Turismo do Estoril
João Aníbal Henriques
Turismo do Estoril ____________________________ apontamentos para uma visita ao estoril
ACADEMIA DE LETRAS E ARTES 2011
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Em memória de João Aníbal Veiga Henriques pela mão de quem conheci as ruas, as estórias e a Alma dos Estoris
Índice
Prefácio por António de Sousa Lara ………………………... 009 Introdução ………………………………………..……………. 011 A Região de Turismo do Estoril ………………………..……. 015 O Estoril Antes do Seu Tempo ………………………………. 025 O Pinhal da Andreza e o Monte Estoril …………………..… 033 Estoril Glamour ………………………………………...……… 045 O Sonho dos Estoris ……………………………………..…… 053 Um Estoril de Sangue ……………………………………..…. 087 Monte Estoril Romântico ……………………….……………. 101 O Estoril Franciscano ………………………………………... 129 O Estoril Moderno ……………………………………………. 135 Conclusão …………………………………………………….. 197 Hotéis no Estoril …………………………...…………………. 201 Centros de Congressos …………………………...………… 203 Golfe do Estoril ……………………………………….………. 204 Academias e Instituições ……………………………………. 204 Notas e Referências …………………………………………. 207
ACADEMIA DE LETRAS E ARTES
Prefácio O Estoril foi uma criação de um visionário seguido de outros e corrompido pelas infindáveis especulações subsequentes autorizadas por quem podia mas não devia, na sucessão de várias administrações quer do tempo do “despotismo” quer do tempo das amplas liberdades, venha o diabo e escolha. Foi um projecto de sonho, que nasceu elitista, na cauda da Corte, do dinheiro exuberante, do jogo, da diversão, do desporto caro, da excelência hoteleira até na desgraça. Não fora o sonho e estaríamos num simples prolongamento do dormitório de Lisboa, que a corrupção instalada sempre prezou como viés de lucro imediato, sem preocupação pela morte da qualidade e pela desgraça subsequente. Jovem autarca sempre alertei para os riscos de se matar a galinha dos ovos de ouro. Pareceu-me, então e até agora, ser óbvio que ninguém no seu inteiro juízo, gasta bom dinheiro e o seu tempo de lazer para se enfiar num dormitório suburbano, igual a outras tantas misérias que circundam as grandes cidades povoadas de multidões informes, que nas crises, dão cenas como as de Paris e de Londres. Mas com a política do “já agora…” e de “ é só mais esta excepção” tem sido destruído o exótico singular que faz a diferença. A corrupção vê isto mesmo. Não é estúpida. É apenas corrupta. O Dr. João Aníbal Henriques tem sido um cruzado na defesa deste património que não devia morrer assim. Este livro serve tal propósito: de memorial e de alerta. Divulgá-lo é um acto político; calá-lo também é. Está nas nossas mãos. Depois não se diga que ninguém fez nada. António de Sousa Lara Presidente da Academia de Letras e Artes
Introdução A região turística do Estoril, marcada pelas características de um espaço onde o clima, a paisagem, a situação geográfica e as tradições culturais se conjugam em torno de uma comunidade humana na qual a Identidade e o sentido de Cidadania estão muito presentes, é hoje uma das grandes referências da vivência sócio-urbana de Portugal. A sua fama, no entanto, baseada nos pressupostos atrás mencionados, mas complementada com vários outros aspectos que este pequeno guia apresentará demoradamente, ultrapassa largamente a racionalidade da coisa feita, perdendo-se claramente num universo onírico que desde há muitos anos envolve a região numa espécie de misticismo que cruza o País e o estrangeiro. Para além dos muitos atractivos que apresenta, e que são sobejamente conhecidos e reconhecidos por todos os Portugueses, existe um outro conjunto de ideias, pensamentos e sensações que o Estoril desperta e que, quase sem explicação plausível, o dotam de uma aura de fascínio que não deixa ninguém indiferente. De Norte a Sul e em vários pontos do Mundo, o topónimo Estoril é sinónimo de deslumbramento. Embora nem sempre se saiba porquê, e muitas vezes exista por parte de quem evoca o Estoril o mais profundo desconhecimento sobre a realidade local, o certo é que falar nesta terra é sempre sinónimo do despertar de mil sensações que ultrapassando os sentidos se inserem naquela categoria que deixa marcado para sempre quem a ela se dedica de forma constante. O Turismo do Estoril é, pois, a actividade e o sector que melhor compreende esta lógica transcendente, sendo capaz de aplicar às suas estratégias promocionais, às soluções de trabalho que apresenta e àqueles que recebe nestas paragens, todo um conjunto de ofertas que, fomentando as experiências, transformam uma estadia no Estoril no cadinho de um conjunto de memórias que quem por elas passa tem muitas dificuldades em esconder.
E se hoje é assim, depois de mais de seis mil anos de uma História forte e significante que transformou cada ínfimo detalhe no mote para mais uma estória que dá cor e ensejo a quem por aqui procura a verdadeira sensação de viver, de igual modo tem sido o Estoril o porto de abrigo para todos aqueles que têm fome e sede de fomentar o diálogo, a imaginação e dos que são capazes de ver mais além, transformando o devir diário num exercício de estilo no qual a coisa concreta é desde logo ultrapassada pela importância de a transcender. Das antigas arribas estéreis que deram mote ao topónimo actual, até ao verdejante e viçoso interior das actuais terras Estorilenses, muitos são os caminhos, as linhas de rumo, as opções de viagem, e as possibilidades que temos para o explorar e compreender. O Estoril, composto por uma miríade de povoações de traços díspares e por vezes antagónicos nas suas origens e na formulação eclética que dá forma ao seu ser, espraia-se assim pelas gentes que se vão revezando nas suas ruas, recantos e casas. É certo que o que traz estas populações ao Estoril é o carácter único e quase transcendente do espaço que o compõe, mas não será despiciente perceber que são também os olhares, a tez e as muitas tonalidades de pele e cabelo daqueles que circulam nesta terra, que lhe compõem a aura de mistério e de sonho que fomenta ainda mais a vontade de a conhecer. Visitar o Estoril é assim uma aventura no verdadeiro sentido da palavra, contendo a segurança de todas as premissas que compõem o cartaz turístico da região, mas também o mistério que deriva da incerteza, do incompreendido e de uma vastidão de aspectos que será necessário explorar, desvendar e compreender. A experiência de uma estadia no Estoril é sempre marcada pelo cunho da personalidade, pois o Sol, a serra e o mar são elementos indissociáveis da viagem, servindo de cenário de fundo à estadia de todos aqueles que por aqui passam, existem elementos transcendentes e pessoais que determinam a forma como vemos, sentimos e vivemos este local extraordinário.
O guia que agora trazemos a público não é, por isso, um tradicional conjunto de sugestões de visita que definem percurso e caminhos que o turista deverá seguir para nada perder. Pelo contrário… é um conjunto de pistas, de sinais e de orientações que apelam à construção de caminhos personalizados e impactantes para todos aqueles que tiverem a coragem de os fazer. Queremos gerar memórias e essas, feitas sobre as rochas fortes das recordações, não vivem sem que sejam tocadas pela imaginação e pela forma como os aromas, as cores e as texturas as condicionaram durante o período que passaram cá dentro. As memórias construídas dessa forma, conjugando o que realmente existe com as sensações produzidas pelas experiências que cá se viveram, serão estórias (mais do que História) que quem agora nos visita irá contar, vezes sem conta, ao longo de várias gerações, durante todo o tempo em que viver. É isto um destino de excelência. É este o caminho que permitirá ao Estoril singrar e afirmar-se como o local de excepção numa Europa marcada pelo alinhamento, pela estreiteza de visão, e pelo facto de ser tudo muito semelhante e parecido. O Estoril alimenta os espíritos com a sua diferença e conjuga visões com a sua capacidade de surpreender. O Estoril é um caminho mais do que um destino, um rumo certo em direcção à vida verdadeira e às memórias perenes que são essenciais para a criação da identidade humana e para o sentido humanista que só quem experimenta pode verdadeiramente compreender. João Aníbal Henriques Verão de 2011
A Região de Turismo do Estoril Situada no Concelho de Cascais, a pouco menos de vinte e sete quilómetros de Lisboa, o Estoril é uma das mais extraordinárias estâncias turísticas do Mundo. Tem, por um lado, todos os benefícios de estar junto à capital, com uma excelente acessibilidade a todos os meios e equipamentos que a grande cidade oferece e, por outro lado, a pacatez que resulta da sua situação única, vincada por um perfil muito próprio no qual as características marcantes se tornam mais evidentes. O nascimento e crescimento do Estoril, pouco lógico se nos ativermos às principais linhas que permitem compreender a sua situação geográfica, centrou-se basicamente em três factores que ainda hoje condicionam a sua importância numa Europa ávida de qualidade: o seu posicionamento junto à Costa, assumindo-se como complemento a Cascais e como se fosse uma espécie de guarda avançada na defesa de Lisboa; as suas águas medicinais que para aqui trouxeram gente à procura de cura durante muitos séculos; e o seu microclima excepcional. Relativamente à primeira característica, ainda hoje visível através dos muitos fortes, revelins e fortificações diversas que lhe enchem as costas e areais, é evidente que o facto de se assumir como estrategicamente importante para a defesa da capital acabou por ser responsável pelo seu primeiro incremento populacional. Muitos das estruturas defensivas que marcam a sua linha de costa foram transformadas, aliás, nos mais emblemáticos e expressivos da arquitectura residencial que marcam a paisagem Estorilense. O Forte da Cruz, situado em plena Praia do Tamariz ou o Palacete Schröeter, que acabou por dar nome à praia em questão, são apenas dois exemplos da forma como a arquitectura defensiva que marcava a paisagem Estorilense se adaptou a novos usos e ajudou a compor a paisagem excepcional que aqui se pode admirar.
A paisagem é, aliás, a grande potencialidade do Estoril. Marcada a Norte pela linha de horizonte no qual sobressai a Serra de Sintra., que simultaneamente protege a localidade dos ventos dominantes que dali chegam ao mar, o Estoril vislumbra ao longe a linha costeira de Cascais, com a sua marina e cidadela e, a Nascente, os contornos da costa que acompanham o Rio Tejo até à Cidade de Lisboa. Do lado do mar, e para além do grande areal do Tamariz, o Estoril possui ainda a Praia das Moitas, o que resta do outrora cosmopolita areal do Monte Estoril, a Praia da Poça e a conceituada Praia da Azarujinha, situada junto à localidade de São João. A seguir, depois de duas ou três enseadas de contornos românticos e difícil acesso ao cidadão comum, a maravilhosa Praia de São Pedro com a sua Ponta do Sal onde um observatório astronómico equipado com equipamento óptico de primeira qualidade, permite ao visitante admirar de forma pormenorizada todos os aspectos que compõem esta paisagem sem igual. Um dos principais atractivos do Estoril, que o transformou num local de visita pelo menos desde o Século XVIII, quando o Rei Dom José para aqui veio a banhos tentar curar as maleitas de pele e ossos que o afectavam, reside nas suas águas termais. Segundo Francisco da Fonseca Henriques, que nessa altura publicou um pequeno texto sobre as águas especiais do Estoril, as nascentes sulfurosas apresentam três olhos de água que garantem uma temperatura sempre agradável da mesma: “Junto ao convento dos Religiosos de Santo António, em uma Quinta chamada do Estoril, está um tanque, em cujo fundo nascem três olhos de água, que ao romper da manhã está quase morna, e pelo dia adiante se põem menos fria, que qualquer outra água comum. Corre por minerais de algum enxofre, que sempre se supõem em todas a água, que nasce quente…”. O médico Francisco Tavares, em 1810, volta a mencionar as águas do Estoril, desta vez sublinhando o seu carácter já antigo e a sua importância para o tratamento de várias maleitas. Neste texto, que serve também para explicar um pouco da História longa do
lugar, o autor sublinha a existência de pelo menos dois estabelecimentos para banhos rentabilizando o potencial das águas: um de maior qualidade e com condições de higiene adequadas àqueles que tinham dinheiro para as pagar, e um segundo, situado junto à Praia da Poça, em São João do Estoril, basicamente destinado aos pobres que também procuravam aquele lugar: “junto à falda de um monte nasce grande quantidade de água, que antigamente formara um lago, diáfana, muito salobra, e brota das suas origens, que são do lastro por cima, em 84º de calor na escala F. ou 23 na de R.[…] Pelos anos 1787 ou 1788, se construíram, e ainda existem doze banhos com divisões de lajes postas a prumo, que tem por cima pequenas casas de madeira para comodidades dos banhistas. Afora estes doze banhos há um mais bem reparado e com casa mais ampla e decente, aonde tomam banho pessoas de maior distinção e alguma vez ali tomou o Senhor Rei D. José, de saudosa Memória. Na altura correspondente à superfície do tanque cheio há um cano, que recebe a água que, continuamente nascendo, sobrepuja e sai por ele para outro tanque a que chamam o Banho dos Pobres, aonde a água é já fria, e nenhum reparo há….” Já depois de restauradas por José Viana da Silva Carvalho, que mais tarde deu origem ao primeiro topónimo que deu fama ao Estoril – A Quinta do Viana – as termas conheceram um novo período de apogeu, tendo-se construído um edifício apalaçado que, em estilo neo-Árabe, evoca os antigos hábitos de ir-a-banhos pouco conhecidos até aí em Portugal. Tenreiro Sarzedas, que em 1902 faz a inspecção médica ao novo estabelecimento de águas, descreve desta forma as Termas do Estoril: “pela beleza da sua arquitectura e cuidados esmerados na instalação bem deve considerar-se um dos mais aprimorados de entre os que possuímos. A sala de atmosfera húmida, onde também há quatro pulverizadores, uma sala de duches de agulheta e em forma de chuva, para senhoras; uma sala com iguais instalações, para homens, tendo mais um aparelho para duches circulares; uma sala para duches rectais,
vaginais, perineais e lombares, com uma banheira de mármore para imersão; uma sala com quatro inaladores e pulverizadores e dois aparelhos para duches nasais e auriculares. A parte central do edifício e ocupada por um espaçosíssima sala em estilo oriental, que constitui a sua edificação mais luxuosa e esmerada, podendo mesmo dizer-se de aparência sumptuosa. Ao centro desta sala está uma enorme piscina de forma circular, contendo água do mar, e destinada a exercício de natação. Em dezoito gabinetes construídos com todo o esmero e mobilados correctamente, estão outras tantas banheiras de mármore, em que se ministram os banhos de água termal, de água do mar e de água comum, conforme a prescrição clínica.” Quando foi constituída a Sociedade Estoril Plage, pelas mãos de Fausto Cardoso de Figueiredo e com o firme propósito de transformar o Estoril na mais conceituada das estâncias turísticas Europeias, nova intervenção ocorreu no edifício termal e as águas, já conhecidas e de reconhecido mérito terapêutico um pouco por todo o lado, transformaram-se em mais uma das potencialidades que o Estoril se empenha em aproveitar. Numa das publicações científicas da época, que a propaganda da Estoril Plage transforma numa espécie de panfleto promocional das águas termais, a nascente do Estoril aparece com uma descrição completa e detalhada, demonstrando a enorme qualidade e as muitas potencialidades que urgia aproveitar: “L’établissement thermal actuel, luxueux et confortable, est installé dans un édifice spécialement construit dans le but auquel il est destine. Il se compose d’un sous-sol et de deux étages. Dans sous-sol e tau rez-de-chaussée sont les 40 cabines de bain construites en porcelaine écossaise, les sales de repos, une piscine, la sale de gymnastique et de mécanothérapie, etc. Au premier étage, dans l’aile sud du bâtiment est installe L’Hôtel du Parc. On administre dans cet establishment thermal des bains d’immersions vulgaires, des bains d’eau minérale e salée, des bains carbo-gazeux e de bulles d’air, des bains avec douche sous aquatique et avec irrigation vaginale, des douches écossaises, refroidies, chaudes, froides, circulaires et en pluie,
des inhalations, des pulvérisations et des douches nasales. On y fait aussi des applications de diathermie, de rayons ultraviolets et des courants électriques, les bains de lumière généraux et locaux, les massages, les douches d’air chaud et diverses formes de mácanothérapie ». Para além das Termas do Estoril, existiam ainda, um pouco mais abaixo junto à região de São João do Estoril, os Banhos da Poça, um estabelecimento que utiliza a mesma nascente de água que alimenta as piscinas principais, mas que teve sempre uma utilização mais humilde. Pouco tempo depois da realeza e da alta aristocracia se instalarem nas zonas nobres de Cascais e do Monte Estoril, a burguesia procurou um local para os seus tempos de veraneio. Entre a Poça e a Cadaveira, junto a um grupo de modestas habitações, nasceu com pompa e circunstância a povoação de São João do Estoril O edifício dos Banhos da Poça, ainda hoje existente, é o ex-libris principal daquele que foi o primeiro passo para a construção da Costa do Sol. Quando Luís Filipe da Matta e Carlos Tavares, em 1890, constituíram uma sociedade para explorar os recursos hídricos da zona da Poça, onde era possível encontrar águas com propriedades medicinais notáveis, que curavam as doenças de pele e o reumatismo, mal imaginavam o contributo que estavam a dar para a constituição daquilo que hoje é comummente designada como a Vocação Turística do Concelho de Cascais. De facto, e apesar desta iniciativa ter surgido como uma espécie de resposta burguesa à aristocrática pois a Companhia Monte Estoril, que algum tempo antes dera início à urbanização do antigo Pinhal da Andreza (hoje a localidade do Monte Estoril), o núcleo habitacional que envolvia os Banhos da Poça já existia há algum tempo. No entanto, pela condição social e política dos seus habitantes, e também pelo carácter pouco ostensivo das suas casas, era considerado espaço de importância inferior no contexto da vivência social portuguesa do final do Século XIX.
Muito embora as águas da Poça fossem conhecidas desde há muito, existindo notícia do seu aproveitamento formal desde meados do Século XVIII, quando ali se construiu um modesto balneário, somente com Luís Filipe da Matta e o seu sócio se procedeu ao seu correcto aproveitamento. No início da última década do Século, edificou-se no local do antigo balneário um moderno edifício torreado e com ameias, ao jeito do carácter romântico que caracterizava a arquitectura de então. Interiormente, possuía grande qualidade terapêutica e condições logísticas que o colocavam entre os melhores do Mundo inteiro. Os quartos de banho com tinas de mármore, onde os doentes desenvolviam a terapêutica prescrita pelo Dr. Carlos Tavares – discípulo do famoso médico Sousa Martins – levavam longe a fama da qualidade daquele espaço, que possuía ainda um majestoso salão com 200 m2, um amplo estrado com um piano e uma mesa de bilhar e dois terraços com magnífica vista sobre a Baía de Cascais. De acordo com notícias da época, são milhares os visitantes que anualmente procuram a localidade de São João do Estoril. Foi precisamente com a criação dos Banhos da Poça, empreendimento digno de uma nota especial pelo cuidado que os seus promotores colocaram na sua idealização, na sua concepção e na sua promoção, chegando a editar opúsculos de grande qualidade onde se publicitavam as virtudes das águas que utilizavam, que a povoação envolvente começou a crescer. No dia 22 de Junho de 1890, como relatam Branca Colaço e Maria Archer nas suas “Memórias da Linha de Cascais”, o Presidente da Câmara Municipal de Cascais – Jaime Artur da Costa Pinto – inaugura formalmente a povoação. Para celebrar o acontecimento, realizou-se no Chalet Brito uma grandiosa festa, que reuniu a grande maioria dos habitantes da recém criada São João do Estoril. De acordo com Raquel Henriques da Silva, que teve acesso a fotografias do evento, o acto decorreu com carácter solene, tendo mesmo pavilhão real para acolher o Rei Dom Carlos e a sua esposa a Rainha Dona Amélia.
