiores e inferiores, em outubro de 2017 (Fig. 30,31 e 32)

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a cidade. O depósito semienterrado também propicia a realização de eventos, conforme ela nos contou, já que seu acesso pela escada o torna mais fechado, deixando os pais seguros quanto à movimentação das crianças distante da rua. Já o pátio arborizado tem uma função de parque e jardim, enquanto o seco propicia brincadeiras e jogos de futebol. Outro artifício importante para esse contato com a malha e ambiência da cidade são os equipamentos localizados nas extremidades de cada bloco. Eles estão implantados no ponto em que o bloco toca o limite do seu quarteirão e encontra a rua, criando uma transição entre o privado e o público. Diferentemente das “ilhas”, onde o encontro com a rua era bloqueado pelas casas burguesas da frente do lote, esses pontos não apenas abrem a visão para o interior do projeto como são um ponto de atração para ele. Esses equipamentos, inicialmente, seriam voltados para o uso da Associação, sendo previstos uma lavanderia, biblioteca local e a sede da cooperativa. Porém, eles foram convertidos em espaços comerciais que, hoje, abrigam escritórios de arquitetura, uma clínica dentária e uma agência de trabalho temporário. Esse conceito de implantação só foi efetivado na segunda etapa de construção, visto que, na primeira fase, havia apenas dois blocos inacabados. A segunda fase também trouxe leves alterações na planta das unidades, integrando a cozinha à sala e transformando um dos quartos em um cômodo aberto e reversível nas unidades inferiores. A segunda fase de construção, por ter sido realizada 25 anos depois, teve que lidar com um novo perfil de moradores. A população anteriormente cadastrada não demonstrou mais interesse, pois já estava alocada em outros lugares ou havia mudado sua configuração familiar. Siza relata como se deu o processo de retomada do projeto na segunda fase: “Para além de construir a segunda fase do projecto, pretendia-se recuperar as casas existentes (cerce de 1/3 do total). Não era fácil convencer os residentes em prescindir de algumas improvisadas intervenções entretanto realizadas. (...)

Comparação das plantas das unidades nas fases 1 e 2 (Fig. 33)

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Foi necessário um paciente diálogo com os moradores, o qual tornou clara a obrigação de manter quase integralmente o projecto inicial (...). Eu próprio me debatia em dúvidas e dificuldades. A revisão do projecto me obrigava a considerar a evolução profunda da população residente, em relação ao contexto anterior à revolução de 1974(...).”12 Álvaro Siza Há também quem indique que a forma de financiamento da segunda fase não era acessível a pessoas com renda baixa. O prestígio alcançado por Siza ao longo desses anos também atraiu muitos admiradores interessados em morar na Bouça, dentre eles muito arquitetos e estudantes e até um escritório (Atelier da Bouça – Filipa Guerreiro e Tiago Correa). Essa diferença social provocou um debate sobre os motivos que permitiram a finalização do Bairro da Bouça. Algumas pessoas que participaram do processo inicial não queriam mais manter uma ligação com um tempo considerado difícil, de muita luta pessoal e política. Para alguns, houve também uma certa necessidade de superar a referência às “ilhas” como indicativo de ascensão social. Muitos passaram a almejar uma tipologia padrão, comercial, em uma tentativa de se enquadrar a um mercado imobiliário muito aquecido após a entrada de Portugal na Comunidade Europeia, em 1986. Outros ressaltam

12  LEITÃO, Maria Margarida de Albuquerque. O Bairro da Bouça: Um contributo para o entendimento do SAAL no debate da Habitação Social. 2010. 194 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Faculdade de Ciências e Tecnologia da Uc, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2010. Disponível em: <https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/14066>. Acesso em: 07 mar. 2017.

Circulação transversal entre os blocos, em outubro de 2017 (Fig. 34)

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que, se não fosse a classe mais abastada, a segunda fase não sairia do papel13. O pouco que havia sido construído estava precisando de reforma e era preciso imaginação para visualizar a potencialidade do projeto concluído antes das obras iniciarem. Essa segunda fase pode ser lida, portanto, como destoante do propósito original do projeto e do programa. Os novos moradores não têm o mesmo vínculo que os moradores originais e muitos têm outros costumes e outra cultura. Esse choque social pode ser percebido no documentário “Paredes Meias”14, em que moradores originais falam de sua relação distante e receosa quanto aos novos moradores. Há de se ressaltar, ainda, a potência e a veneração ao projeto e ao arquiteto. Mesmo passados 25 anos, o projeto foi finalizado preservando seu desenho original, a despeito de algumas mudanças significativas no programa. Pode-se perceber poucas alterações por parte dos moradores ao longo dos anos: não há acréscimos nas unidades nem alterações estéticas. As maiores alterações visíveis são alguns poucos varais colocados nos guardacorpos e pichações no muro que o separa do metrô. Isso se deve à pertinência do projeto? Ele permanece relevante e adequado, mesmo diante das mudanças sociais e de contexto 13  Entrevista com o arquiteto Tiago Correia em LEITÃO, Maria Margarida de Albuquerque. O Bairro da Bouça: Um contributo para o entendimento do SAAL no debate da Habitação Social. 2010. 194 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Faculdade de Ciências e Tecnologia da Uc, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2010. Disponível em: <https://estudogeral.sib.uc.pt/ handle/10316/14066>. Acesso em: 07 mar. 2017. 14  PAREDES Meias. Porto: RTP, 2009. Color.

Muro de isolamento acústico da linha férrea, em outubro de 2017 (Fig. 35)

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Escada de acesso à unidade inferior com varal, em outubro de 2017 (Fig. 36)

que possam ter ocorrido? Há uma adoração acrítica e intocável ao renomado arquiteto, como que para a realização de um desejo da classe intelectualizada esvaziado de sentido prático? Alexandre Alves Costa, coordenador do SAAL/Norte, tem uma visão crítica desse processo: “Do ponto de vista simbólico, aflige-me que se tenha vindo terminar uma coisa que na altura teria tido uma utilidade social para agora viverem ali meia dúzia de colegas meus bem instalados na vida. Isso é que é perverso na maneira como isto acabou.” Já Siza encara como algo natural - que já se repetiu em outros projetos similares - e, hoje, um sucesso: “O que aconteceu é compreensível - e saudável - e também se passou em outros sítios. O Bloco de Marselha do Corbusier, por exemplo: durante anos esteve degradado e foi considerado um fracasso, uma arquitectura socialmente inaceitável. Neste momento está tudo a funcionar porque houve uma geração

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- de professores, de arquitectos, de intelectuais - que quis ir para lá viver. Enquanto era para os pobrezinhos aquilo era um desastre. Agora é um sucesso”.15 Para a maioria dos moradores associados, a Bouça ficou na promessa ou sequer existiu. Quando a segunda fase foi concluída, apenas 12 associados se interessaram, sobrando 60 unidades para leilão16. O próprio Siza reconhece os efeitos da passagem do tempo para o projeto: “As referências mudaram: aquela galeria que lá está servia para continuar o ambiente das ilhas em que havia aquele espírito de solidariedade e de vivência comunitária intensa - forçada mas intensa -, zangas misturadas. Esse espírito hoje não existe.”17 O que se percebe é que a Bouça tem, hoje, significados diferentes para quem participou ou não do processo revolucionário. Diante desse caso tão peculiar do SAAL, podemos questionar em que medida o processo projetual favoreceu a conclusão da obra, mesmo após 25 anos, e a permanência dos princípios projetuais definidos originalmente. Que peso esse processo teve em limitar a adequação do projeto às referências e demandas de hoje? Observando o outro projeto de Álvaro Siza para o SAAL, o Bairro de São Victor, podemos ver como situações semelhantes tomaram caminhos diferentes. O bairro, construído entre 1974 e 1975, também teve apenas uma pequena porcentagem de unidades finalizada à época. Diferentemente da Bouça, nunca foi concluído, existindo hoje apenas 12 unidades das 32 projetadas. Sua inconclusão evitou a valorização que atualmente é criticada por alguns na Bouça, mas também enfraqueceu a potência do projeto. O próprio Siza diz não reconhecer o que está lá como obra dele. Apesar das diversas semelhanças entre a Bouça e São Victor em termos de projeto, implantação, contexto, desenho e processo, os resultados diferem.

15 Artigo “Foi bonita a festa do SAAL, pá” de Inês Nadais para o portal Público: https://www.publico.pt/2009/05/07/ culturaipsilon/noticia/foi-bonita-a-festa-do-saal-pa-230547 16 Ibid. 17 Ibid.

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Bibliografia Específica BANDEIRINHA, José António. O Processo SAAL e a arquitectura no 25 de abril de 1974. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2007. CAMPS, Maria. Da obra projectada à obra vivida: sobre o conjunto habitacional da bouça. 2012. 120 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Arquitetura, Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, Porto, 2012. CLEMENT, Thijs; VAN LOON, Laura; VODNICKA, Agata. Conjunto Habitacional da Bouça. 2014. 50 f. Department Of The Built Environment, Eindhoven University Of Technology, Eindhoven, 2014. Disponível em: <http://thijsclement.nl/wp-content/uploads/2014/09/ Report- History-of-Housing-Bouça- Porto.pdf>. Acesso em: 07 mar. 2017. COELHO, Margarida. Uma experiência de transformação no sector habitacional do Estado: SAAL – 1974-1976. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 18-19- 20, p.619634, 1986 COELHO, Mário Brochado. Um processo organizativo de moradores: SAAL Norte 1974-76. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 18-19- 20, p.645-671, 1986 FLECK, Brigitte; SIZA, Álvaro; WANG, Wilfried. O’NFM 1 Bouça: Bouça Residents Association Housing. Austin: The University Of Texas At Austin, 2008. LEITÃO, Maria Margarida de Albuquerque. O Bairro da Bouça: Um contributo para o entendimento do SAAL no debate da Habitação Social. 2010. 194 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Faculdade de Ciências e Tecnologia da Uc, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2010. Disponível em: <https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/14066>. Acesso em: 07 mar. 2017. Livro Branco do SAAL 1974-1976. Porto: FAUP Publicações, 1976 O Processo SAAL: Arquitectura e Participação 1974-1976. Porto: Fundação Serralves, 2014. PEREIRA, Gaspar Martins. SAAL: um programa de habitação popular no processo revolucionário. História: Revista da Flup, Porto, v. 4, p.13-33, 2014. PORTAS, Nuno. O processo SAAL: entre o Estado e o poder local. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 18-19- 20, p.635-644, 1986 SIZA, Álvaro. O 25 de Abril e a transformação da cidade. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 18-19- 20, p.37-40, 1986

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TEIXEIRA, MC. Habitação popular na cidade oitocentista : as ilhas do Porto. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, [1995]., 1995. (Textos universitários de ciências sociais e humanas). ISBN: 9723107007.

Filmografia Específica 03 Simpósio SAAL - Conferencia Introdutória. Porto, 2014. Son., color. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=tou_7mqsoMc>. Acesso em: 05 maio 2017. AS OPERAÇÕES SAAL - 1974/76. Direção de João Dias. [s.i.]: Optec, 2007. (86 min.), color. CASAS para o Povo. Direção de Catarina Alves Costa. [s.i.]: Arquivo Rtp, 2010. (15 min.), P&B. Disponível em: <https://vimeo.com/174001019>. Acesso em: 29 maio 2017. CONTINUAR a Viver ou Os Índios da Meia-Praia. Direção de António da Cunha Teles. Lagos: Animatógrafo - Produção de Filmes, Lda., 1977. (100 min.), color. Disponível em: <https:// www.youtube.com/watch?v=qE0NlsQTs_k>. Acesso em: 25 mar. 2017. PAREDES Meias (Bairro da Bouça - Siza Vieira). Direção de Sandro D. Araújo. [s.i.]: MUZZAK / CINEMACTIV e RTP 2, 2009. (52 min.), color. Disponível em: <https://www. youtube.com/watch?v=M7ZYoK4hTeU>. Acesso em: 20 julho 2017. VIZINHOS: A revolução e as casas de Siza na Bouça. Direção de Cândida Pinto. Porto: Sic Notícias, 2016. (38 min.), color. Disponível em: <http://sicnoticias.sapo.pt//programas/ vizinhos/2016-05-28-Vizinhos-A-revolucao-e-as-casas-de-Siza-na-Bouca>. Acesso em: 03 mar. 2017.

Créditos das imagens Página 37: registro da autora Figura 1: Reprodução Ana Margarida Palmeira Figura 2: Fundação Mario Soares Figura 3-6: Acervo Alexandre Alves Costa Figura 7: TEIXEIRA, MC. Habitação popular na cidade oitocentista : as ilhas do Porto. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, [1995]., 1995. Figura 8-9: produção da autora sobre imagem do Google 2017 Figura 10-11: Acervo Alexandre Alves Costa Figura 12-16: registro da autora Figura 17-18:O Processo SAAL: Arquitectura e Participação 1974-1976. Porto: Fundação Serralves, 2014. Figura 19-20: Acervo Alexandre Alves Costa Figura 21: registro da autora

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Figura 22: produção da autora sobre imagem do Google 2017 Figura 23-28: FLECK, Brigitte; SIZA, Álvaro; WANG, Wilfried. O’NFM 1 Bouça: Bouça Residents Association Housing. Austin: The University Of Texas At Austin, 2008. Figura 29-32: registro da autora Figura 33: CLEMENT, Thijs; VAN LOON, Laura; VODNICKA, Agata. Conjunto Habitacional da Bouça. 2014. 50 f. Department Of The Built Environment, Eindhoven University Of Technology, Eindhoven, 2014. Figura 34-36: registro da autora

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COPRO MO



Projeto: Usina Centro Trabalho para Ambiente Habitado (Arquitetura e Urbanismo: Érica Diogo, Fernando Nociti, Gilberto M. Rizzi, Joana Barros, João Marcos de A. Lopes, João Augusto da Fonseca, José Corrêa do Prado, Mario Luís Braga, Vladimir Benincasa, Wagner Germano, Sérgio Mancini; Obra: Fernando Nociti, João Marcos de A. Lopes, Vladimir Benincasa, Wagner Germano; Fundações e Estrutura: Yopanan Rebello Trabalho; Social: Priscila Bocchi, Sandra Sawaia; Apoio Jurídico: Evangelina Pinho; Informática/ Audiovisual: José Renato Braga, Sérgio Mancini) Local: Jardim Piratininga, Osasco, São Paulo, Brasil Escala local: população do município: 696. 382 habitantes (2016); área do município: 64,935 km² (26º município mais populoso do país) Contexto geral: um dos primeiros projetos da Usina, em momento de valorização da autogestão por parte da prefeitura de São Paulo (Erundina PT 1989-1993), renascimento dos movimentos sociais e surgimento das assessorias técnicas (Usina- 1990; Peabiru- 1993; Ambiente- 1992). A grande demanda por habitação em Osasco gerou o credenciamento de 10 mil famílias depois do projeto Terra é Nossa, da Usina. Parte dessas famílias, organizadas em associação, ocupou e conquistou a posse de um terreno próximo, com capacidade para 1.000 moradias. Duração: 1990 – Assessoria para a constituição da Associação 1991 a 1992 – Negociação/ Projeto 1992 a 1998 – Construção Escala: 1.000 unidades habitacionais em 50 edifícios de 5 pavimentos Terreno: 54.000 m² Tipologia: 2 quartos, 54m² de área útil Implantação: terreno fechado em condomínio, imerso na malha urbana da cidade de Osasco, em área residencial, próximo a equipamentos públicos, indústrias e comércio Grau de organização comunitária: grupo organizado em forma de associação. Conquista da terra através de ocupação por uma parcela da associação. Sistema construtivo: Alvenaria de blocos cerâmicos autoportantes industrializados e escadas em estrutura metálica independente. Fase da participação/envolvimento dos moradores: estruturação, projeto e construção

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Fonte de recursos: Terra (desapropriação): Cedida pela Prefeitura Municipal de Osasco; Projeto: Remunerado diretamente a partir de rateio entre as famílias; Construção: 320 unidades autofinanciadas e 680 unidades financiadas pela CDHU (Programa UMM) Remuneração dos participantes: Mutirão autogerido com mão-de-obra assalariada de apoio. Terra concedida pelo governo e unidades parcialmente autofinanciadas e parcialmente concedidas pelo governo Processo de construção: mutirão + terceirização Situação atual: sem grandes alterações significativas desde a conclusão da obra

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O contexto brasileiro e paulistano Durante uma boa parte da história recente brasileira, vivemos sob regimes ditatoriais, em que a censura era a ordem e, portanto, qualquer agremiação de pessoas em torno de alguma causa era suspeita de ameaça ao Estado. A censura, embora muitas vezes falha e desastrada em sua repressão política no meio das artes, era muito objetiva quanto aos movimentos sociais. Qualquer organização com motivações políticas era proibida. Com o desmonte da ditadura civil-militar, instituída em 1964, e o começo do processo de redemocratização, em meados dos anos 1980, houve uma reestruturação das forças de organização social. No final dos anos 1970, já começaram as primeiras greves de trabalhadores do ABC Paulista1, em que grupos eclesiais de base e os sindicatos se fortaleceram e fizeram renascer os movimentos sociais. Os movimentos por moradia nasceram desse cenário, no começo dos anos 1980, com ocupações de terras e organizações em favelas por todo o Brasil. É desses grupos que surgem as demandas por arquitetos. Especificamente em São Paulo, no começo dos anos 1980, os movimentos estavam localizados na Zona Sul. Com o passar do tempo, isso foi se dissolvendo e se fortalecendo no que hoje é a Zona Leste da cidade, sendo a União dos Movimentos por Moradia fundada em 1987. Nesse momento, já existiam iniciativas de autoconstrução e mutirão no estado de São Paulo. Uma das primeiras foi o projeto de Vila Nova Cachoeirinha2, em 1981. Esse movimento foi muito influenciado pela experiência dos mutirões no Uruguai. O engenheiro Guilherme Coelho, que participou do Vila Nova Cachoeirinha, volta, em 1982, de uma visita às Cooperativas de Ayuda Mutua uruguaias e começa a exibir para diversas pessoas e organizações um filme em Super 8, mostrando o estudo realizado para seu mestrado. Grupos começam a se organizar e constituir as assessorias técnicas (Usina, em 1990, Ambiente, em 1992, e Peabiru, em 1993). Esse movimento de base ampliado possibilitou a eleição de Luiza Erundina para prefeitura da cidade de São Paulo, em 1989. Erundina fazia parte do Partido dos Trabalhadores à época e sempre esteve ligada aos movimentos por moradia e movimentos sociais de esquerda. Na época de sua campanha, muitas estruturas legais ainda estavam em aberto devido à aprovação da Constituição em 1988. A vitória de uma mulher nordestina para a prefeitura da maior cidade do país foi uma grande surpresa, inclusive porque as pesquisas de intenção de voto não eram comuns naquela época. 1  Região industrial ao sul da metrópole de São Paulo, formada pelas cidades de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul. 2  RODRIGUES, Soraya. Casa própria ou apropriada? duas abordagens: o FUNAPS Comunitário e o Projeto Cingapura. 2006. Dissertação (Mestrado em Tecnologia da Arquitetura) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.

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A gestão de Erundina (1989-1992) representou, de certo modo, a culminação desse processo de fortalecimento dos movimentos sociais e, como decorrência natural de sua visão e história política, ficou marcada por favorecer iniciativas participativas. Com uma equipe de arquitetos em seu mandato – Ermínia Maricato, na Secretaria de Habitação, e Nabil Bonduki, na Superintendência de Habitação Popular – e Miguel Reis, assessor jurídico dos movimentos sem-terra da Zona Leste, como presidente da COHAB/SP, consegue-se alterar o FUNAPS (Fundo de Atendimento à População Moradora em Habitação Subnormal), criado em 1979. Pela primeira vez, um braço do programa é dedicado especialmente ao financiamento da autogestão - modelo que se define pela administração popular dos processos, no qual os participantes tem engajamento direto e poder de decisão sem intermédios de outros agentes, gerenciando o orçamento e o corpo técnico de apoio. O FUNAPS Comunitário, vigente entre 1989 e 1992, surgiu para eleger os mutirões com autogestão como principal forma de produção habitacional. Assim, iniciativas que antes dependiam do voluntariado técnico e das lutas populares agora se tornavam política pública, tendo o morador o controle de decisão do orçamento, deixando de estar à mercê das empreiteiras. A prefeitura de Erundina iniciou 100 mutirões, com 11 mil unidades habitacionais, sendo 2 mil finalizadas até 1993. Nesse momento de redemocratização, uma série de fatores permitiram a aprovação de medidas para combater a desigualdade e valorizar a democracia, com a conquista de muitas prefeituras de esquerda. Ermínia Maricato chama esses governos de “prefeituras democráticas e populares”, que dedicaram seus esforços às partes normalmente esquecidas das cidades, as periferias. Dentre essas medidas, estão o orçamento participativo, urbanização da periferia e moradias, a partir de autogestão. Também fazem parte desse cenário: a entrada da proposta de reforma na Constituição de 1988, a aprovação do Estatuto das Cidades e do Marco Regulatório do Saneamento, o Estatuto da Mobilidade Urbana, a Lei de Resíduos Sólidos e o Estatuto da Metrópole. Paralelamente, em outras esferas, Maricato destaca a criação do Sistema Único de Saúde e dos CIEPS. Em 1994, é extinto, pelo então prefeito Paulo Maluf, o FUNAPS Comunitário, deixando cerca de 7 mil unidades em mutirões ainda em construção sem verba. Apesar do desmonte do programa, os movimentos por moradia e as assessorias continuaram produzindo e lutando pela reforma urbana, conquistando financiamentos e terras até os dias de hoje.

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Os movimentos por moradia e a autogestão É nesse contexto de redemocratização que emergem os movimentos sociais de luta por moradia. Em busca por autonomia e questionando o papel tutelar do Estado, esses grupos exigem alternativas que os coloquem como construtores de seu destino. A reivindicação vai além de um teto e parte da percepção que o problema não é apenas o déficit habitacional, mas, sim, o modo de produção de habitação e o mercado imobiliário. O direito à moradia está previsto na Constituição desde 1988, porém morar não se resume a ter uma casa. A moradia adequada também está atrelada ao direito à cidade, no caso urbano, e à redistribuição de terras, no caso agrário. A concentração de terras nas mãos de latifundiários e os mecanismos de grilagem3 impedem uma distribuição mais justa da área rural e prioriza os grandes produtores agrícolas e pecuaristas, e não a produção para subsistência. Segundo o Artigo 184 da Constituição, “compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social”, ou seja, terras ociosas não contribuem para a sociedade, apenas para o interesse dos ruralistas, com forte poder de influência e presença massiva na política brasileira. Apesar de prevista por lei, a reforma agrária não se faz cumprir, devido a esse jogo de interesses. O cumprimento da reforma é, portanto, a principal bandeira do maior movimento social ligado a esse tema, o Movimento dos Sem Terra (MST). Do ponto de vista da cidade, a moradia adequada está relacionada à densidade e centralidade. O preço da terra costuma ser muito valorizado nas áreas centrais, onde há mais oportunidades de trabalho, segurança, mobilidade e equipamentos públicos. A forma como habitamos e como nos relacionamos com a cidade também faz parte da qualidade da habitação. Um dos maiores problemas das cidades, hoje, é a periferização das classes menos favorecidas, ocasionando grandes deslocamentos diários. O déficit habitacional não se restringe, portanto, à população em situação de rua que, realmente, não possui moradia. A quantidade de pessoas em assentamentos irregulares ou em condições de risco também é levada em consideração, conforme afirma Guilherme Boulos, coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST): “O déficit habitacional é de 5 milhões e 800 mil famílias no Brasil. Por volta de 95% dessas famílias não estão em situação de rua. São pessoas que pagam aluguel sem ter condições para isso (quando mais de 1/3 da renda total é destinada ao aluguel) ou morar em coabitação (morar de favor em casa de

3  Falsificação de títulos de propriedade para ocupação irregular de terras, sendo um dos mecanismos de concentração fundiária.

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parente) ou em situação de risco.”4 A exigência da função social da propriedade, conforme prevista no Estatuto das Cidades5, também prevê a desapropriação de terras e imóveis ociosos urbanos. Existem instrumentos legais para essa ação, como a implementação de IPTU progressivo6, porém, raramente são aplicados. Os movimentos urbanos se utilizam da estratégia da ocupação desses imóveis como forma de forçar a negociação e o cumprimento da lei. Os grupos eclesiais tiveram papel importante na formação de movimentos sociais por moradia, servindo de base comunitária e, também, física para as reuniões. Os movimentos costumam estar divididos por áreas e zonas da cidade, mas há diálogo e união entre as frentes, como a União do Movimentos por Moradia de São Paulo (UMM-SP), o Movimento Nacional da Luta por Moradia (MNLM) e o braço urbano do MST, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Esses grupos exigem um alto grau de organização interna, como mostra o filme “Era o Hotel Cambridge”7, que retrata os bastidores da ocupação de um antigo hotel em São Paulo. A complexidade das articulações e o enfrentamento à iniciativa privada, ao Estado e ao poder policial, exigem um nível de profissionalismo das lideranças, adquirido em anos de existência e resistência. Embora seja um enfrentamento a uma lógica do mercado imobiliário capitalista, é frequente a disputa por terrenos e edifícios de posse do Estado – o que também não facilita a negociação, como seria de se pensar. Isso só evidencia o quanto a defesa pelo direito à moradia não está na pauta dos governos. O déficit habitacional de São Paulo, por exemplo, até pouco tempo atrás, poderia ser resolvido, se o número de imóveis ociosos fosse convertido em habitação. Os movimentos possuem diferentes modelos de organização interna, mas, invariavelmente, é cobrada uma participação mínima dos integrantes nas atividades. Como forma de fortalecer o movimento, é levado em conta a participação em manifestações, festas e eventos de militância. Também é contada a presença nas assembleias. Muitas vezes, os moradores com maior pontuação ganham vantagens, como, por exemplo, prioridade na escolha dos apartamentos – que costuma se dar por sorteio.

4  Em entrevista à publicação “Lutar, Ocupar, Resistir: as alternativas habitacionais dos movimentos sociais”, realizada pelo Studio X em março de 2016. 5  Lei aprovada em 2001 que regulamenta o capítulo “Política Urbana” da Constituição Federal. 6  Aumento progressivo do Imposto de Predial e Territorial Urbano de imóveis sem função social até a expropriação por parte do Estado. 7  ERA O Hotel Cambridge. Direção de Eliane Caffé. São Paulo: Aurora Filmes, 2017. Son., color.

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Barraca para assinatura de presença dos moradores na Festa Junina do Movimento Sem Terra Leste, São Paulo (Fig. 01)

Cobertura para abrigar assembleias em canteiro do Movimento Sem Terra Leste 1, SĂŁo Paulo (Fig. 02)

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O Movimento Sem Terra Leste 1, um dos maiores de São Paulo, possui vários projetos em andamento oriundos de conquistas ao longo dos seus 30 anos de existência. Devido às mais de 3 mil famílias participantes, é usado como critério um tempo mínimo de ligação ao movimento para que determinada família seja destinada a um projeto. Em outros casos, o grupo se consolida pela permanência nas ocupações. Como os processos de negociação com o poder público pelo financiamento e pela concessão da terra demoram anos, muitas famílias desistem devido as precárias condições e constantes enfrentamentos e ameaças de despejo. O tempo também afeta a conformação das famílias, que podem crescer ou diminuir de tamanho durante a espera. Como o convívio é muito intenso, brigas e conflitos também são comuns e afetam a dinâmica dos relacionamentos. No entanto, a persistência parece ser um fator comum na maioria dos militantes. Alguns terrenos demandaram 20, 30 anos de luta. Depois de toda essa espera, há o medo de que atrasos nos repasses atrasem e paralisem as obras, por isso, como forma de fazer pressão, muitas vezes as famílias optam por continuar morando nas ocupações durante as obras, o que exige ainda mais paciência e compreensão no convívio. A defesa pelo regime de autogestão é fundamental para esse tipo de organização. A disputa é por maior poder de decisão, e isso envolve também o orçamento e a autoorganização. No modelo de autogestão, é a própria organização de moradores que administra os recursos, decide os gastos e quem contratar. A autogestão se apresenta, portanto, como uma forma alternativa de construção de relações e, consequentemente, de cidades. Toda essa bagagem de luta promove nos integrantes dos movimentos um repertório político que contribui para sua emancipação social. Afinal, não é um processo de cooptação, e sim de transformação dos indivíduos em tomadores de decisão. Essa educação política traz consigo um maior conhecimento sobre seus direitos e possibilidades de ação. A capacidade de diálogo e respeito pelo coletivo são exercitados ao longo desses processos. O empoderamento político é essencial para que a luta seja também pedagógica e se retroalimente. “Assim, defender e praticar a autogestão na construção da moradia e da cidade hoje é um contraponto ao modelo ortodoxo e hegemônico de produção pública (como o extinto BNH e a CDHU) e a de concessão privada, como o recente programa habitacional Minha Casa, Minha Vida.”8 USINA

8  USINA. Processos de projeto como construção de autonomia. Urbânia, São Paulo, n. 5, p.194-204, 2014. Pág. 194

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A Usina e o canteiro A assessoria técnica Usina CTAH (Centro de Trabalho do Ambiente Habitado) nasce oficialmente em junho de 1990, composta por um grupo interdisciplinar. Esses profissionais se uniram através da militância ou afinidade ideológica com as causas dos movimentos sociais de moradia. Assim como as demais assessorias, o interesse desses profissionais não é o tradicional mercado designado à arquitetura comercial. Eles buscam trabalhar em conjunto com os futuros beneficiários dos projetos desenvolvidos. O ato de assessorar reposiciona o profissional técnico e especializado dentre os agentes do projeto. Ao não se colocarem na posição de autores de um objeto, esses profissionais questionam a produção arquitetônica, usualmente individualista, autoral e egocêntrica. Ao trabalharem de forma coletiva, retiram a centralidade do arquiteto. Aqui o técnico não possui um conhecimento superior aos demais agentes. Também não há o distanciamento usualmente designado aos criadores. Aos arquitetos normalmente é exigido um programa e um desenho a partir de uma demanda, poucos se relacionam com seus clientes e menos ainda com quem constrói o que é desenhado. O momento de atuação costuma ser preciso e curto. As assessorias entendem o projeto como um processo, com diferentes fases e envolvimentos. Ao desconstruir o papel de criador e solucionador de problemas, comum aos preceitos funcionalistas e universais do arquiteto modernista, esse novo modelo busca quebrar hegemonias. A lógica mercadológica em que a arquitetura se enquadra a torna extremamente elitista e/ou autoritária. A produção autoral valoriza o status social dos arquitetos e não promove reais mudanças sociais. As assessorias lutam politicamente contra o modelo capitalista de produção arquitetônica e a favor das reformas urbana e agrária. Além de reposicionar a produção, o processo e a profissão, é preciso reformular o ambiente de trabalho. A Usina busca constantemente repensar suas relações internas, não se enquadrando no modelo empresarial dos escritórios de arquitetura. Não há, portanto, hierarquias entre os associados. Qualquer um pode se tornar associado, considerando que há isonomia salarial. Essa coerência ideológica não é apenas para evitar hipocrisias, mas também para que os integrantes da assessoria vivenciem na prática os dilemas e conflitos do modelo alternativo que defendem. Do ponto de vista construtivo, uma marca nos projetos desenvolvidos na Usina é o uso do bloco cerâmico estrutural. Esse bloco difere dos materiais convencionalmente usados nos canteiros brasileiros, como o tijolo baiano e o bloco de concreto. A produção exige um alto grau de industrialização, sendo o material submetido a fornos de altas

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temperaturas. Sua resistência é muito superior à do tijolo baiano, sendo possível construir em altura sem necessidade de estrutura complementar. O bloco cerâmico tem diferentes resistências, como 6 mpa (60 quilos por cm²), em que ele resiste a si mesmo e consegue sustentar construções de poucos andares. Ou resistência de 10 mpa (100 quilos por cm²), bem próxima à resistência do concreto (150 quilos por cm²) e muito superior à do tijolo baiano (6 quilos por cm²). Os furos internos do bloco permitem a passagem de tubulação, não havendo necessidade de quebrar caminhos, após subir a alvenaria, para a passagem da rede elétrica ou hidráulica. Outra vantagem é sua resistência à umidade, o bloco cerâmico é muito mais impermeável do que o bloco de concreto, trazendo maior conforto térmico às residências. Há também vários modelos, com diferentes furos, e blocos no tipo “canaleta”, que são preenchidos com concreto e ferro para fazer o peitoril e apoio de laje. A formação dos arquitetos fundadores da Usina na Unicamp fez com que já tivessem a experiência de trabalhar com painéis de cerâmica vermelha. Desenvolvido por Juan Villà no final da década de 1980, o sistema de construção com pré-fabricados cerâmicos foi posto em prática no Laboratório de Habitação da Unicamp, como ferramenta vernacular

Construção com blocos cerâmicos no projeto “Talara”, realizado pela Usina na década de 1990 (Fig. 03)

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de baixo custo e fácil execução para habitação social e autoconstrução9. Havia, portanto, o desejo de trabalhar com materiais cerâmicos, devido às qualidades apresentadas. Porém, era difícil imaginar o uso do bloco cerâmico em habitação para baixa renda, pois tinha-se a ideia de que seria mais caro. A partir de uma conversa com arquitetos que desenvolveram um projeto no Parque Fernanda (zona sul de São Paulo), feito em bloco cerâmico, foi comprovado que não era necessariamente mais caro, apesar da qualidade do material. É no projeto do Cazuza, em Diadema-SP, que a Usina usa pela primeira vez o bloco cerâmico estrutural para a construção de edifícios em mutirão. Na época, existiam poucos fornecedores e ainda não havia norma técnica para esse material. Também foi um desafio propor essa técnica para os moradores, pois poucos tinham conhecimento técnico para a construção, além do fato de que trabalhar com elementos autoportantes não é comum na construção civil brasileira. Vários debates foram promovidos em assembleias e houve resistência por parte dos moradores; inclusive do mestre de obras, que fez campanha contra o bloco cerâmico. Após muito debate, a Usina conseguiu convencê-los usando analogias que remetiam ao cotidiano, como por exemplo a resistência térmica do filtro d’água de barro. Outra técnica para comprovar a qualidade superior da cerâmica foi derramar água simultaneamente no bloco de concreto e no bloco de cerâmica para mostrar qual material conseguia reter melhor a água. Assim, esse material foi aprovado pelos moradores e, com a conclusão bem-sucedida do Cazuza, foi mais fácil o convencimento nos demais projetos posteriores. O elemento construtivo passa, então, a ser o definidor dos projetos. A adoção da cerâmica e a lógica de mutirão fez do bloco o módulo a ser replicado. Apesar de pouco usada no Brasil, a construção com bloco é de fácil entendimento e possível de ser ensinada para pessoas sem experiência com construção. Esses fatores são determinantes para o regime de mutirão, pois a viabilidade depende da apropriação da construção pelos mutirantes. No entanto, isso não limita o trabalho dos técnicos da Usina de buscarem inovações e até mesmo se esforçarem no convencimento e defesa de suas ideias. Do contrário, uma abstenção dos técnicos de seu saber seria o equivalente a uma descrença na capacidade intelectual e de entendimento dos mutirantes, além de uma manutenção do modelo de exploração operária. A busca pela racionalidade técnica é guiada pelas necessidades do mutirão, porque pensar o “como” também é político. Por mais que se busque quebrar as hierarquias entre os agentes, fatores sociais separam a assessoria técnica dos moradores organizados. A diferença de educação formal e nível de instrução os coloca em posição de poder. Parte do trabalho nos processos 9  CAMARGO, Mônica Junqueira de. Arte como construção. AU: arquitetura e urbanismo, São Paulo, n.146, mai. 2006. Disponível em: < http://au.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/146/arte-como-construcao-22182-1.aspx >. Acesso em: 3 set. 2015.

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participativos, portanto, é a constante busca por capacitar os demais agentes para o debate sobre a moradia. A participação dos futuros moradores sem o empoderamento dos mesmos pode levar a um jogo de manipulação. Pessoas em situação de precariedade e, nesse caso, urgência na garantia de um direito básico como a moradia, tendem a um grau menor de exigência. É preciso, então, apresentar boas referências, para que se crie um repertório de possibilidades, mesmo com recursos escassos. “O estímulo à imaginação (e à indignação) é fundamental. Para quem está acampado num barraco, qualquer alternativa parece aceitável, mesmo os apartamentos-padrão mais indignos construídos pelo governo. Para superar essa carência e conformismo, é preciso realizar ações e provocações que agucem a disposição para indagar, conhecer e propor alternativas.”10 USINA Uma das metodologias usadas pela Usina – e é importante frisar que não há um roteiro a ser seguido, cada caso exige uma abordagem diferente - é trazer aos moradores exemplos de conjuntos habitacionais de boa qualidade e, também, exemplos do que eles consideram ruim. Os moradores, separados em grupos menores, discutem as diferentes formas de ocupação do espaço adotadas nas referências e definem suas preferências. O 10  USINA. A comuna urbana. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 04, página 19 - 22, 2011.

Assembleia na obra do projeto “26 de Julho” (Fig. 04)

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debate não busca uma conclusão ou a eleição da melhor maneira de habitar. Surgem, é claro, muitas discordâncias, mas são elas que permitem compreender que poderão haver ideias divergentes e convergentes ao lidar com o outro. Outra técnica é buscar reativar memórias de experiências anteriores de moradia. Ao compartilharem com os demais suas trajetórias, o grupo se torna mais próximo e encontra semelhanças muitas vezes desconhecidas. Essa conversa também tem o papel de levantar a discussão sobre questões fundiárias, já que, normalmente, aborda cenários de migração para as cidades em busca de trabalho. Os desenhos técnicos são usados, todavia, sempre em escala maior, para que possam ser manuseados e vistos por várias pessoas ao mesmo tempo. O uso de maquetes é frequente, sempre em escalas e materiais que permitam o manuseio e, quando possível, a alteração simultânea. As plantas são discutidas, normalmente, a partir do mobiliário, sendo os ambientes definidos pelos elementos que os constituem. Ao tratar das unidades mais especificamente, a Usina tenta desvendar as relações sociais de cada contexto. As atividades procuram evitar questionamentos diretos - como o tamanho dos cômodos -, focando mais em problematizar a relação entre os ambientes, quais as funções e quem as exerce. Nesse momento, torna-se evidente como a moradia

Assembleia na obra do projeto “Paulo Freire” (Fig. 05)

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reproduz questões hierárquicas. O machismo é frequentemente debatido, as visões sobre a casa são muito diferentes entre os homens e as mulheres, o que acaba acendendo desavenças. A forte presença das mulheres é muito marcante nos processos de autogestão. Elas estão em maioria tanto nas assembleias quanto nos mutirões, sendo quase sempre as representantes das famílias. Esse fato é resultado de um processo de emancipação muito evidente ao longo dos projetos. Os debates sobre as funções domésticas de cada integrante são o começo do questionamento de gênero. Nessa fase, muitas mulheres enfatizam que quem deve decidir e sabe melhor sobre as cozinhas são elas, optando por cozinhas menores e que facilitem a limpeza, ao contrário dos homens que costumam querer cozinhas grandes sem pensar nas consequências. A atuação das moradoras durante a obra é inédita para a maioria delas. Como o trabalho na construção civil está comumente associado aos homens, há um estranhamento inicial. Não obstante, a participação feminina é muito maior, as mulheres dominam o canteiro e aprendem a se apropriar desse espaço. Algumas se interessam pelo trabalho e acabam se profissionalizando como mestres de obras. As lideranças dos movimentos também são majoritariamente femininas. A ausência dos homens ao longo do processo traz consequências quando a obra fica pronta: é grande o número de divórcios, por isso as

Moradoras mutirantes na obra do projeto “Paulo Freire” (Fig. 06)

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escrituras costumam estar no nome das mulheres da família. A profissionalização dos participantes se dá além da construção civil. Todo esse caminho de capacitação política incita e encoraja que muitos moradores busquem melhores condições de vida através do ensino superior e cursos técnicos. Um dos muitos exemplos é Cristiane Gomes, moradora e mutirante do projeto Paulo Freire, quem hoje é formada em Pedagogia e umas das coordenadoras do Movimento Sem Terra Leste 1, em São Paulo. O exercício de debater e ver o outro evidencia questões sociais muitas vezes ignoradas. A aceitação e a reprodução de relações de opressão e dominância podem ser quebradas por meio do processo de construção coletiva do espaço habitado. A autogestão tem como princípio necessário repensar e reformular as relações sociais de poder. Como processo pedagógico e emancipador, ele comprova a capacidade das classes trabalhadores de se organizarem, demandarem seus direitos e produzir com qualidade, seja a moradia, a cidade ou demais esferas da vida coletiva.

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O COPROMO

A história do COPROMO começa no final de 1989, antes mesmo da constituição jurídica da Usina. Em virtude do contato de um arquiteto já envolvido com a população local, os arquitetos que viriam a ser os sócios fundadores da Usina foram chamados para conversar com um grupo de moradores em Osasco, cidade no oeste da Região Metropolitana de São Paulo. Eles viviam em uma favela, com construções informais, e estavam pleiteando um terreno que pertencia à Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo – COHAB-SP. Ao conquistarem a terra, faltava o projeto de arquitetura e urbanismo para que pudessem se mudar. O projeto foi orçado e dividido entre as famílias organizadas na Associação Comunitária “Terra é Nossa”, sem financiamento. O projeto era para 520 famílias e o conjunto foi construído pelos moradores. A conquista da terra e a conclusão do projeto através da mobilização incentivaram que mais pessoas aderissem a esse movimento. A Associação resolveu montar um barracão no terreno do Terra é Nossa para cadastrar famílias interessadas em aderir ao movimento. Em alguns dias, 10.000 famílias já estavam inscritas. A alta demanda por habitação na região gerou outro grupo de sem-tetos. Após uma seleção, o grupo foi reduzido para 3.000 famílias que começaram a lutar pelo terreno em frente ao Terra é Nossa. Na negociação com a prefeitura, apenas metade do terreno almejado foi cedido, com aproximadamente 54.000 m², tendo sido possível alocar

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1.000 famílias.