Pouco tempo depois, a viúva de António Marques Leal dá início à construção “por sua conta”, da estrada de ligação do apeadeiro de São João à zona da Cadaveira, dando ensejo à criação daquele que depressa se tornará o mais importante núcleo construído da moderna localidade. Para a já mencionada investigadora Raquel Henriques da Silva, São João fica a dever o seu crescimento à abnegada intervenção de um grupo de endinheirados beneméritos que ali se instalou. A suas expensas, e procurando ultrapassar as dificuldades logísticas e financeiras do município cascalense, homens como Luís Gonzaga Reis Torgal, Manuel José Martins Contreiras, Watts Garland e Alfredo Júlio Brito, foram urbanizando e embelezando a localidade, a eles se ficando a dever grande parte dos modernos arruamentos de São João, bem como a colocação do mobiliário urbano que transformou a face da povoação. Sem controle oficial das entidades competentes, e crescendo ao ritmo dos gostos pessoais dos seus ilustres proprietários, São João do Estoril vai conhecer assim uma enorme diversidade de estilos e uma originalidade construtiva que dificilmente encontra paralelo no território português, transformando aquele espaço num centro urbano interessante e completo. Apesar de os Banhos da Poça terem sido abandonados pouco tempo depois, passando mais tarde à posse da Santa Casa da Misericórdia de Cascais, a quem continuam a pertencer, foram eles que despertaram a atenção dos munícipes daquela época, transformando-se numa espécie de cadinho que contribuiu para o florescimento do turismo português. Muito embora sejam hoje pouco conhecidos dos Cascalenses, e quase totalmente desconhecidos dos muitos turistas que permanentemente nos visitam, os Banhos da Poça são indubitavelmente uma das mais valiosas peças do património arquitectónico Cascalense. O uso terapêutico das águas, e mais tarde a sua promoção turística, não teriam sido possíveis sem que se
concretizasse o projecto global que Fausto Cardoso de Figueiredo traçou para o local. As suas características e abrangência, bem como a escala a que foram projectadas as inúmeras intervenções que consubstanciaram a sua concretização, fazem deste Estoril um local que transcende largamente as suas características naturais e se assume como destino de excepção num Mundo ávido de qualidade. Para além da paisagem e das suas águas, complementadas com a situação geográfica atrás descrita, o Estoril possui ainda uma espécie de microclima excepcional. A fama desta sua característica, que já no Século XIX se dizia que impedia os sapatos de ganharem bolor e os pregos de enferrujarem, acabou por subverter por completo todo o projecto, dando forma a um aumento quase exponencial da sua aura mítica de local irrepetível em Portugal. Dados oficiais da actualidade apontam para cerca de 300 dias de Sol por ano no Estoril, contrastando largamento com os cerca de 230 que, em média, caracterizam o resto do País, e com os pouco mais de 150 que se assumem como a média noutras partes da Europa. O Sol, numa primeira fase conjugado com a praia, foi o primeiro atractivo de fulgor turístico Estorilense, principalmente durante a fase em que tais características, que hoje se encontram amiúde com preços muitos mais atractivos em localizações exóticas por este Mundo fora e que nessa altura estavam ainda fora do alcance dos Europeus, se assumiam como principal mote do viajante. Conjugadas depois com a paisagem irrepetível, com um património cultural riquíssimo, com a proximidade a Lisboa e com as suas águas especiais, depressa o Estoril consegui singrar nesta área nova que deu origem a um Portugal moderno e alternativo. Para além do número elevado de dias de Sol, outra das características especiais do Estoril prende-se com a sua temperatura ambiente. Fresca no Verão e amena no Inverno, com temperaturas que raramente ultrapassam os 30º Centígrados durante o Estio e os 12-13º Centígrados no pico da
invernia, o Estoril usufrui ainda da brisa fresca que lhe chega do Oceano Atlântico conjugada com o sopro mais frio que vem do Norte a partir da Serra de Sintra. Com estas temperaturas, que comparativamente com as da generalidade dos países Europeus quase se podem considerar tropicais, o Estoril possui as condições de excelência para a prática de um vasto conjunto de desportos de ar livre que, conjugados com o lazer puro e simples, complementam a sua oferta e o transformam num atractivo adicional para visitar o local. O Golfe, a vela e outros desportos náuticos, associados ao ciclismo e a vários desportos radicais, são ainda complementados com a proximidade à Serra de Sintra, hoje transformada num parque natural que, para além de atractivo reservatório de equilíbrios ambientais, é também palco privilegiado para desportos e actividades de natureza que hoje são um dos principais atractivos para viagens de curto alcance dentro de uma Europa cada vez menos distante. Se a tudo isto juntarmos estrategicamente a proximidade a Lisboa, com o seu aeroporto internacional de cidade que se situa a cerca de meia-hora dos hotéis Estorilenses, e bem assim os cinco minutos que o separam da Vila de Cascais, vemos depressa que o Estoril está dotado de todo o tipo de ofertas que permitem ombrear com os destinos turísticos principais. Como muito bem pensou Fausto de Figueiredo quando para aqui veio morar, o Estoril precisa somente de ser pensado no seu conjunto para que possa ser promovido com a excelência que sempre mereceu. Nos dias que correm, em que o Centro de Congressos está construído e tem sido gerido de forma pujante; em que o Casino Estoril se assumiu já como grande referência não só em termos Nacionais como também internacionais; em que as novas termas oferecem um produto de luxo conjugando as suas virtudes terapêuticas com as mais modernas práticas de SPA e welness; em que a oferta hoteleira e de golfe tem na região um dos maiores índices de qualidade; e que num raio de poucos
quilómetros temos museus, um hipódromo, uma marina, um centro de ténis, um centro cultural, vários centros históricos excepcionais, e uma grande capital, então facilmente percebemos que temos em mãos uma das maiores preciosidades deste nosso Portugal…
O Estoril Antes do Seu Tempo Antes de ser Estoril o Estoril era estéril… dizem alguns livros e repetem vezes sem conta os antigos guias turísticos que promovem a região. Mas não é verdade. O Estoril antes do tempo histórico, quando os primeiros homens pisaram a terra, é um espaço pleno de actividade e de motivos de interesse, cujos vestígios subsistiram e são hoje pontos-chave numa visita à região. Das Grutas Artificiais de Alapraia até às Villae Romanas, são muitos e variados os pontos de interesse que fazem parte do repertório de visita ao Estoril e que, mercê do trabalho de investigação de historiadores e arqueólogos é hoje bem conhecido e está acessível a qualquer visitante. A maior contrariedade relativamente ao passado mais longínquo do Estoril prende-se com o facto de a grande maioria das intervenções arqueológicas que permitiram conhecer os seus vestígios ter acontecido num período já muito recuado do tempo. De facto, por exemplo no que aos actuais jardins do Casino diz respeito, são conhecidas as histórias de vários investigadores que, a troco de cigarros ou garrafas de cerveja, recebiam os artefactos que se iam encontrando à medida em que as obras iam decorrendo. Os vestígios arqueológicos que nos mostram como era o actual Estoril antes do período mais recente da sua História, para além de estarem espalhados por vários museus em muitas zonas do nosso País, foram recolhidos de forma indevida, muito descontextualizados e num momento em que a actividade arqueológica Portuguesa se pautava por algum amadorismo e por pouco conhecimento. Apesar disso, e pese embora alguma inexactidão que resulta das dificuldades atrás mencionadas, o certo é que é possível perceber que as primeiras comunidades humanas devidamente sedentarizadas e organizadas se instalaram no Estoril no final do quarto ou logo no início do terceiro milénio
Antes de Cristo. É dessa época longínqua, quando os primeiros grupos de homens encontraram nesta região o conjunto de características climáticas e estratégicas que a tornaram atractiva para a fixação das suas famílias, que datam as principais necrópoles Estorilenses e, sobretudo, os vestígios mais interessantes e com maior potencial turístico que existem na região. A importância dessas peças, bem demonstrativa da forma como o estabelecimento dos grupos humanos obedeceu a critérios de qualidade que, na prática, foram os mesmos que o Estoril moderno procura estabelecer, transcende largamente o âmbito local, uma vez que, para além de nos permitirem compreender a forma como se consolidou a Pré-História Cascalense, são também demonstrativos de uma determinada capacidade inveterada dos que aqui habitam para atingirem patamares de desenvolvimento cultural que ombreiam com o que de mais avançado existe no Mundo desse tempo. Muito embora existam poucas noções sobre a localização dos espaços de habitação nesses tempos, o certo é que os vestígios fúnebres, nomeadamente as grutas artificiais que hoje já se conhecem na Alapraia e em São Pedro do Estoril, demonstram uma arreigada proximidade entre os espaços e as pessoas, só possível se pensarmos que o dispêndio de energia e de tempo necessário à construção desse tipo de monumentos, para além de demonstrar o grau de desenvolvimento das estruturas simbólicas associadas ao culto dos mortos e, por isso, de desenvolvimento social das comunidades, mostra também que existiria uma capacidade de entendimento e de conhecimento do território que torna possível o estabelecimento no local ao longo de várias gerações e lapsos de tempo longos e profícuos. Como é evidente, qualquer forma de ocupação efectiva do território exige capacidade para exploração das potencialidades do local e, naquilo que é hoje o espaço Estorilense, os locais localizados no actual centro da povoação, junto às Avenidas Aida e Clotilde, no espaço onde está construído o Casino Estoril e onde estão os jardins, seria aquele que melhor se adequaria a esse efeito. Seria certamente aí que se
localizariam as zonas de assentamento populacional, pressuposto que é corroborado pelas notícias dos achamentos que aí aconteceram durante as obras de construção das estruturas turísticas que hoje conhecemos. Um dos principais motivos de interesse desta época longínqua na compreensão do Estoril do presente relaciona-se directamente com a forma como evoluiu estruturalmente o pensamento dos que há tanto tempo habitaram este espaço. Se numa primeira fase foram exclusivamente as condições naturais oferecidas pelo território que condicionaram as escolhas feitas pelas gentes, procurando sempre os espaços em que o equilíbrio entre o dispêndio de energia consumido na angariação de alimentos e os consumos calóricos fossem mais eficientes, o certo é que rapidamente a morfologia e o enquadramento dessa ocupação começou a alterar-se. A funcionalidade dos objectos e a dinâmica dos espaços, dependentes de acções práticas que se prendem com o quotidiano e com a vida, deu lugar a processos de paulatina ritualização que, retirando o cunho prático àquilo que se fazia, subvertiam a lógica da ocupação para a dotar de aspectos que favoreciam a vida mental. É este o caso, por exemplo, das famosas sandálias votivas de calcário, encontradas na necrópole artificial de Alapraia que, exigindo uma técnica cuidada e uma atenção aos detalhes de longe muito superior àquela que seria necessária para criar igual artefacto mas em pele e com possibilidades reais de uso o dia-a-dia, demonstram bem a forma como estava desenvolvida essa componente cultural por parte daqueles que habitavam o Estoril de então. A possibilidade de terem sido manufacturadas ao longo de várias gerações, ou seja, de vidas que se seguiram a outras vidas até estar completo o objecto, mostra bem quão arreigado seria o sentimento de pertença ao grupo e, da parte deste, relativamente ao espaço, para que fosse possível dedicar este tempo a uma actividade teoricamente supérflua. Por outro lado, o tempo dedicado à criação do artefacto, necessariamente subtraído ao cumprimento das obrigações práticas do quotidiano, como caçar, plantar ou pescar, obrigava à existência de uma estrutura
social de apoio consciente e organizada, facto que denota a necessidade de uma organização bem estruturada e, sobretudo, de uma capacidade dinâmica de entendimento da importância do tempo votado à simbologia. A ancestralidade sagrada de determinadas zonas do actual Estoril., nomeadamente associadas aos espaços de enterramento e culto, é assim transversal à História da localidade, determinando um percurso pleno de motivação que pode sustentar, depois de devidamente preparado, um pólo acrescido de interesse para promover o destino Estoril. As sandálias votivas de calcário, pela sua forma e expressão muito mais adequadas a viagens astrais do que propriamente a viagens físicas, são demonstrativas da capacidade de perceber o Mundo que rodeava este protoEstorilenses. E esse interesse, sustentado no conhecimento do Mundo e das coisas, é transversal a toda a humanidade ao longo de todos os tempos, sendo, por isso mesmo, um dos produtos turísticos que mais crescimento tem registado ao longo dos últimos anos. Na Alapraia, as grutas artificiais inserem-se na tipologia a que os arqueólogos chamam de ‘tipo coelheira’, associando a sua forma física ao espaço de habitação do coelho. Na prática, o espaço escavado na rocha, com um corredor de acesso baixo e estreito e com uma câmara de deposição em forma arredondada, associa-se à forma física da fêmea humana, definindo um tipo de ritualística em que o mote se coloca no útero materno e no culto matrístico, ou seja, na conjugação da componente lunar da humanidade com a necessária definição da componente pós-vida que tanta importância tem para a psique humana. Esta formulação ritualística, pela complexidade que apresenta e pela forma como determina a evolução de pensamento do grupo que a concretiza, é em si própria suficiente para demonstrar a forma como estas comunidades já possuíam uma organização social determinada pela noção transcendente de divino, e dessa forma, já teriam também a complexidade cultural que abrange a espiritualidade e a religião.
Nas grutas de Alapraia, pela forma e pelo rito a elas associado, é possível encontrar o cadinho da vivência cultural da comunidade Estorilense actual, com a modernidade de pensamento que a caracteriza e, simultaneamente, os valores e princípios que determinam os sistemas mentais da generalidade dos povos que compõem o Mundo Ocidental. São, por todos estes motivos, espaço de potencial extraordinário que exigem um tratamento diferenciado e uma promoção assente no carácter único e irrepetível que lhes dá forma. Um outro aspecto importante, quando abordamos este Estoril tão antigo, tem a haver com o enquadramento das grutas de Alapraia e de São Pedro com outras análogas que existem um pouco por toda a Europa mediterrânica. E o certo, apesar do seu carácter ancestral e da natural ausência de comunicações que caracterizava essa época, é que eles partilham a totalidade dos princípios que norteavam essas construções e isso, abarcando o plano internacional no qual o Estoril sempre foi importante, denota a existência de contactos efectivos e de trocas culturais permanentes entre esses diversos espaços. Ou seja, o Estoril cosmopolita que hoje conhecemos, no qual as pessoas de todos os credos, cores e origens sócio-culturais se cruzam normalmente nas ruas, restaurantes e hotéis locais, existe já há praticamente cinco mil anos, sendo desses contactos, estabelecidos em rede desde o princípio dos tempos, que se criam os hábitos que hoje ajudam a caracterizar a região. Na abordagem turística a este Estoril Pré-Histórico importa, por isso, ser capaz de definir com exactidão o conjunto de potencialidades que, resultando do devir histórico que deu forma ao lugar, acabam por ser hoje os vestígios palpáveis das existências de outros tempos. E que esses, por seu turno, são precisamente os factores mais importantes num plano promocional assente não tanto nos produtos que outros destinos conseguem oferecer em melhores condições (e possivelmente mais baratos), mas sim através de um plano de comunicação mais alargado onde se insiram estes elementos
únicos que são, por si próprios, motivo suficiente para determinado tipo de visitantes viajarem até ao Estoril. As Grutas de Alapraia, por exemplo, são uma excepcional forma de o fazer. As estruturas físicas existentes, com as câmaras praticamente intactas e ainda para mais sendo actualmente propriedade municipal, e um vasto conjunto de artefactos que as complementam e que se encontram literalmente encaixotados nas catacumbas do Museu dos Condes de Castro Guimarães, em Cascais, são suficientemente atractivos para servirem de mote a viagens científicas e culturais de qualidade excepcional. Não podem, como é evidente, continuar no estado de abandono em que hoje se encontram. E, perante o conjunto de operadores que trabalha e “vende” lá fora a região, será fundamental transmitir-lhes com determinação o valor e a significação de um sítio deste género. Se a isso conjugarmos a existência no Concelho de Cascais em geral e no Estoril em particular de diversas instituições directamente relacionadas com a academia internacional e a vida universitária, depressa perceberemos que existem os laços, os canais de comunicação, os especialistas locais que conhecem e percebem os monumentos, e as estruturas empresariais que as podem rentabilizar, que são mais do que suficientes para transformar aquele recanto abandonado da Freguesia do Estoril num dos mais extraordinários pólos de atracção turístico-cultural de Portugal. Em tempos mais recentes, depois de as sociedades se terem complexificado e as estruturas humanas que as compõem se terem moldado a forma novas de organização social, diferenciáveis principalmente através do surgimento de estruturas proto-estatais que condensam numa chefia as principais determinações que promovem a evolução e o progresso, existem poucas notícias daquilo em que se transformou o Estoril. Sabe-se, no entanto, que em termos rituais e sobretudo nos espaços de enterramento, se mantêm incólumes as estruturas de pensamento anteriores, isto porque nas grutas
artificiais, onde a deposição dos mortos obedece a regras estritas e a princípios de iniciação dos quais depende a própria organização social do mundo dos vivos, o enterramento dos mortos vai acontecendo de forma ininterrupta ao longo de diversas épocas e culturas. À medida em que os milénios vão passando e os grupos humanos evoluem nas suas formas de pensar, os espaços sagrados são sempre os mesmos, alterandose o ritual e o conjunto de artefactos que o compõem, mas mantendo-se a mesma especialidade, facto que denota alguma transversalidade na forma como se determinam os caminhos dos grupos.
O Pinhal da Andreza e o Monte Estoril Situada estrategicamente junto ao litoral Cascalense, a povoação do Monte Estoril é certamente um dos locais que merece um maior cuidado de observação e análise. A sua importância, mais do que pelo enorme e valioso espólio arquitectónico e cultural que possui, vem-lhe da sua situação actual, composta por partes de um cenário simultaneamente abandonado e requintado, cruzando laivos de uma existência pouco linear da qual está muitas vezes afastada a lógica mais pura. A situação actual do Monte Estoril, agravada por um desconhecimento paulatino relativamente às suas origens, é assim de perfeito desentendimento histórico, sociológico, cultural ou mesmo comercial, uma vez que, neste outrora rico e característico interstício da nossa linha de costa, é possível encontrar uma incompreensível mistura de novas edificações, inseridas numa arquitectura moderna e incaracterística, com velhos e esplendorosos edifícios de finais do século passado, excelentemente bem conservados e mantidos e que, por seu turno, possuem nas vizinhanças restos semi-destruídos do Monte Estoril de outrora, com a pujança e o glamour do passado transfigurado numa existência incongruente e enigmática. Os interesses de todos aqueles que por ali habitam ou simplesmente passam, estão assim em confronto permanente, tornando também este espaço, outrora conhecido pela sua vivência comunitária, num sítio sem memória, sem passado, sem presente e sem perspectivas de futuro. Para abordar de forma sentida o Monte Estoril de hoje, após vários períodos mais ou menos prolongados de incúria e destruição exacerbada, interessa fundamentar as observações que pretendemos em três perspectivas diferentes, afinal de contas as únicas que o tornaram naquilo que hoje representa: o local, a história e as suas gentes.
Em primeiro lugar, este sítio é o resultado de um processo recíproco de interacção entre o Homem, o meio e a história que, em conjunto, fundaram uma povoação em que o caos aparente se transforma em harmonia, e em que o sentido inerente à sua disposição, embora deixando transparecer o êxito das acções que ali foram levadas a efeito, depressa se transforma em acaso e insucesso, factores onde assenta, com raízes profundas o sucesso de outrora. O Monte Estoril é, acima de tudo, uma mistura quase incompreensível de um cosmopolitismo lusitano com um aparente portuguesismo estrangeirado, conjugados com uma acção de reciprocidade aparentemente caótica, mas que mais não é do que o cume da montanha do paradoxo. Contradição, paradoxo e acaso são assim as principais formas que orientaram a criação deste outrora considerado “paraíso terrestre”, incompreensível à mente humana da actualidade sempre muito sujeita às pressões quotidianas da vida moderna, mas plena de sentido quando observada pelos eternos românticos do fim do século XIX. O sentido do Monte Estoril, bem presente em todos aqueles que daqui se consideram, muito embora possam ter nascido no ponto mais nórdico da Europa ou no extremo sul da Oceânia, está assim patente e escondido; patente para quem o não procurar, perdendo-se no seio das ruelas ladeadas de jardins; e escondido, de todos os olhares atentos que por ali procurem observar algo de mais vigoroso e rico. Torna-se assim difícil, perante esta pequena introdução, mencionar aquilo que foi, que é e que poderia vir a ser o Monte Estoril, uma vez que não existe um só, mas muitos, de acordo com a perspectiva de quem o observa. Tal como Cascais e as pequenas aldeias saloias que compõem o seu concelho, este pequeno aglomerado populacional vale por aquilo que representa, um símbolo da Portugalidade e uma ideia de algo que consegue existir para além de tudo aquilo que o Homem possa imaginar. Dizia em tempos que já lá vão há muitos anos o sábio Santo Agostinho (1), que o tempo já não existe. O passado,
segundo o próprio, não o podemos observar pois já passou, tendo deixado de existir; o futuro, ainda não veio, pelo que não existe também; e o presente pela fugacidade que o caracteriza, ainda não é presente quando nele pensamos porque ainda não veio, e já é passado quando esse momento passa, não podendo assim existir também. O mesmo se passa com o Monte Estoril, patente na mente de quem o imaginou, mas diferente daqueles que o programaram. O Monte Estoril é assim algo que não existe, existindo eternamente, fruto do pensamento dos Homens, da vontade dos Deuses e adaptado àquilo que cada um dele espera. A recuperação do Monte Estoril, mais do que um exercício de reordenamento urbanístico que deverá estender-se a outras localidades do concelho de Cascais, passa sobretudo pela requalificação conjugando aqueles três factores que já mencionámos. A programada substituição da população Monte Estorilense por escritórios e serviços, tal como foi definido num Plano Director Municipal de Cascais de má memória, é retirar deste espaço grande parte da sua marginalidade, mas é também matar definitivamente uma vivência característica, irrepetível e sã, que sempre norteou a existência das populações que aqui habitaram. Se tal assunto, numa primeira análise, parece não interessar muito para o desenvolvimento harmonioso da Área Metropolitana de Lisboa e do próprio País, imaginemos a actuação análoga de muitas outras câmaras municipais, sem qualquer espécie de representatividade efectiva, transformando Portugal num espaço turístico sem qualquer espécie de atractivo, e de onde estão ausentes todas as características da Portugalidade… A pérola que o Monte Estoril ainda é exige uma abordagem dinâmica e globalizada, que conheça e faça reconhecer as inúmeras potencialidades excepcionais deste local tão especial. O Monte Estoril de outros tempos oferecia o sol e o mar, conjugando tais factores com a beleza da sua paisagem e com o resplandecente movimento social que apresentava. O
Monte Estoril de hoje não podendo apelar aos mesmos atractivos que se encontram amiúde noutros locais e quase sempre com custos mais reduzidos, tem obrigatoriamente de ser capaz de se reconstruir a partir do carácter irrepetível das suas características intrínsecas. Isto significa, numa altura em que o movimento turístico flui muito mais em torno das emoções e das memórias afectivas do que propriamente a partir dos velhos arquétipos que deram origem a este sector de actividade, que espaços como este, que a Companhia Monte Estoril sonhou há praticamente 130 anos, são uma espécie de cadinho no qual é possível desenvolver relações empáticas que gerem novos focos de interesse. O apelo, tendo em conta esta orientação, é para que sejamos capazes de recriar um Monte Estoril completamente novo mas com a capacidade de sentir velho ao mesmo tempo, no sentido de avançar contribuindo também para a recriação de Cascais e da imagem externa de Portugal! O contributo dos Estoris para o cumprimento deste desiderato, centrado numa abordagem completamente alternativa às potencialidades atrás mencionadas, exige que o sector do turismo, sempre ávido de formas novas de pensar o futuro, seja capaz de se reinventar, fomentando a identidade local e uma forma plena de cidadania. As abordagens que têm sido levadas a efeito sobre o Monte Estoril, sejam elas de cariz turístico, cultural ou mesmo social, possuem até hoje um elemento comum: o facto de assentarem, em exclusivo, sobre a dicotomia entre o património edificado e as pessoas que ali desenvolveram as suas actividades. De facto, se atendermos ao Monte Estoril de hoje, depressa nos aperceberemos de que essa relação recíproca entre as edificações e as pessoas que as utilizaram são a peça-chave para a compreensão daquilo que foi esta pequena povoação, outrora conhecida como a Côte d' Azur Portuguesa. No entanto, e porque de uma perspectiva geral pretendemos tratar, difícil seria deixar de abordar a temática directamente relacionada com
o meio envolvente que, como se usa hoje dizer, diz respeito a todos, cabendo a todos um papel único na sua salvaguarda. O meio ambiente do Monte Estoril, pelo menos aquele que hoje encontramos, nada tem a ver com o outro que foi encontrado por José Jorge de Andrade Torrezão, o primeiro dos grandes construtores dos chalés de veraneio do Monte. Segundo Branca Gontha Colaço e Maria Archer (2), numa das mais sentidas obras escritas sobre os concelhos de Cascais e Oeiras, e que, à laia de permeio aconselhamos vivamente a leitura e a reflexão sobre os assuntos focados, revelam ter sido o território actualmente ocupado pela povoação em questão, completamente deserto, apenas ornado de vastas manchas verdes de pinheiros que, inclusivamente, acabaram por influenciar a própria toponímia antiga do sítio, que se chamou, durante muitos anos, simplesmente Pinhal da Andreza: «Solidão absoluta. Nem casa nem choupana, Pã vagueava no seu domínio como um verdadeiro deus. Não se ouvia balido de ovelha nem flauta de pastor. O mar inundava, com seu canto majestoso, a solidão magnífica. Os pinheirais gemiam em uníssono as saudades dos temporais». Estudar o Monte Estoril de hoje, pensando demoradamente sobre a razão de ser dos diversos chalés de diferentes características inexplicavelmente salpicando as antigas matas de pinheirais e ocupando progressivamente as apetecíveis colinas, é sobretudo um esforço de reconstituição daquilo que foi este mesmo território antes de possuir as actuais edificações. Como tal, qualquer estudo que se faça sobre a arquitectura e o urbanismo do Monte Estoril terá de possuir, a suportá-lo, uma abordagem mais alargada que permita perceber, em termos de colocação e divisão do espaço, qual a lógica subjacente ao desenvolvimento que se efectivou durante a última década do século XIX. Como é óbvio, aqueles que primeiro chegaram a este sítio, encontraram uma disponibilidade total de ocupação do espaço, disponibilidade essa patente devido ao total alheamento dos construtores face ao enquadramento do conjunto edificado, uma vez que o mesmo não existia;
alheamento ainda face a possíveis sujeições legais, pois não existiam parâmetros rígidos nem definidos que orientassem os projectos (quando existiam os projectos); e alheamento, afinal de contas pois o facto de o terreno não estar ainda muito utilizado, permitia a escolha precisa do local para criar a nova habitação, bem como a forma através da qual se desenvolveriam os arruamentos e os jardins que a iriam circundar. Actualmente, quando alguém escolhe um terreno para edificar uma habitação, tem obrigatoriamente de ter em conta as casas construídas em redor, tal como os acessos e o seu estado, e a forma como o quintal se poderá articular com a edificação e com a rua, de modo a promover as necessidades da família ocupante e de melhor cumprir os objectivos para que foi criada. Tal facto, ao contrário do que sucedeu no Monte Estoril, ajudou a criar na actualidade uma certa monotonia de valores estéticos, facto que podemos observar nos novos bairros recentemente construídos, bem como nas vedações em tapume metálico que abundam em quase todos os quintais Cascalenses. A rua assume aqui uma função de mera passagem deixando de marcar significativamente o carácter do local, facto que é acentuado pela cada vez maior necessidade de privacidade, que vai alterar toda a estratégia das relações de vizinhanças e, assim, reestruturar a concretização histórica do povoado. No Monte Estoril, a ausência de construções foi motivo sobejamente suficiente para afastar dos primeiros edificadores todos e quaisquer receios de falta de privacidade, facto facilmente contemplável através dos muretes de baixa altura que circundavam as habitações. Por outro lado, a própria vivência social da época, fruto do enriquecimento abrasileirado de muitos burgueses lisboetas, criava a necessidade de promover a sociabilidade, facto que condicionou de modo perene as próprias características das ruas que tinham como principal função a de facilitar o acesso às novas edificações, mostrando, ao mesmo tempo, o esplendor de todas aquelas que ficavam na vizinhança.