Os moradores se organizaram na Cooperativa Pró-Moradia de Osasco (COPROMO),

mas, devido a burocratização para o cooperativismo, se formaram como Associação PróMoradia de Osasco, e permaneceram com o nome original. Diferentemente da maioria dos projetos com autogestão e mutirão, nesse a organização dos moradores não passava por nenhum movimento de moradia. O grupo era ligado a um político que lutava pela questão da reforma urbana (Vereador Didi – Reginaldo Oliveira de Almeida – PT) e se vinculou à União dos Movimentos por Moradia de São Paulo (UMM) apenas para conseguir o financiamento. Era o vereador quem fazia o intermédio nas negociações pela terra com a prefeitura. Essa é uma característica específica da região Oeste, porque nesse momento os movimentos por moradia estavam mais fortes no ABC paulista e na Zona Leste. A terra foi cedida pela Prefeitura de Osasco e o financiamento das casas foi promovido pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU). A Usina foi escolhida como assessoria técnica, devido a sua experiência com o Terra é Nossa. Havia reuniões semanais com os futuros moradores em um barracão no canteiro e eleição para os diretores da Associação a cada 2 anos. Durante as negociações pelo financiamento, um grupo de 300 famílias se cotizou para começar a obra por conta própria, em 1992. Apenas em 1994, quando esses apartamentos já estavam quase prontos, saiu o financiamento da primeira parte pela CDHU, para 160 apartamentos, 8 blocos. A segunda parcela, referente ao restante das unidades, só saiu em 1996. Sendo assim, houve sorteio para decidir quais seriam os moradores a ocupar os primeiros blocos construídos. Da mesma forma que acontece nos movimentos por moradia, também havia um esquema de pontuação por participação no mutirão, quem tinha mais pontos acumulados poderia escolher primeiro em qual apartamento ficaria. Como nesse projeto o número de famílias era muito grande, seria impossível ter reuniões com todos os moradores. Por isso, nos encontros para a fase de concepção de projeto, foram usadas algumas técnicas pela assessoria. Uma delas era separar as famílias em grupos, sendo realizadas 20 reuniões com 50 famílias por vez. Para João Marcos, arquiteto da Usina que participou desse processo, a participação dos moradores nesse contexto não foi tão profunda quanto em outros projetos da assessoria. Ao apresentar o desenvolvimento do projeto, era exibido filmes com falas de moradores e cenas das assembleias e uma animação 3d com o projeto11.

O sistema construtivo escolhido para o COPROMO foi o bloco cerâmico autoportante,

devido a experiência bem-sucedida no projeto do Cazuza. O projeto foi desenvolvido a partir 11  Disponível ao final do documentário sobre o projeto: AS MIL Moradias. Direção de Sérgio Mancini. Produção de Usina Ctah. Osasco, 1992. Son., color. Disponível em: <https://youtu.be/--Xe33U8POY>. Acesso em: 06 ago. 2017

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Planta baixa do bloco de apartamentos, com 4 unidades (Fig. 08)

de conversas com as famílias para definição do programa e tipologia. O bloco cerâmico é a base do projeto, sendo o elemento replicado seguindo a modulação. A planta da unidade – todas iguais, com dois quartos, sala, cozinha e banheiro – é formada por 4 módulos. Cada módulo, de 3,75m x 3,75m, forma um cômodo e os quatro cômodos são articulados por um módulo de circulação, de 1,25m x 1,25m. Esse módulo de circulação é formado a partir de cinco blocos e o módulo dos cômodos é formado por nove módulos de circulação. Em projetos anteriores da Usina, a construção das escadas em concreto era sempre um ponto problemático. Esse elemento demorava a ser concluído, devido a sua complexidade e, normalmente, gerava atrasos na obra como um todo. No COPROMO, surge a ideia de usar escadas pré-fabricadas e metálicas, que seriam compradas de empresas especializadas. Essa inovação não busca apenas agilizar a obra, o método anterior era perigoso para os trabalhadores e mutirantes. As escadas metálicas ganham uma nova função ao serem instaladas antes da alvenaria, passando a funcionar como andaimes, possibilitando o transporte de material de forma mais segura, e, também, de prumo e gabarito para a alvenaria. Antes, o nivelamento dos pavimentos era mais incerto, agora, quem dita o nível é a própria escada. O arquiteto Pedro Arantes, sócio fundador da Usina, defende a inovação proposta pela escada independente: “Os movimentos de moradia e seus arquitetos não estavam dispostos a simplesmente reproduzir ‘precariedades’, mas, ao contrário, concentravam seus esforços à procura de soluções modernas, utilizando ao máximo possível

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os meios técnicos da civilização contemporânea.”12 Essa medida enfatiza a presença dos arquitetos nesse processo participativo. Muitas vezes a escolha pela participação traz consigo uma ideia de distanciamento dos arquitetos e do corpo técnico nas decisões. A Usina não abdica do seu conhecimento técnico e construtivo, e nem se exime da responsabilidade de buscar pela melhor solução, principalmente em favor de quem constrói. Essa atitude foge, portanto, do maniqueísmo frequente no ideário da construção em mutirão, que, pela falta de recursos financeiros e mão de obra especializada, tende a materiais mais baratos e a não haver inovações do ponto de vista da tecnologia da construção. O uso da escada metálica independente marcou os projetos seguintes da Usina, como os projetos na Fazenda da Juta e o Mutirão Paulo Freire. Esse último foi, inclusive, todo realizado com estrutura metálica e fechamentos com bloco cerâmico. Essa opção trouxe mais liberdade na composição das plantas e permitiu alterações futuras por parte dos moradores, sendo o primeiro edifício de estrutura metálica construído em regime de mutirão. No COPROMO, os moradores perceberam que seriam capazes de montar uma 12  ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura nova. Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos multirões. São Paulo, Editora 34, 2002.

Área de circulação vertical em estrutura metálica, em julho de 2017 (Fig. 09)

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serralheria e confeccionar as escadas metálicas dentro do próprio canteiro. Essa autonomia em relação à indústria se mostrou benéfica, pois o lucro, destinado, antes, à empresa fornecedora, poderia, agora, ser revertido para a própria obra. Isso só foi possível devido ao grande número de mutirantes, e sua disponibilidade. Em outros projetos, com menor número de unidades, provavelmente a mesma solução não seria vantajosa, visto que a serralheria é desmontada após a finalização da obra.13 No conjunto, o núcleo de circulação vertical faz a conexão dos 4 apartamentos de cada andar. Além da escada, há uma área de circulação que forma um espaço coberto de convívio entre os moradores de cada andar. Essa espécie de varanda permite o contato visual com os demais blocos e as áreas livres no térreo. Essa área é usada para guardar bicicletas, colocar plantas e crianças brincam sob o olhar próximo dos pais de dentro das unidades. A articulação dos módulos evita criar grandes blocos monolíticos, e sim reentrâncias. Esse desenho gera pequenos e grandes núcleos a partir de suas quinas. O bloco em C, quando combinado com outro espelhado, forma uma praça. Outros dois blocos são acoplados nas extremidades e levemente desalinhados com o eixo, formando assim outras duas áreas de convivências menos fechadas, em semicírculo. Esse conjunto de quatro 13  Entrevista realizada pela autora a João Marcos de Almeira Lopes, sócio fundador da Usina, em 2017.

Implantação (Fig. 10)

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Praça central do conjunto, em julho de 2017 (Fig. 11)

blocos é repetido ao longo do terreno, formando núcleos dentro do grande conjunto. No centro do terreno, há uma praça central, onde há a sede da Associação, quadra de esporte e brinquedos para crianças. A maioria dos blocos permanece até hoje com o bloco de cerâmica aparente, apesar da liberdade para mudanças. Cada bloco tem uma sub-sindicância que deve decidir por maioria se quiser fazer alterações na cor ou revestimento dos edifícios, não sendo permitida a troca de esquadrias e a instalação de aparelhos de ar condicionado. Alguns blocos optaram pelo revestimento externo e pintura, no entanto, todos estão com a mesma cor, que é muito semelhante à cor do bloco, mantendo a unidade visual. Alguns blocos já foram pintados de cores destoantes, mas logo mudaram para a cor de tijolo. Embora não seja autorizado (inclusive por questões estruturais), podemos perceber um número considerável de aparelhos de ar condicionado, embora as esquadrias permaneçam as mesmas. Mesmo havendo uma diretoria de administração geral de todo o conjunto de prédios, algumas decisões devem ser tomadas pelo grupo de moradores de cada bloco. O critério é, sempre, a votação, em que vence a maioria simples. Essa organização é herdada do processo de projeto e mutirão, onde as decisões são tomadas em assembleias com um representante de cada família. Podemos perceber que há um respeito grande pela decisão da maioria. Geralmente, em qualquer comunidade de pessoas, essa regra prevalece e

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Vista externa um dos blocos de apartamentos, em julho de 2017 (Fig. 12)

é acordada por todos, no entanto, isso não impede que ocorram infrações e atos de vandalismo. É inerente a qualquer organização humana o desrespeito eventual às regras, sob punição ou não. Em ambientes onde há um grande número de pessoas reunidas, o controle é ainda menor e mais difícil. Seguindo essa lógica, no COPROMO, veríamos várias infrações e desrespeitos devido ao grande número de opiniões e vontades discordantes. O que vemos, porém, é um respeito pela organização. Isso se reflete na permanência do projeto quase sem alterações em comparação ao que foi entregue na conclusão da obra. O que não significa haver consenso; parte dos moradores não está satisfeita com a Diretoria atual e reclama de sua gestão. Ao serem questionados sobre grupos de moradores e a união dos vizinhos hoje em dia, descobre-se que há interesses em comum e algumas iniciativas já foram organizadas (como o Cine COPROMO, o time e a escolinha de futsal), porém, a Diretoria não permite ou não incentiva a realização dessas atividades. Da mesma forma, eventos e festas não podem acontecer na praça central e a sede da Associação encontra-se abandonada e sem uso. O mandato da Diretoria não se renova, porque, segundo o estatuto da Associação, quem decide é 50% + 1 do total das 1.000 unidades, mas, se esse número não comparece à reunião, ganha o voto da maioria dos presentes. Problemas e discordâncias de gestão são comuns e inevitáveis em qualquer associação,

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mas é especialmente alarmante ver que isso está enfraquecendo a união construída por esses moradores há tantos anos. Embora a maior parte ainda seja de moradores originais, uma parcela de apartamentos já foi vendida ou é alugada – mesmo que ainda não haja a escritura, pois faltam obras de urbanismo e infraestrutura a serem concluídas pela CDHU. Seu Neto, um dos moradores originais, conta que, se não fosse pelos novos moradores, saberia reconhecer todos os seus milhares de vizinhos. Ainda assim, ele diz ser conhecido por todos, por estar lá desde o início. “Com o mutirão todo mundo se conheceu. Hoje se você perguntar pelo Neto, todo mundo sabe quem é. Isso é bom para criar uma relação maior com o lugar.”14

Além do alto grau de organização, o sentimento de pertencimento e orgulho também

é percebido entre os moradores. Eles recebem, até hoje, visitantes interessados em suas histórias e muitos dizem não querer se mudar dali. O valor atribuído aos apartamentos tem sofrido um grande incremento ao longo dos anos. Inicialmente, eram vendidos por 18.000 reais, repassando a dívida do financiamento, e, recentemente, por 190.000 reais. Há o plano, por parte do vereador Didi, de dividir a área do COPROMO em 5 condomínios diferentes, sendo a praça central utilizada por todos. 14  Entrevista realizada pela autora a Seu Neto, um dos moradores originais do CORPROMO, em 2017.

Espaço livre entre blocos, em julho de 2017 (Fig. 13)

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Hoje, alguns blocos já instalaram grades em suas entradas, com portões eletrônicos. Durante a construção, como a primeira fase ficou pronta e foi habitada enquanto o resto ainda estava em obra, foi necessário criar uma separação no projeto, por questões de segurança de obra. As grades que separaram as primeiras 160 unidades das demais foram retiradas, mas estão amontoadas no terreno, como que à espera de uma nova decisão. O terreno possui duas entradas de acesso, pela Avenida Graciela Flôres de Piteri (principal) e pela Avenida São Patrício. O terreno é em formato trapezoidal, sendo costurado longitudinalmente pela rua interna principal, que liga as duas portarias. A base menor do lote faz divisa com outro conjunto de edifícios, enquanto na base maior está a Fundação Instituto Tecnológico de Osasco. O terreno possuiu suaves diferenças de nível, resultando em pequenas alterações de nível entre os blocos, facilmente vencidas com rampas e escadas. O conjunto está rodeado de equipamentos públicos, como escolas e hospitais, e também de comércio de pequeno e médio porte. Localizado entre importantes rodovias (Anhaguera, Mario Covas e Castelo Branco), há fácil acesso às cidades vizinhas e ao centro de São Paulo com grande disponibilidade de linhas de ônibus. Apesar da presença de assentamentos informais nas proximidades, essa região é marcada por conjuntos habitacionais de diferentes épocas. Quando perguntado sobre as diferenças entre o COPROMO e os demais projetos de habitação da região, Seu Neto – um dos moradores originais - destaca que, em outros projetos, os cômodos são bem menores e todo o espaço não construído é destinado a estacionamento. No COPROMO, não há vagas de estacionamento para todos os 1.000 apartamentos. Em comparação com o projeto onde mora o seu filho, ele conclui que há um problema de organização do espaço, visto que, no COPROMO, existem muitos espaços dedicados ao lazer que estão sem uso, enquanto, na sua opinião, mesmo o estacionamento poderia ser menos generoso em espaço para caber mais carros. A despeito desse discurso, por parte dos moradores, que valoriza o carro em detrimento das pessoas, pode-se perceber, ao caminhar pelo conjunto, a qualidade dos espaços de lazer. Os núcleos formados pelos blocos são acessados apenas por pedestres. Muitas crianças brincam pelas áreas livres e a praça é bastante utilizada por todos. Mesmo sem a manutenção adequada – e, por isso, talvez não utilizados de forma plena -, os espaços gerados pelos blocos criam uma ambiência que valoriza a comunidade. A hierarquia de espaços e acessos gera subdivisões dentro do conjunto de 50 edifícios. Criou-se, deste modo, uma urbanização voltada para si mesma, que busca fortalecer as relações da comunidade e não do bairro como um todo. O diálogo da implantação com o entorno não é tão forte, sobretudo porque, hoje, o COPROMO encontra-se fechado em

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forma de condomínio, com as ruas internas de uso exclusivo dos moradores. Inicialmente, as ruas eram públicas, mas foi decisão dos moradores o fechamento logo nos primeiros anos após a conclusão da obra. O processo de projeto no COPROMO nos leva a pensar sobre os impactos que a escala gera na participação. Como garantir voz nas decisões a um grupo de 1.000 famílias? As complicações derivadas de uma escala maior exigem maior tempo de projeto? Como o longo tempo de projeto (8 anos) impacta as relações? Pensando de forma mais ampla, nos trabalhos da Usina e no caso da autogestão, o tempo prolongado dos projetos é uma constante. Em que medida isso se deve apenas às questões burocráticas de financiamento e repasses? Não teria esse modelo de processo participativo uma exigência maior de duração? Quando se trata de populações de baixa renda e, anteriormente, sem moradia adequada, a urgência de solução se torna um parâmetro importante a ser considerado. Se esses processos buscam alterar não apenas as relações do indivíduo com sua moradia, mas também com a cidade, a coletividade e com seu próprio ser político, quais as consequências que podemos enxergar na sociedade?

Detalhe da circulação em estrutura metálica, em julho de 2017 (Fig. 14)

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Bibliografia Específica ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura nova. Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos multirões. São Paulo, Editora 34, 2002. CAMARGO, Mônica Junqueira de. Arte como construção. AU: arquitetura e urbanismo, São Paulo, n.146, mai. 2006. Disponível em: < http://au.pini.com.br/arquiteturaurbanismo/146/arte-como-construcao-22182-1.aspx >. Acesso em: 3 set. 2015. LUTAR, OCUPAR, RESISTIR: as alternativas habitacionais dos movimentos sociais. Rio de Janeiro, mar. 2016. RODRIGUES, Soraya. Casa própria ou apropriada? duas abordagens: o FUNAPS Comunitário e o Projeto Cingapura. 2006. Dissertação (Mestrado em Tecnologia da Arquitetura) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. USINA. A comuna urbana. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 04, página 19 - 22, 2011. USINA. Processos de projeto como construção de autonomia. Urbânia, São Paulo, n. 5, p.194-204, 2014. Pág. 194 USINA. Usina CTAH. Disponível em: <http://www.usina-ctah.org.br/>. Acesso em: 31 out. 2017.

Filmografia Específica ARQUITETURA como prática política - 25 anos de experiência da Usina. São Paulo: Gabriela Nunes, 2015. Son., color. ARQUITETURAS - Copromo. São Paulo: Sesctv, 2013. Son., color. AS MIL Moradias. Direção de Sérgio Mancini. Produção de Usina Ctah. Osasco, 1992. Son., color. Disponível em: <https://youtu.be/--Xe33U8POY>. Acesso em: 06 ago. 2017. CAPACETES Coloridos. São Paulo: Paula Constante, 2007. Son., color. ERA O Hotel Cambridge. Direção de Eliane Caffé. São Paulo: Aurora Filmes, 2017. Son., color. TV Mutirão. São Paulo: Vtv Video, 1991. Son., color.

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Créditos das imagens Página 73: Usina CTAH Figura 1-2: registro da autora Figura 3-8: Usina CTAH Figura 9: Zeca Osorio Figura 10: Usina CTAH Figura 11-14: Zeca Osorio

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QUINTA MONROY



Projeto: Elemental (Alejandro Aravena, Gonzalo Arteaga, Juan Cerda, Victor Oddó, Diego Torres). Engenheiros: Josè Gajardo e Juan Carlos de la Llera. Urbanização: Proingel, Abraham Guerra. Construtora: Loga S.A. Local: Iquique, Região de Tarapacá, Chile Escala local: população do município: 180.601 habitantes; área do município: 2.242,1 km2 Contexto geral: projeto promovido pelo programa Chile Barrio, criado em 1997 para combater o déficit habitacional do Chile e a pobreza com participação cidadã. Duração: 2001-2004 Escala: 93 unidades habitacionais Terreno: 5.025 m². Área construída: 3.500 m² Tipologia: duas tipologias modulares com cozinha e banheiro e planta livre (unidade térrea inicial 36 m², ampliada até 70 m²; duplex inicial 25 m², ampliado até 72 m²) Implantação: terreno plano, condomínio fechado, imerso na malha urbana da cidade de Iquipe, em área residencial, próximo a equipamentos públicos, indústrias e comércio Grau de organização comunitária: reconstrução da comunidade existente no mesmo terreno, que se negou a sair para uma terra menos valorizada. Grupo pequeno e articulado. Sistema construtivo: blocos de concreto estrutural e fechamentos em madeira Fase da participação/envolvimento dos moradores: estruturação e ocupação Fonte de recursos: terra e unidades concedidas pelo governo federal Remuneração dos participantes: terra e unidades concedidas pelo governo federal Processo de construção: terceirização Situação atual: praticamente todas as casas sofreram acréscimos, com diferentes composições e desenhos. Alguns lotes foram gradeados e o terreno foi fechado em forma de condomínio.

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O contexto chileno Após 41 anos de regime democrático, o Chile sofreu, em 1973, um golpe militar que levou o general Augusto Pinochet ao poder, dando início a uma ditadura com forte repressão e inúmeras mortes. Pinochet implementou um plano de choque econômico que, às custas dos mais pobres, buscou retomar a estabilidade. A desigualdade social se acirrou no país, com altas taxas de desemprego, enquanto as indústrias se desenvolveram em velocidade recorde. Na década de 1980, começa a desarticulação do governo ditatorial de Pinochet, até sua saída por plebiscito em 1988 e a eleição de um novo presidente. O preço pago por esse modelo de desenvolvimento é evidente até hoje. Mesmo nos governos de esquerda que se seguiram à redemocratização, o modelo liberal-capitalista se manteve. Hoje, o Chile tem altas taxas de desigualdade, poucos tem acesso à saúde básica e o próprio presidente declarou que “a educação é um bem de consumo”1. A redemocratização trouxe esperanças à população de políticas públicas que melhorassem as péssimas condições sociais herdadas do liberalismo. Todavia, mesmo passados mais de 25 anos da transição de governo, o déficit habitacional segue sem solução. A política habitacional no Chile, no final do século XX, foi pautada pelo financiamento das moradias realizadas por construtoras privadas, gerando um grande endividamento da população de baixa renda. A prioridade foi a quantidade, e não a qualidade. Essa decisão resulta na diminuição do déficit, mas também na implantação de conjuntos habitacionais em áreas distantes dos centros, longe dos serviços públicos e transportes, o que agrava demais problemas sociais. Em 1997, é criado o programa federal Chile Barrio, com o objetivo de combater a pobreza e marginalidade social, dedicado especificamente às 105.888 famílias que residem em 972 assentamentos precários, de acordo com estudo realizado no mesmo ano2. O programa tem como premissa a participação cidadã, para fortalecer e gerar autonomia nas organizações sociais, além de melhorar a qualidade de vida e o acesso aos serviços e equipamentos públicos e privados, melhorar a capacidade de geração de renda, regularizar os assentamentos e fortalecer os governos locais. O programa também defende a radicação das famílias em seus territórios originais, ao invés da realocação para outros terrenos. Não há, entretanto, definições claras de como se daria essa participação, a despeito de ter como premissa unidades progressivas, ou seja, que possam ser expandidas pelos moradores no futuro. A fim de evitar grandes conjuntos habitacionais, ele também estabelece um máximo 1 Presidente Sebastián Piñera, em 2011. BARROS, Fabián. La desigualdad es elemental: Conjeturas ideológicas para una crítica a Quinta Monroy. 2015. Disponível em: <http://dpa-etsam.aq.upm.es/gi/arkrit/blog/la-desigualdad-es-elementalconjeturas-ideologicas-para-una-critica-a-quinta-monroy/>. Acesso em: 28 nov. 2015. 2  SABORIDO, Marisol. El Programa Chile Barrio: Lecciones y desafíos para la superación de la pobreza y la precariedad habitacional. Santiago: Comisión Económica Para América Latina y El Caribe (cepal), 2005.

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de 300 unidades por projeto. Todos esses fatores acabaram por tornar desvantajoso o investimento para as grandes construtoras, afetando o sucesso do programa.

O Elemental e as casas “incrementais” O Elemental se auto define como um escritório focado em projetos de interesse público e social, tendo como base de aproximação o processo de projeto participativo. O escritório e, principalmente, o arquiteto Alejandro Aravena - seu fundador e diretor executivo -, ganharam destaque recente na mídia por sua solução tida como inovadora para a habitação de baixa renda. Em 2016, Aravena foi escolhido como curador da Bienal de Arquitetura de Veneza e também laureado com o Prêmio Pritzker, o primeiro conferido a um arquiteto chileno. O êxodo rural foi, assim como na maioria dos países, também no Chile o maior agravante do déficit habitacional urbano. E, mais uma vez, não há verba pública suficiente para suprir essa demanda através da produção. A solução encontrada pelo Elemental foi construir “metade de uma boa casa”. Ao invés de construir unidades com área bastante reduzida, como uma miniatura, eles optaram por construir as partes consideradas mais essenciais, como cozinha e banheiros, e deixar uma área destinada a expansões futuras. Essa lógica parte do pressuposto de que, em projetos com uma área útil muito abaixo do que seria confortável, as expansões são quase que inevitáveis. Os moradores, ao longo do tempo ou quando tem verba, comumente fazem acréscimos em suas residências, seja buscando mais conforto ou por alterações nas demandas familiares. Se esse processo é natural, como acredita o Elemental, a solução seria incorporá-lo ao projeto e tirar proveito dessa matemática, diante da escassez de recursos públicos.

(Fig. 01)

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Apesar da complexidade social e econômica da questão habitacional, a resposta apresentada pelo Elemental é dentro do campo da arquitetura. Não há uma proposta de política pública ou um projeto que dependa de aprovação e apoio estatal, a solução pode ser realizada sem depender de fatores externos à arquitetura, desde que haja verba. Para isso, o escritório busca parcerias com empresas e não com o Estado. Essa escolha pode se mostrar mais eficaz dependendo do contexto, pois depende apenas de fornecer uma vantagem econômica e não de questões ideológicas ou agendas eleitorais. Exemplo dessa operação é a parceria com a Companhia de Petróleos de Chile (COPEC), que, em 2006, se funde em sociedade com o Elemental e a Pontifícia Universidade Católica do Chile. Manter a viabilidade dos projetos, podendo realizá-los com a qualidade almejada e sem depender de vontades políticas, é a justificativa do Elemental para seu modelo de escritório-empresa. A proposta da “meia casa” foi desenvolvida pelos sócios do escritório durante estudos na Universidade Católica do Chile e em Harvard, a partir do conceito de “edifício paralelo”. Tendo em vista a necessidade e inevitabilidade das expansões nas unidades residenciais, a construção em altura limitava essas possiblidades apenas ao térreo – podendo expandir horizontalmente – e ao último pavimento – podendo expandir para cima. A construção de unidades térreas unifamiliares por lotes também não soluciona a questão, pois promove o espraiamento das cidades e exige maior volume de terras. Sobrepondo duas unidades, o Elemental encontra sua melhor solução, atrelando densidade e possibilidade de expansão. O edifício abarca em seu desenho porosidades que permitem acréscimos controlados no futuro, sem sair de sua lógica formal. Os espaços livres da unidade inferior se distribuem horizontalmente e os da superior verticalmente.

(Fig. 02)

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As casas são pensadas, então, a partir de suas necessidades estruturais mais básicas e usualmente de execução mais complexa e custosa. A área destinada à expansão é reservada e faz parte do lote dos moradores. Esse espaço também é delimitado pelo projeto. Não há uma reserva de áreas na qual a autoconstrução acontecerá de forma descontrolada. O próprio desenho do projeto cria os limites e parâmetros, condicionando os acréscimos à forma projetada anteriormente. Há, de certo modo, uma tentativa de controle. “Sabemos que as pessoas irão expandir no futuro. Não farão isso com o desenho, mas apesar do desenho. (...) Se você cria um sistema aberto, permite a realização do projeto individual e não tenta antecipar o que vai acontecer porque nunca vai adivinhar.”3 Alejandro Aravena Apesar de não buscar antecipar a alteração, é inegável que o projeto de Aravena tenta ao menos controlá-la. Ao delimitar a área possível de intervenção e circunscrevê-la com o projeto, ele limita as possibilidades de ação e induz um comportamento. Tal esforço, no entanto, não traz garantia de respeito ao projeto, afinal, não há barreiras físicas que impeçam alterações fora do “programado”. O sistema, portanto, não é aberto, porque o morador não se apropria desse código. Resta a ele um espaço e uma ideia de ordem. Quem o impede de quebrar os padrões é a própria ideia de comunidade e seu entendimento dela, e não uma linha na prancheta. “Ir para um sistema aberto em vez de dar uma casa completa permite se concentrar no que é mais difícil –como as instalações hidráulicas– e oferecer espaço para a ação dos indivíduos, guiadas por uma forma inicial da casa.”4 Alejandro Aravena Aravena deposita grande responsabilidade sobre a “forma”. Seu argumento de que formas “fechadas” seriam menos possíveis de adaptações e acréscimos posteriores não se comprova, visto que mesmo em estruturas rígidas é possível encontrar as mais diversas incrementações informais. A forma pode apresentar maior resistência e dificuldade às alterações, porém, empiricamente, não foi capaz de coibir tais ações. Por outro lado, a forma que ele propõe também não segue um sistema ou um método, é apenas metade de um lote ocupado. Parece uma maneira de lidar com o incontrolável. Ao marcar sua presença com um desenho próprio e que se destaca no contexto, o arquiteto resguarda seu posicionamento estético e, ao incorporar os acréscimos, ele resguarda sua responsabilidade quanto ao resultado final. O arquiteto chileno Fabián Barros critica a argumentação de Aravena para a 3  KOGAN, Gabriel. ‘Transformar pobreza em poesia é um desastre’, afirma Alejandro Aravena. 2015. Disponível em: <http:// www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/08/1663597-transformar-pobreza-em-poesia-e-um-desastre-diz-novo-curador-dabienal-de-arquitetura-de-veneza.shtml>. 4 Ibid.

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defesa dessa metodologia. Para ele, o arquiteto limita o problema da habitação à metade, reduzindo a questão da moradia a “dinheiro por metro quadrado”. O problema que surge da lógica individualista de mercado é solucionado com a repetição da mesma lógica: há uma transferência da culpa pelo desamparo, pois cabe ao morador prover a outra metade. Ao envolver os moradores nas tomadas de decisão desse projeto, o arquiteto se blinda de questionamentos posteriores, porque assim quiseram os moradores. O que será construído depois da entrega do projeto já não diz respeito mais ao arquiteto. “Como negar o sucesso a algo que já não é responsabilidade do arquiteto, senão o resultado de processos de participação, onde aqueles que não sabem nada de arquitetura assumem como suas próprias as decisões daqueles que deveriam saber e se responsabilizar por elas? É um passo essencial para transformar as “vítimas” em “culpadas”, para reduzir as possíveis objeções de receber metade de uma solução e conscientizar os habitantes sobre os benefícios do que é oferecido.”5 5 Tradução livre da autora. BARROS, Fabián. La desigualdad es elemental: Conjeturas ideológicas para una crítica a Quinta Monroy. 2015. Disponível em: <http://dpa-etsam.aq.upm.es/gi/arkrit/blog/la-desigualdad-es-elemental-conjeturasideologicas-para-una-critica-a-quinta-monroy/>

(Fig. 03)

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Não há nesse modelo de participação uma capacitação do indivíduo do ponto de vista técnico e político. Não obstante, mais do que em qualquer outro caso, esse indivíduo é o que tem as maiores reponsabilidades, visto que é preciso construir metade de sua dignidade. Resta ao morador uma parcela muito grande da construção não apenas de sua moradia, mas da cidade. É evidente que, diante das limitações e falta de aparato técnico, o resultado não seria o desejado. Os acréscimos, no entanto, não parecem receber nenhum tipo de julgamento pelos arquitetos do Elemental, como se realmente não tivessem relação com as consequências de seu método. As fotos com metades das casas já construídas pelos moradores encantam os olhos de leigos e da mídia. É a representação mais direta e literal de “participação”, mas não difere em nada da autoconstrução tão presente e problemática nas cidades. Por que a informalidade, que acarreta tantos problemas – tanto para os moradores quanto para as cidades – e que é campo central de ação dos arquitetos e urbanistas contemporâneos, foi transformada em uma imagem do “socialmente correto”? Afinal, a informalidade, as condições precárias e a falta de parâmetros urbanos persistem nas casas incrementadas, ainda assim o arquiteto segue premiado. “O reconhecimento individual obtido por uma premiação como o Pritzker transporta o indivíduo premiado para o alto de um pedestal e o destaca do problema com o qual a sua arquitetura lida – isto é, o problema arquitetônico ou urbano permanece enquanto exclusivamente a pessoa do arquiteto se engrandece. (...) Não é mais a determinação programática que parametriza o projeto ou as suas entranhas materiais e construtivas, mas sua conotação como imagem referida em si mesma.”6 João Marcos de Almeida Lopes

6  LOPES, João Marcos de Almeida. Três Tempo e Uma Dissonância: Notas sobre o problema da produção da moradia na cidade neoliberal. Congresso Internacional Contested Cities, 2016, Madrid.

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A Quinta Monroy

Localizada no extremo norte do país e a oeste do Deserto do Atacama, Iquique é uma cidade portuária que se desenvolveu através da mineração no século XX. Hoje, é uma região importante, por ser um dos únicos portos com zona franca (livre comércio) e pela sua característica de cidade de veraneio. Desde a década de 1960, existe na cidade um assentamento de casas informais onde moram 97 famílias, denominado Quinta Monroy. Essas casas foram construídas pelos próprios moradores ao longo dos anos e apresentavam condições precárias de habitação. A essas famílias foi oferecida a construção de novas unidades em um terreno distante da cidade, em Alto Hospicio. Para elas, era importante permanecer no mesmo terreno, devido a sua centralidade, à valorização da região e aos laços criados ao longo dos anos. As famílias preferiam continuar em condições precárias em Iquique a terem melhores casas em um terreno distante. Em 2001, através do programa federal Chile Barrio, o Elemental é chamado para tentar resolver essa questão com um projeto para a área. Com o preço, estipulado pelo programa, de 7.500 dólares por unidade, a Quinta Monroy trouxe um desafio para a equipe técnica. O terreno original do assentamento está localizado em área muito valorizada da cidade, próximo ao comércio e equipamentos públicos. Com a premissa de manter os moradores em seu terreno, seria gasto o triplo do preço usual para a compra dessa terra. Sobraria assim, muito pouco dinheiro para as 93 unidades. Além disso, em um terreno de pouco mais de 5.000 m², não era possível assentar todas as famílias em casas. Era

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preciso verticalizar, porém as famílias não queriam um edifício, porque já pensavam nas possibilidades de expansão de suas casas no futuro. Foi nesse contexto que o Elemental surgiu com o conceito das casas “incrementais”. As unidades do Quinta Monroy foram verticalizadas, uma unidade se localiza no piso inferior, com acesso no nível da rua, e a outra tem acesso pela escada e possui dois andares. Entre as unidades, há um espaço reservado para a expansão futura, que é entregue vazio na finalização do projeto. Durante a obra, os moradores tiveram que ser retirados e suas casas derrubadas. Esse processo foi bastante conflituoso, muitos moradores não acreditavam no projeto e sentiam que estavam sendo removidos de suas casas. Havia também o medo de serem transferidos temporariamente para outro espaço e acabarem não podendo voltar, seja por inconclusão do projeto ou descrença nas promessas do governo. Isso demonstra uma desconfiança, em relação às esferas públicas, muito frequente em populações em condições precárias e historicamente desfavorecidas pelas políticas públicas e regime econômico. “Nesses 30 anos, houve muitas desilusões e promessas não cumpridas (...). Por isso, quando chegou o Chile Barrio, nos faltou confiança. Alguns não acreditaram, outros, ao longo do tempo e com o passar das reuniões, foram se entusiasmando, outros se somaram só ao final.”7 O programa exigia que o processo fosse participativo. Foram realizadas reuniões com 7  Fala de um dos moradores da Quinta Monroy, em livre tradução da autora. DOCUMENTAL del Proyecto Quinta Monroy en Iquique, Chile. Santiago: Gobierno de Chile, 2005. Son., color.

Implantação do conjunto (Fig. 05)

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os moradores para debate de projeto, onde eles desenhavam como queriam suas casas e a disposição delas no terreno. O grupo de moradores foi dividido em grupos, de acordo com as afinidades. Essa divisão resultou em um desenho urbano orientado por pátios. As aberturas das casas são voltadas para esses pátios, que possuem um único acesso para a rua e não se interligam, por opção dos moradores pela segurança. O Elemental estipulou três frentes de ação para lidar com a exigência da participação dos moradores. A primeira é comunicar as restrições, deixando os moradores cientes dos desafios e controlando as expectativas e desejos. Além disso, os moradores contribuíram nas decisões em conjunto com o corpo técnico. Por último, está o que eles denominaram “participação bidirecional”, em que se busca identificar recursos locais para driblar a escassez de verba. Havia também votações acerca de escolhas como abrir mão de um quarto ou preferir sistema de aquecimento a um terreno mais valorizado. Os moradores participaram de algumas definições de programa, conforme exigido pelo Chile Barrio, no entanto, não foi uma preocupação para o Elemental a linguagem utilizada ou os mecanismos do processo: “Resolvemos que os materiais, conceitos e terminologias utilizados com os residentes nas oficinas e seminários seriam os mesmos utilizados ​​em outros âmbitos mais acadêmicos ou especializados. Estávamos convencidos (e ainda estamos) de que os materiais a serem tratados não precisam ser simplificados para serem compreensíveis para os habitantes, nem fazer-se artificialmente mais complexos para dar-lhes um nível profissional ou “acadêmico”, eles simplesmente precisariam ser devidamente abordados, sem reducionismos ou sofisticações desnecessárias.”8 ELEMENTAL O projeto segue uma malha regular de 6m x 3m. Há duas tipologias de unidades: a habitação no nível térreo, com 3 módulos, e a habitação elevada, com 4 módulos. Na primeira, dois módulos são entregues (36m²) e um módulo é deixado vazio para uso futuro (18m²), sendo os 3 módulos no térreo e lineares. Essas unidades do térreo também possuem meio módulo de quintal nos fundos, que pode ser fechado no futuro. Nas unidades acessadas pelas escadas são entregues 2 módulos prontos (36 m²), um acima do outro, com a mesma área livre ao lado (36 m²). Nos dois modelos, as áreas de cozinha e banheiro são entregues prontas. O layout sugerido pelo Elemental, caso toda a área possível fosse utilizada pelo morador, resultaria em uma unidade com sala, cozinha e 2 quartos, para a tipologia menor (63 m²), e 3 quartos, na maior (72 m²). Os apartamentos foram construídos com blocos de concreto e fechamentos interno em madeira, entregues sem revestimento. Os pátios são de terra batida, sem nenhum tipo de urbanização ou paisagismo.

8  Tradução livre da autora. ARAVENA, Alejandro; LACOBELLI, Andrés. Elemental: incremental housing and participatory design manual. Berlin: Hatje Cantz, 2012. P. 123

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Planta baixa da unidade tĂŠrrea (Fig. 06)

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Planta baixa da unidade duplex (Fig. 07)

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Cortes e fachadas (Fig.08)

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Esquema indicativo da possibilidade de expansĂŁo das unidades (Fig. 09)

(Fig. 10)

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As mudanças no projeto foram percebidas rapidamente. Após 5 meses, quase todas as unidades já tinham realizado acréscimos. As 4 entradas possuem, hoje, portões, que fecham durante parte do dia. Os pátios internos são ocupados por muitos carros, mas ainda há espaço para atividades e para crianças brincarem. As alterações nas casas são as mais diversas possíveis, com muitas cores, esquadrias, aberturas e volumetrias destoantes do projeto. Novas escadas foram criadas, um dos pátios foi cimentado e há acréscimos irregulares em várias direções.

(Fig. 11)

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Parte das exigências do Chile Barrio era a criação de oficinas para orientar na expansão das casas e ensinar os seus parâmetros e restrições, fazendo com que, dois meses após a entrega da obra, 60% das alterações estivessem regulares. Fabián Barros compara imagens do estado em que se encontra Quinta Monroy hoje e das experiências habitacionais prévias. Há muitas semelhanças no que diz respeito à precariedade: “Estamos diante de um projeto que, paradoxalmente, reproduz o que diz tentar combater, produz desigualdade ao considerar os habitantes dessas habitações como seres de outra classe social e destino, que podem viver em casas semi-acabadas, sem privacidade e em ambientes altamente deteriorados, que também, e sarcasticamente, reproduzem essa deterioração. Talvez o mais impactante seja que, apesar de tudo que foi dito, o projeto é uma melhoria nas condições de vida dessas pessoas, convém imaginar então como eles viveram antes dele.”9 Qual a melhora, então, que o projeto buscou e conseguiu efetivar? O quanto ele se distancia ou não da organização espacial prévia e como mudou a relação dos moradores com a cidade? Em que medida a participação dos moradores no momento de ocupação é responsável ou capaz de alterar o resultado final e quais podem ser os benefícios daí derivados? 9  BARROS, Fabián. La desigualdad es elemental: Conjeturas ideológicas para una crítica a Quinta Monroy. 2015. Disponível em:<http://dpa-etsam.aq.upm.es/gi/arkrit/blog/la-desigualdad-es-elemental-conjeturas-ideologicas-para-una-critica-aquinta-monroy/>

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Bibliografia Específica ARAVENA, Alejandro; LACOBELLI, Andrés. Elemental: incremental housing and participatory design manual. Berlin: Hatje Cantz, 2012. BARROS, Fabián. La desigualdad es elemental: Conjeturas ideológicas para una crítica a Quinta Monroy. 2015. Disponível em: http://dpa-etsam.aq.upm.es/gi/arkrit/blog/ladesigualdad-es-elemental-conjeturas-ideologicas-para-una-critica-a-quinta-monroy/ KOGAN, Gabriel. ‘Transformar pobreza em poesia é um desastre’, afirma Alejandro Aravena. 2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/08/1663597transformar-pobreza-em-poesia-e-um-desastre-diz-novo-curador-da-bienal-dearquitetura-de-veneza.shtml>. LOPES, João Marcos de Almeida. Três Tempo e Uma Dissonância: Notas sobre o problema da produção da moradia na cidade neoliberal. Congresso Internacional Contested Cities, 2016, Madrid SABORIDO, Marisol. El Programa Chile Barrio: Lecciones y desafíos para la superación de la pobreza y la precariedad habitacional. Santiago: Comisión Económica Para América Latina y El Caribe (cepal), 2005.

Filmografia Específica DOCUMENTAL del Proyecto Quinta Monroy en Iquique, Chile. Santiago: Gobierno de Chile, 2005. Son., color.