As características das casas, bem como os pormenores que rodeiam a sua arquitectura, assumem assim um papel de verdadeiros documentos no que diz respeito à compreensão daquilo que foi a estrutura mental e social que esteve na origem do Monte Estoril. Os pequenos espantafantasmas, de ferro forjado e de formas arrojadas, muitas vezes aliados a janelas de águas-furtadas conjugadas com telhados de duas águas muito inclinados acentuando o seu carácter nórdico, mais não são do que características para serem admiradas do exterior, tanto mais que representavam a possibilidade de estas grandes famílias burguesas lisboetas usufruírem dos lucros que obtinham com as suas práticas comerciais e, assim, demonstrarem à aristocracia Cascalense, que continuava a veranear em Cascais sem qualquer espécie de condições, que o seu poderio económico lhes permitia usufruir de excelentes condições de férias, muito embora não fossem bem recebidos nas praias da moda frequentadas pela Família Real e pela generalidade dos membros da corte. Cascais mantinha nessa altura, praticamente todas as velhas estruturas que possuía muito antes de ser o local escolhido para o fim da época estival da corte. As casas, deterioradas por muitos anos de uso, e pelo completo desajustamento face às novas necessidades, só muito dificilmente se adaptavam aos usos modernos, sendo por isso bastante complicado, à grande aristocracia portuguesa, poder desenvolver umas férias na praia mantendo o estilo de vida que possuíam na capital. Pelo contrário, no Monte Estoril, a nova burguesia enriquecida, dada a facilidade que possuía na construção dos seus chalés, podia facilmente impor-se pela moda, aproximando-se assim daqueles que até aí tinham conseguido manter a supremacia do relacionamento da altasociedade portuguesa. Ramalho Ortigão, numa das suas mais conhecidas obras dedicadas ao acto de veranear, não deixa de acentuar que embora Cascais fosse a mais importante praia da Estremadura, possuindo até o palácio real, não deixava de sofrer com a falta de desenvolvimento urbano que a caracterizava (3):
«Como povoação, Cascais é a mais importante das praias da Estremadura. É cabeça de concelho. O número dos seus fogos é de cerca de 1.700 - exactamente o mesmo número que existia há cem anos, o que prova que Cascais, se não tem prosperado, também não tem decaído durante o curso do último século». Tal facto é ainda acentuado pela estagnação que caracterizava os preços pedidos pelas habitações na vila de Cascais: «[...] A renda das casas, que se alugam com mobília e louça durante os meses de temporada de banhos, com quanto não seja absolutamente elevada, é ainda pouco menos do que o preço porque as mesmas casas se venderiam, se alguém as comprasse, há quinze anos». O contraste entre a velha aristocracia portuguesa, desde sempre acompanhando a corte e possuidora de genes que se ligavam directamente a vários episódios importantes da História de Portugal, estava patente em muitas ocasiões ao longo do Verão, sendo de salientar o peso que tal diferença teve na forma como foi edificada a nova estância balnear do Monte Estoril, e esta, em época subsequente, na mais jovem Estoril. É ainda Ramalho Ortigão que, nas suas “Praias Portuguesas”, muito ao estilo da literatura Nacional da época, melhor descreve esta disfuncionalidade social, responsável por episódios caricatos, divinamente relatados por Ferreira de Andrade na sua “Vila da Corte” e que, pela sua importância na compreensão da ambiência e do enquadramento paisagístico do Monte Estoril, não hesitamos em transcrever: «As senhoras da burguesia destoam neste meio e não fazem bem em sujeitar-se ao contraste desse confronto, a não ser que não tenham levado as suas jóias, que não ponham senão vestidos velhos, que usem o mais simples dos penteados e que sejam despretenciosas e boas, - no qual caso todas as mulheres, qualquer que seja o seu nascimento e a sua categoria, são igualmente elegantes e distintas». Esta necessidade de mostrar aquilo que possuíam, valorizando assim a posição recentemente assumida em desprimor daquilo que eram as bases sólidas da aristocracia de
então, demonstra de sobremaneira as tentativas sucessivas que esta classe social desenvolveu com o intuito de se aproximar da elite social do País. Esses esforços, verificáveis quotidianamente através dos ornamentos e das jóias que procuravam ostentar, jóias essas que, na grande maioria dos casos não eram acessíveis à maior parte dos membros da aristocracia depauperada, causavam assim reacções cada vez maiores de encerramento dentro dos diversos grupos, que se protegiam desta forma das investidas cada vez mais audaciosas que eram promovidas pela burguesia. Em termos mais simbólicos, era nas casas que se podiam encontrar os maiores vestígios da transformação social verificada em Portugal naquela época, sendo que, de entre todas as povoações deste País, o Monte Estoril é, com toda a certeza, aquela que maiores potencialidades de demonstração possui. As suas edificações, ornamentadas excessiva e excentricamente, promoviam o aparecimento de uma ambiência nova, facto que causou grandes transtornos à elite social vigente. As casas do Monte Estoril, principalmente aquelas que foram construídas com intuitos puramente de veraneio, são assim a face visível de uma terrível luta fratricida, que mais tarde culminou em Cascais na tomada de poder por parte das forças revolucionárias republicanas, fruto de um exacerbado ódio criado no seio de uma dicotomia que separava o Monte de Cascais, e depois do Estoril e das restantes povoações da costa litoral deste concelho. Em relação a esta luta, é ainda Ramalho Ortigão quem na obra citada, melhor descreve a forma como se procurava a todo o custo, furar as apertadas teias da modernidade social, servindose de um saber instituído, mas também utilizando os estratagemas que derivavam na recente ascensão financeira do grupo: «Os homens novos que quiserem fazer o que se chama a entrada no mundo, a investidura social, devem procurar esta praia para abrir a brecha, para penetrar na praça. Aconselharlhes-emos nesse caso que não emitem os homens que acompanham essas senhoras e são seus pares. Não, caro leitor inexperiente e amigo! Se quiseres ser recebido nesta sociedade
portuguesa - em que se pegam os touros, em que se toca a guitarra, em que se dança o fado - não toques o fado, não pegues os touros, não bebas, não fumes, não deites para trás o chapéu dando-lhe um piparote na aba. Tudo isso fazem os fidalgos, mas tu, burguês, nunca parecerás um fidalgo se o fizeres. Parecerás apenas um moço de cavalariça e nenhuma dessas senhoras consentirá em que lhe apertes a mão. Não tenhas também muito espírito, nem maneiras muito acentuadas, nem opiniões muito expressivas. Sê o mais que possas fácil, complacente, obscuro, nulo. Vai à missa, lê o teu ripanço, está de joelhos na igreja, confessa-te uma ou duas vezes, veste-te como um padre ou como um saloio, dá-te um ligeiro ar idiota, inofensivo, pascácio. Terás um sucesso infalível. As senhoras receber-te-ão com agrado, como um auxiliar que não que não compromete, como um passivo, como um neutro. Apresentarte-ão, rindo, às suas amigas. Pedir-te-ão os pequenos serviços suaves que se encarregam aos procuradores e aos capelães: que chegues uma cadeira, que vás buscar as luvas, o lenço ou o chapéu de sol que esqueceu, que acompanhes esta, que vás chamar aquela, que deites no correio uma carta para aqueloutra, etc.; terás uma incumbência de responsabilidade nos pic-nics, nos passeios em burro, nas soirées de subscrição; serás o ponto ou o contra-regra, o comparou o criado que traz a carta nas representações de salão. Converter-te-ás finalmente num personagem que será lembrado, requerido, utilizado. No ano seguinte àquele em que por estes meios te houveres introduzido na sociedade, poderás então tocar guitarra, enrolar nos dedos, em pleno clube, diante das senhoras, um pestilento cigarro de papel, arrojar o chapéu da testa para a nuca com o piparote fadista, e falar o calão - porque terás tomado posse, e principiarás a exercer o teu lugar de janota nacional, encartado e inamovível». A constante luta travada entre os membros da burguesia endinheirada portuguesa e a velha e empobrecida aristocracia de cepa, tiveram o seu ponto mais fulgurante na velhíssima vila de Cascais, que assistiu, em poucos anos, a uma
radical transformação urbanística. Para responder à chegada da corte, muitos houveram que resolveram escolher Cascais para estância de veraneio, e esses, quando possuíam as posses necessárias para tal efeito, não hesitavam em construir as casas ao estilo mais arrojado de então, servindo-se dessa construção e do seu esplendor para alicerçar a sua posição no espectro social nacional. É esse o caso, por exemplo do Palácio dos Duques de Palmela, construído de acordo com elevados parâmetros de qualidade e subordinado à experiência de arquitecto requintado e muito escolhido, com o intuito de fazer frente a uma ostentação que a coroa e a rainha dificilmente conseguiram suportar no seu mal-acabado palácio real adaptado da velha fortaleza de Cascais. O Monte Estoril, em momento subsequente vai servir de resposta desta nova classe burguesa ao atrevimento social da aristocracia, utilizando para tal os recursos que possuía em maior quantidade: dinheiro, ideias inovadoras e espaço livre. Foi sobretudo a conjugação deste capital imediato com a liberdade espacial que caracterizava o velho Pinhal da Andreza, que condicionou o aparecimento de uma povoação baseada em novos parâmetros urbanísticos, onde as dificuldades geográficas naturais, de acordo com o projecto de Carlos Anjos, se tornariam um incentivo essencial para a criação de uma ambiência que não existia em mais nenhuma parte do mundo. A construção do lago, e do aqueduto que traria a água da sua quinta de Vale de Cavalos, serve assim de exemplo para demonstrar quão importante era, para a época em questão, a ostentação da superioridade burguesa nacional, dispondo de verbas de valor e de força empreendedora, conseguindo tornar um desinteressante pedaço de terra, em mais um quase celestial povoado Cascalense. O cuidado posto neste empreendimento foi de tal ordem, que o próprio Carlos Anjos previu com todo o cuidado o enquadramento necessário à criação de um ambiente novo, preservando as espécies vegetais de maior valor e misturando-lhes os vestígios de outras espécies exóticas trazidas de diversas partes do mundo O ponto a que chegou esse
projecto foi tão profundo que o seu mentor previu ainda a cobertura das ruas com areia, como forma de promover a beleza e limpeza do sítio, bem como as aves que vagueariam por entre as ramagens viçosas e fulgurantes das espécies para aqui transportadas. O constante chilrear de pássaros mais ou menos conhecidos, misturado com o esplendor vegetal, completaria assim o conjunto fornecido pelas diversas edificações que possuíam também elas características que as tornavam únicas em todo o País. A complementar estes aspectos urbanísticos a Companhia Monte Estoril, no mesmo projecto, proibiu a construção de muros de grandes dimensões, complementando tais directivas com a obrigatoriedade da recolha de pedras das praias Monte Estorilenses para a sua construção. As copas das árvores, tocando-se sob o azul do céu, em conjunto com os muros rústicos de pedra natural, promoveriam assim a tal envolvência espacial que a burguesia necessitava para transformar a sua estância de veraneio num local onde a qualidade de vida fosse, de facto, altamente apetecível. Se no Monte Estoril foi possível criar uma povoação com estas bases, e que de facto se tornou única no mundo, tal se ficou a dever, em primeira análise ao envolvimento natural que lhe esteve na origem, sendo que a completa liberdade espacial, mesclada com as dificuldades geográficas que existiam em grande quantidade, promoveria neste sítio o nascimento de uma simbologia dinâmica e definitiva, transformando o Monte em algo de único que o devir histórico Cascalense não tem conseguido preservar.
Estoril Glamour O impacto da paisagem dos Estoris, seja no meio do denso matagal do Monte, das falésias extraordinárias da Poça os nos estonteantes jardins do Casino Estoril, raramente consegue salvaguardar o discernimento necessário para olharem atentamente ao nosso redor. Mas a grande questão, aquela que transforma por completo um passeio casual pelas terras maravilhosas dos Estoris, é que tudo faz mais sentido quando antes de iniciar o seu périplo, o viajante se detém durante alguns minutos a fitar a linha do horizonte e a observar a Vila de Cascais. De facto, foi em Cascais que tudo começou e foi em resposta aos problemas que a vila piscatória apresentava em termos do desenvolvimento que lhe trouxe a chegada da Família Real e da Corte em 1870, que se assistiu às primeiras intervenções no antigo Pinhal da Andreza. O carácter vincado do Estoril, baseado numa espécie de cenário prodigioso que se foi construindo a partir da estrutura mental romântica que acompanhou o final do Século XIX Português, prende as suas raízes mais profundas na perplexidade que representou para o País a chegada da Corte a Cascais. Ao contrário do que vinha sucedendo desde há muitos séculos, a Família Real optou por deixar Sintra no final do Verão para vir para Cascais onde o Rei Dom Luís se deleitava com os salpicos salgados da água do mar. A decisão de se instalar na até aí quase desconhecida vila situada no extremo mais Ocidental da Europa, surge envolvida em polémica e nalguma galhofa junto dos círculos socialmente mais favorecidos da moderna sociedade Lisboeta. É que enquanto que em Sintra, em Évora, em Mafra ou em Vila Viçosa a Corte se deslocava de palácio em palácio, instalando-se em edifícios deslumbrantes que davam forma à grandeza que se imagina que acompanha sempre a figura do Rei, em Cascais a Família Real ficava instalada no Palácio do Governador da
Cidadela que é, na sua diminuta expressão, o reaproveitamento das antigas instalações militares da velha guarnição… Mas a situação ainda se complica um pouco mais quando falamos do resto da Corte. As grandes famílias Portuguesas, habituadas ao fausto e à grandiosidade dos salões da capital, sentem-se obrigadas a vir para Cascais com os Reis e a Família Real, mas aqui chegadas, contrariamente ao que acontece noutros locais, não têm outro remédio senão instalarse nas minúsculas e velhas casinhas dos pescadores, trazendo consigo os serviços de refeições, toda a loiça, roupa de cama, etc. Nos primeiros dias depois da chegada a Cascais chegava a ser cómica a cena, com dezenas de criados trajados a rigor a esforçarem-se o mais que podiam para limpar e aconchegar os casebres Cascalenses que os pescadores locais lhes alugavam para a estadia de veraneio. Nas revistas da moda e até junto dos mais conceituados escritores da época como Ramalho Ortigão, são às dezenas as crónicas e as descrições deste inusitado momento. Cascais, povoação conhecida por ser “feia” e pelo ditado que corria de boca em boca e dizia “a Cascais uma vez e nunca mais”, sentava-se ao espelho e pinta-se como se fosse uma primeira bailarina de uma qualquer sala de ópera Europeia. Depois de tratada, e principalmente durante os meses em que por cá permaneciam os visitantes ilustres da capital, tornava-se o espaço da moda onde convinha ser-se visto pois disso dependia o êxito social do Inverno seguinte. A partir dessa altura, como se tivesse sido transformada num enorme palco de teatro, Cascais tornou-se a terra do fingimento. Fingia-se não sentir o desconforto dos casebres precários onde sangues ilustres eram consumidos pelos percevejos; fingia-se ter dinheiro que não se tinha ou, tendo-o, fingia-se ter um sangue azulíssimo… Era em Cascais que, depois de muito penar nos empregos e trabalhos árduos da capital, se gastavam as economias guardadas com esforço; e era também aí, em episódios caricatos e repetidos vezes sem conta ao longo dos anos, que se traçavam as alianças entre as famílias,
as estratégias empresariais e muitas vezes até os casamentos que deram forma a uma nova geração de Portugueses. No dia 30 de Setembro de 1899, poucos dias antes da morte do Rei Dom Luís e da subida ao trono do seu filho Dom Carlos, um acontecimento alterou por completo a situação da vila traçando, quase simultaneamente, o destino daquele que virá a ser o mais conceituado rincão turístico de Portugal. A inauguração do caminho-de-ferro entre Cascais e Pedrouços, atravessado diariamente por dezasseis comboios diários que circulavam a uma velocidade completamente inusitada para aquela época e ligavam a vilória piscatória directamente à capital, anulou a distância real existente entre esses dois pontos e aproximou definitivamente Cascais da cidade de Lisboa. Para além das alterações significativas que esse momento teve na redefinição da estrutura social da vila, o comboio trouxe também consigo todo um enorme conjunto de potencialidades que os grandes empreendedores da época imediatamente começaram a aproveitar. A primeira grande alteração visível na recémcosmopolita Vila de Cascais acontece na sua vertente urbana. Para facilitar e tornar digno o trajecto que a família Real percorria entre a estação de comboios e o Palácio Real, abriu-se uma nova avenida com largura e desenho suficientemente modernos para poderem estar à altura de tão importante acontecimento. A inauguração da Avenida Valbom, que imediatamente se encheu de novas casas, alterou radicalmente a fácies de Cascais, introduzindo-lhe um requinte urbano que foi essencial para a consolidação da sua vertente cosmopolita que tão importante virá a ser na definição do paradigma turístico dos futuros Estoris. O glamour do Estoril não tem, por isso, a haver directamente com as casas, os monumentos, os museus, ou sequer com as pessoas que lá moraram. Prende-se sobretudo com as estórias, que se assumem com ‘E’ porque não são História, mas compõem as emoções e as memórias que lhe dão forma.
Este Estoril nasce no plural. Não é um mas são vários. O Monte, onde Santo António não chegou mas onde as ruas e as casas transbordam de uma História muitas vezes sentida mas nunca contada; o Santo António Franciscano no qual os frades, acudindo pela pobreza, deram espaço a uma das mais requintadas terras de Portugal; São João onde a burguesia gastou o dinheiro novo que a vida facilitada da revolução industrial veio criar; São Pedro que assumiu a paternidade de um local onde a esterilidade era marcante e onde o antigo Cae-Água parecia mal; e São José, que acabou por não vingar na Parede… Enquanto Cascais se criava a partir da Vila piscatória que então era, e os casebres humildes se enchiam de apelidos sonantes que para ali transportavam às costas o peso das suas histórias, os Estoris permaneciam incólumes, esperando de forma sublime os sonhadores que os tornaram em coisa real. Tudo é ilusão nesta terra única em Portugal. Em Cascais iludiam-se os pergaminhos através de apelos nem sempre bem conseguidos ao bom gosto e à vida requintada. Lutava-se, muitas vezes corpo a corpo, por impor as regras e os costumes que de muito longe se importavam. O resultado, quase sempre inglório, traduzia-se numa feroz incapacidade para tornar verdadeiro o dia-a-dia que aqui grassava. As senhoras, oriundas da mais ilustre aristocracia, deambulavam com os seus trajes de gala por entre as redes de pesca sujas e com os pés enterrados no profundo areal. Fingiam-se confortáveis e bem. Fingiam-se preparadas para enfrentar a dura realidade de um Portugal muito atrasado onde as discrepâncias entre a vida quotidiana das pessoas e o dia-a-dia na capital era gritante, preocupante e abissal. Fingiam sorrisos quando se cruzavam umas com as outras ou quando, mercê do acaso e da sorte, encontravam em pleno passeio algumas das figuras mais relevantes da corte de então. Até o Rei ou a rainha, com muita sorte, se podiam encontrar nas ruas de Cascais. E elas fingiam. Fingiam sempre para a eventualidade de terem um encontro igual e de, nesse momento, poderem curvar-se perante tão excelsas figuras que eram o modelo da sociedade de então.
Mas nessa altura os pescadores também fingiam. Dedicavam-se a servir os senhores e tentavam portar-se à altura dos costumes que eles traziam consigo da capital. Abandonavam as suas casas e moravam em barracas precárias para ganharem algum dinheiro durante o período estival. E fingiam que era sempre assim, que as casas não eram as suas, e que aqueles senhores que vinham com o Rei eram iguais ao cliente habitual. As mulheres, cientes do seu papel na economia do casal, lavavam a roupa, vendiam o peixe e comentavam os vestidos, as maneiras e os modos desta gente tão especial. E também fingiam. Fingiam-se importantes perante os fingidores que lhes ocupavam as casas onde elas passavam o seu Natal. Fingiam todos, afinal. E o contra-senso imperava. Quem fingia menos era precisamente o Rei e a Família Real. Instalavam-se na Cidadela de Cascais, precariamente adaptada a residência real mas não o faziam para fingir nada de especial. Dom Luís, primeiro, e D. Carlos, depois, gostavam mesmo de Cascais. Gostavam do mar, das ondas, do clima, do peixe, dos barcos e da praia. Dom Luís refugiava-se nos seus estudos e nas prospecções. Estava em Cascais para poder estar próximo do mar. Morreu assim, a contemplá-lo. Dom Carlos gostava de tudo o resto. Gostava do mar também, mas não perdia uma ocasião para andar livremente por Cascais, sem escoltas, seguranças ou quaisquer outros cuidados. Fingia um pouco também. Fingia que não era ninguém importante e fingia que era seguro perder-se assim conversando aqui e ali com os pescadores de Cascais. Nessa altura não se fingia. Perante o Rei todos eram como eram… pois se ele era assim também. Mais um contra-senso para a Estória da região. Porque motivo não fingia ninguém perante o Rei e fingia-se sempre que ele virava costas e se dedicava ao mar? Possivelmente porque só assim se compreende a vida da corte e o mundanismo que atrai a atenção e transporta consigo o brilho do glamour que todos desejam.
Entretanto os Estoris iam nascendo lá naqueles pinhais bravios que se perdiam no horizonte ainda vazio. Antes de serem coisa concreta e de as ruas e as casas começarem a ser construídas, tornaram-se estância importante na imaginação e nos sonhos de uns quantos. José Jorge de Andrade Torrezão sonhou com um Monte Estoril marcado de chalets românticos que Carlos Anjos e o Conde Henrique de Moser tentaram tornar em algo marcante. Falharam todos nos seus devaneios. Depois veio João de Deus Ramos com a sua Sociedade Escolar do Monte Estoril que também falhou… no fim aconteceu o improvável. Foram os pupilos, gente de pouca idade que tinha acorrido aos Estoris para partilhar o sonho do seu mestre, que conseguiram erguer o sonho e torná-lo coisa concreta. Nasce o Colégio João de Deus, pelas mãos de José Dias Valente, Aníbal Ferreira Henriques, Álvaro Themudo e de outros tantos. Mas fingia-se na mesma neste Monte Estoril especial. Fingia-se que tudo tinha corrido bem e que os sonhos que os precederam eram sucessos alcançados que sublevaram a Alma humana. Mas não tinha sido assim. Falharam quase todos. Ou melhor, evoluíram, adaptaram-se e transformaram-se noutras coisas. Recriaram-se em torno daquilo que não eram e que nunca tinha sido sonhado para darem forma a um espaço indescritível onde todos os pormenores são irrepetíveis, inesquecíveis e relevantes. Não se chega ao glamour do Estoril sem passar por Fausto de Figueiredo. Foi ele, mais do que qualquer outro, quem teve a capacidade para concretizar os sonhos dos restantes. A Sociedade Estoril Plage, imbuída das ideias que pela Europa fora deram origem a estâncias balneares que ainda hoje são importantes, criou na Quinta do Viana o palco ideal para se fingir… como se estivéssemos num teatro e fosse suposto ser assim… uma peça onde o papel de cada um se desenrola em torno de um enredo que ninguém conhece bem. Fausto de Figueiredo sonhou mas não fingiu. Sonhou que era possível criar um local onde se podia fingir à vontade acreditando que a
realidade era aquela. Sonhou que valia a pena sonhar. E valia mesmo! Num dia tenebroso em plena Segunda Guerra Mundial, quando pela Europa se morria aos milhares, no Estoril mantinha-se a calidez de outros tempos. Dias de sol e mar, onde a Praia do Tamariz se transformava em passarelle para os melhores e mais ousados fatos-de-banho daqueles tempos… fingia-se que a guerra não existia e que toda aquela gente que por ali deambulava não era espiões e contra-espiões; que não tinham sido enviados pelos nazis e pelos aliados para tentarem perceber o que é que por ali se passava. E não se percebia nada. Não se sabia quem pertencia a cada lado e ali, lado a lado no casino, partilhando as moedas que iam enchendo as máquinas da sorte e as bebidas que tal como se tudo fosse uma festa iam rodando, todos fingiam não perceber o que se passava. Nem quando no Hotel Atlântico surgiu hasteada a bandeira Alemã. Todos fingiram não ver esse acto ultrajante e as coisas continuaram como dantes. O escritor Inglês Ian Fleming esteve hospedado no Hotel Palácio. Diz-se que também ele era espião ao serviço dos aliados, mas na prática ninguém sabe se ele o era de facto e, sendo, que lado da guerra é que servia. O certo é que ele encontrou no Estoril um cenário improvável de continuado e completo fingimento. Nada era aquilo que parecia ser a folia imperava nos sorrisos permanentes, nos courts de ténis, nas piscinas, no casino, nos átrios dos hotéis e no golfe… como se não fosse nada e não morressem lá fora, logo ali do outro lado da fronteira, milhares de pessoas quotidianamente. E nasceu James Bond. O espião improvável, campeão do glamour e envolto nos enredos que Hollywood se habituou a explorar. Mas esse cenário era o dia-a-dia do Estoril. De um Estoril onde tudo era possível e no qual a lógica de outros locais não imperava. Mas o primeiro acto de sonho verdadeiro não aconteceu no Estoril. Passou-se na fronteira que define a marca da diferença entre os Estoris e Cascais. Nasceu precisamente
sobre essa marca, na capacidade de fingir que se é qualquer coisa que nunca se foi, e que não se está a fingir ser algo que verdadeiramente não se desejava. O Estoril nasce nos terrenos da Família Palmela precisamente na fronteira entre o Monte e Cascais. Nasce porque se situa também na fronteira entre a capacidade financeira dos Duques e no poder que eles efectivamente possuem e no deslumbramento de uma Família Real empobrecida mas titular que veraneiam em Cascais. Os primeiros, os Duques, estão em cascais em palacete marcadamente romântico de cariz sumptuoso como se fosse palácio real. Mas não era e eles fingiam que não queriam que fosse. Do outro lado da baía, no antigo barracão do cordame da Cidadela de Cascais, num tosco palácio adaptado da residência do governador, está a Família Real. Também fingiam neste aspecto. Fingiam que não desejavam palácio igual… e se a Rainha tentava deslumbrar com um chá servido no terraço do seu minúsculo palácio (que vivia da vista deslumbrante sobre o mar), a Duquesa oferecia um jantar sumptuoso no seu palácio verdadeiramente real. Mas ambas fingiam que não competiam nestes actos, como se tudo fosse igual. É este o Estoril glamour, um espaço onde tudo é possível e no qual a imaginação impera. A realidade pouco importa nesta terra, é muito mais importante aquilo que acreditamos ser do que aquilo que efectivamente vamos conseguindo ser. Uma lógica irracional; um fluxo social marcante pela incerteza que emana; mas uma tracção sem igual. Glamour. Puro e simples. Apelando às emoções, ao sonho e a um deslumbramento sem igual!