Créditos das imagens Página 103: http://www.elementalchile.cl/ Figura 01-02: ARAVENA, Alejandro; LACOBELLI, Andrés. Elemental: incremental housing and participatory design manual. Berlin: Hatje Cantz, 2012. Figura 03-04: http://www.elementalchile.cl/ Figura 05-09: ARAVENA, Alejandro; LACOBELLI, Andrés. Elemental: incremental housing and participatory design manual. Berlin: Hatje Cantz, 2012. Figura 10: http://www.elementalchile.cl/ Figura 11-12: Felipe de Ferrari e Diego Grass

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ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE OS PROJETOS SELECIONADOS



Para que a comparação entre os projetos estudados se dê de forma mais clara e objetiva, esta seguirá os mesmos parâmetros que constam na ficha inicial de cada obra. Mantendo a mesma ordem, poderemos comparar os projetos em cada uma dessas categorias e relacioná-las, quando for conveniente. Contexto geral A escolha por projetos em países e continentes com realidades distintas pareceu a princípio garantir contextos sociais, econômicos e políticos diversos. No entanto, após analisar cada um desses cenários, podemos traçar algumas semelhanças. O Portugal próspero de hoje não condiz com o panorama social antes da Revolução dos Cravos. Índices elevados de miséria e analfabetismo apontavam a baixa qualidade de vida e pouca perspectiva de ascensão social. Da mesma forma, o Chile apresenta altos níveis de desenvolvimento humano e tecnológico hoje, mas seu interior revela um país bastante desigual e numerosas populações em assentamentos informais. O Brasil talvez seja o contexto do qual se espere previamente mais desigualdade, falta de infraestrutura básica e populações em situação de risco. Essa de fato foi e ainda é a realidade da maioria da população brasileira em seu vasto e diverso território. Porém, nos anos 1990, especificamente em São Paulo, o sentimento que prevalecia era de uma esperança de melhoria nas condições de vida. A redemocratização e as políticas públicas voltadas para os cidadãos menos favorecidos não anulava o número crescente de favelas, por exemplo, mas comparativamente pode-se dizer que vivia-se uma expectativa de ascensão social. Sendo assim, apesar de ainda muito diferentes, os contextos apresentam pontos em comum em termos de precariedade de habitação e condições básicas para as populações de baixa renda envolvidas nesses projetos. A melhoria na qualidade de vida gerada ou impulsionada pelos projetos em si exigem, contudo, uma análise mais cautelosa e aproximada. Enquanto Portugal, após reestabelecer o sistema de governo democrático, apresentou um desenvolvimento acelerado e inédito, Chile e Brasil não apresentaram um crescimento tão intenso. O que o SAAL representou, em conjunto com a Revolução, não é comparável em termos de escala com o renascimento dos movimentos sociais paulistas e/ou brasileiros. A despeito de sua relevância, os movimentos por moradia e o surgimento das assessorias técnicas não se desdobraram ou não vieram acompanhados de mudanças sociais tão grandes quanto as ocorridas em Portugal. Provavelmente, tal situação no Brasil justifica-se pelo seu caráter militante e não institucionalizado, pela escala continental do país ou pela maior desigualdade estrutural brasileira. Um ponto em comum nesses três estudos de caso é o momento de transição democrática após longos períodos de governos ditatoriais. Esse momento de redemocratização se deu de formas diferentes nos três casos, assim como a queda de

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suas ditaduras. Enquanto no caso português o povo teve papel fundamental no desmonte ditatorial, no Brasil e no Chile, outros fatores possibilitaram o processo democrático. Todavia, podemos dizer que condiz com o momento de reconstrução de democracias o desejo por maior envolvimento popular. Por outro lado, podemos interpretar processos de redemocratização como cenários nos quais as estruturas de poder buscam o envolvimento da população como forma de legitimar suas atitudes em um contexto de fragilidade política. Seria a participação uma chave para amparar governos instáveis ou uma ferramenta de construção de sociedades mais democráticas? Duração A duração estendida por anos é bastante frequente em processos participativos. O envolvimento de muitas pessoas, a complexidade de atuação e a experimentação de novos modos de representação e comunicação exigem mais tempo do que os projetos que seguem uma lógica mais “convencional”. No caso da Bouça, ainda contribuiu para o extenso tempo total, o fato da obra ter ficado incompleta durante 25 anos, sendo depois concluída. A primeira fase durou 3 anos, tempo bastante curto, embora uma parcela pequena tenha sido construída nesse momento. O SAAL teve uma duração muito curta, de menos de 2 anos, entre 1974 e 1976. Como programa habitacional participativo, ele conseguiu iniciar a finalizar muitos projetos em seus dois anos de existência, não tendo com isso sacrificado o grau de participação ao qual se propôs. Sendo assim, é possível imaginar que a Bouça teria sido concluída em mais alguns anos, se não tivesse sido surpreendida com a extinção precipitada do programa. A incompletude é outro fator comum em projetos participativos, estando mais uma vez ligada à complexidade dos processos. Muitas vezes, por exigirem mais tempo de desenvolvimento e diálogo, certos projetos acabam por exigir uma maior verba total. Os impasses com a liberação de verba pública para projetos subsidiados também afetam a velocidade de construção e podem determinar sua paralisação em vários casos. As décadas apenas com uma fase construída e a conclusão posterior do projeto interferem na sensação de duração para seus moradores. O projeto incompleto, como já abordamos aqui, não permite a sua vivência plena, mas também traz a sensação de uma experiência que não foi bem-sucedida. A duração e a inconclusão afetam diretamente a percepção quanto ao sucesso do processo. No caso da Bouça, esse intervalo de tempo também trouxe questões quanto aos novos moradores, que não participaram do processo inicial. Isso gerou um conflito entre as duas fases do projeto; apesar de as mesmas serem formalmente muito semelhantes, o perfil dos moradores é bem distinto, havendo uma diferença de faixa etária e renda. O COPROMO tem a maior duração contínua dos três casos – oito anos-, o que pode

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estar relacionado com seu número maior de unidades e área. Mas a longa duração também é uma constante nos projetos realizados pela Usina. Assim como o COPROMO, a maioria dos seus projetos tem financiamento público e lida com atrasos e imbróglios burocráticos nos repasses que são frequentes no Brasil. À parte dessa questão estrutural, é necessário analisar a parcela de responsabilidade do modelo auto gestionário nos atrasos. Não devemos cair na visão preconceituosa de que a autogestão é sinônimo de desorganização e que os moradores, por serem pouco instruídos, não seriam capazes de gerir um processo de forma ideal. Também não podemos deixar de considerar que há um desafio nesse modelo e, apesar da profissionalização dos movimentos sociais, muitos moradores o enfrentam pela primeira vez. A mudança que esse modelo traz quanto aos objetivos que deixam de ser o lucro, a produtividade ou o enaltecimento pessoal ou empresarial – altera também os tempos do processo. Visando um resultado que seja construído em conjunto e que empodere e capacite seus agentes, muitos interesses estão em jogo, além de transformações pessoais e comunitárias que demandam tempo. A função social como objetivo principal também interfere em questões orçamentárias, sendo o destino da verba alterado ou desviado para fins tidos como mais importantes pelo grupo. Essas escolhas, que para aquele grupo são prioritárias, muitas vezes acabam por estender ou atrasar o processo. No Quinta Monroy, o tempo foi bem curto, de apenas 3 anos, o que também se justifica pela escala menor. Mas a ideia de duração é relativizada aqui, já que boa parte do processo e da participação se dá depois da obra ser concluída. A fase de incrementar as casas entra na conta da duração do projeto, já que é parte fundamental dele? Ou, se não entra, o tempo de construção do projeto, sem as incrementações, deve ser relativizado, porque as casas foram feitas pela metade? Escala Assim como a duração, esse também é um parâmetro relativo. Ao comparar a escala, não devemos nos limitar ao número de unidades de cada projeto, mas também o que esse número representa para aquela cidade, para aquele país e para o programa ou contexto habitacional no qual está inserido. Comparando somente as unidades, o COPROMO é mais de dez vezes maior do que o Quinta Monroy, enquanto a Bouça possui quase o mesmo número de unidades, considerando as duas fases, do projeto chileno. No entanto, é impossível pensar na escala da Bouça sem considerar a escala do SAAL. O programa, embora longe de resolver o déficit habitacional da época, teve uma escala de impacto nacional. Muitos projetos foram iniciados, marcando a história da arquitetura portuguesa e sua paisagem, fazendo da Bouça parte de uma escala maior de transformação do território. É preciso levar em conta também as dimensões geográficas de

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Portugal, sendo a área do país pouco mais que um terço da área do estado de São Paulo e oito vezes menor que o território do Chile. A cidade do Porto, onde está localizado o Bairro da Bouça, também é muito menor do que as cidades dos demais projetos, embora sua população se aproxime de Iquique, que é 54 vezes maior em área. Sendo assim, comparativamente e pesando o contexto geográfico, a escala aparentemente muito maior do COPROMO se torna mais proporcional. As suas mil unidades não deixam de ser, porém, um grande desafio do ponto de vista da participação. Desafio esse enfrentado com a divisão das famílias em grupos e reuniões com representantes, o que pode distanciar o morador individual das decisões, mas agiliza e viabiliza o processo. O grau de envolvimento é necessariamente diferente em decorrência da escala. Terreno A área dos terrenos é outro fator que influencia a escala e a implantação. No caso do COPROMO, por exemplo, o grande número de unidades implantado numa grande área envolve a escala urbana. O projeto de ruas, calçadas, praças, pátios e estacionamentos internos complexifica o processo. Se discutir como serão as unidades já envolve muitas disputas, desavenças e articulações, estender esse debate para espaços de uso comum traz mais conflitos. Os espaços coletivos e comuns não apenas representam parte importante de qualquer projeto, mas também uma forma de se relacionar com a cidade. Embora de proporções muito diferentes, sendo o terreno em Osasco mais de dez vezes maior do que o em Iquique, os três projetos incluíram áreas de lazer abertas ao público em seu interior, apesar de o Quinta Monroy e o COPROMO terem restringido o acesso apenas para moradores posteriormente.

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tipo B - 2º pavimento

tipo B - 1º pavimento

tipo A - térreo

QUINTA MONROY

0

1

5m

área inicial da unidade B: 36 m² área total incrementada B: 72 m²

QUINTA MONROY área inicial da unidade A: 36 m² área total incrementada A: 54 m²

COPROMO área construída da unidade: 54 m²

BAIRRO DA BOUÇA área construída da unidade: 96 m²

COPROMO

tipo B - 3º pavimento

tipo B - 2º pavimento

tipo A - 1º pavimento

tipo A - térreo

BAIRRO DA BOUÇA

Tipologia

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O COPROMO possui uma tipologia de unidades fixa em todo o conjunto com dois quartos, sala, cozinha e banheiro; na Bouça, os apartamentos são de três quartos, sala, cozinha e dois banheiros. Já no Quinta Monroy não há uma definição prévia dos cômodos devido à possibilidade de acréscimo de área. O layout sugerido pelo escritório considera até três quartos, além de sala, cozinha e banheiro. Tanto na Bouça quanto no Quinta Monroy há apartamentos duplex e dois tipos de unidades. No Quinta, as unidades inferiores são todas térreas, sendo menores; enquanto as unidades superiores são duplex e 18 m² maiores. As duas tipologias apresentam inicialmente a mesma área (36 m²), mas, como o projeto prevê um aumento das casas, a diferença na área total ocorre porque a tipologia superior possui mais área possível de expansão. A partir dos módulos do projeto, as duas unidades começam com dois módulos construídos, tendo a de baixo mais um módulo e meio de expansão e a de cima mais dois módulos inteiros. No caso da Bouça, as diferenças se dão na ordem dos pavimentos. As unidades inferiores possuem, no térreo, dois quartos e banheiros e, no primeiro pavimento, sala, cozinha e mais um quarto. Já as unidades superiores são invertidas, no andar mais baixo encontram-se a sala, cozinha e um quarto e, no superior, os demais quartos e banheiros. Do ponto de vista da área útil das unidades, a da Bouça apresenta a maior dimensão dos três projetos, sendo pelo menos um terço maior do que as demais. A área dedicada a cada cômodo não varia muito entre os projetos, tendo os quartos pouco mais de 12 m². Ao se comparar as áreas, torna-se ainda mais evidente o conceito de “meia casa” do Quinta Monroy. A metragem que é entregue ao morador é muito inferior à dos demais projetos e ao que seria considerado um espaço adequado para uma família com filhos. A expansão é necessária e não opcional. A rápida transformação sofrida pelo projeto, considerada como um sucesso e prova da autonomia construtiva dos moradores, deve ser questionada como sinônimo de transformação social, por apresentar, a rigor, algo inevitável. Implantação Nos três casos estudados, os terrenos não trouxeram características topográficas desafiadoras, sendo todos planos. Os três estão igualmente localizados em áreas com infraestrutura urbana e equipamentos públicos; o que não é por acaso, já que esse foi um ponto essencial para a escolha ou disputa por tais terrenos. Todos os projetos analisados são de alguma forma verticalizados. Essa verticalização, além de uma necessidade, devido ao elevado número de unidades por área, também pode ser lida como uma escolha. Ao verticalizar, ainda que minimamente, deixa-se mais área para usos comuns, algo presente nos três projetos. A Bouça e o Quinta Monroy possuem verticalização dentro das unidades, com

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apartamentos duplex, além de sobrepor uma unidade à outra, formando 4 e 3 pavimentos, respectivamente. Os edifícios possuem pouca altura, o que favorece uma relação mais direta com a rua e as áreas comuns. No COPROMO, fez-se necessária uma verticalização maior, em razão do número de unidades, mas a conexão com o nível da rua ainda é estimulada a pela junção dos blocos em subnúcleos, formando praças internas menores. Os três projetos são implantados em blocos que não ultrapassam os 100 metros de extensão, dispostos de modo a formar pátios e praças internas. O COPROMO apresenta uma hierarquia e diversidade maior desses espaços, devido à sua escala. Essa implantação demonstra uma vontade semelhante nos projetos de criar núcleos de convivências, embora cada um tenha sido realizado de uma maneira e com resultados igualmente diferentes. Enquanto o COPROMO cria esse sistema de organização espacial por núcleos, amenizando sua escala de bairro, a Bouça traz uma espacialidade que remete às “ilhas”, com pátios paralelos à fiada de unidades e criando uma transição do espaço privado ao espaço urbano. Já no Quinta Monroy, há um maior número de pátios em relação ao número de famílias, sendo eles não conectados entre si e pouco visíveis a partir da rua, tendo o acesso dificultado e voltando-se mais para seu interior. Grau de organização comunitária Nesses três casos, observamos grupos de moradores previamente organizados. Julgamos importante avaliar o grau e a origem da organização comunitária nos processos participativos como forma de entender melhor de onde surgem os agentes do processo, como eles chegam aos arquitetos, como formalizam a demanda e qual sua capacitação prévia para o debate urbanístico e arquitetônico. Para o SAAL, esse foi um pré-requisito para a implementação de uma brigada técnica. De qualquer modo, o processo revolucionário já constituía por si só uma organização comunitária, embora possivelmente mais ampla. Durante a revolução, grupos de moradores das “ilhas”, no Porto, por exemplo, se uniram em torno de causas específicas, promovendo ocupações de prédios sem uso. Esse contexto demonstra uma população previamente mobilizada politicamente. A exigência da formalização em associação para o início dos projetos solidifica essa organização e a define. Os moradores da Bouça já haviam articulado, portanto, suas demandas (conforme o lema das manifestações, exigindo condições melhores de moradia: “casas sim, barracas não”) e foram agentes transformadores de sua própria condição social, apresentando grau aparentemente alto de autonomia e capacitação política. De modo semelhante, o COPROMO surge principalmente da demanda social organizada. Como representante de uma série de projetos, que se segue até hoje, fruto do trabalho de assessorias técnicas em união a movimentos sociais da luta por moradia, esse

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projeto traz um grau alto de organização comunitária prévia. Diferentemente do movimento revolucionário português, esses movimentos que eclodiram em São Paulo, nas décadas de 1970 e 1980 são voltados para causas específicas – neste caso, o direito à moradia. Sendo assim, se consolidaram de forma bastante organizada para exigir seus direitos e conquistaram grandes vitórias ao longo dos anos. Analisando a estrutura dos movimentos, percebemos que há várias regras1, como pontuação por presença em festas, manifestações e assembleias, tempo mínimo de envolvimento com o movimento e hierarquias internas. O grau de profissionalismo é bastante elevado, tendo muitos coordenadores dedicado sua vida a essa função, participando de vários projetos. A organização nesse caso também se reflete no modelo autogestionário. A escolha pela autogestão indica o desejo de controlar as funções administrativas do projeto, estando os moradores no comando das decisões. Ao exigirem e se colocarem neste papel, eles estão se predispondo a um desafio técnico e, assim, as habilidades desenvolvidas vão sendo acumuladas e passadas aos demais, criando uma rede de capacitação que extrapola as funções projetuais e construtivas. Nesse processo, as assessorias técnicas também têm papel fundamental na organização. Ao defenderem a autogestão e se especializarem em tal modelo, os técnicos contribuem agregando seu saber ao grupo. A experiência da Usina com esse modelo de projeto também assessora a constituição da associação de moradores. No caso específico do COPROMO, os movimentos sociais não foram tão marcantes, mas experiências anteriores da Usina em Osasco incentivaram a mobilização dos moradores. A despeito do número grande de associados, a união é evidente quando eles conseguem financiar por conta própria uma parcela da construção, antes dos recursos serem liberados, e, também, ao criarem uma serralheria própria dentro do canteiro para a confecção das escadas metálicas. O Quinta Monroy distingue-se por lidar com um grupo de moradores previamente instalado no terreno do projeto, em condições informais de moradia. O grupo, portanto, já estava formado e já possuía laços de vizinhança. Ao serem confrontados com a possibilidade de mudança para residências melhores, houve resistência quanto a sair do terreno original. Esse fator exigiu maior união e organização do grupo, para que os integrantes pudessem resistir juntos e negociar de forma coesa com o poder público. É possível que, se o grupo não tivesse se organizado, diferentes reações tivessem fragmentado e enfraquecido a comunidade nessa decisão. A conformação prévia e a união em resistência a algo considerado negativo por todos nos mostra um grau considerável de organização interna do grupo. 1  Conforme explicitado na página 78 deste trabalho.

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Sistema construtivo A Bouça e o Quinta Monroy utilizam blocos de concreto, que é um material facilmente encontrado no mercado da construção civil, pela sua facilidade de aquisição, resistência e preço. O sistema construtivo na Bouça não traz nenhuma relação específica com o projeto. Os painéis de fechamento do Quinta Monroy são de madeira compensada, escolha provavelmente pautada na rapidez e baixo custo, fatores que se relacionam com a economia proposta pela ideia das “casas pela metade”. O COPROMO claramente se diferencia nesse quesito ao utilizar blocos cerâmicos autoportantes, fugindo das técnicas mais usuais brasileiras. A escolha condiz com o modelo de canteiro autogestionário, pela sua simplicidade construtiva aliada à alta resistência térmica. Nesse caso, percebemos um exemplo de como a escolha do sistema construtivo pode dialogar com o modelo de projeto. Embora não seja um fator determinante para a qualidade da participação, a escolha de um sistema adequado ao modelo de mutirão, por exemplo, pode afetar outros parâmetros, como a duração da obra, o custo total e a implantação. Fase da participação/envolvimento dos moradores A escolha desses projetos também envolveu a busca por diferentes modos de participação dos moradores, em função do momento em que tal participação se dá durante o processo de projeto. Para identificar o momento em que ela ocorre, dividimos o processo em 4 partes: estruturação, projeto, construção e ocupação. Definimos como estruturação toda a articulação necessária para dar início ao projeto, desde a demanda até a escolha do corpo técnico. A fase de projeto consiste na etapa que antecede a construção, desde a definição do programa até a definição do desenho. A participação na construção envolve o mutirão e/ou a autogestão da obra. A fase de ocupação diz respeito à possibilidade de participação posterior dos moradores, alterando ou acrescentando ao projeto já construído. Conforme já foi abordado, na fase de demanda e negociação, os moradores dos três projetos tiveram forte participação, lutando pelo projeto, pelo terreno ou pelo financiamento. Os precedentes em cada contexto demonstram que os moradores tiveram papel importante na fase inicial dos processos. Nos três projetos, há esforços diferentes para envolver os moradores no processo de concepção dos projetos. A Bouça com reuniões, maquetes e manifestações, muitas delas em caráter nacional ou regional. O Quinta Monroy apresenta um diálogo com os beneficiários no que diz respeito à demanda e ao programa de necessidades, embora o conceito central do projeto venha do escritório em questão. Nesta fase, o COPROMO apresenta um grau mais intenso de participação, com diversas assembleias e debates entre os arquitetos e os moradores, técnicas de capacitação do diálogo, diferentes tipos de representação dos projetos, como plantas em escalas maiores

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e com elementos destacáveis, de forma a facilitar a comunicação com não-especialistas. A gestão de todo o processo pelos moradores também aumenta o envolvimento. Apesar do corpo técnico da Usina não abrir mão de seu conhecimento específico e experiência profissional, há um esforço das duas partes em dialogar nesta fase. Na fase de ocupação, apenas o Quinta Monroy apresenta acréscimos e alterações formais, enquanto os demais projetos permanecem sem grandes alterações por parte dos moradores. É claro que, na Bouça e no COPROMO, essa não foi uma questão de projeto, embora possa-se analisar a participação desses moradores na gestão do espaço coletivo. A formação em associação e o envolvimento ao longo do curso do projeto fortaleceram a união dos membros do grupo, tornando-os mais ativos em articulações futuras à construção. As diferenças são mais claras, então, nas fases de projeto, onde o COPROMO apresenta maior envolvimento, e na fase de ocupação, onde o Quinta Monroy se destaca. Fonte de recursos Os três casos analisados foram financiados de alguma maneira pelo poder público, mas essa não é a única forma de financiamento, podendo haver rateio entre os beneficiados ou financiamento privado. As diferenças nos financiamentos, relativos a esses projetos, aparecem nas condições impostas e demora de sua viabilização. O Bairro da Bouça fez parte de um programa nacional, criado após uma revolução e em um momento no qual o Estado, ainda que provisório, estava favorável à essa iniciativa. As lutas ocorreram durante a revolução, mas, durante o processo de redemocratização, o SAAL foi peça chave na construção dos ideais de governo, sendo apoiado e incentivado pelos governantes e sociedade civil. Esse cenário facilitou a sua implementação e não trouxe problemas burocráticos ou impasses na liberação de verba ao longo do processo. Também fazia parte da premissa do programa a desapropriação de terras públicas ou particulares, mesmo que valorizadas ou acima do preço de mercado devido à sua localização central. A conquista da terra, enfim, não foi um impasse na Bouça, sendo garantida pelo programa federal. Esse contexto favorável justifica a abrangência e rapidez com que o SAAL se dissemina pelo território português e seus resultados em apenas 2 anos. Contudo, seu desmantelamento foi bastante abrupto e conturbado. Por ter sido interrompido, após suspeitas e investigações, muitos projetos em andamento foram paralisados. Apesar de não sofrer com as frequentes dificuldades que um financiamento público gera ao longo do processo, a Bouça foi impactado pelo corte repentino do programa, ficando incompleto por muitos anos. O COPROMO, apesar de inserido em um contexto similar de apoio por parte do