O Sonho dos Estoris Contrariamente aquilo que muitas vezes se pensa, os caminhos do Estoril traçam-se muito mais pelas linhas que marcaram os fracassos, aqui entendidos como projectos que não se concretizaram da mesma forma como tinham sido planeados, do que pelos enormes e estrondosos sucessos que deram forma ao mito local. Os Estoris, do primordial Monte ao longínquo São José, são hoje o repositório de um vastíssimo conjunto de ideias extraordinárias que, estando quase sempre muito para além das reais potencialidades do seu tempo, se viram relegadas para os planos oníricos dos sonhos incontretizáveis e demasiadamente altaneiros. O primeiro desses vultos, possivelmente aquele que pelo seu carácter pioneiro acabou por se tornar no cerne de todo o desenvolvimento do actual Estoril, chamava-se José Jorge de Andrade Torrezão e surge na História como uma figura de grande visão mas pouco engenho que, depois de ter adquirido algumas parcelas do antiquíssimo Pinhal da Andreza, nelas constrói os primeiros chalets de veraneio que pretendia que fossem a resposta cabal e imediata às necessidades efectivas de conforto e anseio que sentiam as grandes famílias que acompanhavam a Corte instalada na Cidadela de Cascais. Estávamos no terceiro quartel do Século XIX quando este empreendedor sonhou com a criação da primeira estância turística Portuguesa. Desejava-a, tal como acontecia em localidades congéneres espalhadas pela Europa mais chique dessa épocas, um espaço singelo onde o carácter precário das habitações marcava a paisagem e o dia-a-dia ocasional dos veraneantes. Este local, que Andrade Torrezão nunca viu construído, não era, no entanto, o mais adequado à existência estritamente conservadora das grandes famílias aristocráticas
Portuguesas, e os poucos chalets que ele construiu, pouco exuberantes na sua formulação arquitectónica e pouco marcantes em termos do papel que desempenhavam na definição do estatuto social de quem os ocupava, depressa foram demolidos para darem espaço às novas casas apalaçadas de formulação romântica que o fim daquele século para ali acabou por trazer. O erro do empreendedor, no caso específico dos Estoris, não teve a haver com cálculos errados ou um excesso especulativo que inviabilizasse o seu sucesso comercial. A principal razão que presidiu ao desaire (que certamente não teria ocorrido se a opção dele tivesse sido o de o concretizar noutra qualquer localidade marítima situada algures em Portugal) foi a impossibilidade de prever o carácter vincadamente simbólico que acabaria por dar forma ao Estoril moderno. As casas de Torrezão, com localização privilegiada no local onde hoje se situa a zona nobre do Monte Estoril, ofereciam as condições ideias para umas férias passadas junto ao mar, conjugando a proximidade relativa a Lisboa (que permitia aos chefes de família rumarem à capital para tratar dos seus negócios deixando a família praticamente no areal), mas não ofereciam aos seus ocupantes a grandiosidade que lhes augurava o tão almejado estatuto social que era, na prática, um dos principais motivos que os levava a investir em férias de praia junto à Família Real. A aristocracia endinheirada lisboeta, neste final de um século em que tantas mudanças haviam acontecido no País, era basicamente composta por títulos com poucas ou mesmo nenhumas gerações, não assentando tanto no sangue e na História a ele associada, mas sim nas capacidades financeiras e nas estórias que em torno dele giravam. A moda dos banhos de mar e as virtudes terapêuticas do veraneio, que de facto transformaram por completo os fluxos sociais Portugueses, trouxeram ao Estoril um movimento praticamente constante desde que Dom José, em meados do Século XVIII, veio para as termas do Estoril, na ancestral Quinta do Viana, para curar os males de pele que o afligiam. E esses, que continuaram a vir para estas paragens durante muitos
anos daí para a frente, continuaram a fazê-lo utilizando as instalações precárias entretanto construídas junto às nascentes de água termal ou as mais precárias ainda instalações que os frades franciscanos (e mais tarde a família Santos Jorge) ofereciam nos terrenos anexos à Igreja de Santo António. Esta espécie de veraneio primitivo e embrionário, constrangido obviamente pela capacidade financeira daqueles que dele usufruíam, não teve nada a haver com a criação do glamour Estorilense que anos mais tarde se concretizará no mesmo espaço. Era um movimento com motivações de saúde, concretizado basicamente pelos que efectivamente necessitavam de frequentar as águas termais para resolver as suas maleitas físicas e que não se importavam minimamente com as condições físicas do local e menos ainda com o estatuto que essas instalações lhes poderiam dar. Estes visitantes ocasionais, que afluíam ao Estoril para se curar, desejavam livrar-se depressa das suas doenças e, assim que estavam despachados das suas terapêuticas, partiam imediatamente para Lisboa, não frequentando as recepções, bailes e demais eventos que a partir de 1870 a presença da Corte trouxera para Cascais. Como é evidente, não existia por parte desta gente nenhuma apetência pela beleza da paisagem, pela ampla oferta cultural do final do Verão, nem tão pouco pela existência social que a nova estância lhe poderia granjear. As casas construídas por Andrade Torrezão, ainda para mais erguidas fora da Vila da Corte e longe das nascentes termais, eram motivo de pouco ou nenhum interesse por parte destes primeiros visitantes. Os outros, ou sejam, a amálgama de gente que constantemente rodeava o Rei e a sua família e que girava em seu torno durante grande parte do ano, fazia-o com dois objectivos específicos: estar próximo das mais influentes figuras do reino e, dessa forma, perto de quem de facto detinha o poder, podendo assim usufruir de melhores condições na definição das suas próprias actividades profissionais; e ver e ser visto no local onde isso era fundamental para sedimentar relações e estatuto e, dessa maneira, ascender socialmente ou consolidar a ascensão
que, muitas vezes por força da capacidade financeira, os tinha feito escalar a sempre precária e muito interessante pirâmide social Portuguesa. E mesmo estes, com características sócio-políticoculturais muito específicas, dividem-se em dois sub-grupos distintos que pouco ou nada se identificam com o projecto Monte Estorilense de Andrade Torrezão. O primeiro, endinheirado e recém enobrecido, aspirava a instalar-se o mais próximo possível do Rei, usufruindo do contacto directo com a Família Real e possivelmente usufruindo da conhecida apetência dos Braganças pelo contacto informal com o povo. Dom Luís e Dom Carlos, marcados pela paixão pelo mar e pelas falésias abruptas da costa de Cascais, transformaram por completo os hábitos das suas cortes. Em Cascais especificamente eram reconhecidas as suas virtudes de homens-bons e simples, ao ponto de se ter tornado usual caracterizar a terra pelo facto de ser o local onde o povo era mais nobre e onde a nobreza era mais popular… Estas pessoas, com as suas posses e pretensões, optaram por instalar-se na própria Vila da Corte, que dessa forma começa progressivamente a ganhar uma nova face urbana construída a partir das suas edificações. O outro grupo, composto basicamente por gente de sangue azul marcado por muitas gerações, opta por veranear em casas que geralmente constrói de forma a definir a grandiosidade da sua própria existência. Surgem assim os primeiros grandes palacetes e, a partir do final do Século XIX, as excêntricas construções apalaçadas que fomentam o movimento romântico Português e aquilo que mais tarde acabará por designar-se como a arquitectura de cenário dos Estoris. O exemplo mais paradigmático desta situação, e que mais tarde terá, pela acção directa da sua principal proprietária, um papel determinante na criação do Monte Estoril, é precisamente a do Palacete Neogótico dos Duques de Palmela. José Jorge de Andrade Torrezão, que chegou a desempenhar funções de Presidente da Câmara Municipal de
Cascais, foi assim o primeiro dos muitos visionários que construíram a ideia subjacente à existência do Estoril. As suas construções, devido ao fluxo social determinado pela História às contingências conjunturais do Portugal de então, acabaram por determinar o insucesso do projecto e, como escreveram Branca de Gontha Colaço e Maria Archer nas suas “Memórias da Linha de Cascais” (2) o cenógrafo da paisagem maravilhosa morreu pobre e sem conhecer o fruto da sua mente visionária: “As suas casas eram demasiado modestas para as ambições do elegante rincão turístico”. Mas como é de sonhos que se compõem os primeiros passos dos Estoris, logo eles são repescados, repensados, reestruturados e repetidos por muitos outros seguidores dos ideais de grandeza que deram forma a esta terra. Depois de demolidas as casas de Torrezão, criam-se novos espaços para serem ocupados pelo fulgor construtivo de novos visionários. Fazendo a avaliação da obra de Torrezão, as mesmas autoras não temem considerá-lo como o cenógrafo da paisagem, apesar de nada ter restado da sua obra extraordinária: “Nada resta da obra de José Jorge de Andrade Torrezão. O panorama que criou no Monte Estoril desapareceu. Despendeu com ele muito dinheiro e desse gasto não teve um lucro compensador. Arruinou-se a tentar valorizar o “Pinhal da Andreza” e a “Costa de Santo António”. O primeiro cenógrafo da paisagem maravilhosa, que é hoje o prazer dos nossos olhos morreu pobre, desgostoso dos seus entusiasmos de esteta, da paixão que o levara a amar o recorte verde duns montes encastoados num céu tão azul como o mar”. Depois de Torrezão, quando o Monte Estoril é já uma referência embrionária na nova linha de horizonte Cascalense, surge no mesmo local a grande referência do moderno turismo de Portugal: Carlos Anjos. Este ilustre capitalista lisboeta, chegado aos Estoris atraído pela fama que a região alcançara depois da chegada da Corte a Cascais, trás consigo não só as condições que são essenciais para que o Monte Estoril possa
prosperar, como também o prestígio necessário para alargar o âmbito de personalidades com vontade, ensejo e meios para investirem neste novo lugar. Mas o novo empreendedor não quer unicamente construir moradias e prosperar. Trás também consigo sonhos grandiosos que vão dar forma a uma nova Alma que renova por completo a região e a fáceis de tudo aquilo que por lá se vai concretizar. A primeira grande mudança introduzida por Carlos Anjos no Monte Estoril, depois de uma primeira fase em que promove a construção de vários chalets avulso que imediatamente vende para angariar os fundos necessários ao alargamento do lugar, é o projecto de urbanizar não só a faixa litoral do Monte, a que se situa junto ao mar e à praia, mas também a zona situada a Norte, no cimo da colina ou monte que baptizou este espaço. O Monte Estoril, cenograficamente imposto sobre o fundo azul do mar, possui as condições físicas necessárias para ser transformado numa espécie de palco gigantesco no qual se projectam enormes trechos de cenário. Faltava-lhe tudo, é certo. Não tinha água, acessos ou quaisquer outras infra-estruturas necessárias para dar forma àquela ideia sem par. Mas pela nudez da sua existência, e pelas potencialidades cénicas que Carlos Anjos há tanto tempo procurava, é detentor do potencial que lhe permitirá impor-se no cenário romântico de um País que precisa avidamente de se modernizar. Carlos Pecquet Ferreira dos Anjos, sonha então com um Monte Estoril grandioso e moderno, capaz de ombrear com as melhores estâncias turísticas da Europa de então. Adquire todos os terrenos que a sua capacidade financeira lhe permite e sonha com a criação de um espaço diferente no qual se possam acolher as mais ilustres figuras que, com a sua presença, passarão a fazer parte da história do lugar. Para complementar as suas capacidades, e de forma a criar condições melhoradas para intervir no espaço e fazer do seu sonho uma realidade, chama para o Monte Estoril o então Presidente da Companhia dos Caminhos-de-Ferro Portugueses, Henrique Jorge de Moser,
Conde de Moser, que com ele cria a Companhia Monte Estoril algures em finais da década de oitenta do Século XIX. A chegava do novo sócio e empreendedor, altera novamente e por completo o paradigma onírico a que Torrezão havia dado forma. Em primeiro lugar porque a conjugação de capitais de Carlos Anjos e do Conde de Moser permitiu, de facto, alargar substancialmente a área de intervenção que fazia parte do projecto e, desta forma, integrar também todo o monte que dá nome ao lugar. Depois, porque com a sua posição privilegiada na Companhia dos Caminhos-de-Ferro, o Conde de Moser tem a possibilidade de concretizar o já antigo sonho de estender até Cascais o ramal de comboio que terminava em Pedrouços e, desta forma, criar condições de acessibilidade que transformam radicalmente a matriz urbana do Monte Estoril. E se, por um lado, a inovação do comboio facilita a promoção do novo empreendimento, facilitando também a chegada de novos moradores à moderna estância turística Portuguesa, por outro gera também um sonho renovado, pois as casas que se pretendiam de veraneio, de ocupação sazonal e temporária, depressa se tornam em habitações definitivas dada a proximidade efectiva a que a estância se encontrava de Lisboa. O glamour dos Estoris conhece o seu primeiro ensejo precisamente em 1889, quando se inaugurou a via-férrea. E se até esse momento a aquisição de uma propriedade no Monte Estoril representava um investimento que poucos ousavam ou podiam fazer, a partir dessa altura torna-se um sonho concretizável para muitos que, alienando a sua casa lisboeta, podem aspirar a vir viver para este rincão de terra tão especial. Tendo sido o grande contributo para a criação da terra, o comboio foi também a primeira machadada dada no sonho grandioso de Carlos Anjos e do Conde de Moser. Mas foram pujantes os primeiros anos de funcionamento da Companhia Monte Estoril e da actividade desta dupla empreendedora em terras Estorilenses. Para além de integrarem o Monte no seu plano urbanizador, a Companhia Monte Estoril projectou ainda várias obras grandiosas que,
apesar de não se terem concretizado tal como os seus mentores as haviam sonhado, acabaram por ser sinónimo de muita publicidade junto da comunicação social Portuguesa e internacional, redobrando o prestígio do espaço e rentabilizando o projecto. O primeiro grande sonho, depois de integrado o morro que dá nome ao Monte e, mais tarde, o próprio Monte Palmela, foi o de construir um pequeno comboio romântico que levasse os habitantes e visitantes desde o ponto mais alto da estância até junto ao mar e à praia. Apesar de nunca ter passado de um sonho, o comboio ainda começou a ser construído, com a colocação de carris junto à zona central onde hoje se encontra o Jardim Carlos Anjos, até à Avenida do Faial, onde estava já construído o velhíssimo Chalet Celeste. Do outro lado, no topo do monte mais alto, onde hoje se encontra a zona do Lago, que dá nome ao Clube a aos arruamentos circundantes, Carlos Pecquet dos Anjos e Henrique de Moser planearam construir um enorme lago artificial que, como se de um grande lago natural Suíço se tratasse, permitisse aos habitantes umas remadas românticas nos finais de tarde serenos do final do Estio em Setembro… A água, que obviamente não existia naturalmente nessa zona e que era essencial para a concretização desse projecto, teria de ser trazia de outro sítio qualquer, e os empreendedores, sonhando sempre, não tiveram pejo em imaginar que seria possível traze-la da quinta que o primeiro possuía, em Vale de Cavalos, junto a Janes e na Estrada da Malveira da Serra. Seria necessário construir um aqueduto que a transportasse até ali mas… porque motivo não haveria de se fazer tal coisa se o resultado seria a criação da mais moderna e extraordinária estância turística Europeia?!... De sonho em sonho e de projecto em projecto, o Monte Estoril vai tomando forma em torno das pessoas que foram apoiando a causa e adquirindo as suas habitações na localidade. Na transição do Século, quando muitas das ideias da Companhia Monte Estoril já estavam ultrapassadas, a região ocupava já uma grande parte das páginas das principais revistas da especialidade e, principalmente, das publicações de índole
social de Lisboa. O Monte, marcado pela excentricidade permanente e por um apelo incrível à diferença de cada um, estava a tornar-se numa espécie de paradigma esquizofrénico, como lhe chamaram alguns dos principais autores Portugueses, no qual cada canto e recanto se enchia de um glamour que apelava ao sonho e à capacidade de empreender. Como acontece sempre que se concretizam projectos deste género, e sobretudo quando todos os que estiveram presentes na colocação em prática das ideias de Torrezão, Carlos Anjos e de Henrique de Moser não hesitam em reafirmar a excelência do Monte Estoril, a polémica desde cedo rodeou o crescimento da localidade, envolvendo em grande controvérsia as escolhas e as orientações que os seus visionários promotores iam impondo ao projecto. A primeira característica especial do Monte Estoril, que se prolongou no tempo e que ainda hoje, em pleno Século XXI, actua de forma efectiva em que vive, trabalha ou visita a povoação, é a da antiguidade… o Monte Estoril, praticamente desde que se concluíram os primeiros chalets construídos pela Companhia, que carregava consigo o adjectivo ‘antigo’. O mito, assente nos valores estéticos próprios do romantismo, foi pensado e planeado de forma genial pelos promotores, que definiram, por vezes até levando ao extremo o cuidado com os pormenores, cada detalhe de cada arruamento e casa que se ia erigindo. Os muros das habitações, importando de Sintra uma estética de cenário que vinculava as ruas e as casas aos valores essenciais do romantismo, eram obrigatoriamente construídos de forma desigual, como se de ruínas medievais se tratassem. Quando o rigor do proprietário se impunha, e o muro acabava por sair demasiado perfeito e linear, era obrigatória a colocação de pedra solta no topo do mesmo de forma a garantir que a linha de fecho das propriedades, marcadas pelo desnível dessas pedras, pudesse dar a ideia de coisa velha e ultrapassada. E o mito da antiguidade que acompanhou o nascimento e crescimento do Monte Estoril acabou por marcar definitivamente o dia-a-dia
daqueles que ali habitavam mas também a escolha desta localidade como destino privilegiado de férias numa Europa que valorizava avidamente tudo aquilo que fosse diferente. As ruas, que nessa altura deveriam ter sido planeadas também elas lineares e com rectas que facilitassem o trânsito automóvel que nesse mesmo período se começava a fazer sentir, foram decididamente planeadas com formas sinuosas e curvas e contracurvas que nada tinham de funcional. A ideia que lhes estava subjacente, romanticamente cimentada pela necessidade que todos sentiam de esteticamente apelar à diferença cenográfica e a uma espacialidade difusa, era a de fomentar um urbanismo no qual a mitologia do antigo se impunha à efectiva e inultrapassável modernidade da sua concepção. Para além dos muros de pedra-solta, dos arruamentos sinuosos e das ruínas fingidas, o Monte Estoril foi ainda alvo de um cuidado muito especial com as espécies vegetais que ornamentavam os jardins. O exotismo de cada uma, escolhido pelo impacto cenográfico que tinha no conjunto, foi outra das orientações que a Companhia Monte Estoril teve o cuidado de promover e que sedimentou todas as outras características impostas ao urbanismo local. As palmeiras, utilizadas ainda hoje para aferir da antiguidade das casas, foram importadas pela primeira vez em Portugal e a Companhia Monte Estoril, num acto muito comentado pela imprensa Lisboeta, comprou mesmo uma enorme carga de plantas e espécies vegetais exóticas de todo o Mundo que foi desembarcada com pompa e circunstância no Cais da Rocha do Conde d’Óbidos, em Lisboa. Foram essas plantas, muitas delas espécies originalmente naturais da Oceânia ou dos recantos longínquos da Ásia, que encheram de uma tonalidade verde os lotes Monte Estorilenses, envolvendo as construções em autênticas selvas pensadas e, para quem para elas olhava, transformando-as em espaços nos quais o mistério se impunha. Para além destas que se afiguravam de carácter obrigatório e que derivavam das orientações emitidas pela companhia promotora aos que adquiriam lotes para construção
no Monte Estoril, muitas outras medidas e ajustes foram sendo concretizadas pelos que escolhiam a terra para erigir a casa dos seus sonhos. Em quase todas, possivelmente pelo efeito de contágio que a exuberante localidade promovia, existem características únicas que as transformam em peças-chave da História da Arquitectura Portuguesa. A antiguidade do Monte Estoril, conjugava-se amiúde com a excentricidade dos materiais, com a forma dos telhados ou mesmo do modelo de arquitectura utilizado. Para além dos torreões, marcando a paisagem com um tom de medievalidade que nada tinha de real, era usual encontrar telhados de inclinação acentuadíssima como se estivessem preparados para defender os habitantes dos pesados nevões Suíços, ou mesmo autênticos castelos que aqui e ali enchiam de orgulho os seus proprietários e faziam a inveja dos vizinhos. A exuberância dos estilos, marcados amiúde por pormenores praticamente delirantes, deu o mote para a criação de uma realidade urbana centrada na dicotomia existente entre a realidade e a fantasia. As casas, as ruas e os jardins, transformando a paisagem num cenário no qual se desenrolariam as estórias e os dramas de uma sociedade que vivia intensamente um período de decadência económico-política e simultaneamente de prosperidade cultural, cruzavam a sua existência com uma comunidade que delirava com as inovações que a atingiam a um ritmo sem igual. O fingimento da vida, que muitos autores apontam como comum a todas as civilizações e lugares, transformava-se no Monte Estoril numa prática levada ao extremo e o quotidiano de cada um, mais do que pela interacção com a vizinhança e pela forma como se relacionava com as comunidades envolventes, crescia aqui em torno da fantasia e da imaginação. Contrastando de forma evidente com Cascais, que apesar das vicissitudes conseguiu manter a sua traça modesta em torno das ancestrais práticas piscatórias, o Monte Estoril era realmente o local das cortes pois embora o Rei estivesse na Cidadela, era por ali, naqueles castelos de tons medievais, que
estavam os cenários de conto-de-fadas onde todos sonhavam viver e estar. Mas não foi isenta de críticas a forma como se constituiu a novel localidade. Os sectores mais conservadores da sociedade lisboeta, e principalmente aqueles a quem as vicissitudes da vida não permitiam aceder à luxuriosa vida Estorilense, não pouparam esforços em criticar e contrariar publicamente a forma que estava a tomar a povoação. Nas melhores revistas e jornais da época, e muitas vezes a par com anúncios e reportagens que davam conta do estilo de vida extraordinário que ali se vivia, artigos de opinião, crónicas e reportagens descreviam o Monte Estoril como o pior dos exemplos de um espaço sem regras onde imperava o mau gosto e a dissonância. O estilo eclético das construções, e principalmente a forma como exuberantemente se impunham ao viajante, atraía ao Monte milhares de visitantes que queriam conhecer e descrever na primeira pessoa aquele autêntico parque de diversões que ali havia sido criado. Mas trazia simultaneamente, por motivos que se prendem com a mórbida curiosidade de quem teme que a nova realidade venha a destruir as raízes pacatas da sua própria existência, todos aqueles que haviam criado nome e reputação num Portugal ainda com a marca forte do antigo regime e para quem a desfaçatez com que se planeava e construía no Monte Estoril parecia uma afronta insensível aos oito séculos de História de Portugal. Mas o Monte Estoril passou incólume a tudo isto. O carácter onírico do seu nascimento, embora desvirtuando um pouco a ideia original que Andrade Torrezão trouxera e que a dupla Conde Moser e Carlos Anjos havia começado a criar, de um espaço unitário onde cada pormenor e detalhe jogavam a sua cartada simbólica num bolo comum no qual o romantismo novecentista desempenhava papel principal, acabou por trazer à nova localidade os melhores e mais conceituados arquitectos e desenhadores daquela época. Para além de Raul Lino e Ventura Terra, que sem grandes rasgos de génio ali projectaram as casas que lhes tinham sido encomendadas, traçando-as com a linha