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Estado às propostas de habitação com autogestão, não fez parte de um programa voltado especificamente para esses fins. Assim sendo, a luta pela terra e pelo financiamento foi intensa. A começar pela terra, os moradores se organizaram para ocupá-la e lutar pela posse. As negociações com a prefeitura resultaram em apenas metade da área requerida, embora sem custo. A demora na conquista do financiamento fez com que famílias da Associação se organizassem em forma de rateio para construir as primeiras unidades por conta própria. Essa solução aponta como a duração do processo é colocada em questão, optando-se muitas vezes por sacrificar o orçamento individual para viabilizar a obra, diante da incerteza do apoio estatal. Uma vez conseguido o financiamento, ainda houve muitos atrasos e dificuldades na liberação das parcelas. O excesso de burocracia aliado à falta de fiscalização e interesse público – tão frequentes em várias esferas brasileiras – apresentam um desafio ainda maior para projetos autogestionários. O órgão financiador, com a justificativa de controle de verbas, costuma impor a essas organizações civis um grau de exigência organizacional e administrativo muito alto. Os moradores, além de muitas vezes não estarem sendo remunerados ou estarem exercendo dupla função, enfrentam as dificuldades de um trabalho para o qual não possuem instrução técnica prévia - e que não é facilitado pelas instâncias que os deveriam proteger. No caso dos projetos da Usina, esse é um parâmetro em total relação com o de duração. Analisando a cronologia de desenvolvimento dos projetos, é evidente que o tempo total de projeto é muito afetado pelos atrasos de financiamento. O Quinta Monroy também foi financiado por um programa de governo federal voltado para a habitação. Nesse caso, a escassez de verba foi agravada pela exigência dos moradores em permanecerem no seu terreno original. Por estar localizado em área valorizada, parte do financiamento foi dedicada à compra da terra, reduzindo a verba dedicada à construção das casas. Esse argumento é usado pelo escritório Elemental como fator decisivo para a opção projetual pelas casas incrementais. Os modelos de financiamento, portanto, afetam diversos outros parâmetros, como a duração, o grau de organização comunitária, a escala, a tipologia, o sistema construtivo, a remuneração dos participantes e o processo de construção. Sua importância tão central não ganha a devida atenção nos debates públicos. Qual o papel do Estado na promoção da participação? Que tipo de participação o Estado tem interesse em promover? Como a iniciativa privada responde às mesmas questões? Percebemos que mesmo os arquitetos militantes do direito à moradia e da reforma urbana e rural tem sua atuação limitada nesse debate. Restando a grupos como a Usina a prática de resistência dentro dos modelos existentes ou o surgimento de alternativas dentro da lógica mercadológica vigente, como a aliança empresarial do Elemental.

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Remuneração dos participantes O envolvimento, mesmo que voluntário, dos futuros moradores na demanda e produção de sua moradia tem um custo à vida particular dessas pessoas. Colocando à parte todos os possíveis benefícios de um processo participativo, não se pode negar o quanto ele demanda dos indivíduos. Por isso, discute-se como essa atividade deveria ser encarada como trabalho, em muitos casos, e, portanto, ser remunerada. Do ponto de vista social, a moradia não é um luxo, mas um direito, sendo a exigência dela não mais do que um exercício cidadão. Contra a remuneração, muitas vezes é usado o argumento de que essa população com baixa renda estaria “ganhando” uma casa, sendo o trabalho físico ou intelectual na sua produção apenas uma moeda de troca. A participação, nesse caso, deixa de ser uma alternativa de modelo de produção e passa a ser uma exploração de populações fragilizadas. Em nenhum dos casos estudados, os moradores ganham remuneração financeira pela participação no processo habitacional. O COPROMO conta com uma parcela da obra realizada em regime de mutirão não remunerado, em revezamento entre as famílias no final de semana. No Bairro da Bouça, os grupos de moradores participantes do SAAL, no Porto, se negaram a construir suas casas em regime de mutirão, alegando exploração de trabalho e, então, a mão de obra foi terceirizada. O Quinta Monroy também foi construído com funcionários terceirizados. Para além da construção em si, a participação no processo de projeto, em reuniões, assembleias e atividades, ou na própria autogestão, pode ser remunerada, embora não tenha sido em nenhum dos casos apresentados. Em organizações populares, como os movimentos sociais por moradia, há um controle e cobrança de um mínimo de envolvimento, sendo pontuada e controlada a participação de cada família, podendo ganhar vantagem quem possui mais pontos. A remuneração pode não ser financeira, e, sim, outro tipo de benefício. A participação em qualquer fase está condicionada a uma disponibilidade mínima de tempo, a qual muitos não conseguem cumprir. É comum ouvir nesses eventos o lamento de quem simpatiza com o movimento ou precisa de uma moradia regular, mas não consegue participar. A remuneração pode atrair e viabilizar a participação de mais pessoas, fazendo dessa uma atividade mais democrática e justa. Processo de construção Esse parâmetro engloba três possibilidades e suas combinações: terceirização, mutirão e autoconstrução. A terceirização é o modelo usual no sistema atual da construção civil, em que empresas especializadas são contratadas para executar um projeto apresentado. O mutirão é um modelo utilizado desde o início da nossa civilização e pode ser definido como a união das pessoas em torno de um trabalho sem remuneração direta, estimuladas pelo

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bem comunitário ou em troca de algum benefício alternativo (normalmente uma festa). A autoconstrução também é um modelo primordial de construção e bastante autoexplicativo, se diferenciando por poder ser realizado sem planejamento e de forma individual. O mutirão, portanto, está associado à ideia de participação, por ser uma atividade coletiva e apresentar uma alternativa econômica quando não há dinheiro para contratar terceiros. Porém, essa prática vem sendo questionada por sobrecarregar o beneficiário. Tais questionamentos devem ser pesados de acordo com o contexto socioeconômico do grupo em questão, suas atividades, a escala da construção e o grau de urgência. Essa prática pode se apresentar como extremamente emancipadora, ao promover a ação conjunta, capacitar os participantes e gerar senso de pertencimento, assim como pode se mostrar exploradora, exaustiva e improdutiva, ao acrescentar uma dupla jornada ou exigir um engajamento inviável para a maioria das pessoas. Como consequência desses questionamentos que orbitam os processos participativos desde sempre, moradores de projetos como a Bouça e o COPROMO optaram pela terceirização dos trabalhos, de forma parcial ou integral. No COPROMO, principalmente por questões de viabilidade econômica, parte significativa da obra foi realizada pelos moradores em mutirão. A Usina tem vasta experiência com canteiros de mutirão e busca transformar esse processo em uma construção de autonomia, sobretudo das mulheres, sempre defendendo e estimulando a autogestão pelos moradores. Situação atual Apesar do conjunto da Bouça ter sido finalizado em uma segunda fase e com algumas mudanças no projeto, quase nenhuma transformação ocorreu após sua conclusão. Não há acréscimos por parte dos moradores em seus apartamentos, apenas algumas varandas foram fechadas. O muro que o separa da linha férrea foi pixado, mas, depois, pintado novamente. Há alguns varais pendurados nos corredores e o pátio continua praticamente igual. Da mesma forma, o COPROMO, passados quase 20 anos de sua conclusão, permanece muito semelhante. Foram colocadas cancelas nas ruas de acesso e alguns blocos de apartamentos foram rebocados, com tom muito simular ao bloco cerâmico. Há regras rígidas da Associação quanto às mudanças e cada bloco tem autonomia em relação ao todo. Os demais conjuntos habitacionais da região, embora mais novos, aparentam ter muito mais idade. Independentemente de fatores de manutenção, os moradores do COPROMO se destacam pela vontade, aparentemente coletiva, de preservar o conjunto. O Quinta Monroy, assim como desejavam seus idealizadores, em poucas semanas já começou a ser incrementado, estando, hoje, quase todas as casas com suas áreas “completas”. Não há qualquer tipo de padrão nas alterações, nem mesmo na porcentagem

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de área ocupada do lote. Podemos detectar alguns acréscimos irregulares, fugindo da área demarcada, verticalizando para além do último pavimento ou avançando para lotes vizinhos. Os pátios, todavia, não sofreram mudanças, apesar de alguns carros o utilizarem como estacionamento. Também há portões nos acessos, que são fechados eventualmente. É bastante instigante a polaridade aferida nesse parâmetro. Mesmo não se propondo e nem se permitindo a alterações conceitualmente, não deixa de ser surpreendente o grau de preservação do Bairro da Bouça e do COPROMO. Há algo que persiste, que permanece válido, que mantem o sentido ou se ressignifica. No extremo oposto, o futuro da obra entregue no Quinta é se tornar irreconhecível, assim como projetos de urbanização comandados por Carlos Nelson, em Brás de Pina (1969, Rio de Janeiro), ou o PREVI (1968, Lima). Sua diversidade de cores, estilos e revestimentos demonstra uma vontade de personalização, de apropriação daquele espaço. O desejo pela não uniformidade e a valorização individual é comum no morar coletivo, pode parecer o caminho natural. O que faz, então, com que os demais conjuntos permaneçam, de certa forma, fiéis ao projeto original? Há um autorreconhecimento na imagem do projeto original? Há uma relação com o lugar a ser preservada? A “incrementalidade” seria um reflexo da falta de pertencimento, em uma tentativa de marcar as identidades individuais ou coletivas em um ambiente genérico? Até que ponto o desaparecimento (ou o renascimento, ou a mutação) do Quinta Monroy, a partir da incrementação pelos moradores, seria uma resposta a um determinado modelo de participação?

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CATEGORIAS E NÍVEIS DE PARTICIPAÇÃO



A ideia de que há diferentes entendimentos e usos do conceito de participação é a chave principal do texto “A ladder of citizen participation”1, de 1969, da comunicadora americana Sherry Arnstein (1930-1997). A autora foi pioneira em abordar a participação mediante níveis de intensidade, representados como degraus de uma escada que se tornaram referência primordial em discussões sobre o assunto e alvo de diversas releituras e proposições de novas “escadas”. Arnstein parte do entendimento de que existem vários graus de envolvimento do cidadão em processos participativos. Sua vasta experiência em programas governamentais americanos, como consultora do Departamento Americano de Habitação e Desenvolvimento Urbano e, também, no Departamento de Saúde, Educação e Bem-estar (HUD), durante a década de 1960, permitiu-lhe produzir uma análise profunda das consequências e implicações de cada nível de participação. A autora cria uma “escada da participação”, na qual diferencia oito tipos de participação. Os degraus são gradativos, evoluindo de um nível mais baixo (manipulação) até o nível mais alto (controle cidadão). Os níveis são ainda agrupados em três categorias: a parte inferior é considerada como “não-participação”; a intermediária aborda cenários onde a representação é falha; e a mais elevada constitui o “controle cidadão”. A escada pode ser vista, assim, como um caminho hierárquico para atingir uma participação genuína, que corresponderia ao maior controle possível, por parte da população, nas tomadas de decisões. Arnstein aborda, de forma enfática, os problemas de uma representação não maioritária, mostrando como a proporção e o grau de influência são importantes nesses processos. Para ela, participação significa redistribuição de poder, por isso os degraus mais baixos (manipulação, terapia, informativo e consultivo) não seriam tão benéficos para a população, já que são os agentes externos que definem o grau de poder cedido a ela. Somente uma representatividade parcial não basta para garantir que, no futuro, essa comunidade terá voz novamente. O empoderamento é fundamental para uma reorganização das estruturas de poder e para implantar um processo contínuo e independente. Os níveis mais baixos são considerados válidos apenas se aplicados inicialmente no processo, como predecessores dos demais.

1  ARNSTEIN, Sherry. The Ladder of Citizen Participation. Journal Of The American Planning Association. s/l, p. 216-224. jul. 1969.

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CONTROLE POPULAR REPRESENTATIVIDADE SIMBÓLICA NÃO-PARTICIPAÇÃO

POR CONTROLE POPULAR Não há intermediários entre os usuários e a fonte de recursos ou diferenças de poder POR PODER DELEGADO Há redistribuição de poder. Os participantes dominam a situação e deixam de estar subjugados a uma instituição POR PARCERIA Representantes dos participantes são a maioria nas tomadas de decisões, não estando sujeitos às forças de demais grupos SATISFATÓRIA Representantes dos participantes tem voto nas tomadas de decisões, porém são a minoria CONSULTIVA Os participantes são consultados e ouvidos quanto às decisões, porém não há garantia de que as reinvindicações serão levadas adiante COMUNICATIVA Participantes são informados das decisões tomadas através de um canal de comunicação de mão-única e podendo haver distorções TERAPÊUTICA Intenção de curar os participantes atribuindo seus problemas a doenças e direcionando para tratamentos MANIPULADORA Os participantes são apenas usados como conselheiros, mas, na verdade, o propósito é educar e manipular, de acordo com interesses pré-estabelecidos

Sherry Arnstein, 1969. Tradução livre da autora.

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A antropóloga britânica Andrea Cornwall, no seu texto “Unpacking “Participation”: models, meanings and practices”2, relaciona a publicação de Arnstein com outros dois autores posteriores: Jules Pretty3 e Sarah White4. Ambos desenvolveram novas “escadas” para categorizar conceitos de participação e escreveram sobre o tema, em contextos 2 CORNWALL, Andrea. Unpacking “Particpation”: models, meanings and practices. Community Development Journal. Oxford, p. 269-283. jul. 2008. 3 PRETTY, J. (1995) Participatory learning for sustainable agriculture, World Development, 23 (8), 1247–1263. 4  WHITE, Sarah C. (1996) Depoliticising development: the uses and abuses of participation, Development in Practice, 6 (1), 6–15.

POR AUTO-MOBILIZAÇÃO A participação surge de forma independente a instituições externas. A busca por apoio técnico parte dos usuários, mantendo a autogestão. Isso pode mudar ou não as estruturas de poder consolidadas INTERATIVA Usuários fazem parte do desenvolvimento de planos de ações e autogestão, envolvendo metodologias multidisciplinares. Participação é vista como um direito e instrumento de aprendizagem FUNCIONAL Tem o objetivo de reduzir custos. Usuários podem ter algum poder nas tomadas de decisões, porém estão sujeitos às decisões unilaterais POR INCENTIVO MATERIAL Usuários participam como força de trabalho em troca de algo, mas não criam autonomia por não estarem envolvidos no processo e nas decisões CONSULTIVA Usuários são consultados, porém sem garantia de efetividade PASSIVA As decisões são comunicadas após serem tomadas, de forma unilateral, sem que as reivindicações sejam ouvidas MANIPULADORA Há representatividade, porém sem poder e simbólica

Jules Pretty, 1995. Tradução livre da autora.

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VISÃO DE QUEM PROMOVE

VISÃO DE QUEM PARTICIPA

PARA QUE SERVE

TRANSFORMADORA

Empoderamento: capacitar as pessoas a tomar as decisões

Empoderamento: tomar decisões e agir por conta própria

Processo e finalidade, dinâmica contínua

REPRESENTATIVA

Sustentabilidade: gerar autonomia

Influência: poder em tomadas de decisão e gastos

Dar voz às pessoas para escolherem seu desenvolvimento

INSTRUMENTAL

Eficiência: reduzir custos usando a força de trabalho dos usuários

Custo/Fadiga: tempo e esforço gastos

Garantir eficiência e facilidades locais

NOMINAL

Legitimação: amparar escolhas e mostrar que se importa

Inclusão: ter algum tipo de acesso a possíveis benefícios

Aparato

TIPO

Sarah White, 1996. Tradução livre da autora.

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diferentes. É importante ressaltar que nenhuma dessas três análises foi desenvolvida exclusivamente para projetos de arquitetura. Todas tratam de programas governamentais para áreas mais abrangentes como educação, saúde, agricultura e desenvolvimento social, sendo algumas aplicadas também a programas que envolvem habitação e planejamento urbano (Arnstein e White). Cornwall separa as tipologias por forma de abordagem, argumentando que Jules Pretty segue um viés mais normativo, assim como Arnstein, enquanto Sarah White se diferencia. Seguindo essa análise, Arnstein e Pretty veriam os níveis como graduações, com uma possibilidade de evolução progressiva de um mesmo processo participativo. Essa visão tenderia a rotular os níveis mais baixos como ruins e os mais elevados como a “genuína participação”. A tipologia de Pretty se direciona mais ao agente que está promovendo o processo participativo do que ao usuário que a está “recebendo”. Entretanto, mesmo no ponto mais alto, não há a certeza de uma redistribuição de poder, pois a automobilização pode ser incentivada pelo governo ou demais agentes externos. Cornwall defende que a categoria de White aborda a questão de um modo mais complexa, incorporando a visão dos demais agentes envolvidos para entender qual o propósito de determinado processo e a quem ele beneficia. Essa tipologia segue uma lógica menos normativa, oferecendo uma ferramenta de análise dos interesses envolvidos em qualquer fase do processo participativo. Para Cornwall, os níveis mais altos não trazem necessariamente melhores resultados ou envolvem mais as pessoas. Essa lógica gradativa não seria aplicável, dependendo do contexto, podendo um nível mais baixo obter maior sucesso do que os elevados. A autora argumenta que outros fatores são mais relevantes, como: escala do objeto, contexto e quem participa do processo. A escala determina qual o grau de impacto do objeto na vida daquelas pessoas, o que interfere no nível de participação demandada. Para uma escala pequena, um nível muito complexo de participação pode ser despropositado e desestimulante. A fadiga e a descrença com processos anteriores malsucedidos também devem ser levadas em conta na análise do contexto, a fim de escolher qual a aproximação mais efetiva. Um processo com profundo envolvimento dos participantes pode ser pouco eficiente, caso represente tão somente os interesses de uma parcela pequena do total de pessoas afetadas. Do mesmo modo, um processo com vasta participação pode ser raso, se o envolvimento cidadão for apenas consultivo, por exemplo. É preciso equilibrar a profundidade com a amplitude do processo, sendo importante lembrar que apenas uma parcela da comunidade irá participar de fato e é preciso analisar os motivos que levam a isso. Essa abordagem dedica-se aos problemas enfrentados na prática da participação,

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buscando não se isolar nas teorias sobre o conceito. Ou seja, argumentos que tem coerência teórica muitas vezes tem resultados contraditórios quando de sua implementação, devido às inúmeras variáveis que a realidade impõe. O estudo de casos reais permite que a validade desses argumentos seja, então, verificada, possibilitando sua reformulação. Outra questão prática raramente abordada diz respeito ao local onde ocorrem as atividades participativas. Cornwall defende que, além de buscar entender o perfil do grupo que consegue e deseja frequentar as atividades (faixa etária, gênero, profissão, estrutura familiar), o local que abriga esses eventos pode ser um inibidor. Normalmente, equipamentos de grande porte são escolhidos para abrigar as reuniões e debates, no entanto, isso não garante que todos se sintam confortáveis e convidados a ocupá-los, principalmente quando são instituições privadas. Conflitos pessoais e territoriais permeiam as relações dos indivíduos com o ambiente escolhido, se tornando impeditivos ou gerando alterações no comportamento e opinião dos participantes. Os lugares também exercem poder sobre as pessoas e podem ter diferentes significados para os indivíduos. A escolha por um ambiente elitizado, por exemplo, pode demonstrar um grau de seriedade no processo para alguns e distanciamento e exclusão social para outros. A autora reconhece, porém, que a busca por um espaço de neutralidade total é utópica, assim como uma representatividade total. A remuneração dos participantes ou dos representantes, é outro ponto discutido tanto por Arnstein quanto por Cornwall. Elas enxergam essa possibilidade como benéfica para que o trabalho não seja um fardo e não haja uma sobrecarga de responsabilidades e dedicação dos representantes, o que também pode levar a um abuso de poder deles sobre os demais. Do mesmo modo, podemos concluir que a participação da população exclusivamente na fase da construção pode não contribuir de forma eficiente para o empoderamento do grupo. Além de não provocar necessariamente alterações na forma, no resultado final e no método de projeto, ela ainda pode ser usada como ferramenta de manipulação e redução de custo da obra.

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GRÁFICO DE AVALIAÇÃO



Embora certos parâmetros abordados por Cornwall sejam aplicáveis à arquitetura, como escala, fadiga, local e remuneração, os diagramas por ela analisados não abordam graficamente essas questões. Como exercício, podemos tentar classificar os estudos de casos a partir das categorias definidas por Arnstein, Pretty e White. Seguindo a escada de Arnstein, o Bairro da Bouça não pode ser enquadrado no nível mais alto, porque ainda há intermediários entre os agentes. Da mesma maneira, não pode ser “por poder delegado”, pois os participantes ainda estão subjugados a uma instituição. Podemos dizer, então, que seria uma “participação por parceria”, já que os participantes têm autonomia e comandam as decisões. Ao COPROMO seria mais adequada a “participação por poder delegado, pois há redistribuição de poder através da autogestão. Já o Quinta Monroy cai para a classificação de “participação consultiva”, porque os participantes são ouvidos, mas sem garantia ou controle de que suas demandas serão atendidas. Por meio da classificação de Pretty, o COPROMO estaria, mais uma vez, no topo, como “participação por automobilização”, pois surge da população de forma independente e autogestionária. O Bairro da Bouça apareceria como “participação interativa”, sendo os moradores agentes de decisão e a participação vista como um direito. Novamente, o Quinta Monroy apareceria em um nível mais baixo, como “participação funcional”, na medida em que o objetivo é a redução de custos. Se fosse considerada a fase de incrementação das casas, no entanto, essa classificação mudaria, porque os moradores têm total controle e dependem da automobilização. Já segundo White, o COPROMO seria enquadrado como “participação transformadora”, visto que o objetivo principal, tanto para quem promove, quanto para quem participa, é o empoderamento. O Bairro da Bouça poderia ser classificado como “participação representativa”, por dar voz às pessoas, fazendo com que tenham influência nas decisões, se pensarmos no desenvolvimento do projeto em si. Se pensarmos na autonomia para formar ou modificar uma brigada técnica, esse nível de participação já seria mais elevado. O Quinta Monroy, por prezar pela eficiência e contar com o esforço de trabalho e investimento dos moradores, apareceria como “participação instrumental”. Conquanto aplicáveis, essas categorias deixam escapar toda a complexidade dos processos participativos nos estudos de caso. A mesma dificuldade sentida por White em classificar, considerando apenas um dos agentes é detectada aqui. Falta uma análise das relações hierárquicas entre o arquiteto e o morador. A separação entre “quem promove” e “quem participa” parece simplista para os diferentes modelos de financiamento. O maior dos incômodos é a falta de uma análise focada em cada fase do processo, já que o envolvimento dos moradores varia de intensidade ao longo do projeto. As questões levantadas por Cornwall nos inspiraram a pensar em parâmetros

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específicos para a arquitetura. A definição desses parâmetros nos permite analisar com maior complexidade os diferentes modos de participação e construir uma avaliação de acordo com as situações específicas de cada projeto. Cada parâmetro ou suas interligações podem resultar em análises específicas e direcionadas, sendo destrinchados e desenvolvidos. Alguns deles pedem ferramentas de visualização que os tornem mais legíveis e relacionáveis. Identificamos, no parâmetro da “fase da participação/envolvimento dos moradores”, a necessidade de desenvolver graficamente como se dariam esses graus de participação ao longo de uma espécie de linha do tempo do processo arquitetônico. A linha do tempo foi separada em quatro grandes fases, com algumas subdivisões: estruturação, projeto, construção e ocupação. A fase de estruturação engloba: a definição da demanda, articulação dos moradores, negociações necessárias e definição do corpo técnico. A fase de projeto diz respeito à elaboração do desenho e às escolhas técnicas, sendo subdividida em: definição do programa, dos materiais e técnicas construtivas e desenho. Já a fase de construção compreende duas categorias: gestão de obra e execução. Por fim, a fase de ocupação corresponde à ocupação das unidades pelos moradores, após as finalizações da obra. Essa fase é subdividida em: gestão do espaço e acréscimos ou adaptações. A participação em cada uma dessas fases é medida pela sua intensidade, com cinco graus, representados no gráfico por círculos concêntricos: 0- nenhum registro de envolvimento do agente 1- envolvimento superficial ou limitado 2- envolvimento parcial

0

1

2

3

4

3- envolvimento intenso 4- envolvimento pleno As intensidades de participação são medidas do ponto de vista de dois agentes: morador e arquiteto. O gráfico foi desenvolvido com base nos três estudos de casos, como um instrumento de avaliação cuja aplicação pode vir a ser estendida para demais projetos, escalas e programas. Tornando visíveis os graus de envolvimento de cada agente, o gráfico contribui para a avaliação dos processos, evidenciando seus momentos e possibilitando análises para o aprimoramento e qualificação dos processos e seus resultados. Há ainda a possibilidade de cruzar os agentes, possibilitando a análise comparativa entre agentes ou entre os mesmos agentes de diferentes projetos.

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OCUPAÇÃO CONSTRUÇÃO

acréscimo /adaptação

gestão

execução

gestão

PROJETO

desenho

materiais /técnicas

programa

negociação

articulação

arquiteto

morador

QUINTA MONROY

arquiteto

morador

COPROMO

arquiteto

morador

demanda

BOUÇA

ESTRUTURAÇÃO

escolha corpo técnico

151


152

arquiteto

morador

arquiteto

morador

arquiteto

morador

QUINTA MONROY

COPROMO

BOUÇA

ESTRUTURAÇÃO

PROJETO

CONSTRUÇÃO

OCUPAÇÃO gestão

execução

Gráfico cruzado entre morador e arquiteto

acréscimo /adaptação

gestão

desenho

materiais /técnicas

programa

escolha corpo técnico

negociação

articulação

demanda


Gráfico cruzado entre moradores

OCUPAÇÃO CONSTRUÇÃO

acréscimo /adaptação

gestão

execução

gestão

PROJETO

desenho

materiais /técnicas

programa

negociação

articulação

morador

QUINTA MONROY

morador

COPROMO

morador

demanda

BOUÇA

ESTRUTURAÇÃO

escolha corpo técnico

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Gráfico cruzado entre arquitetos

OCUPAÇÃO CONSTRUÇÃO

acréscimo /adaptação

gestão

execução

gestão

PROJETO

desenho

materiais /técnicas

programa

ESTRUTURAÇÃO

escolha corpo técnico

negociação

articulação

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arquiteto

QUINTA MONROY

arquiteto

COPROMO

BOUÇA

arquiteto

demanda


Ao se analisar o gráfico a partir da sobreposição dos dois agentes (morador e arquiteto), percebe-se que são poucas as fases e subdivisões de ação simultânea. Ou seja, na maioria das fases e subdivisões, um só agente está ativo, sendo raros os momentos na linha do tempo em que morador e arquiteto atuam juntos. Mesmo nesses momentos, os graus de intensidade costumam ser quase opostos, sendo o grau do arquiteto maior quando o do morador é menor e vice-versa. Como exemplo, o grau de envolvimento do morador do Quinta Monroy, na subdivisão “programa”, é 1, enquanto o do arquiteto é 4; a mesma inversão acontece na “gestão” da “construção”, em que o arquiteto do COPROMO apresenta nível 1, enquanto o morador apresenta nível 4. A partir dessa análise, é possível chegar a algumas considerações. A maior demanda técnica em determinadas fases do processo pode favorecer uma atuação mais intensa dos arquitetos, como na fase de “projeto”. As complicações e complexidades decorrentes da atuação conjunta de diferentes agentes também podem estimular o protagonismo de apenas um agente por fase, principalmente tendo em vista a usual desigualdade de formação técnica entre os agentes. Quando arquitetos e moradores compartilham um grau similar de envolvimento na mesma fase, as diferenças de saberes e de instrumentalização são colocadas em atrito, exigindo uma adaptação da linguagem e das ferramentas de comunicação. Os desejos e vontades dissonantes – que já são ponto de discordância entre os mesmos agentes – multiplicam-se quando agentes diferentes se somam. A fase do “programa” é o único momento em comum nos três projetos analisados, na qual arquitetos e moradores atuam simultaneamente. Não por acaso, esse costuma ser o momento mais difícil, com muitas discussões, até que se chegue a uma decisão. Essa também é a fase do processo na qual, mais frequentemente, faz-se necessária uma tentativa de igualar os níveis de instrumentalidade, capacitando os moradores para o diálogo ou adaptando as ferramentas usuais de representação dos arquitetos para o público leigo. Também é possível observar que, no COPROMO, os agentes atuam concomitantemente em três momentos, enquanto, no Quinta Monroy, isso ocorre apenas em um. Podese associar isso à diferença de relação entre os agentes nos dois processos. A Usina tem como premissa o empoderamento e a capacitação dos moradores por intermédio do processo participativo. O modelo autogestionário, do mesmo modo, enfatiza a ação conjunta dos agentes, sendo a assessoria técnica reflexo de um posicionamento voltado para a cooperação entre arquitetos e moradores. Já o Quinta Monroy, parece ser, entre os três projetos analisados, o que apresenta uma relação mais distante entre agentes. Isso ajuda a entender por que, neste caso, a fase de participação mais intensa dos moradores está localizada no momento final do processo, quando, usualmente, não há mais a presença dos arquitetos.

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Quando isolamos no gráfico um agente e comparamos sua atuação em cada projeto (Págs. 151 e 152), observamos com mais clareza em que momentos cada um participa. Comparando o gráfico de participação dos moradores com o gráfico de participação dos arquitetos, é evidente como os agentes se alternam. Nas primeiras etapas do processo, na fase de “estruturação”, há presença maior dos moradores. Na fase de “projeto”, começa a atuação dos arquitetos de maneira mais intensa, indo até o começo da fase de “construção”. A partir de então, volta-se a constatar um grau mais intenso de participação dos moradores. Essa alternância parece ser justificada pelas características de cada fase. Compreendese que a “estruturação” esteja mais ligada aos moradores ou usuários em processos participativos, visto que tais processos costumam ter início a partir de um grupo previamente articulado ou de uma situação de violação de direitos que provoque sua união. Nos três casos analisados, os moradores já tinham algum grau de organização prévia e lutavam por melhores condições de moradia e terrenos nas áreas centrais da cidade. A parte central da linha do tempo caracteriza as fases mais técnicas do processo, conforme já foi abordado, sendo a presença do arquiteto mais exigida e necessária. Pode-se associar, também, uma menor disparidade entre os graus de envolvimento dos moradores e dos arquitetos a um processo que tende a ser mais horizontal e empoderador. O COPROMO é o projeto que apresenta menor participação dos arquitetos nessas fases, se comparado aos demais – o que corresponde ao processo de trabalho desenvolvido pela Usina. No final da linha do tempo, a presença dos arquitetos é bem baixa, sendo nula na fase final. Essa ausência é comum a diversos modelos de projetos, uma vez que a execução das obras costuma ser realizada por funcionários terceirizados. Depois da conclusão da execução, a obra é considerada finalizada e o trabalho do arquiteto termina. Em nenhum dos casos estudados há um retorno de atuação dos arquitetos após a finalização das obras. Mesmo no Quinta Monroy, em que há a autoconstrução por parte dos moradores após a execução do projeto, os arquitetos não acompanharam esse processo, seja para assessorar essa fase ou como estudo dos resultados. Comparando isoladamente a atuação dos moradores nesses projetos, depreende-se que no COPROMO ela foi mais intensa e abarcou mais fases. Nos três projetos, a presença dos moradores foi muito forte na “demanda” e “articulação” – o que se explica por seus contextos políticos, ligados à reivindicação popular. A atuação dos arquitetos, por sua vez, é bem mais concentrada e uniforme. O COPROMO é o projeto que apresenta menor intensidade de atuação dos arquitetos, comparativamente, enquanto o Quinta Monroy apresenta a maior. O modo como os arquitetos e técnicos da Usina se organizam e se posicionam durante o projeto condiz com

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uma postura menos intensa, embora nem um pouco ausente. Por estarem em constante diálogo com os moradores, sua presença não se dá de forma isolada, não sendo tão evidente nesse gráfico, com o envolvimento apenas dos arquitetos. Já no Quinta Monroy, o desenvolvimento e implementação de um conceito elaborado pelo Elemental (as casas incrementais) pode justificar uma atuação mais intensa nas fases relacionadas ao “projeto”. Na Bouça, o envolvimento do arquiteto é maior nas subdivisões relacionadas ao desenho, escolha dos materiais e técnicas e gestão da construção, indicando uma maior atenção e controle em relação ao objeto arquitetônico.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS



Ainda que limitada, a análise dos estudos de caso permitiu entender mais facilmente como se têm dado os mecanismos de representação dentro de processos participativos na arquitetura contemporânea. Contudo, as questões levantadas por Miguel e Pateman permanecem em aberto. A organização das comunidades por meio de líderes não garante que sua representação seja legítima. O questionamento levantado, inicialmente, acerca da efetividade dos processos participativos em promover a autonomia dos participantes encontra possíveis respostas no modelo de autogestão. É indubitável que, em determinados processos projetuais, a participação por autogestão foi fundamental para o desenvolvimento coletivo dos moradores. A capacitação dos participantes, a construção de um posicionamento e de um discurso político, além de um vínculo maior com o lugar onde moram, são consequências desse modo de participação. Essa alternativa parece apresentar conquistas importantes do ponto de vista das políticas públicas, comprovando a viabilidade, ainda que restrita, do modelo de autogestão, que continua promovendo experiências em diversas cidades do Brasil. Porém, é um modelo extremamente atrelado à militância política, exigindo grandes esforços dos participantes e dedicação à vida política, fatores que inviabilizam essa alternativa para muitas pessoas. Para as lideranças comunitárias, a autogestão acaba se tornando um estilo de vida e uma profissão, indo além do exercício de um dever cívico. Outro fator a ser considerado nos processos autogestionários é a sua duração. É frequente que projetos de habitação com esse nível de participação exijam um tempo maior de desenvolvimento e durem, muitas vezes, quase uma década até a conclusão da obra. Essa duração costuma estar relacionada a entraves burocráticos e à falta de apoio dos governos, no entanto, a participação nesses projetos exige por si só muitas reuniões, encontros e atividades. O grau de complexidade desses processos torna impossível definir uma duração padrão, uma vez que são processos pessoais e coletivos específicos de cada contexto e grupo, que envolvem transformações complexas e profundas em seus agentes ao longo do tempo. Em contrapartida, os modelos de construção através de mutirão e autoconstrução são bastante questionados como mecanismo de promoção da autonomia dos participantes. Por fazerem uso, de maneiras distintas, da força de trabalho do participante, são, frequentemente, criticados pela exploração de populações já fragilizadas, conforme vimos antes. Há ainda muitos outros modos de participação não definidos, como o caso do Bairro da Bouça, que não se enquadra nessas indicações. Não obstante, a despeito da modalidade ou do grau de intensidade de participação, esses processos pressupõem uma duração e complexidade maior do que projetos em que não há envolvimento dos usuários. Diante disso, podemos indagar até que ponto os processos participativos devem ser considerados como um modelo alternativo viável para demandas urgentes. Quando

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lidamos com habitação para populações de baixa renda, as condições costumam ser de extrema necessidade e falta de recursos, incluindo direitos básicos, como saneamento e luz elétrica. Por isso, conforme ressalta Cornwall, há que se considerar o fator da fadiga e da urgência em processos participativos. A autora cita uma fala ouvida durante um processo participativo: “não dá para comer participação”1. De fato, a extensão dos processos, muitas vezes, gera descrédito quanto ao resultado final ou simplesmente a desistência dos participantes e, dependendo do contexto, as necessidades podem exigir respostas e soluções rápidas ou imediatas. Até que ponto cabe, então, defender um processo participativo por seu potencial transformador e empoderador, enquanto as pessoas não possuem condições básicas de sobrevivência? E, se o fator da duração é, hoje, um impedimento para a implementação em larga escala de processos participativos, seria possível, e, até mesmo, desejável, pensar mecanismos que limitem a duração do processo? Conforme abordado na introdução, a ênfase na participação emerge em momentos de instabilidade política e crises de representação. Do mesmo modo, poderíamos dizer que, na arquitetura, esse conceito aflora em um momento de crise do universalismo e funcionalismo moderno, em torno da década de 1960, e volta à tona quando é preciso retomar uma certa credibilidade na arquitetura, enfraquecida por experiências malsucedidas ou já obsoletas. Esse questionamento leva-nos a pensar o que mudou na concepção de participação na arquitetura da década de 1960 até os dias de hoje. Diante das atuais crises de representatividade, política e econômica, os modelos participativos também enfrentam questionamentos. Todavia, há pouca atualização no debate sobre novas formas de participação, seja na arquitetura ou na política. Analisando os desdobramentos de 1960, vemos que os mesmos ainda são nossas maiores referências de modelos sobre o tema, não havendo uma revisão para o atual cenário político e econômico e seus novos dilemas, como os tipos de financiamentos possíveis e os novos modos de representação. A visão de participação do SAAL, por exemplo, está muito atrelada a seu contexto específico, sendo praticamente inviável em qualquer outro cenário, muito menos nas políticas neoliberais contemporâneas. Como aponta Miessen, para fugir do pesadelo da participação, é preciso acordar do sonho da participação. Essa visão crítica com relação à retórica da participação permite-lhe defender o dissenso como mecanismo de projeto. Se voltarmos aos três estudos de caso, vemos que eles persistem, sem sucesso, na ideia de consenso. Neste mesmo sentido, podemos questionar se a visão que os arquitetos, nas décadas de 1960, 1970 e 1980, tinham de participação não é demasiadamente romântica. 1  Livre tradução da autora. CORNWALL, Andrea. Unpacking “Participation”: models, meanings and practices. Community Development Journal. Oxford, p. 269-283. jul. 2008. p. 274

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Uma visão utópica da participação não considera os desafios atuais nas democracias numerosas. A democracia como um regime do qual todos participam é uma ideia que pede revisões. Seguir projetando com o intuito de agradar a todos é fadar-se a não agradar ninguém, além de si mesmo. Talvez os arquitetos continuem enxergando, na participação, uma possível redenção das suas responsabilidades e estejam tentando, por meio de processos participativos, retomar o caráter social da arquitetura, para legitimá-la e respaldála em um momento de enfraquecimento do ofício. Do ponto de vista da necessidade de atualização das práticas projetuais participativas, não podemos deixar de reconhecer o esforço feito pelo Elemental nesse sentido. Seu modelo de financiamento busca a independência dos interesses do Estado, aliando-se às empresas privadas. Dentre os projetos analisados, esse é o único que apresenta uma proposta viável hoje, por incorporar a lógica neoliberal em suas ações e adaptar-se às exigências mercadológicas. Sua aplicabilidade no contexto atual não o exime das críticas quanto a qualidade dos resultados obtidos a partir desse modo de participação. Outra questão identificada como central a esse debate é a comunicação entre os agentes. A hierarquia imposta pelas diferenças de instrumentalização e conhecimento técnico é um desafio enfrentado pelas experiências aqui apresentadas. Repensando a linguagem técnica e seus mecanismos de representação, os arquitetos buscaram articular debates, capacitar o discurso e aumentar o repertório de referências dos moradores através de mecanismos variados. Esses instrumentos de diálogo - sejam cartilhas, maquetes, desenhos ou performances - se revelam em constante fase de testes e adaptação. Durante o desenvolvimento desse trabalho, sentimos a vontade de desenvolver uma ferramenta para processos participativos que abordasse as questões aqui levantadas. Percebemos que é frequente o uso de elementos lúdicos, pelo seu potencial de envolver os participantes e sua proposta de suspensão da realidade. Iniciamos a elaboração de um jogo com o objetivo de, por meio da cooperação entre os jogadores, abordar os questionamentos frequentes aos processos participativos. Sem ganhadores, os três agentes do jogo (morador, arquiteto e financiador) se uniriam em prol de um objetivo comum. Essa seria uma forma democrática e envolvente de apresentar o tema para um público amplo e incitar o debate. A possibilidade de jogar representando diferentes personagens estimula a empatia e a compreensão da posição dos demais agentes no processo. No entanto, não coube ao escopo desse trabalho a finalização do jogo, deixando em aberto o exercício de novas práticas de comunicação. Ao longo da nossa pesquisa, podemos perceber que as especificidades de cada projeto dizem respeito a diferentes cenários políticos, econômicos e sociais. Não é possível, portanto, identificar um padrão único. Cada processo é singular, porém isso não diminui a

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força que apresentam em conjunto, como alternativa a um modelo autoritário de projeto. São processos diversos e pontuais, mas representam uma resposta como grupo. O fato de não ser possível detectar um modelo único de participação não anula essas experiências como referências fundamentais para a formulação de novas possibilidades de projeto, de relação com os usuários e de atuação para os arquitetos hoje.

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Bibliografia geral ARNSTEIN, Sherry. The Ladder of Citizen Participation. Journal Of The American Planning Association. s/l, p. 216-224. jul. 1969. BARONE, Ana Cláudia Castilho. Team 10: arquitetura como crítica. São Paulo: Annablume, 2002. BISHOP, Claire (Org.). Participation. Cambridge: Mit Press, 2006. (Documents of contemporary art) CORNWALL, Andrea. Unpacking “Participation”: models, meanings and practices. Community Development Journal. Oxford, p. 269-283. jul. 2008. DE CARLO, Giancarlo. O público da arquitetura. In: O Processo SAAL: Arquitectura e Participação 1974-1976. Porto: Fundação Serralves, 2014. p. 274 DE GRAAF, Reinier. From CIAM to Cyberspace: Architecture and the Community. In: BAIRD, Laura et al. The Community Issue. s/l: Hunch, 2013. p. 45-51. DE SOUZA, Diego Beja Inclez. Reconstruindo Cajueiro Seco: Arquitetura, Política Social e Cultura Popular em Pernambuco (1960-64). São Paulo: Annablume, 2010. HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992 JONES, Peter Blundell; PETRUSCO, Doina; TILL, Jeremy (Ed.). Architecture and participation. Kentucky: Routledge, 2005. MCGUIRK, Justin. Radical Cities: Across Latin America in Search of a New Architecture. Londres: Verso, 2015. MIESSEN, Markus. The nightmare of Participation: Crossbench Praxis as a mode of criticality. Londres: Sternberg Press. 2010. MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: Territórios em disputa. São Paulo: Unesp, 2014. NEWMAN, Oscar Oskar HANSEN (ed). CIAM ’59 in Otterlo, Stuttgart: Karl Krämer Verlag, 1961, pp. 190-191. ORAZI, Manuel. Philosophy of participation. In: FRIEDMAN, Yona; ORAZI, Manuel. Yona friedman: the dilution of architecture. Zurique: Park Books/archizoom, 2015. p. 536-541.