certeira do carácter burguês de quem lhes pagava, muitos outros trouxeram para o Monte a liberdade criadora do seu espírito cenográfico e deram largas à imaginação e à genialidade naquele palco vivo de emoções redobradas que os Estoris de então lhes ofereciam. Raquel Henriques da Silva, num dos seus muitos trabalhos extraordinários sobre as memórias urbanas do Concelho de Cascais (3) alerta precisamente para esse carácter frágil dos sonhos que deram forma à povoação, utilizando as palavras de Ramalho para determinar a essência onírica do Monte Estoril. Relativamente à genialidade do traço arquitectónico que ali se expressa, a autora é determinante na maneira como avalia as intervenções dos grandes nomes que naquela altura projectaram no Monte Estoril: “Do ponto de vista estritamente arquitectónico, o Monte Estoril de 1890 poderá ser considerado pitoresco mas quase nada significante. O que Raul Lino ou Ventura Terra lá fizeram, não sendo decisivo, permitiu a entrada da qualidade. E no entanto parece-nos que nenhum destes arquitectos pensou em termos da paisagem ou em termos da totalidade. O que fizeram foi o que lhes pediram: casas de Verão para burgueses honestos como queria Ramalho, enquanto os homens de 1890 tinham sonhado outra coisa – não uma soma de casas mas um espaço, uma dimensão unitária capaz de as integrar num comum entendimento da natureza”. Mas apesar disso não tardou a que assim acontecesse. Como também refere Raquel Henriques da Silva no mesmo artigo, outros houve que no mesmo período, e possivelmente por estarem destituídos das amarras relacionadas com necessidades económicas que constrangiam os traços dos maiores, foram capazes de se libertar dos fardos culturais impostos pela academia e de recriar no Monte as construções utópicas que o espaço exigia. O melhor exemplo, que leva ao extremo a capacidade insidiosa de se impor no lugar de uma forma sub-reptícia mas de tal forma marcante que se prolonga ao longo dos séculos, é a casa de Manuel Duarte. Conhecido na época como “O Fantasma”, basicamente por viver numa casa situada à beira da Estrada Real que utilizou como princípios
arquitectónicos as fórmulas até aí usadas exclusivamente nos jazigos Lisboetas, Manuel Duarte era um dos excêntricos encomendadores do Monte Estoril e aí concretizou, sob a traça do pintor Vilaça, a sua casa de veraneio. “O Jazigo”, como é conhecido, é um palacete neo-romântico construído na recta final do período de criação original do Monte Estoril. O seu autor, que havia assinado outras obras extraordinárias noutras zonas do Concelho de Cascais, é o mesmo que mais tarde projectará o Palacete O’Neill em Cascais, onde virão a habitar os Condes de Castro Guimarães. A necessidade de concretizar sonhos, emaranhados nas ruelas planeadas simbolicamente como veias que transportam o sangue destes novos veraneantes, deu forma a um espaço onde se cruzavam amiúde as componentes mais interessantes da psique humana. Helena Matos, autora de um pequeno livro sobre o centenário do turismo no Estoril (4), não hesita em determinar a componente financeira do projecto como eixo fundamental na concepção do Monte Estoril, isto apesar de deixar claro que existe uma componente de fantasia na concepção do espaço que não pode deixar de ser considerada: “Ao percorrer hoje o Monte Estoril e, sobretudo, ao contemplarem-se os postais e as fotografias que o retratam no final do Século XIX e no princípio do Século XX, pressente-se como naquele espaço se cruzaram, por um lado, já a noção de que o tempo de lazer, e tudo o que lhe estava associado, era um campo para o investimento de capitais e, por outro, encontramos a moldar a paisagem, a traçar as ruas sinuosas e a dar forma aos desenhos singulares das casas, as fantasias, os estereótipos e até as ingenuidades daqueles que aqui se deslocavam para fazer a sua vilegiatura”. E não deixa de ser verdade esta curiosidade apontada pela autora. O Monte Estoril, que foi pensado, planeado e que nasceu em oposição a Cascais – Vila da Corte – foi sempre um local onde a marca principal nasce da expressão investimento mas aqui cruzada com o onírico desejo de transcendência do próprio tempo. O capital investido no Monte Estoril, por
individuais e sociedades, tem a dupla formulação de transacção comercial mas acaba sempre por esbarrar na componente de projecto que dá forma ao espaço. De Torrezão à Companhia Monte Estoril, e através desta estendendo-se a pequenos burgueses abastados que gastaram no Monte Estoril as suas poupanças, muitos foram os que chegaram com o firme intuito de ganhar dinheiro e, na prática, acabaram por perde-lo, vendendo a ganância da riqueza em prol de uma existência mais marcante e das emoções à flor da pele que só a extravagância daquele lugar lhes podia oferecer. O nascimento da ideia de turismo, muito antes de ele, de facto, ter chegado efectivamente a Portugal, conhece no Monte Estoril a sua expressão mais extraordinária. Mais uma vez contrastando com Cascais que possui unicamente uma unidade com o designativo de hotel – O Globo – de singelas condições e de uma formulação esteticamente eminentemente Portuguesa, o Monte Estoril enche-se de hotéis de características românticas e apalaçadas, de forma a concorrerem com os seus congéneres na Cote d’Azur Francesa. O Grande Hotel Estrade, e mais tarde a Pensão Royal e o Grande Hotel de Itália, abrem caminho para a construção de dois casinos e mais tarde de um conjunto extraordinário de unidades hoteleiras. Como é evidente, nada disto se deve ao acaso, e o surgimento destes investimentos surge contextualizado num período politicamente marcado pelo declínio da Monarquia e, simultaneamente, pelo desabrochar paulatino dos hábitos relacionados com os banhos. Mas, de facto, e tal como aconteceu noutras partes do Portugal de então, a opção poderia ter sido aqui a de se construir uma povoação moderna e pacata na qual se expressassem os valores principais de um País que pretendia ombrear com o que de melhor se fazia lá fora, ao invés de a opção ter sido a da criação de uma estrutura cenográfica de larga escala na qual a excelência se deve não tanto ao traço comum nos projectos que se vão concretizando, mas sim à capacidade de incluir nesse projecto original um conjunto de
capacidades diferentes que lhe dão o carácter cosmopolita de excelência que o adequa aos novos tempos. A dicotomia Monte Estorilense, próxima e distante da Vila da Corte e simultaneamente burguesa e aristocrática, numa terra que não sendo da corte tinha uma rainha e que com o mar aos pés, se vai envolvendo numa colina que dele a afasta para se afirmar cenograficamente, estende-se a múltiplos aspectos da sua vida quotidiana, oferecendo àqueles que por ali se instalavam a possibilidade de usufruírem do melhor dos dois mundos nesta altura de imperiosa transição. É novamente Raquel Henriques da Silva, noutra das suas muitas intervenções em defesa dos Estoris, que melhor descreve este aspecto, reinterpretando o espaço ao sabor da forma dúbia que a povoação foi assumindo (5): “Com maior ou menor qualidade de cada uma das componentes, a verdade é que o Monte Estoril se ergueu, globalmente, como uma figura exótica, poderosamente arborizado, cheio de cheiros húmidos a terra, seiva e flores, percorrido pelo atmosfera marítima mas que parece longe do mar, avistando-o por entre uma inventada cortina verde de vegetação”. E foi de facto inventada a História do Monte Estoril. Inventou-a Andrade Torrezão quando pela primeira vez visitou o Pinhal da Andreza, e foi reinventada pelos mentores da Companhia Monte Estoril, Carlos Anjos e o Conde de Moser, quando para ali sonharam com uma estância de veraneio ao nível do que de melhor se fazia no Mundo de então. A partir desta altura, cerca de 1890, quando as ruas se traçaram sinuosamente através do pinheiral e os jardins se encheram dos cheiros e das cores das florestas virgens de paragens longínquas, quase todos aqueles que escolheram o Monte Estoril para virem viver, veranear, ou pura e simplesmente para uns dias de descanso, ousaram inventar-se ali dentro. O movimento polémico que acompanha o nascimento da localidade, mais do que à forma arquitectónica das casas ou à exuberância dos seus muros e jardins, prende-se sobretudo com esse carácter rocambolesco mas assumido de permanente peça de teatro. O Monte Estoril pressupõe palco e, ao assumir essa
função, transforma cada um daqueles que passeia pelas suas ruelas num actor improvisado. E se há aqueles que têm um jeito natural para o fazer, desempenhando e construindo papéis extraordinários, ao mesmo tempo outros há que titubeiam perante a incerteza e que vacilam quando se vêem perante os olhares inquisidores da melhor sociedade da época. No Monte Estoril finge-se, finge-se sempre. Finge-se que tudo é muito antigo, que as coisas antigas estão envolvidas em arvoredo exótico, que as casas carregam consigo estórias seculares, que se é aquilo que pura e simplesmente se sonha ser. E se noutras parte do Pais o dinheiro valia o mesmo que no Monte, ali ele podia ser gasto recriando sonhos e, desta forma, dando sentido verdadeiro à vida pela qual muitos ansiavam morrer. A determinação psicossocial do ser humano, constrangendo-o desde o berço a uma série de condicionantes que dão forma ao percurso individual de vida, não existia pura e simplesmente no Monte Estoril. Aqui, com dinheiro (e à vezes até sem ele) era possível ser-se o que se quisesse e quase tudo aquilo que se havia sonhado ser. E quando isso não acontecia, o que era normal e sucedia na maior parte das vezes, ou porque os sonhos eram impossíveis, ou porque a dureza do dia-a-dia impedia que se concretizassem da forma fantasiosa com que se tinha sonhado, então despeja-se o balde de água fria, afasta-se o incapaz, e cria-se lugar no palco para um novo interveniente. Sem remoques nem ressentimentos. A memória é curta em espaços deste género… Como em todos os sonhos, também o do Monte se desmoronou rapidamente. Os percalços políticos de um País sujeito às pressões internacionais, associados a problemas estruturais graves e a uma ineficaz pirâmide social, desencadearam uma série de desequilíbrios que transtornaram a grandiosidade dos projectos sonhados para o Monte Estoril. Se numa primeira fase foi José Jorge de Andrade Torrezão quem se mostrou desadequado às características da sociedade da sua época, soçobrando perante a grandeza dos que com ele partilhavam o sonho dos Estoris, rapidamente foi a dupla Carlos
Anjos e Henrique de Moser quem foi obrigada a debater-se com a realidade e a galopante inoperância dos poderes políticos vigentes. A estância internacional do Monte, com o seu comboio romântico e a desfaçatez de olhar de relance para o azul do mar, foi incapaz de manter as principais características do projecto original e, quase num ápice, acabou por transformar-se em algo anómico, desinteressante e num paulatino processo de descaracterização que se prolongou até finais do Século XX. Depois da Companhia Monte Estoril, que se debatia permanentemente com a excentricidade daqueles que haviam adquirido as suas habitações na estância, o Monte Estoril cresceu e multiplicou-se sem uma matriz que servisse de base ao caos urbano que se impôs. O velho lago, que para além de nunca ter passado de projecto megalómano, se havia transformando numa ruína nauseabunda mercê do abandono das obras a meio e da criação de um buraco monstruoso que para nada servia e se enchia de entulho de forma permanente, ajudou a criar um clima de insatisfação crescente no meio da população local. E as casas em torno desse espaço, construídas agora de acordo com os modestos e pouco ambiciosos projectos da burguesia menos endinheirada da capital, que vão recriando o novo Monte, abrindo espaços para que as ideias extraordinárias dos seus mentores acabem por tomar forma um pouco mais à frente, no local estéril onde Fausto de Figueiredo idealizou o Estoril moderno. Mas o Monte não morreu por aqui nem por estes tempos. Manteve intocada a sua aura, a sua fama de local excepcional e de espaço onde os sonhos se cruzam com o dia-adia dos habitantes. Não tardou muito até que chegasse a este local único mais um par de sonhadores que deram forma a uma nova ideia e que aí tentaram concretizar novo projecto. Desta vez, e contrariando um pouco aquilo que tinha sido o devir histórico do Monte Estoril que todos tão bem conheciam, a dupla chega com ideias de grandeza cultural. Não pretendiam intervir na estrutura urbana da povoação, nesta altura já estruturada em torno das ruelas da antiga Companhia e
das casas que entretanto surgiram, mas sim à volta de um embrião pedagógico e educativo que permitisse ao Estoril transformar-se no espaço de referência em termos da educação e da instrução Nacional. Estávamos já em plena República e os novos empreendedores chamavam-se João de Deus Ramos e João Soares. Criaram o Bairro Escolar do Monte Estoril e ocuparam de forma inimaginável os despojos do antigo projecto do lago, quase como se herdassem os anseios oníricos dos seus antecessores na localidade. O Bairro Escolar do Monte Estoril era muito mais do que um sonho. Representava a grande possibilidade de pôr em prática a doutrina pedagógica e os ideais educativos do pedagogo João de Deus e, dessa forma, o de testar a sua capacidade para mudar Portugal através da escola. Os princípios do modelo, assente na premissa de que o ser humano é naturalmente bom e que a escola deve precisamente potenciar essas características naturais de forma a transformar o homem num cidadão efectivamente centrado na sua capacidade de mudar o mundo, passava no Monte Estoril pela criação de uma espécie de grande campus de ensino, no qual, num ambiente assente na liberdade individual, cada aluno deveria recriar o seu percurso personalizado. No dia 30 de Agosto de 1928, quando os dois pedagogos inauguraram o novo estabelecimento de ensino na companhia de Virgílio Vicente da Silva e Mário Pamplona Ramos conheciam mal a ambiência verdadeiramente inquietante que acompanhava a existência do Monte Estoril. Funcionando no local onde hoje se encontra a Urbanização do Lago, em torno do espaço onde Carlos Anjos tinha tentado criar artificialmente um vasto lago com água trazida da sua Quinta de Vale de Cavalos, o Bairro Escolar obedecia a parâmetros pedagógicos inovadores, criados sobretudo pelo génio inventivo de João de Deus Ramos. Baseado numa disciplina escolar diferente da usual, na qual a rigidez caserneira, empregada pela rotina para obrigar as
crianças ao silêncio, à compostura e ao estudo, era substituída pela arte de estudar, na qual o ambiente de simpatia e fraternalismo promoviam no aluno a vontade de aprender, o Bairro Escolar nasceu praticamente depois de vinte anos de projectos e de tentativas de concretização do seu fundador. Numa memória descritiva publicada pouco tempo depois de abandonar aquela que o próprio considerava a sua grande obra, João de Deus Ramos explica o sucesso do Bairro Escolar pela grande qualidade pedagógica do seu corpo docente, mas também pela filosofia e pelo código de princípios que regia a instituição: “Há mais de vinte anos que eu imaginara um colégio bem diverso de quantos tive ocasião de conhecer. Nem o convento sombrio, misterioso, onde faz medo entrar. Nem o palácio acolhedor, mas impróprio na sua solenidade de interiores luxuosos, geralmente danificados pelo tempo. Nem as camaratas desconfortáveis que lembram pela alvura e pela extensão enfermarias de hospital. Nem os longos corredores, tristes e soturnos. Nem os senhores Perfeitos que amedrontam a delicadeza impressionável das crianças. Nem o fanatismo religioso que alucina e amortece o espírito. Nem a irreligiosidade vazia que prende o homem à terra, vencido pela convicção do inexplicável. Nem ainda aquela neutralidade acomodativa e hipócrita, em matéria religiosa, que por ser neutralidade não é coisa nenhuma”. Se, numa primeira fase, o vigor e a capacidade concretizativa de João de Deus Ramos garantiram ao Bairro Escolar um sucesso incomparável, sobretudo se nos ativermos ao facto de que o aparelho educativo português daquela época era completamente incapaz de responder com coerência às necessidades novas de uma sociedade tecnológica e cientificamente mais evoluída, numa segunda fase, a pujança do estabelecimento de ensino e os primeiros vestígios de lucros, acabaram por comprometer completamente o projecto original. De facto, entre 1928 e 1934, enquanto João Soares se encontra ausente e se centraliza em João de Deus Ramos a incumbência de implantar o colégio, a sociedade foi
paulatinamente prosperando, assistindo-se a um aumento gradual do número de alunos e a uma fama que ultrapassou rapidamente as fronteiras mais difusas da Costa do Estoril. Ao ponto de, ao regressar ao Estoril e às lides educativas, o próprio João Soares ter enviado ao seu sócio João de Deus Ramos, em 4 de Março de 1934, uma extensa missiva em que expressava o seu apreço pelo trabalho realizado durante o período em que esteve ausente: “Ninguém como eu – absolutamente ninguém – fará maior justiça aos seus [referindo-se a João de Deus Ramos] enormes e constantes sacrifícios durante mais de três anos consecutivos, procurando sempre elevar e consolidar a boa fama do «Bairro» e fazer face aos seus pesados encargos, numa luta esgotante e quase heróica. Outro – que não tivesse a sua formidável resistência moral, ou não possuísse a sua exuberante imaginação – fatalmente teria sucumbido! E só eu sei quanto tenho sofrido por o ver sozinho aí e não poder auxiliá-lo eficazmente...” No princípio de Agosto de 1935, numa reunião da Assembleia-Geral em que se apresentaram os primeiros resultados positivos no exercício da sociedade, é o próprio João Soares que, indignado com a sua situação, se afasta do Bairro Escolar, impondo a venda das suas quotas a um comerciante problemático do Estoril, Negrão Buizel, que foi responsável por uma série de querelas que acabaram por destruir todo o projecto. As alegações de João Soares, poucos minutos depois de se inteirar pela primeira vez da gestão do seu sócio e amigo de há longos anos, prendem-se sobretudo com a indefinição latente da sua posição no seio do colégio. De facto, devido a problemas políticos complicados, muitos dos quais relacionados com a sua prisão, João Soares pouco ou nada contribuiu para a consolidação do Bairro Escolar, acusando agora João de Deus Ramos de possuir um “feitio absorvente, autoritário e ditatorial”, e declarando que “sendo adversário de todos os ditadores, não podia mais tempo suportar aquela ditadura, o que o levava ao convencimento de pôr à disposição da Sociedade a sua quota, sem condições”.
Esperando dos restantes sócios, Luís Cardoso e Jaime Reis, um apoio incondicional às suas pretensões, agora que as vicissitudes políticas pareciam estar ultrapassadas, João Soares ouviu desagradado as apreciações positivas e as palavras de incentivo e apreço que foram dirigidas a João de Deus Ramos pelos seus colegas. É o próprio visado, João de Deus Ramos, quem, pouco tempo depois da reunião, frisa ter-se admirado com a forma pouco simpática com que Soares assistiu à Assembleia: “Mas eu vi: não foi sem contracção das suas linhas fisionómicas que João Soares ouviu em silêncio estes louvores. Provavelmente preferia que tal não fosse verdade...”. E se até esse momento a amizade entre os dois pedagogos havia prevalecido, baseada num respeito mútuo e numa confiança que o tempo mostrou não ser merecida, a ruptura tornou-se incontornável a partir desta reunião. João Soares, apostado na criação de um estabelecimento de ensino completamente controlado por si, desejando avidamente afastarse da figura simpática, extrovertida, e fraterna de João de Deus Ramos. Este último, desejando manter vivo aquele que havia sido o grande projecto pedagógico da sua vida, recusa o afastamento, aceitando, um pouco contrafeito, a venda das quotas de Soares a um desconhecido comerciante. A entrada de Américo Buizel no Bairro Escolar, numa avidez de lucro imediato e de controle absoluto de toda a sociedade, relativizando os interesses pedagógicos e as necessidades educativas do seu corpo discente, acabou por levar ao afastamento do fundador e de grande parte dos seus mais ilustres professores. São aliás estes professores quem, assumindo um apoio incondicional a João de Deus Ramos, visível através das muitas actas dos Conselhos Escolares, e de inúmeras cartas e missivas que enviam aos sócios e ao próprio Director Pedagógico, criam no Monte Estoril aquele que virá a ser o grande pilar da educação Cascalense até à década de 1970. Em 3 de Janeiro de 1936, numa carta assinada pessoalmente pelos professores do Bairro Escolar, nomeada-
mente Mário Pamplona Ramos, Augusto Mimoso, Henrique Perestrelo de Alarcão, Álvaro Themudo, Armando Lucena, Aníbal Ferreira Henriques, Rubi Marques e José Guerreiro Cristovão, explica-se aos pais dos alunos do Bairro Escolar o que se passou naquele estabelecimento, informando-se ainda de que será brevemente criado um novo colégio, mantendo a orientação pedagógica utilizada por João de Deus Ramos no antigo: “O que o Bairro Escolar vale, com a antiga organização e métodos, mereceu o aplauso e a preferência de V.Exª., confiando-lhe o educando que tem a seu cargo. Entenderam os professores que não se devia interromper tão magnífica iniciativa e, por isso, solicitaram o apoio do Sr. Dr. João de Deus Ramos e resolveram abrir novo colégio ainda na primeira quinzena do mês de Janeiro. Deferida esta solicitação, achamo-nos em condições de cumprir o nosso objectivo; poderemos, assim, obedecendo ao mesmo pensamento, continuar a preparação moral, espiritual e física dos alunos, muitos dos quais são já nossos discípulos de há anos”. E logo a seguir, em 5 de Janeiro do mesmo ano, os antigos professores do Bairro Escolar informavam as famílias dos alunos: “Temos a honra de comunicar a V.Exª. que no dia 12 se fará a abertura solene do novo colégio que os antigos professores do Bairro Escolar resolveram fundar por motivos que V.Exª. conhece. Porque se propõem continuar a magnífica obra pedagógica, realizada pelo seu Director, o novo estabelecimento de ensino terá a denominação de Colégio de João de Deus. A sua sede é na Vila Pomares, no Monte Estoril”. Construída na última década do Século XIX, pela Marquesa de Pomares, a sede do novo Colégio de João de Deus é vincadamente marcada pelo carácter cosmopolita da sua construção, repescando uma vez mais a componente onírica que dá forma ao próprio projecto que faz nascer a povoação. A Marquesa de Pomares, uma das cortesãs que acompanharam neste seu quase exílio, a Rainha Dona Maria Pia, após a morte do seu marido, o Rei Dom Luís I, edificou no Monte Estoril um sólido palacete que encarnou a generalidade dos valores arquitectónicos e monumentais desta localidade.
Realçando a sua identidade através de um arco de entrada de características monumentais, ao qual se junta o apelo romântico aos torreões ameados, tão em voga num local que recriava um ambiente medieval a partir da sua estrutura urbana, a Vila Pomares depressa se tornou num dos mais emblemáticos símbolos do Monte Estoril, por ali tendo passado, no decorrer da sua vigência aristocrática ou no seu posterior percurso escolar, grande parte dos vultos da vida política, empresarial e social portuguesa da primeira metade do Século XX. No dia 12 de Janeiro de 1936, quando o Colégio de João de Deus se instala nesta casa, tendo como principais orientadores o Dr. José Dias Valente, que assumiu as funções de Director, e os antigos professores do Bairro Escolar, Dr. Álvaro Themudo, Dr. Aníbal Ferreira Henriques, Dr. Freitas e Silva e Capitão Álvaro Perestrelo, o Monte Estoril adquiriu finalmente o seu estatuto de diferença, consolidando as inovações diversas que possuía no seu seio, a um vanguardismo pedagógico que se manteve durante quase quarenta anos. A Associação dos Antigos Alunos do Colégio de João de Deus, ainda hoje activa, quando se passaram já mais de quarenta anos após o encerramento do colégio, personifica o carácter inovador das relações educativas desenvolvidas pelo estabelecimento, nas quais a proximidade entre mestres e discípulos se afigurava como fundamental. Nos aniversários da fundação, de forma imperceptível, foram sempre os alunos que organizaram e desenvolveram as comemorações oficiais. Grandiosas, magnificentes e sentidas, as festas nos muitos aniversários do Colégio de João de Deus tiveram sempre uma coisa em comum: a presença permanente e activa de centenas de ex-alunos que, mesmo depois de terminarem a sua formação, e muitos deles depois de encetarem percursos profissionais e políticos de grande destaque, compareceram sempre à chamada daquele que consideravam o “seu” colégio. Júlio dos Santos, um dos ex-alunos que incentivou a comemoração do segundo aniversário através da edição de um
jornal onde figuravam as opiniões de quase todos, escrevia em 12 de Janeiro de 1938 que o Colégio de João de Deus era para ele uma alegria que não podia deixar de exteriorizar: “Eu, que tenho acompanhado desde sempre o seu engrandecimento regozijo-me de todo o coração com tão faustoso acontecimento, e estou convencido que todos os meus colegas pensam e sentem o mesmo, porque o nosso colégio há-de progredir, progredir sempre, e ainda porque todos unidos, como leais amigos e dedicados ao nosso Director e Professores, respiramos aqui um ambiente familiar que nos cativa e nos conforta, e recebemos ensinamentos e carinhos que jamais olvidaremos por entre os espinhos da vida...” E a cordial familiaridade continua ainda quarenta e um anos depois. No dia 12 de Janeiro de 1961, por ocasião das Bodas de Prata do Colégio, são novamente os antigos alunos quem explica a razão de ser de tão próxima relação: “Como não podia deixar de ser, neste dia reuniram-se aqui todos os antigos alunos em franca confraternização. Todos vieram para ver o que há tanto tempo haviam deixado, todos vieram para se sentar nas mesmas carteiras que usaram e que actualmente são as dos seus filhos, todos vieram para ouvir os seus antigos professores, todos vieram para deixar numa aula ou num pátio, no ombro de um antigo mestre ou na face dum antigo colega, uma lágrima amiga, essencialmente franca e significativa”. Foi esse carácter marcante e extraordinário, centrado na necessidade de concretizar mais um dos sonhos que deu forma ao Monte Estoril, que transformou o Colégio João de deus numa das principais peças que conduziram à consolidação da Identidade e da Cidadania na localidade. Um dos principais mentores dessa motivação, foi José Dias Valente, o director do novo colégio que Aníbal Ferreira Henriques e Freitas e Silva foram buscar a Lisboa para dar forma ao novo projecto educativo. Como não podia deixar de ser, e mesmo se inicialmente o não soubesse, Dias Valente personificava a generalidade dos valores que Andrade Torrezão, Carlos Anjos e Henrique de Moser haviam criado no Monte
Estoril. A Casa para onde foi viver, e na qual faleceu em 1979, era a Vivenda Miramonte, também ela alteada pelas muralhas medievais de um castelo a fingir… Construída já no início do Século XX, mas aproveitando os resquícios de um movimento romântico que o Monte Estoril nunca rejeitou, a Vivenda Miramonte é hoje um dos paradigmáticos exemplos da memória urbana do Concelho de Cascais. Rodeada de um pequeno castelo, recriando o carácter altaneiro dos torreões que decoravam as vivendas mais eruditas, a Vivenda Miramonte complementa um quadro geral de que fazem parte da Capela, a garagem e o edifício das cocheiras. Do cimo dos seus mirantes, e fazendo jus ao nome da própria casa, o Monte Estoril surge em todo o seu esplendor, tornando invisíveis os muitos problemas que agravam paulatinamente a qualidade de vida naquele lugar. Utilizando profusamente os valores arquitectónicos entendidos como tipicamente portugueses, dos quais se destacam o telhado de beiral duplo e o painel azulejar com a identificação do imóvel, a Vivenda Miramonte reúne as características próprias da habitação erudita de Cascais e a sublime singeleza das aldeias rurais do termo de Lisboa, produzindo um efeito cenográfico exemplar, que transforma este imóvel numa espécie de duplicação adaptada daquilo que eram os valores tradicionais da Portugalidade. A importância da Vivenda Miramonte, no entanto, não se fica por aqui. Para além dos aspectos relacionados com as suas características físicas, foi ali que habitou durante várias décadas o antigo fundador e Director do Colégio João de Deus. José Dias Valente, detentor de uma inteligência invejável e de uma capacidade de concretização sem par, foi sempre considerado pelos que o conheciam como uma das principais referências do Monte Estoril. Pelo Colégio João de Deus, durante vários anos o único estabelecimento de ensino liceal existente na Linha de Cascais, passaram muitas gerações de portugueses que
contactaram e conheceram de perto o carácter do seu Director. Conhecido pela rectidão e pelo aprumo que dedicava aos seus afazeres, Dias Valente demonstrou sempre ao longo da sua vida que os valores que o norteavam se sobrepunham a quaisquer outras necessidades. Como contava amiúde o Dr. Mário Quina, amigo próximo de Dias Valente e médico do Colégio João de Deus, em certa altura, logo no início da sua carreira académica, quando era ainda um mero principiante no curso de letras da Universidade Clássica de Lisboa, foi-lhe marcado um teste escrito logo para a manhã. No decorrer da prova, e perante a estupefacção dos seus colegas, o professor reparou que ele não estava a escrever, questionando-o sobre o que se passava. A resposta, imediata e fulgurante, não se fez esperar: “ainda não estou preparado”. O mestre, como é evidente, não gostou do que ouviu e a crítica foi imediata. Enchendo-se de brios, Dias Valente responde-lhe simplesmente: “Para aprender a sua matéria chegam-me 24 horas”. “Então” – disse-lhe o professor – “venha amanhã a exame”. Como era seu hábito, passou a noite a estudar e, no dia seguinte fez uma excelente prova, cujo mérito foi publicamente reconhecido. Ao acabar o curso, e por discordar do sistema vigente, pretendeu defender uma tese sob o tema “A Escola Normal Superior Deve Ser Encerrada Por Imoral”. Como é fácil de perceber, a teses nem sequer foi aceite, facto que se traduziu numa espera de mais dois anos pela licenciatura, até que, de facto, a Escola Normal Superior fosse encerrada. Todo o percurso de Dias Valente à frente dos destinos do Colégio João de Deus, centrado na enorme capacidade de entendimento que ele tinha do espírito humano, acabou por transformar aquele estabelecimento de ensino em mais um dos sonhos inacabados que deram forma ao Monte Estoril. Passadas quatro décadas depois do seu encerramento e cerca de 33 anos depois da morte de Dias Valente, o Colégio João de Deus continua a sobreviver na memória colectiva Monte Estorilense. A sua presença, já não efectiva, é transversal àqueles
que o conheceram e frequentaram e a todos os outros que, directa ou indirectamente, acabaram por ouvir falar e por conhecer os resultados extraordinários do seu modelo pedagógico e educativo. Como quase tudo aquilo que se concretizou nesta terra excepcional, perdura não tanto pela coisa concreta e por aquilo que foi, mas sim pelo mito que envolveu a sua existência, como se o glamour que os fundadores do Monte Estoril aqui quiseram criar, perdurasse no tempo e fosse englobando progressivamente todas as grandes obras e projectos que ali se concretizaram. O fim do Colégio João de Deus, e o posterior desmantelamento das estruturas associadas à sua prática educativa, marcou o início de um período de grande declínio no Monte Estoril. A sede do colégio, a Villa Pomares, acabou por ficar abandonada durante muitos anos e as casas onde funcionavam os principais internatos, a Villa Luiza e a Telha Verde, foram destituídas da sua original funcionalidade. A primeira foi revertida para a sua primeira função habitacional, e a segunda foi demolida e no local nasceu mais um dos modernos empreendimentos do Monte Estoril. O edifício onde funcionava o ginásio, construído de raiz por Dias Valente para integrar o parque do colégio, foi posteriormente readaptado a escola pública e, dando continuidade à saga educativa do Monte, recebeu o nome do patrono original – João de Deus – continuando a desempenhar o papel de catalizador da estrutura social Monte Estorilense. O seu encerramento, já neste ano de 2011, foi acompanhado de um coro de tristeza por parte de antigos e actuais alunos, professores e população, como que se a saudade, apertando o dia-a-dia deles, fosse já a linha mestra das memórias que dali hão-de nascer. Mas os Estoris não se esgotam no romântico Monte… são um espaço alargado onde a heterogeneidade impera mas que partilha um mesmo mote e um mesmo princípio norteador. É quase impossível determinar com rigor qual é a génese efectiva dos Estoris mas, mais de 125 anos depois da sua origem pelas mãos de José Jorge de Andrade Torrezão, o certo é que a linha
principal é vincada não tanto pelo que se fez mas muito mais pelo que se pretendeu fazer. O Estoril, no plural se quisermos abarcar toda a linha de Cascais que começa na propriedade Palmela, junto à Vila de Cascais, e se estende até às já longínquas Águas de São José, vive efectivamente dos sonhos que impulsionam e condicionam a sua essência, como se dependesse mais da imaginação do que dos factos. E se pensarmos bem, atendendo à tipologia urbana dos diversos locais que os compõem, são muito mais as diferenças que existem entre cada um destes espaços do que as semelhanças que entre eles encontramos. Entre o Monte e o Estoril, por exemplo, existe uma quase antítese que é visível a quem por ali passa. As ruas sinuosas e frondosas no Monte; os muros altaneiros e muitas vezes de pedra solta que se consolidam em torno de ruínas fingidas como se fossem coisa velha; as espécies vegetais exóticas e esquisitas que compõem o coberto vegetal da povoação romântica; e até o casario, meio escondido dos olhares e das gentes, franqueando aqui e ali um mero esgar desprovido de contexto de uma ou de outra excentricidade dos que ali construíram ou moraram; parecem denotar uma profunda cisão perante aquilo que virá a ser a linha orientadora da construção do Estoril moderno que, com as suas ruas direitas e largas; as suas casas de traço modernista e muros baixos deixando que quem passa se maravilhe com a grandeza de quem para ali foi habitar; e mesmo a largueza dos espaços públicos que convidam a ficar; é sobretudo um espaço virado ao cosmopolitismo e ao futuro que Fausto Cardoso de Figueiredo ali quis criar. Apaixonado por Cascais e pelo Monte Estoril, onde passou a residir em Maio de 1910, Fausto Cardoso de Figueiredo é uma figura incontornável na história do urbanismo português. Nascido em Celorico da Beira, Distrito da Guarda, em 17 de Setembro de 1880, Fausto Cardoso de Figueiredo era Licenciado em Farmácia e foi, desde a mais tenra idade, um dos mais promissores e paradigmáticos dirigentes da antiga e emblemática Companhia dos Caminhos-de-Ferro de Portugal.
Radicado no Estoril desde os seus trinta anos, quando casou com Clotilde Ferreira do Amaral, mostrou desde logo apetência para os negócios desde a mais tenra idade, assumindose muito sensível aos inúmeros problemas económicos e financeiros que afectaram Portugal e o seu tecido empresarial no período final do regime monárquico e no decorrer da 1ª república. Clarividente e empreendedor, foi capaz de contrariar as vicissitudes conjunturais de um País que se encontrava à beira da falência, totalmente dependente de capitais externos e da iniciativa estrangeira, e de imaginar, projectar e construir aquele que é, segundo Maria da Graça Gonzalez Briz, um dos poucos conjuntos urbanísticos globais jamais concretizados em Portugal. Iniciando o processo de construção do então denominado ‘Parque do Estoril’ pela aquisição dos terrenos inseridos na antiga Quinta do Viana, onde existia somente um conjunto de construções precárias que davam apoio às actividades do recinto termal, e os restos degradados do Convento Franciscano de Santo António, Fausto de Figueiredo depressa percebeu que a única forma de enfrentar a concorrência oferecida pela Vila de Cascais, marcada por vários anos de presença da Corte; pelo aristocrático Monte Estoril, possuidor de uma fama de qualidade que ultrapassava as fronteiras Nacionais; e por São João do Estoril, povoado de raiz burguesa, institucionalizado a partir da exploração dos Banhos da Poça e da iniciativa de algumas das mais importantes figuras da finança portuguesa; era fazer do Estoril um espaço com uma identidade própria que promovesse uma forma renovada de cidadania. Os esboços iniciais do Arquitecto Francês Martinet, que se orientavam precisamente pelo carácter global de toda a urbanização, pressupunham a recriação na velha Quinta do Viana de um espaço homogéneo bem definido, no qual as diversas actividades, como a habitação, o comércio e o lazer, se interpenetravam, numa dinâmica consolidada a partir das características arquitectónicas e urbanísticas dos edifícios e dos espaços.
Os equilíbrios gerados por esta formulação urbana, promoveriam, no entender do urbanizador, uma qualidade de vida sem igual, na qual se tornaria fácil a recriação de uma identidade que cunhasse o Estoril com a marca de qualidade pela qual todos ansiavam. Este tipo de experiências de urbanização global com planeamento prévio, necessariamente contrárias àquilo que eram (e continuam a ser) os hábitos de construção em Portugal, já haviam sido tentadas com sucesso noutras partes da Europa. Em Portugal, exemplos como o da baixa pombalina de Lisboa ou o da criação do Monte Estoril, este último inacabado devido às dificuldades económicas da ‘Companhia Monte Estoril’, mostravam que era possível e consequente a concretização destes projectos, bastando, para tal, que existissem os capitais necessários e o apoio político formal das instituições oficiais. E foi precisamente isso que aconteceu. Como resultado da capacidade pessoal e do empenhamento de Fausto de Figueiredo e do seu sócio Augusto Carreira de Sousa, a ‘Sociedade Estoril-Plage’ conseguiu cativar o interesse dos grandes capitalistas lisboetas, que escolheram o Estoril para construir as suas novas habitações. Por outro lado, e mercê da influência cénica marcada pela construção daqueles que haveriam de transformar-se nos principais elementos aglutinadores da nova localidade, como o edifício das termas, os hotéis Inglaterra, Paris e Palácio, e o grande casino internacional, as novas edificações enquadram-se quase todas no estereótipo criado em torno dos valores da tradicional “Casa Portuguesa” e das inúmeras variações de cariz modernista que caracterizaram a época. Em termos políticos assumiu papel de especial relevo, na década de 30, o surgimento do Estado Novo. Fundamentado numa propaganda que dependia de uma recriação quase artificial de uma nova forma de ser e de estar em Portugal, não só como incentivo à promoção turística no estrangeiro, como também à consolidação dos novos valores Nacionais, o Governo utilizou
profusamente o Estoril como cenário privilegiado para os seus extraordinários eventos. A fama e o prestígio do Estoril, marcados pela qualidade do seu projecto urbano, pela dinâmica social e cultural que se enquadrava nos espaços existentes, e pela fulgurante propaganda estatal, depressa se institucionalizaram, facilitando assim o processo de venda de lotes e de edificação de novas construções. O Parque do Estoril, centrado na grande praça que resulta da construção das arcadas – edifícios de utilização mista de comércio e habitação -, no seu vasto e amplo jardim, no imponente casino, e na praia, possui todas as condições que garantem aos novos habitantes a possibilidade de se integrarem socialmente. Os eventos estorilenses, dos quais se destacam a grande Feira de Amostras da Indústria, em 1929; o II Circuito de Portugal em Automóvel, em 1933; os entrudos e as lendárias passagens de ano; vão-se complementar com a electrificação da linha de caminho-de-ferro, com a criação dos Bombeiros dos Estoris, com a inauguração da Estrada Marginal, com a recuperação da Igreja de Santo António, com a inauguração do Hotel Palácio e do Casino Estoril, etc. A excelência do espaço, aliada a uma formulação urbanística de grande qualidade, a um enquadramento arquitectónico baseado em linhas mestras comuns, e a uma promoção sem igual no panorama Nacional, transformam o Estoril naquilo que ainda hoje consegue ser: um local equilibrado, agradável e socialmente saudável, onde a habitação, o comércio, os serviços e o lazer coexistem pacificamente, com evidentes benefícios recíprocos e uma qualidade de vida incomparavelmente maior do que aquela que caracteriza outras zonas do Concelho de Cascais. Como é evidente, esta situação acaba por ter consequências efectivas no quotidiano de todos quantos vivem, trabalham ou passeiam no Estoril. A qualidade da envolvência e o grande cuidado dispensado ao espaço urbano, dignifica as zonas públicas, valorizando o património privado e
transformando-se numa mais valia para o local. Os hábitos, os usos, os costumes e o dia-a-dia do Estorilenses vão-se adaptando às suas condições de vida, facto que, por sua vez, influi na educação, no civismo e na cultura dos habitantes. A qualidade do Estoril, alicerçada no projecto urbano de Martinet e na cenografia da localidade, é hoje resultante de uma panóplia que agrega também o apoio político do Estado e da Autarquia; a vontade e a educação dos seus habitantes; a capacidade e o espírito empreendedor dos seus comerciantes e empresários; a visão dos promotores que ali existem; e o civismo daqueles que visitam o local. Tudo isto, como é evidente, é resultado do planeamento global prévio levado a cabo por Fausto de Figueiredo, da sua capacidade de ultrapassar as vicissitudes do sistema e do enquadramento geral que ele conseguiu imprimir a todos aqueles que ali construíram as suas habitações. Cem anos depois, e ainda mantendo bem vivo o seu espírito original, apesar de algumas desvirtuações pontuais que resultaram de incapacidades políticas conjunturais, o Estoril assume-se como exemplo de sucesso que demonstra que é possível recriar espaços de enorme qualidade nos quais o comércio, a habitação e os serviços se equilibrem promovendo uma vivência socialmente saudável, com excelentes parâmetros de segurança e de bem-estar. O impulso dado por Fausto Cardoso de Figueiredo ao turismo, baseado não só na criação de raiz daquela que vai ser a primeira grande urbanização totalmente pré-planeada em Portugal, como também nas inúmeras intervenções pontuais que desenvolveu enquanto político, faz dele uma personalidade incontornável na história deste sector (6) e a sua obra-prima – o Estoril – num dos mais extraordinários exemplos de como o sonho e a capacidade de visão podem influenciar o dia-a-dia das comunidades.
Um Estoril de Sangue De todas as regiões turísticas do País, aqui considerando mesmo aquelas que actualmente foram artificialmente englobadas em entidades de grandes dimensões que burocraticamente se dedicam exclusivamente a orçamentar as acções promocionais associadas às respectivas marcas, o Estoril será, porventura, aquela que mais difícil se afigura apresentar de forma cabal através de boas campanhas publicitárias. A razão para este facto, que se prende directamente com a excepcionalidade do destino e a imensa excentricidade que caracterizou os seus últimos cem anos, deriva principalmente do facto de existirem poucas palavras na língua Portuguesa (que já de si é das mais ricas do Mundo) com a amplitude suficiente para descrever os Estoris. O Estoril, cadinho de sonhos misturado com concretizações que transcendem largamente o entendimento que temos dele, nasceu, cresceu e afirmou-se numa amálgama de sensações que faz jus à assinatura que durante algum tempo caracterizou institucionalmente a região: Estoril Mil Sensações. Os aromas, as cores e as texturas do Estoril, eivadas de um onírico apelo a uma forma alternativa de ser e de estar que resultou do natural devir histórico da região mas também da verdadeiramente extraordinária acção programada de homens como Fausto de Figueiredo, Andrade Torrezão, Monsenhor António José Moita, Conde Henrique de Moser, Dias Valente ou Carlos Anjos, formam uma panóplia irresistível que só pode ser conhecida se for devidamente experimentada. Uma das grandes questões que se coloca ao Estoril enquanto região turística, e que causa perplexidade e discussões sem fim há já demasiados anos, tem a haver com a dupla consideração de todos sabermos que esta é uma região excepcional mas, sempre que por cá recebemos visitantes ilustres e de excepção, termos dificuldade em oferecer-lhes um pouco
dessa excepcionalidade. Este autêntico fenómeno é transversal a todos os segmentos turísticos e, mais preocupantemente ainda, a todas as instituições que lidam e trabalham com esta região. Nos bons hotéis de Estoril e de Cascais, para já não falar nos de Lisboa ou de Sintra, quando os clientes descem à recepção e questionam os profissionais que lá estão sobre o que hão-de fazer durante a sua estadia na região, as respostas raramente vão além das sugestões de visitas ao Cabo da Roca, aos pastéis de Belém ou às queijadas de Sintra… E isto acontece, mesmo que exista consciência de que seria importante ser capaz de mostrar um Estoril diferente, porque se torna muito difícil (na actual conjuntura quase ousaria dizer impossível) fomentar uma relação de tal forma empática com a realidade local que impulsione a capacidade de transmitir esta excepcionalidade usando poucas palavras e muitas emoções. Na região do Estoril, durante largas dezenas de anos, discutiam-se acaloradamente quais eram os equipamentos essenciais e imprescindíveis para que se assumisse a vocação turística e se fosse capaz de gerar motivações e interesse acrescido que garantissem que a estadia por cá acontecia de forma plena e inesquecível. Falava-se, nessa época de boa memória, da necessidade de ter um centro de congressos, um número mínimo de seis hotéis de cinco estrelas, de uma marina excepcional, de estacionamento pago e rotativo nos centro de Cascais e do Estoril, de pelo menos 3 bons campos de golfe, de uma Cidadela adaptada aos interesses do turismo, de uma grande museu de referência a nível internacional e de umas termas que rentabilizassem o potencial das águas que brotam neste local. Hoje, depois de investimentos de grande monta que por aqui foram efectuados, temos a Marina de Cascais, o Centro de Congressos do Estoril, vários hotéis de cinco estrelas, campos de golfe extraordinários, o Museu Pala Rêgo, as termas totalmente remodeladas e condições de segurança e de acessibilidade como nunca existiram por cá. Mas continua a discutir-se o que fazer para inverter a tendência de descalabro que o Estoril teima em manter…
A grande dificuldade, arreigadamente dependente de uma nova forma de abordar o Estoril, prende-se precisamente com o carácter único desta região que, ao tornar mais difícil a definição de estereótipos e de ideias pré-concebidas, exige formas novas de transmitir, promover e abordar. Numa altura em que o apelo não se coloca tanto naquilo que se vê mas muito mais naquilo que se sente, assumindo que as sensações e as experiências promotoras de memórias são o único caminho plausível para a afirmação de um destino excepcional, o Estoril possui todas as condições (sublinho o todas para que seja perceptível que elas já existem e é urgente que sejam capazes de as rentabilizar) para conseguir chegar longe com a sua mensagem turística. O Estoril de sangue, ou seja, aquele que foge aos cânones e se constrói em torno do inesperado e do imprevisto, é um espaço no qual a diferenciação é a regra e em que a qualidade da oferta se sobrepõe às estratégias mais comuns do mundo turístico ocidental. Por isso, e em conformidade com as origens que lhe deram a forma que hoje lhe reconhecemos, o Estoril deve ter a capacidade de reinventar discursos e definir caminhos que transportem as emoções que ele emana aos públicos-alvo que darão sustento à sua verdadeira vocação turística. Para esse efeito, o passeio pelo Estoril não se faz de praia em praia, de paisagem em paisagem, de monumento em monumento ou de hotel em hotel. Nem tão pouco se faz de estória em estória. Mostrar o Estoril e promovê-lo condignamente passa sobretudo pela capacidade de amalgamar todas essas componentes, se possível através de um processo ilógico semelhante àquele que presidiu à sua criação e, desta forma quase surreal, reconverter as memórias daqueles que ousarem passar por cá. É essa capacidade de adaptação ao momento e às pessoas, tornando significante a visita e, com isso, reconvertendo um passeio maravilhoso em algo de verdadeiramente excepcional, que consegue alterar paradigmas e transformar a estadia no Estoril em algo de profundamente marcante mas… quase impossível de descrever.
O sangue do Estoril, pressuposto básico que serve de ensejo a todos aqueles que desejarem conhecer melhor Portugal, forma-se não só dos que aqui nasceram ou sempre viveram, mas também dos que por cá passam em lazer ou em trabalho. É, como Fausto Cardoso de Figueiredo bem percebeu há quase cem anos atrás, um cadinho de memórias comuns, onde a partilha se sobrepõe à diferença e no qual se constroem formas renovadas de o abordar. Para além da já mencionada dificuldade em traduzir em palavras um Estoril que se compõe sobretudo de emoções, assumindo esta premissa como base essencial para se ultrapassar o défice de excelência quando se acredita que é possível mostrar esta terra com uma mera descrição, um outro pressuposto de base que se impõe ao sangue que lhe deu forma, assenta no facto de não existirem dois Estoris iguais… ou seja, cada visita, cada estadia, cada torneio ou congresso que aqui se realiza, cada visitante e cada família que cá vêm encontram um Estoril que constroem de acordo com a sua vivência pessoal. No fim, e ao contrário do que acontece noutros destinos, nos quais a definição de experiência passa muito mais por uma definição prévia imposta pelos guias turísticos e pelas empresas que gerem a oferta cultural, resultam tantas ideias, imagens, emoções e memórias dos Estoris quantos aqueles que por cá passam e têm a coragem de viver o local. Em torno dos jardins do Casino, como também nas ruas, alamedas e avenidas que compõem a forma física do Estoril, criam-se laços indestrutíveis que se cimentam no sangue que os sonhou. A promoção das visitas do Estoril, em todos os segmentos que genericamente sabemos hoje serem os mais adequados a um espaço com as características físicas e sociais como é o actual, faz-se por isso sempre em torno do perfil individual de cada visitante e, como não é difícil de perceber, a única forma de tornar possível essa abordagem diferenciadora e original, é promovendo o conhecimento e o reconhecimento do que é o Estoril actual, junto de todos os profissionais que cá trabalham ou que promovem a região.