PATEMAN, Carole. Participação e Teoria Democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: palavras, instituições e ideias. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 67, p.15-47, abr. 2004 PREVI/Lima, Low Cost Housing Project. Architectural Design, Londres, v. 4, p.187-205, 1970. SCHWARTZMAN, Simon. Bases do autoritarismo brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 1982.

Filmografia geral ERA O Hotel Cambridge. Direção de Eliane Caffé. São Paulo: Aurora Filmes, 2017. Son., color. “Quartiere Matteotti, Terni, 1970-1975” RAI SAT art / 2003 In collaborazione con: Architettura a Valle Giulia - Università degli Studi “La Sapienza” MEDIATECA https://vimeo.com/32628698


ANEXOS



Entrevista a João Marcos de Almeida Lopes - sócio-fundador da Usina Realizada em 14/07/2017, na sede da Usina,em São Paulo A gestão Erundina (1989-1993) e a criação do FUNAPS Comunitário (1992) coincidem com o momento de formação das assessorias técnicas em São Paulo (Usina – 1990, Ambiente – 1992 e Peabiru – 1993). Esse período também é marcado por um fortalecimento dos movimentos por moradia (UMM – 1987), decorrendo da redemocratização e a insurgência de governos de esquerda nas esferas municipais. Qual peso você atribui para esse cenário político e econômico na eclosão de projetos autogestionados? Eles seriam possíveis sem políticas públicas que os favorecessem? Esse contexto específico do final dos anos 1980 e a virada para os anos 1990 culmina um processo que começa no final dos anos 1970, na verdade. Isso tem a ver com o regime político vigente no país. Estávamos em uma ditadura e, ao longo de toda a primeira metade dos anos 1970, nós não tínhamos informação e nem a possibilidade de qualquer outro tipo de agremiação que não fosse time de futebol e clube de igreja. Os sindicatos estavam totalmente travados pelo regime e censura vigente. No final dos anos 1970, em um período de transição entre regime militar e regime civil, começaram as primeiras greves no ABC Paulista, as Comunidades Eclesiais de Base começaram a ter um peso mais significativo, os sindicatos começaram a ter um papel mais combativo, dentre outras situações que levaram a um renascimento dos movimentos sociais no Brasil. O movimento de moradia nasce disso. No começo dos anos 1980, já havia uma efervescência com ocupações de terra, movimentos de favela... Desses grupos começam a aparecer as demandas para os arquitetos. Entre 1980 e 1988, os movimentos de moradia que existiam em São Paulo estavam focados na zona sul. Os movimentos de base foram se ampliando e conseguiram eleger a Luiza Erundina como prefeita. Uma mulher e nordestina só chegou ao poder devido à mobilização que já existia. Também contribuiu para a sua eleição a falta de pesquisa eleitoral e todo um cenário político de instabilidade constitucional. Quando ela entra, já tinha muita coisa acontecendo, os movimentos já estavam organizados com seus ideários e tensões instaladas. O que faz o processo de participação ser efetivado na gestão Erundina é o próprio processo de participação. Porque já vinha de antes, quase como uma decorrência natural. O que você pensa sobre projetos mais recentes, como os do Alejandro Aravena, que surgem como desdobramentos das questões levantadas pela Usina? Sendo bem franco, eu acho uma fraude. Isso se confirma ao estudarmos o contexto da produção habitacional recente do Chile. O Minha Casa Minha Vida daqui se inspirou no

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de lá, em um programa com uma das formas mais estúpidas de produção habitacional. Construiram-se bairros inteiros que, hoje, os fazem afirmar que o problema são os “comteto” e não os “sem-teto”. São bairros desprovidos de urbanidade, as casas e ruas são precárias, não tem escola, infraestrutura, abastecimento... Nesse contexto, o Aravena entra fazendo pose. O problema não é dar meia casa para o sujeito e deixar eles construírem o resto, porque isso já acontece. Toda a produção habitacional do país foi baseada nisso, dar o mínimo e deixar o morador construir o resto. Só que ele não constrói o resto, porque o resto significa construir cidade, e a cidade não está sendo construída por uma unidade habitacional. É um equívoco. Quando se constrói moradia, isso envolve o contexto que aquela casa está implantada. O desenho do Aravena é esperto, não é inteligente. Ele convence. Você dá uma estrutura rígida, da qual o morador não participou em momento algum, e depois diz que a participação está em um momento posterior. Mas o que o morador decide fazer não é bom, é ruim. Olhando o Quinta Monroy hoje, não é possível reconhecer mais o desenho. Em alguns conjuntos nossos isso também aconteceu. Como surgiu o uso do bloco cerâmico como elemento estrutural? Como foi a recepção dos moradores? Nós viemos da Unicamp, então já tínhamos a experiência de construir com os painéis de cerâmica vermelha. O desejo de trabalhar com a cerâmica era muito grande, mas os moradores do Terra É Nossa (nosso primeiro projeto) não comprariam a ideia. Até esse momento, nos parecia que o bloco cerâmico era mais caro e inviável. Em uma comversa com outros arquitetos que já haviam usado o bloco cerâmico em outro projeto, ele nos mostraram que era viável. O bloco autoportante resiste a si mesmo, mas o bloco portante aguenta quase a mesma carga que o bloco de concreto. Além do mais, a resistência térmica e impermeabilidade é muito maior do que a do bloco de concreto. O Cazuza foi a primeira demanda oficial dos movimentos para a Usina e é um dos primeiros projetos de edifício realizado em mutirão. Quando propusemos o bloco cerâmico, os moradores não aceitaram de início. Em assembleia, tentamos argumentar e foi muito bacana. Tinha um mestre de obras que fazia campanha contra o bloco, então foi difícil. Um dos argumentos foi usar como exemplo o isolamento térmico do filtro de barro. Por fim, acabaram aprovando e, assim, foi introduzido esse elemento na história da Usina. Depois fomos aprendendo como defender melhor o argumento. Em outro caso, fizemos uma demonstração com um aquário de água para mostrar qual bloco a retém mais. Na época, não havia norma técnica para o bloco cerâmico, os mutirões ajudaram muito nessa regulamentação.

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Qual é o grau de autonomia da indústria? É necessário que os elementos sejam produzidos na obra? O processo de fabricação é muito especializado e industrializado, mas a autonomia depende do contexto. No COPROMO, foi possível criar a serralheira porque eram 1.000 unidades, se a escala for pequena não vale a pena montar uma estrutura temporária. Qual o tipo de autonomia que se busca? Quando o financiamento é MCMV entidades, nossa ideia é internalizar o orçamento. Comprando algo terceirizado, uma parcela da verba vira lucro para o fabricante. Se for possível trazer alguma fabricação para dentro da obra, o lucro é revertido para o projeto. Tem que saber como jogar. É muito difícil montar uma unidade de produção dentro de um canteiro de obras, porque o esforço mobilizado será desmobilizado em seguida. Hoje muitos projetos contam com mão de obra terceirizada e entendem que essa opção pode ser menos desgastante e mais eficiente para as necessidades atuais do que o regime de mutirão. Da mesma forma, o uso de estrutura metálica, em projetos como o Paulo Freire, traz uma nova cara à autogestão. Como você enxerga essas adaptações ao longo dos anos e o processo de atualização desse modelo de projeto? A auto-gestão hoje é a evolução do mutirão dentro do pensamento sobre a participação? Desde o começo se questiona o mutirão. Mutirão é muito ruim. O morador trabalha de segunda a sexta, ninguém aguenta trabalhar final de semana. A gente percebia isso desde o Cazuza, todo final de semana tinha uma queda de 25% no contingente de pessoas. No mutirão seguinte, na 26 de Julho, instauramos um outro esquema, dividindo em grupos que se revezavam nos finais de semana. Isso garantiu 60% do contingente no mutirão e finais de semana de folga para todos, de forma intercalada. Por outro lado, desde as experiências uruguaias, se defende uma parcela do orçamento para a mão de obra. A ideia é aplicar essa verba da melhor maneira possível. O mutirão remunerado foi uma realidade durante a gestão Erundina, com 10% do valor da obra. Essa verba foi investida em serviços que exigiam uma especialização maior, que eram terceirizados, deixando as funções mais básicas para os moradores mutirantes. Hoje em dia se debate como fazer o processo de autogestão ter muito mais presença do que o mutirão. A equação de divisão da verba ainda está em discussão. Como se deu a participação no processo do Copromo? Usavam algum tipo de método ou cartilha? Como vocês se comunicavam graficamente? Como se dava o diálogo com os moradores? A história do COPROMO começa com a conquista do terreno vizinho pela associação Terra É Nossa, abrindo a possibilidade de mobilizar mais gente. Eles montaram uma barraca

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e começaram a fazer inscrição de pessoas na associação. O número de inscritos foi enorme e eles começaram a lutar pelo terreno onde hoje é o COPROMO. É importante não ter um método. Se tiver um método, você fica engessado e não consegue ver o que a circunstância está contando. Conforme o contexto, lançamos mão até dos recursos disponíveis. Uma vez fizemos umas discussões para um projeto em um assentamento no Pará que não tinha nem energia elétrica. Discutíamos sobre as casas com desenhos no chão. No COPROMO eram 1.000 famílias, como discutir com 1.000 famílias? A gente fez um vídeo com uma série de entrevistas, pessoas falando, cenas de assembleias e um desenho 3d do projeto no final. Foram 20 reuniões com 50 famílias em cada. As famílias participaram de forma bem “meia boca” desse processo de elaboração do projeto. Em outros casos, a discussão foi muito mais consistente, em termos participativos. Claro que teve uma apropriação por parte das pessoas no COPROMO, principalmente pela coordenação, que era um grupo menor. Com 1.000 famílias é difícil chegar em todo mundo. Na União da Juta já foi diferente, porque eram 160 famílias. Apresentávamos as ideias para eles buscando entender como era a vida dentro do conjunto habitacional. O que a gente perguntava não eram questões objetivas como o tamanho da cozinha ou a cor do sofá. Perguntávamos sobre relações: como é a relação entre a sala e a cozinha?; entre o banheiro e a sala?; é melhor a cozinha junto com a sala ou separada? Através do imaginário conseguimos uma interlocução que alimentou a nós mesmos. Nos anos 1980, projeto participativo era entendido como dar três opções para a pessoa escolher uma. Nós já fizemos isso. Mas isso restringe o campo de possibilidades a um número dado, não se constrói junto as opções. Você está dando uma opção que você construiu a partir da sua tradução do que é a necessidade do outro. Por outro lado, outras vertentes davam a lapiseira na mão do morador e pediam para ele desenhar, como o Carlos Nelson. Isso é um contrassenso e uma forma preconceituosa de lidar com o desenho alheio. Eu fui treinado a desenhar e fazer a leitura do desenho de uma determinada forma, o morador não. Quem garante que naquele desenho não tem expectativas que nós não conseguimos identificar? Dizer que esse desenho é rústico e infantil, só por não ser planta, corte e fachada, é muito presunçoso. É muito melhor eu construir o programa de necessidades com o morador, através da conversa. A gente não faz isso com o cliente? Então, vamos fazer isso com o grupo. Começamos as conversas com temas geradores, à la Paulo Freire, usando o recurso do diálogo para construir aquilo que corresponde à necessidade cotidiana. Recentemente, na obra do mutirão Paulo Freire, durante a discussão sobre a cozinha, os homens começaram a defender uma cozinha grande. As mulheres não gostaram e

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reclamaram que eles não sabiam como era limpar uma cozinha grande. Isso muda muito de grupo para grupo, cada circunstância é diferente. Se não construímos o programa de necessidades juntos com eles, acabamos por impor uma concepção nossa. Uma vez no interior do Paraná, mostrando a planta das unidades para as famílias, surgiu um incômodo. Um dos moradores disse que o banheiro precisava estar fora da casa, para que eles pudessem se limpar da sujeira da roça antes de entrar em casa. Isso mostrou que a gente não estava entendo a dinâmica deles, colocando os banheiros da mesma forma que colocamos em São Paulo. Devemos construir a partir da realidade deles, isso, sim, eu chamo de participação. É possível ou desejável construir em larga escala seguindo o modelo de autogestão? Ou esse é um modelo de resistência e particularidades? Há uma aplicação global ou esse modelo é específico para o Brasil? Eu acho que é possível construir em larga escala. Isso não sou eu que diz, a própria arquitetura moderna veio insistindo nessa conversa. Giancarlo de Carlo já dizia que a arquitetura é uma coisa muito importante para deixar só para os arquitetos fazerem. O Yona Friedman falava sobre não pensar o arquiteto como um tradutor de um homem médio, criando um padrão. Do grupo de 100 famílias do Paulo Freire, 5 são casais homossexuais e não há conflitos quanto a isso. Mas essa situação é muito diferente em cada projeto, porque cada um tem uma demanda. No final do CIAM, já se questionava a ficção do homem médio. Esse debate vem dos anos 1960, se soma com várias tendências nos EUA, com Lucien Kroll, com Hassan Fathy, e se estende em várias experiências de um tipo de arquitetura e urbanismo que é feito a partir desses pressupostos do diálogo, em oposição à proposta moderna. É possível em larga escala, porque é a mesma coisa. O mesmo que eu faço com um cliente privado eu posso fazer com um grupo. A diferença é a posição que você se coloca como arquiteto. Eu continuo sendo arquiteto, a lapiseira é minha. Eu fui instruído e habilitado, por isso estão me contratando. Mas o programa de necessidades não sou eu que atribuo a ele.

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Entrevista a Seu Neto - morador original do COPROMO Realizada em 17/07/2017, em seu apartamento, no COPROMO Quem eram as lideranças entre os moradores e como foi decidido isso? Houve um cadastramento? Aqui tinha um líder, na época, que era vereador. Ele cadastrou as pessoas no movimento. Essa terra foi invadida, entramos em negociação com as autoridades e conseguimos comprar a área. Nesse momento que entrou a Usina. Os profissionais foram da Usina, mas a mão de obra foi mutirão mesmo. Esse vereador que arranjava as lideranças. Tinha uma diretoria para administrar a associação, que mudava a cada 2 anos. Nós votávamos para a diretoria e havia reuniões toda semana para falar sobre como estava o movimento. O vereador negociava com as autoridades. Na época, esse terreno pertencia a COHAB (Companhia de Habitação de São Paulo), que hoje é a CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Humano). Ele negociava e repassava a informação para nós. Apesar desse terreno ser na área de Osasco, ele pertencia à COHAB de São Paulo. Eles tinham uma dívida de imposto com a prefeitura, então, começamos a negociação com a CDHU e terminamos com a prefeitura. Como foi o processo? Todos participaram do mutirão? Quais eram as regras? Todo mundo tinha que participar do mutirão. Havia uma quantidade de horas semanas. A gente trabalhava durante a semana nas empresas e final de semana no mutirão. Como escolheram a Usina? Havia reuniões? Na época, tinha um professor que conhecia os arquitetos da Usina e os chamou. Nas reuniões, os moradores e a Usina participavam. Elas eram realizadas na obra mesmo, bem no meio do terreno, onde havia um barracão. Se eu não pudesse ir na reunião, por exemplo, eu pedia para meu filho ou esposa irem para pegar as informações. Muitas vezes a gente tinha que se cotizar para comprar coisas, por isso, tínhamos que ir na reunião para saber o que era preciso pagar. A obra foi financiada pela CDHU, o que a gente pagava era serviço de escritório, gastos pequenos. Como foi a escolha da técnica construtiva? Isso foi discutido com os moradores? Vocês gostaram? A Usina apresentou o bloco cerâmico, tivemos uma discussão e concordamos em usar. Algumas pessoas tinham medo, mas, segundo os engenheiros, é bem seguro. Onde meu filho mora, no condomínio vizinho, foram 40 apartamentos construídos em um ano e meio, porque é tudo empreiteira e construção convencional.

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Que tipo de atritos e brigas aconteceram? Tinham muitos conflitos e brigas, ainda hoje tem. A gente decidia pela maioria, por votação, 50% mais um sempre resolve. Como foram escolhidas as famílias de cada bloco de unidades? A escolha das famílias foi por sorteio. Na época, houve essa discussão sobre colocar as famílias juntas. Teve uma confusão no sorteio, porque algumas pessoas participavam mais do movimento e tinham mais horas de mutirão. A partir disso, surgiu a regra de poder escolher o apartamento primeiro quem tivesse mais horas acumuladas. A vizinhança até hoje não deu problema, o pessoal é gente boa. Apesar de ser uma associação e um condomínio popular, é bem tranquilo. Como a gente trabalhou muitos anos juntos no mutirão, todo mundo já se conhecia. Eu trabalho em um edifício de luxo de Osasco, de gente rica. E lá dá mais problema do que aqui. Como os moradores lidaram com a demora no projeto e obra? Alguém desistiu durante o processo? Teve gente que desistiu de esperar, mas tinham os suplentes para assumir. Havia 2.500 famílias cadastradas antes da conquista da terra. A tipologia atende à maioria das famílias? Qual é o perfil dos moradores? Você pode ver que os quartos são grandes, e o que se constrói hoje normalmente é pequeno. Um conhecido meu comprou um apartamento na cidade ao lado que, se você for grande, consegue tocas nas duas paredes com os braços abertos. O número de quartos foi bom para a maioria, o pessoal que tem família grande está acostumado a se acomodar com pouco espaço. O que acham dos espaços coletivos? Esses espaços no projeto eram menores, depois quiseram ampliar e acabou tomando o espaço do estacionamento. Aqui não tem estacionamento para todas as unidades. O certo seria uma vaga por apartamento, mas o espaço é gasto com coisas que as pessoas nem usam. Tem muito espaço perdido. Quais diferenças vocês percebem entre o COPROMO e os outros projetos de Osasco? É tudo falta de projeto. Meu filho comprou um apartamento em outro condomínio que são 4 torres. Lá não tem espaço, mas tem vaga para todo mundo. Aqui tem muito espaço, do tamanho de um estacionamento de shopping, e não tem vaga. Então, é falta de projeto, eu acho.

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Quantos moradores originais permaneceram? Há muitos interessados em vender ou comprar os apartamentos? Nesse prédio já saíram uns 4 ou 5. Muitos apartamentos já foram vendidos. O documento de escritura ainda não existe, mas tem gente que vende. O valor dos apartamentos aumentou. Tem apartamento que foi vendido inicialmente por 18.000 reais repassando a dívida do financiamento, e o mais recente foi vendido por 190.000 reais, há cinco anos atrás. Ainda não temos o título de posse, a CDHU ainda está terminando umas obras. Com o documento esse valor vai aumentar mais. Os moradores ficaram satisfeitos, fizeram ou pediram mudanças? Tem gente que não gosta até hoje. Aqui era uma área para 1.000 apartamentos, mas o primeiro financiamento veio apenas para oito blocos. Fizemos um sorteio para ver quais seriam as primeiras famílias a receber a casa. Quem não foi sorteado ficou triste, reclamou, mas depois deu tudo certo. A primeira parte foi inaugurada em 1996, a outra só quatro anos depois. Eu fui sorteado para a primeira fase, dei sorte. Há regras para mudança na fachada? Os moradores querem mudar ou pintar? Teve uma mudança no projeto, mas foi pela CDHU. O reservatório de água de alguns blocos é subterrâneo e de outros é no nível do térreo. Mas isso não foi na época do mutirão, foi depois. Dentro dos apartamentos ninguém mudou, porque não pode. Eu estou brigando para poder trocar essa porta, mas tenho que mandar fazer outra igual. Tem uma regra do condomínio que não permite mudar nada. A pintura externa dos blocos é determinada pelos seus moradores. Cada bloco tem seu subsíndico, suas despesas, sua autoridade, sua administração. Tem alguns que foram rebocados, mas a decisão é de cada um, não precisa ser tudo igual, pode mudar a cor. Por acaso estão todos parecidos. Uma vez, pintaram de amarelo um dos blocos, mas não gostaram e pintaram de novo com uma cor semelhante a do bloco cerâmico. Terminada a obra, como ficou a relação entre os moradores? Permaneceram unidos? Existiram vários projetos comunitários, mas não existem mais. Muitos deles aconteceriam na sede da associação, mas lá nunca teve nem uma festa. É muito mal administrado, tem uma briga de diretoria. Houve uma época em que separaram os 160 apartamentos da primeira fase dos outros 540, construindo um muro, que depois foi derrubado. Há 16 anos o time de futsal tenta organizar uma escolinha, temos vários professores de educação física no condomínio, mas nada sai no papel. As eleições para a diretoria também são motivo de briga. De acordo com o estatuto, na ausência da maioria, votam os presentes na reunião. Como muitos faltam, a decisão acaba sendo de poucos.

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