É esse o sangue que estabelece os contornos a uma região turística tão especial quanto esta. São esses os laivos de um caminho efectuado com seriedade, segurança e eficácia em direcção a uma afirmação que o Estoril merece desde que saiu da pena de Martinet. É através desta abordagem diferenciadora, assente na premissa mais extraordinária que pode dar mote à existência de um espaço – o sangue – que o Estoril conseguirá voltar a ser o destino de excelência desta Europa cada vez mais igual. Quando no início da década de 50 do Século XX, o escritor Inglês Ian Fleming publicou o primeiro título da sua saga de espionagem dedicada ao mítico personagem James Bond, surge um dos melhores (e não assumidos) retratos do Estoril. De facto, por vicissitudes relacionadas com a intervenção de Inglaterra na Segunda Guerra Mundial, o escritor esteve hospedado no Hotel Palácio e terá conhecido o Casino Estoril de então. Não se sabendo qual é a parte de sonho que compõem a realidade que terá vivido nesse Estoril sui-generis que vivia em torno das aparências que as dificuldades políticas da Europa lhe impunham, o certo é que o Casino Royale, trazendo para o Mundo o mais famoso agente secreto de todos os tempos, traduz essencialmente uma forma de ser e de estar que naquela altura só existia no Estoril. Os bandidos, espiões e agentes secretos, partilhando os átrios dos hotéis com prostitutas, rainhas e a mais alta aristocracia da Europa e as noites no casino com as mais emblemáticas e conhecidas figuras de Hollywood, eram o dia-adia comum no Estoril, funcionando toda a região como uma espécie de imenso cenário de filme no qual cada um representava o seu papel procurando os benefícios e os dividendos da sua capacidade de se fazer entender. Este Estoril que Ian Fleming conheceu bastante bem, e que na prática não é mais do que a transposição para o clima vivido na Europa da segunda grande guerra daquilo que haviam sido os resquícios do nascimento dos Estoris, no tempo da Companhia Monte Estoril, era impossível de descrever mesmo
num continente tão abalado pela incerteza e pelo carácter ilógico do seu dia-a-dia como era aquele. No entanto, transposto para romance de espionagem e composto a partir da inverosimilhança que dava forma ao quotidiano daquela época, transformou-se numa espécie de mito que levou longe o nome e a fama do Estoril. Os aromas, as cores e as texturas deste Estoril de sangue compõem-se a partir de uma matiz social em que nada é aquilo que parece. Por isso, descrever a quem não conhece e não sentiu o Estoril um composto de valores oníricos que mais parecem impossíveis de acontecer do que uma realidade cabal, é tarefa inglória e condenada ao falhanço. A única maneira de o fazer, reclamando abordagens alternativas e a reconfiguração de uma forma nova de estar no Estoril, composta a partir do sangue que a fez nascer e das memórias ainda bem vivas que acabaram por determinar o seu perfil, é apelando aos sentidos e fomentando a criação de memórias efectivas, de estórias concretas e de uma experiência pessoal que seja verdadeiramente marcante. No Verão de 2007, depois de uma experiência verdadeiramente alucinante passada ao longo de uma estadia de três dias do Estoril, as jornalistas britânicas Michelle Patient (Time Magazine) e Sarah Mudlock (Square Mile) publicaram duas imensas reportagens sobre a região. O convite que as trouxe ao Estoril, emitido em parceria por várias entidades responsáveis pela promoção externa de Portugal e, nessa altura, também pela extinta (e saudosa) Junta de Turismo da Costa do Estoril, centrava-se na mensagem associada às mil emoções que o Estoril oferecia e compunha-se de um conjunto de ofertas que, atravessando transversalmente a oferta da região, permitiam mostrar às duas importantes comunicadoras oriundas de um mercado emissor tão importante como era o da Grã-Bretanha dessa época, compunham uma espécie de quadro maravilhoso colmatado com o tempo que se acreditava ser fantástico nessa altura em Portugal.
O programa que se lhes apresentou não era, no entanto, em nada semelhante àquilo que havíamos imaginado para elas e, dando forma à oportunidade de as obrigar a sentir um Estoril que se transformasse numa experiência que se cruzasse de forma directa com a sua experiência pessoal, tivemos a oportunidade de preparar um programa alternativo e oficioso que, perante as dúvidas das entidades organizadoras, acabou por se concretizar e por transformar por completo aqueles dias passados cá dentro. Invertendo as prioridades e acreditando que o grande valor do Estoril não reside no muito que normalmente dá forma ao cartaz turístico oficial da zona mas sim na capacidade de trabalhar essa oferta de forma cruzada com o perfil do visitantes, preparámos um programa-choque que, adaptado à realidade actual, permitiu-lhes experimentar o que era o Estoril durante o tempo em que Ian Fleming cá esteve. Não vale a pena mostrar o Hotel Palácio, e até (fingindo-se saber qual foi) mostrar-lhes a mesa onde teoricamente o escritor terá traçado no seu caderno os apontamentos que mais tarde utilizou para recriar o mítico agente James Bond. Também não valeria a pena, porque os órgãos de comunicação social em questão eram demasiadamente importantes para que se perdesse a oportunidade de ser verdadeiramente marcante com elas, apresenta-las ao porteiro do Hotel Palácio que participou no filme que se gravou no Estoril e que conheceu de perto as estrelas de Hollywood que nessa altura cá estiveram. Pouco interesse, pelo descontexto em que isso ocorreria, seria levá-las ao Casino Estoril de agora, moderno e cosmopolita mas total e radicalmente (e ainda bem) diferente daquele que cá estava nos anos quarenta do século passado. E por fim desinteressante seria também, porque dezenas de jornalistas tiveram oportunidade igual ao longo dos últimos anos, andar a pé pelo Estoril mostrando-lhes as casas onde viveram as figuras coroadas que escolheram este terra como local para o exílio idílico e bucólico do pós-guerra. A opção, que levantou celeuma e discussões imensas junto de quem geria este destino diferente, foi a de recriar um novo programa que incluísse tudo
isso, mas que o fizesse de uma forma radicalmente diferente, assegurando a emoção, o inesperado, a incerteza e o impacto que gerariam uma relação sentida e de sangue com o Estoril que hoje temos. A primeira escolha para a definição do conteúdo, tendo em linha de conta o quase total desconhecimento que existia relativamente ao perfil das jornalistas e do eventual conhecimento que pudessem ter relativamente à região, foi consolidar o início do programa em torno daquilo que para elas seria expectável e recorrente. Um bom jantar com os anfitriões, a simpatia e os sorrisos de circunstâncias que sempre acompanham estes acontecimentos, e um autêntico bombardeio com mensagens e informações sobre a excepcionalidade Estorilense, deram o mote para que se percebesse qual era o perfil de cada uma delas e se reconsiderasse o programa verdadeiro que estava preparado para os dias seguintes da estadia. Traçado o perfil das duas visitantes, e assumindo de antemão que a única forma de garantir uma marca profunda daquela visita seria a criação de emoções e memórias que fossem sentidas como parte integrante do percurso de vida de cada uma, foi possível recriar todo programa, mostrando o Estoril de forma inesquecível e deslumbrante. O mote da visita, centrado no facto de existirem sentimentos humanos que são transversais a todos os viajantes e que pressupõem que as estórias para contar no final da visita são a melhor das recordações que se podem levar, foi o Estoril do período áureo do pós Segunda Guerra Mundial, e oscilou entre a abordagem efectiva à temática e a mera sugestão dos motivos que estão por detrás dela. O glamour permanente de uma terra na qual tudo é efectivamente possível, basicamente porque o Estoril se compõe de sonhos e esses, livres das amarradas da matéria física, podem espraiar-se até para além das fronteiras que a imaginação traça, é visível e sensível a cada passo pois a povoação que percorremos, com as suas ruas, becos, jardins, casas, hotéis, restaurantes e gentes, é um espaço onde todos representam os seus papéis, acreditando piamente que os outros
vivem as suas vidas de forma efectiva, e que acreditam no que aquela imagem de nós pretende mostrar. O primeiro dia, contrastando com as expectativas geradas na véspera, esteve longe de ser aquilo pelo qual ambas esperavam. Depois de saírem do hotel, e de terem percorrido vagarosamente o trajecto até Cascais onde teoricamente embarcariam num iate pleno de glamour para passarem um dia inteiro a fotografar o Estoril a partir do mar, optámos por informá-las de que o dito barco estava avariado e que, por isso, seria necessário substitui-lo por um outro, menos vistoso mas que, dado o impacto da paisagem que se veria depois de termos embarcado, faria valer a pena algum desconforto que a nova embarcação pudesse causar. Chegados a Cascais e depois de estacionado o carro, as visitantes foram convidadas a esperar no cais dos pescadores, no largo em frente à Câmara Municipal, onde estava atracada uma velha e tradicional traineira em madeira, repleta de pescadores trajados a rigor e pouco adequados ao estilo requintado das duas viajantes. Depois de alguma troca de palavras em Português, eis então que lhes transmitiram que o passeio iria acontecer dentro daquele barco, explicando que era uma embarcação tradicional que lhes permitiria compreender melhor o Portugal real e, simultaneamente, trocar algumas impressões com pescadores verdadeiros. E não foi fácil conseguir que aceitassem a mudança… Jornalistas de primeira linha das revistas de glamour, a utilização de uma embarcação tradicional pressupunha uma completa inversão da abordagem que estavam habituadas a fazer. Depois de muita insistência e de lhe ter sido proposto que fizessem um passeio mais curto somente para ver as vistas e que, se vissem que era inconveniente, desembarcariam a meio da manhã e almoçariam num sítio qualquer, lá acederam a entrar na traineira, perante o olhar suspeito e interessado dos pescadores que, seguindo a tradição centenária, não falavam nem sequer uma palavra de Inglês mas nem por isso se desinteressaram daquelas loiras e simpáticas passageiras... Mas o inesperado impôs-se. Fundeados ao largo do Estoril e depois de termos
navegado até junto do Cabo Raso onde os pescadores levantaram as redes e pescaram o peixe que lhes tinha pedido que fosse o nosso almoço, toda aquela paisagem maravilhosa e o carácter genuíno de tudo o que as envolvia, com a simpatia dos homens do mar e o cheiro característico do barco de pesca, rapidamente se percebeu que estava ultrapassada a vontade de desembarcar e, desta maneira, optou-se unanimemente por ficar a bordo e por provar uma caldeirada preparada logo ali pelos pescadores Cascalenses. Foi um sucesso total e absoluto. A confraternização descontraída; os aromas próprios de um barco de pesca velhíssimo; os sons que somente as antigas embarcações em madeira emitem; o sabor da caldeirada feita de peixe fresco e partilhada nos pratos velhos de alumínio que os pescadores utilizam no mar; tudo conjugado com a paisagem irrepetível de um Estoril verdadeiramente excepcional, fizeram do passeio um dos mais inesquecíveis cruzeiros da vida delas, facto que disseram, repetiram e escreveram nas suas revistas, sublinhando que a singeleza das gentes, conjugadas com o glamour do espaço, tornava o Estoril num passeio que tinham gostado de fazer e que pretendiam repetir amiúde com as suas famílias e amigos num futuro que desejavam não ser muito distante. Para complementar este dia, fomentando o excesso das expectativas e jogando com as memórias que um Estoril apresentado desta forma vai motivando, foram ambas as jornalistas convidadas para um jantar de gala no Casino Estoril, para onde se dirigiram à noite, vestidas a rigor, mas tristes por saberem que não estariam lá os homens que haviam tornado o dia tão interessante. Mas eles estavam lá. Vestidos a rigor, com smokings que experimentaram pela primeira vez, numa estreia no Casino Estoril que os deslumbrou a eles e a elas. Sem que fossem capazes de trocar uma palavra o dia inteiro, pois elas não falavam Português e eles de Inglês nada sabiam, riram e divertiram-se a noite toda, numa clima de descontracção que fez da visita ao maior casino da Europa um momento que nenhuma delas (nem deles) jamais esqueceu.
Na manhã do segundo dia, tendo sido avisadas de que existiria alguma monotonia nesta primeira abordagem ao Estoril, e que as entidades organizadoras não se poupariam a esforços para colocar um dos melhores guias Portugueses a acompanhálas a pé através de deambulações demoradas pelas paisagens Estorilenses, foram as jornalistas recebidas por um actor representando um guia turístico que, nervosamente e sempre apalpando um grossíssimo dicionário de Português-Inglês que carregava debaixo do braço, ia balbuciando ideias comuns sobre a localidade que lhes haviam transmitido ser excepcional. As expectativas, levadas ao extremo durante o jantar da véspera, iam-se diluindo por detrás da monotonia de um passeio aborrecido, desinteressante e pouco motivador, ao mesmo tempo que, entre elas, comentavam a precariedade que representava para Portugal ver-se mostrado por uma figura tão frágil e original. Atravessando o jardim do casino, com o inigualável guia perfeitamente enervado por ver-se perante tão importantes figuras e aparentemente deslumbrado ele próprio pelo verde viçoso da relva do jardim que não se cansava de elogiar, foram as visitantes levadas até às esplanadas das Arcadas do Estoril onde teoricamente deveriam descansar e tomar um reforço do pequeno-almoço de modo a que tivessem forças e energias suficientes para aguentarem o passeio pedonal que deveria durar até ao fim da manhã. À mesa, a presença do guia torna-se evidentemente enervante. Para além de ser óbvio que sabia muito pouco sobre o Estoril, do qual elas tinham ouvido falar tanto durante o jantar da véspera, era quase desesperante a sua pouca capacidade para falar em Inglês e o nervosismo enervante que usava para permanentemente desfolhar o dicionário e encontrar os adjectivos necessários para falar com elas. Depois de bastante tempo de tensão, que as obrigou a conversarem uma com a outra para ponderarem o que fazer (e a melhor opção parecia prescindir do guia e assumirem elas próprias a direcção da visita que queriam fazer para conhecer este sítio tão especial), eis então
que o guia resolve pedir cafés e distribuir pelas convidadas ilustres alguns petiscos tipicamente Portugueses. A meio da refeição, de forma inesperada e impactante, travam a fundo na estrada em frente à esplanada vários carros de alta cilindrada e de vidros fumados que, com grande algazarra, se abrem para deixar sair um conjunto de bandidos mascarados e armados até aos dentes, procurando recriar os antigos espiões e contra-espiões que enchiam o Estoril nos anos quarenta do século passado. No meio de grande balbúrdia, agravada pelo facto de o caos se ter instalado junto dos demais frequentadores da esplanada em questão, e com as convidadas convencidas de que estavam perante um ataque terrorista organizado por uma qualquer organização extremista, foram obrigadas a ajoelhar-se e, perante a insistência dos pretensos bandidos, colocadas à força dentro dos carros que arrancaram em alta velocidade em direcção a Cascais. Conforme se deve imaginar, o percurso em questão nunca mais será esquecida por nenhuma das participantes que, vislumbrando Cascais ao longe e as belezas da costa sem delas poderem usufruir, iam nervosamente captando pequenos laivos de uma paisagem que jamais conseguirão apagar da sua mente. Levadas à força das armas para o topo de Serra de Sintra, e mudadas dos carros fechados para o contentor de uma carrinha de caixa aberta e tracção integral que desceu a velocidade vertiginosa a encosta da Peninha em direcção à Praia do Guincho, obviamente enquadrando a adrenalina libertada pelo momento numa das paisagens mais marcantes que a região do Estoril tem para oferecer, magoaram-se, sujaram-se e assustaram-se à medida em que iam percebendo que existia um tom de brincadeira em tudo aquilo e que as esperava uma qualquer surpresa bem grande. Na gestão das expectativas e das emoções, nada existe de mais contrastante com o desconforto físico do que uma excelente refeição. Descontraidamente e limpos para contrastar com elas, esperámo-las num dos melhores restaurantes da região do Estoril, para um almoço com uma ementa requintada e
representantes de diversas instituições com responsabilidades directas na promoção turística do Estoril. Em qualquer outra ocasião, o facto de estarem sujas e doridas, de não estarem maquilhadas e de não esperaram participar num almoço daquele tipo, teriam sido motivos mais do que suficientes para negarem o convite e para se recusarem a partilhar a refeição. Mas num Estoril repleto de mil emoções, no qual tudo é possível e onde tudo pode efectivamente acontecer, não há nada que possa parecer mal, e foi com naturalidade que se sentaram à mesa e partilharam connosco um dos melhores almoços da sua vida. Não sem antes, evidentemente, terem em tom que misturava brincadeira e raiva, deixado alguns comentários à nossa pessoa que, nessa altura com consciência total, elas já tinham percebido que éramos os ideólogos e principais responsáveis por todo aquele conjunto de surpresas. No final do almoço, descontraído, longo, saboroso e de frente para as ondas do mar, os comentários já eram unânimes da parte delas: estava a ser a fam-trip mais marcante das suas vidas e as emoções multiplicavam-se a cada momento. Pediam-nos, sempre com um sorriso nos lábios e uma ligação afectiva ao Estoril que já não conseguiam disfarçar, que não houvessem mais surpresas e que o resto do programa decorresse com muita calma e em clima total de paz. Garantimos-lhes isso, sabendo de antemão que poucos minutos depois seriam atacadas novamente por um conjunto de bandidos pretensamente perigosos que as levariam para o mar num bote semi-rígido e que, sem apelo nem agravo, seriam lançadas ao mar ao largo da Praia das Moitas, no Monte Estoril… Por fim, colocando uma pedra sobre dois dias repletos de emoções fortes e de um Estoril marcante e inesquecível, foilhes oferecido um jantar de gala, servido à Inglesa, no salão principal do Hotel Palácio do Estoril. Nesta refeição, na qual entraram a medo, estavam todos aqueles que participaram na recriação deste Estoril vincado pela Segunda Guerra Mundial e, em clima de muito divertimento e de umas alegria sem igual, foram-lhes apresentados o espião James Bond, que presidiu à
mesa em pessoa, várias Bond Girls, os bandidos e raptores, os pescadores e todos os que colaboraram na iniciativa. Prolongando-se praticamente até de manhã, foi o epílogo perfeito para enquadrar o Estoril que desejávamos mostrar-lhes. Na última manhã, ainda com elas cheias de medo de que existissem surpresas preparadas e com as expectativas levadas ao máximo, levámo-las a conhecer os factores que suportam a região do Estoril. Um passeio a Sintra e uma visita ao Palácio da Pena e uma incursão breve ao Castelo dos Mouros em Lisboa depois de uma mera passagem por Belém, mostrou que para além do Estoril existem outros motivos de interesse num raio diminuto de pouquíssimos quilómetros de distância, e que agradavelmente se podem visitar durante uma estadia no Estoril. A despedida, no Aeroporto da Portela, foi o mais marcante de todos os momentos da vista ao Estoril. Contrariamente ao que acontece com profissionais da comunicação social que visitam outros países e regiões em trabalho, mantendo o profissionalismo e o ar frio e distante que caracteriza os jornalistas Britânicos, a despedida foi feita de abraços e de lágrimas, num ‘até já’ repleto de emoção e carinho que garantiu o regresso de ambas num curso espaço de tempo e um grau de fidelização que a generalidade dos que trabalham no sector teimam em dizer que não se pode alcançar. A promoção que se tem feito do Estoril, marcada pela institucionalidade, pelas abordagens de sempre e pelas técnicas corriqueiras que marcam o marketing turístico de outros países e regiões, não se aplica pura e simplesmente a esta terra excepcional. O Estoril, feito de sangue e de sonhos, no qual a relação efectiva e afectiva surge marcada pelo dia-a-dia inesperado e inquietante que a abordagem emocional ao espaço confere, tem de ser mostrado utilizando os cheiros, as cores e as texturas únicas, gerando emoções e garantindo que elas dão forma à memória. Porque a ligação ao Estoril é premente, permanente e profunda.
Monte Estoril Romântico Uma visita aos Estoris, para começar onde tudo se iniciou, principia obrigatoriamente junto à Estação dos Comboios. Foi pela linha, inicialmente impelida pelo trabalho do Conde Henrique de Moser, e mais tarde pelo impulso moderno de Fausto de Figueiredo, que os Estoris se aproximaram da capital, tornando-se um local visitável e no qual se podia encontrar o conforto urbano compatível com a existência profissional em Lisboa. É neste espaço, marcado pela expressão difusa de uma linha que nos trás e leva de Cascais a Lisboa, que se marca a cisão da antiga Vila da Corte com o novo resort turístico de qualidade excepcional e é também aqui que, nas tardes quentes de Verão, se vislumbra ao longe o perfil encadeado da Cidadela de Cascais onde, a partir de 1870, o Rei Dom Luís passava os fins-de-tarde estivais. A Estação do Monte Estoril, integrada na linha-férrea que ligava Cascais a Pedrouços e que foi inaugurada em 1889, trouxe aos ainda inóspitos Estoris uma real possibilidade de crescimento e afirmação. Ilustrativo deste facto, é o contrato assinado em 1879 pelo Duque de Saldanha que visava a construção de uma ligação ferroviária entre Lisboa e Alcobaça, com passagem por Torres Vedras e pelas Caldas da Rainha e que, anos mais tarde, já em 1871, foi expandido até Sintra e Cascais. Este projecto, que rapidamente alterou a sua definição para “Linha-Férrea de Cascais”, foi determinante para a definição das novas acessibilidades aos Estoris e, desta forma, para que os sonhos dos seus fundadores pudessem tornar-se realidade. A ligação de Cascais ao Monte Estoril, numa primeira fase exclusivamente efectuada por comboio por não existia ainda o passeio marítimo que propicia uma descansada caminhada entre os dois lugares, serviu também de elemento gerador de diferença entre os espaços. É que, aproximando-os fisicamente e tornando
confortáveis e acessíveis as viagens, o comboios e as estações foram essenciais para marcar o carácter diverso e a diferença efectiva até ali existente. Cascais era a Vila da Corte, onde estava o Rei acompanhado das famílias que com ele vinham a banhos, e estruturalmente compunha-se em torno de uma figuração estética baseada nos valores das aldeias piscatórias. A urbe era diminuta e com poucos atractivos visuais, e compondo-se de um casario tradicional de cor branca e homogénea onde imperava a humildade social e não existiam muitos exemplos de excelência arquitectónica. O Monte Estoril, por seu turno, era o oposto disso. Teve, a partir de certa altura, a sua Rainha – D. Maria Pia de Sabóia – que para ali foi morar com o infante depois da morte do Rei Dom Luís, mas era essencialmente uma terra aristocrática onde tudo era permitido em termos urbanos. A arquitectura de cenário, concebida e pensada para deslumbrar tem muito pouco a haver com a humildade piscatória de Cascais e impõe novas regras de sociabilização que agregam em si próprias os novos caminhos que darão forma ao moderno Portugal. Ao chegar à estação, vislumbra-se ao longe um povoado completamente diferente. Sente-se nos muros de pedra solta, nas enormes palmeiras de travo marroquino e nos telhados que despontam aqui e ali pelo meio da vegetação. O Monte Estoril é exótico desde o primeiro momento e impõe ao visitante o gosto assumido pelo acto de pesquisar. Apetece andar por ali. Apetece deambular por aquelas ruelas íngremes e estreitas e descobrir a cada passo os segredos bem guardados de vidas que imaginamos terem andado por lá. O tom desta terra é o verde cruzado com o castanho, impondo-se a vegetação luxuriante que se mistura com o ocre das pedras dos muros, marcadas aqui e ali pela patine do tempo e por aquele tom impossível de descrever que nos obriga também a sonhar. Completa-se um ciclo desta forma. Quem visita o Monte Estoril e consegue sonhar, transformando as casas, os telhados, os beirais e os jardins luxuriantes em espaços oníricos é capaz de
refazer o encantamento que acompanhou o nascimento do lugar. Sente no ar, muitas vezes sem sequer saber o nome e a história que está pode detrás, as personalidades quase míticas de José Jorge de Andrade Torrezão – o primeiro com a coragem de sonhar -, de Carlos Anjos e do seu espírito empreendedor e de Henrique de Moser – o Conde que teve a capacidade de concretizar. A visita a este sítio faz-se pelo que se sente, mais do que pelo que vê, e sinceramente muito mais do que por aquilo que nos possam dizer sobre o lugar. Quando se está na estação o mote deve centrar-se no verbo perder. É importante ter a possibilidade de ser perder por lá. Quem se perde no Monte Estoril reencontra-se num lugar diferente do que se vê e, certamente, muito próximo daquele que outros tiveram o ensejo de sonhar. E o primeiro sonho que se impõe surge precisamente no lugar onde o Monte Estoril se despede de Cascais. Construído em 1873 nos rochedos que ligam o mar à antiga propriedade da Família Palmela, o palacete com o mesmo nome impõe-se na paisagem. A aparência grandiosa de uma abadia em ruínas, faz desta casa com traço do arquitecto inglês Thomas Henry Wyalt uma preciosidade irrepetível, e procura imitar a grandiosidade construtiva que grassava noutras partes da Europa, ao mesmo tempo que impunha os valores tradicionais do romantismo Português. Durante anos, no lugar que como dissemos marca a passagem de Cascais para o Monte, o Palacete Palmela assumiu a função de ser o principal tradutor da realidade psicossocial que deu forma aos Estoris modernos. Em Cascais, em instalações provisórias de parcas condições e nenhum luxo, a Família Real veraneava sem dinheiro mas ainda com algum poder nas ténues águas da Baía de Cascais. E ali, naquele promontório rochoso e quase sinistro junto ao mar, lá mesmo no fim da povoação onde todos desejavam estar, a Família Palmela ostentava muita riqueza e uma enorme vontade de poder, monumentalizando o espaço com a sua casa de ar excepcional.
Em Cascais fingia-se que existia dinheiro para alicerçar o poder que se detinha; e nas propriedades Palmela fingia-se ter o poder, gastando-se dinheiro para o comprar… e foi nesta dicotomia monótona, onde as soirées se prolongavam até de madrugada e devidamente acompanhadas pelas objectivas sempre atentas das principais revistas sociais dessa época, que se foi construindo a identidade da região e fomentando o glamour que nunca deixou de a acompanhar. Muito embora já nada exista das construções originais que Andrade Torrezão construiu no período inicial do Monte Estoril, ainda se pode ver, na Avenida Marginal logo depois de se atravessar a estrada e de se sair da Estação do Monte Estoril, a Villa Rio que o ilustre empreendedor mandou edificar. Ao lado, com uma história sui generis e intimamente relacionada com a primeira fase do Monte Estoril, a casa onde actualmente funciona o Restaurante Cimas, mais conhecido como “English Bar” que, pelo menos desde a década de 40 funciona como um dos mais conceituados espaços de restauração de Portugal. De sublinhar que, apesar de esteticamente desvirtuada com uma espécie de toque rústico que fomenta o seu carácter envolvente e confortável, o English Bar mantém a estrutura física original, situando-se a Sul do local onde funcionou o antigo Casino do Monte. E embora tenha um nome diferente daquele que o tornou numa referência incontornável no panorama da restauração Estorilense, o restaurante Cimas será sempre o velho English Bar… mais um contra-senso, porque para que a justiça se imponha, é importante sublinhar que foi a família Cimas quem o construiu pois do English Bar original pouco ficou… Logo a seguir surge uma mancha verde plena de formosura para onde recai a nossa atenção. Recriando a cenografia originalmente delineada para o Monte Estoril, a vegetação envolve o que resta da antiga Vila Aduar, casa onde viveu Carlos Anjos, o promotor original da Companhia Monte Estoril e que, com os seus dois anexos, permite um vislumbre daquilo que era a povoação no final do Século XIX.
O esplendor verde dos jardins é, precisamente, a maior marca transversal ao Monte Estoril daquela época. Escondendo o casario das vistas do comum cidadão, e envolvendo-o numa aura mística onde o romantismo se impõe, é nos jardins verdejantes e nos muros de pedra solta que encontramos o fio condutor que nos transporta àquela época tão marcante para o turismo Nacional. Estas características, nos exemplos mais eruditos, acabam por juntar-se a uma terceira componente urbanística que introduz um elemento selectivo na urbanização do Monte Estoril. Os muros altivos, muitas vezes de aspecto semelhante ao das fortalezas medievais, conferem às propriedades o mesmo ideário romântico de castelo mas conjugam-na com um acento especial colocado na aristocracia dos seus proprietários. Nos casos em que o capital abunda, e em que existe maior disponibilidade para investir nos projectos das casas, diminui a necessidade de apelar à extravagância e apelando à monumentalidade, atinge-se o mesmo objectivo de imposição perante a paisagem e a comunidade que vai nascendo. Um dos melhores exemplos desta situação, visível logo depois da Vila Aduar quando descemos a Avenida Marginal, é o da casa que pertenceu e onde viveu a Rainha Maria Pia de Sabóia. Adaptada depois a rainha-mãe ter ficado viúva, em 1893, e de se sentir constrangida por viver na Cidadela de Cascais onde tinha acompanhado o terrível padecimento e posterior morte do Rei Dom Luís, a casa sofreu uma intervenção posterior assinada pelo arquitecto Rosendo Carvalheira e pelo pintor António Ramalho. A vulgaridade da tipologia arquitectónica de base que, como refere Raquel Henriques da Silva, se assemelha ao normal chalet de telhado em bico, é trabalhada através da altivez dos muros, da forma dos portões de acesso, das telhas coloridas e, principalmente, através da exuberância de um jardim onde o mote romântico e requintado se afirmava. As pedras aparelhadas desse muro, contrastando com a orientação que a Companhia Monte Estoril sugeria para os projectos que se iam construindo, mostra bem a forma como a necessidade (ou a falta dela) de afirmação social associada ao nascimento dos Estoris, tem
repercussões directas e evidentes na forma como se projecta e constrói na região. Esta dinâmica, assente no pressuposto de que o sentido comunitário se consolida a partir da maneira como o espaço público se organiza em estreita ligação com as zonas privadas, é por demais evidente nos períodos mais tardios de construção no Monte Estoril. Em 1920, quando o industrial Alfredo da Silva constrói a sua nova casa na rua que actualmente tem o seu nome, encomendou ao Arquitecto Tertuliano Lacerda Marques um edifício que subverte por completo a orientação programática que havia dado forma ao projecto da Companhia Monte Estoril e que, fechando o ciclo, aponta para um ecletismo estético no qual a vivência privada – por ter deixado de existir a necessidade de afirmação que marcara o fim do regime monárquico – se assume como determinação principal. Edificada num dos mais altos pontos do Monte Estoril litoral, logo depois da Casa da Rainha D. Maria Pia, apresenta um portentoso muro virado a Sul, quase afrontando o mar e quem passa na Avenida Marginal, e assumindo o carácter privado da vida que vai crescendo no seu interior. Na fachada virada Norte, o seu portão de raiz britânica e de tom romântico, estabelece uma ponte com a normativa urbana da povoação, se bem que impondo uma nova forma de ver e de pensar a própria existência económico-financeira de um Portugal moderno e republicano. A Casa de Alfredo da Silva, moldada a partir de valores que permitem compreender a transição entre os diversos sonhos que dão forma ao Estoril, estabelece a fronteira entre dois períodos distintos, ambos marcados pelo glamour que dá forma à região. A rua em que foi construída, com a sua subida abrupta, é também ela tradutora da essência mais profunda da alma Estorilense, valendo, por si só, o desígnio de uma visita que se pretende excepcional. Um pouco mais à frente, no primeiro número da Avenida Faial, encontramos mais um exemplar típico da morfologia arquitectónica inserível na tipologia dos chalets. De facto, a casa
onde funcionou o primitivo Colégio do Amor de Deus, surge no horizonte do passeante como uma das mais ilustrativas imagens de um Monte Estoril no qual o bucolismo se impunha, fazendo perseverar a ideia de que ali se estava em repouso e que, mais do que as casas e as suas gentes, a localidade se centrava na capacidade de oferecer bem-estar e saúde a quem por ali deambulava. Subindo a mesma rua, para quem tiver a coragem de enfrentar um desnível considerável, encontramos mais à frente, já no entroncamento com a Rua do Calhariz, três dos mais notáveis exemplares das respostas arquitectónicas de Raul Lino no Monte Estoril. O traço do mestre, bem visível nos pormenores revivalistas que contornam as fachadas das casas, marca um outro período de mudança na concepção crítica do Monte Estoril, dando forma ao rigor e à qualidade na arquitectura, mas mesmo assim sem descorar a necessidade de impor espacialmente um impacto sobre a paisagem que as tornasse determinantes na existência dos seus moradores. A mais importante dessas edificações, e provavelmente aquela que Raul Lino desenha em primeiro lugar para a nova povoação, designa-se Monsalvat, impondo-se na altivez do antigo Monte Palmela e conseguindo, sempre com um cunho cenográfico que a ligeireza do seu nome ajuda a compreender, tornar-se um símbolo na existência erudita do Monte Estoril. Concebida para Alexandre Rey Colaço, a Vivenda Monsalvat divide o lote de construção com a Vila Tânger, propriedade do seu irmão Jorge Colaço, e entre si dão conta de pormenores estéticos que dali por diante passarão a fazer parte de toda a lógica construtiva do Monte Estoril. Um pouco mais abaixo, a Vivenda Vítor Schalk que, com a sua situação de segunda linha perante os edifícios mais altos, transforma por completo o cenário do antigo barranco e delimita a área de actuação linear de Raul Lino nesta zona do aglomerado urbano. A forma como estas construções de Raul Lino surgem no Monte Estoril, reiteradamente devido a encomendas que lhe surgiam mercê do mecenato que socialmente se impunha,
determina também muito daquilo que foi o carácter inusitado da existência da povoação. Conjugando o ideal romântico da dádiva a quem necessita com o apoio às artes e às letras que juntava em torno de um mesmo ideal pessoas de interesses e origens muito díspares, o mecenato que deu forma a uma parte substancial do Monte Estoril prende-se também com a capacidade de captação social que o capital trazia e, desta maneira, não é estranho encontrarmos grande parte da urbanização do Monte Palmela centrada na capacidade que a Duquesa de Palmela possuía e que, desenvolvendo-a, lhe consolidava o posicionamento social e cultural em comparação com a intervenção da corte e da rainha. A Casa Monsalvat, por exemplo, foi oferecida pela Duquesa de Palmela a Alexandre Rey Colaço, pianista de reconhecido mérito e frequentador assíduos dos serões culturais daquela casa aristocrática. Com um orçamento aproximado de 4:400$000 réis, que a revista Construcção Moderna de 2901 elogia de forma profusa, a doação significa muito mais do que a oferta de condições de trabalho para uma das figuras de referência da vida cultural do final do Século XIX. Imbuída dos principais atributos do romantismo, a casa, que ganha essa designação numa clara referência à ópera Parsifal de Richard Wagner, pretende ser um retiro efectivo para o artista e, dessa maneira, uma forma de trazer para o Monte Estoril o cerne da melhor produção musical daquela época. Une-se assim, em torno de um mesmo objecto urbano, um conjunto bastante diversificado de valores, reformulando a lógica de vivência social do espaço e, com evidente benefício para todas as partes, conseguindo consolidar o papel de extraordinária importância que o Monte Estoril ainda só sonhado passará efectivamente a ter no moderno Portugal. Num curioso painel de azulejos colocado junto à porta principal desta casa, dando forma ao espírito elucidado de Raul Lino mas também deixando transparecer um pouco da lógica wagneriana do próprio Rey Colaço, pode ler-se que “Não há nada mais penoso para o homem ocupado, seja público ou privado, que a visita do ocioso”… A dupla mensagem, apelando à visita mas repudiando-a simultaneamente, liga-se com a
formulação estética e espacial da habitação, misto de espaço onde o conforto marcado pelas peças que transmitem penumbra e calor, se cruza com os apontamentos de origem árabe que deixam antever o mal-estar provocado pelo contacto socialmente indesejado e pelas implicações nocivas da vida de sociedade sobre a própria estruturação da família. A Vila Tânger, que Raul Lino projecta novamente a pedido da Duquesa de Palmela para oferta ao pintor José Daniel Colaço, apresenta ainda outros aspectos dignos de uma nota especial e que, numa visita ao Monte Estoril, importa sempre reter. Em primeiro lugar, e ao contrário do que acontecia com o pianista Rey Colaço, José Daniel era diplomata e, na data em que recebeu esta extraordinária casa, simultaneamente obra de arte em que o traço artístico do mestre se confunde com a estruturação espacial que lhe havia sido encomendada pela mecenas, acumulava já os títulos de Barão de Colaço e Macnamara. O contexto social que envolve esta construção, vincando o carácter da Duquesa e da própria Família Palmela e determinando o vínculo do Monte Estoril a uma certa posse da qual não estão afastadas as pretensões aristocráticas dos principais promotores, transforma a Vila Tânger numa das mais singulares obras de Raul Lino. A sua colocação num terreno de gaveto entre a Rua do Calhariz e a Avenida do Faial, sobranceira a quem passa na rua e imponente para quem a observa do plano inferior, transgride de certa forma a intervenção regular do arquitecto que, em contraponto, opta por definir a sua estrutura decorativa através da menção a um cenário de génese mourisca, simplificando o traço e consolidando o apelo à singeleza da tradição mais antiga e chã da casa Alentejana. O uso do azulejo, cortado aqui e ali pelo tom ocre do tijolode-burro, fornece à casa um ambiente de algum despojamento que contrasta com a sua monumentalidade. De realçar, pela importância que possa ter na apreciação de uma visita, o cuidado colocado na planificação dos muros da propriedade e, sobretudo, a forma como os mesmos transgridem também com o modelo definido pela própria Companhia Monte Estoril. Todos esses
aspectos, possivelmente condicionados também por outros projectos que o Mestre Raul Lino assinou noutras partes da localidade, acabam por definir com uma certeza insofismável este Monte Palmela como um local onde o cerne do sonho e o próprio enquadramento onírico associado à obra, renegam as origens do Monte Estoril, e abrem caminho para uma evolução que dará forma ao devir urbano da nova estância. Muitos anos depois de concluídas estas duas edificações, que rapidamente se transformaram em marcos da produção artística e arquitectónica de Raul Lino e que tiveram amplos ecos na imprensa especializada de então, surge no mesmo espaço, num lote confinante com os anteriormente descritos, a Casa Vítor Schalk, construída por volta de 1919. Contrariando cronologicamente os projectos que o mesmo arquitecto estava a desenvolver ao mesmo tempo, por exemplo a Torre de São Patrício para Jorge O’Neill na Avenida Sabóia também no Monte Estoril, a Casa de Vítor Schalk é um manifesto retrocesso a valores e expressões artísticas que se centram nos revivalismos de índole romântica que deram forma a outras perspectivas de entendimento da intervenção urbanística dessa época. Sem uma explicação evidente para o facto, tirando a possibilidade de o encomendador ter transmitido a Raul Lino indicações que hoje desconhecemos, este imóvel segue a linha construtiva dos espaços envolventes e inova somente na maneira como utiliza os telhados, desenhados pelo mestre de forma cuidada e planificada previamente, como elementos principais no processo decorativo que abdica dos azulejos e de todas as inovações que nessa área específica ele estava de facto a desenvolver. Através de uma abordagem eficaz e simplista do impacto estético e cenográfico que a casa teria sobre a paisagem envolvente, e consolidando esse factor com a inserção de pormenores decorativos que a dotam de uma visibilidade redobrada por parte de quem a observa, Raul Lino intervém neste espaço de uma forma curiosa, pois quase que renega o seu
trabalho em prol de opções que contrariam até o desenvolvimento que ali estava a acontecer. O apelo àquilo que mais tarde se designou como Arquitectura Mudéjar, numa clara alusão à criação artística associada a espaços urbano onde a mistura entre a cultura Cristã e Árabe se reconstrói em torno de valores que seriam impossíveis de atingir em qualquer outra parte do Mundo, e que em Portugal se optou por considerar de génese moçárabe, ganha neste Monte Estoril de Raul Lino uma importância especial pois, para além do carácter cenográfico de cada uma das edificações, cada peça compõe uma unidade em si própria, sem ter a capacidade para desvirtuar um conjunto que se afirma precisamente pela diferença que o compõe. Noutros tempos, primeiro durante o domínio Árabe por parte dos Cristão que conseguiram manter as suas prerrogativas sociais e, depois, durante o domínio Cristão, quando muitos Árabes optaram por tentar integrar-se nas estruturas culturais e políticas que estavam a ser reconstruídas, gerou-se um ramo de criação de cunho próprio e numa florescência maravilhosa e irrepetível, que se alicerça precisamente no facto de nenhuma das partes abdicar do seu estilo ou da sua individualidade. A opção de Raul Lino, ao projectar estas casas, e opção essa que foi seguida também por outros arquitectos e projectistas que deram forma ao Monte Estoril de finais do Século XIX e inícios do Século XX, foi assim a de apelar a essa atractividade única e irrepetível que a tradição cultural possui e, dessa maneira, criar um produto que incrementa o próprio interesse do conjunto urbano onde projectam. Embora eles possivelmente não o soubessem, o certo é que esta opção, tantas vezes criticada pelos seus contemporâneos e que hoje, incrivelmente, continua a ser criticada por certos sectores que se consideram eruditos na nossa academia, foi crucial para que os Estoris ganhassem esta aura de glamour que os caracteriza. De facto, aquilo que está subjacente à irrepetibilidade dos Estoris no contexto Europeu, e que oficial e oficiosamente se utiliza para dar forma a sucessivas campanhas
de promoção e sensibilização turísticas que apelam ao facto de ser possível encontrar aqui muito mais do que o Sol e a praia, é superior ao que de único e corajoso aqui se fez e, também contrariando muito daquilo que alguns dos que hoje nos governam vêem dizendo, sobretudo a génese inusitada de cada peça que compõe esta panóplia desconcertante que os Estoris apresentam. Ainda no Monte Palmela, e datáveis provavelmente do início do Século XX, são de salientar as habitações comuns que determinam a linha da antiga Avenida Faial e que, durante a Segunda Guerra Mundial foram habitadas por espiões. A história, baseada em estórias que se contavam à boca pequena no Monte Estoril daquela época, cruzavam informações díspares que corriam de esquina em esquina e que nem sequer eram capazes de determinar para que lado espiavam os que ali moravam… o aspecto nórdico dos moradores, associado a dificuldades linguísticas, terá sido suficiente para transformar estas casas em pontos-chave da estratégias de guerra dos Aliados e dos nazis, não se sabendo, nem sendo possível confirmar na actualidade, se de facto assim se passava naquelas paragens distantes. O certo, porque isso se vai comprovando através dos arquivos que se tornam públicos e dos documentos que se vão cruzando, é que existia de facto uma intensa actividade de espionagem na região e que, mal gradas as tentativas que se fizeram para tentar perceber como se equilibravam os pesos em cada balança, parece que o mais certo é que os moradores de então, se espiões fossem, trabalhassem simultaneamente para os dois lados beligerantes, dando assim forma ao clima de caos e de ansiedade social que anos mais tarde o escritor Inglês Ian Flemming terá utilizado como inspiração para criar o mítico agente James Bond. Continuando na mesma avenida, e antes de entrarmos na Monte da Senhora da Saúde, onde o mito do Monte Estoril se torna por demais evidente, importa observar as enormes palmeiras que altivamente continuam a deitar a sua sombra para o arruamento e que, até pela sua altura, mostram bem a antiguidade que já têm. Embora hoje estejam periclitantemente
colocadas no jardim de um moderno condomínio, que contrasta a sua modernidade com a patine intemporal destas espécies, foram parte integrante do jardim do antigo Chalet Celeste, propriedade de Mariana Celeste Rijo Rosado, e na qual viveu Aníbal Ferreira Henriques no final dos anos 30. Nesta casa, onde também nasceram vários dos seus filhos, aconteceram as reuniões e as discussões que juntaram o grupo dos antigos professores do Bairro Escolar do Monte Estoril, depois da cisão que afastou João de Deus Ramos, Américo Buizel e João Soares e que, por força das circunstâncias que mais à frente analisaremos, acabou por trazer para a localidade o insigne pedagogo José Dias Valente, que deu forma ao projecto de criação do importante Colégio João de Deus, que se constituiu com sede na Villa Pomares, na Avenida Sabóia. Já no final da Avenida Sabóia, e uma vez mais contrariando toda a lógica e o raciocínio que a obra do grande arquitecto Raul Lino impõe, encontramos a Torre de São Patrício, hoje designada Casa Verdades de Faria e identificada como o Museu da Música Portuguesa. O edifício, originalmente uma encomenda de Jorge O’Neill já numa fase tardia da intervenção de Raul Lino no Monte Estoril, subverte totalmente a concepção espacial e cenográfica de outras peças projectadas pelo renomado artista. Em primeiro lugar, possivelmente devido ao reconhecido carácter romântico do encomendador, a Torre de São Patrício surge-nos no horizonte como uma espécie de resquício medieval de uma torre de menagem de um qualquer castelo imaginado num reino cuja localização se perdeu no tempo. Possivelmente decalcado dos valores estéticos que Dom Fernando II, o Rei-Consorte que adoptou Sintra para sua residência espiritual, utilizou na construção do Palácio da Pena e na recuperação do castelo medieval, o edifício clama por batalhas nunca acontecidas e por uma noção de clausura totalmente incompatível com o ano da sua inauguração, 1920, e sobretudo com a localização privilegiada numa das mais excêntricas e cosmopolitas terras de Portugal.
Vista da Avenida Sabóia, a Torre de São Patrício transmite uma segurança que emana da pedraria que compõe a fachada, entendida aqui como o resultado do apelo concreto formulado por O’Neill, mas também pelos apontamentos cenográficos colocados na decoração que, consolidando o papel da casa no contexto do Monte Estoril, a transformam numa das mais importantes peças nesta mescla de matizes e tons que compõem a boca de cena onde se passa a maior parte da acção social do Portugal de então. O carácter tardio deste romantismo cavalheiresco, pouco compatível com a visão renovadora de Raul Lino, deixa perceber a fórmula assaz curiosa como o Monte Estoril foi capaz de gerar determinações que constrangeram o próprio génio artístico de quem por ali viveu, criou ou trabalhou. As frisos azulejares que o arquitecto recolheu de forma cuidada em muitas ruínas e antigos conventos e igrejas abandonadas por esse Portugal fora, trazem à casa um toque de revivalismo neo-conservador que, cruzado com o apelo aos frescos dos tectos e com o madeiramento utilizado nas portas e janelas, nos transporta para um universo eclético e teoricamente sensaborão se o edifício tivesse sido construído em qualquer outra parte do País. No Monte Estoril, a terra onde tudo é possível e onde tudo está sempre bem, o cruzamento de gostos e de estilos aqui assinado pelo próprio Raul Lino, torna não só aceitável como apetecível a observação cuidada de uma peça patrimonial que muito acrescenta ao carácter sublime da urbanização de então. Passando à Avenida da Senhora do Monte da Saúde, possivelmente deturpação do topónimo original orientado como Monte de Nossa Senhora da Saúde, que termina na capela com o mesmo nome que se situa já no saudoso Jardim Simplício, são de salientar as eminências da Vivenda Boa-Vista, onde vivia o professor Perestrello, e o Chalet Nossa Senhora da Saúde. Estes edifícios, marcados já com a austeridade que a Primeira Guerra Mundial e as conturbações políticas do dealbar da república trouxeram a Portugal, marcam no Monte Estoril o testemunho
de um tempo novo e diferente mas que, na sua essência, acaba por deixar tudo igual. De facto, e mais importante do que a conjugação eficaz de novas técnicas de construção e de novas abordagens arquitectónicas (dizia-se na época que eram modernas e que traduziam a modernidade de um novo Estado que tomava conta dos destinos da Nação), é o facto de manterem de forma incólume a estratégia de definição do espaço através do apelo à cenografia mais linear. Os muros das propriedades, consolidados a partir do muro do próprio Jardim Simplício e da estrutura de apoio ao aterro sobre o qual assenta a capela e se estrutura o chafariz que envolve o seu adro, são também eles de pedra solta, deixando no ar a ideia nunca expressa de forma evidente de que são muito antigos, consolidada pela introdução das mesmas espécies vegetais exóticas que Carlos Anjos e o Conde Henrique de Moser haviam definido para encher os jardins dos seus chalets românticos. No Jardim Simplício, bem como em todo o Monte de Nossa Senhora da Saúde, o Monte Estoril despe-se de preconceitos e assume claramente a sua estrutura envolvente e romântica. Um passeio por esta zona, observando com detalhe os muros de pedra solta a envolverem o casario moderno que se construiu no local, garante uma oportunidade de ouro para poder sentir o carácter reconfortante de todo o espaço. Em termos da mitologia que envolveu o nascimento da povoação, ela é sentida aqui de forma abissal ainda hoje, acreditando todas as pessoas que por aqui moram, que vivem num sítio antiquíssimo e pleno de História. Dali até à Cova da Castelhana, vão somente duzentos metros, e vale a pena, mesmo agora que as novas urbanizações atingiram já as margens da Ribeira da Amoreira, perceber por entre os prédio, estradas e garagens que dão forma à antiga cova, as antigas quintinhas que abundavam na região e que, na sua essência personificam aquilo que eram os terrenos da parte alta do Monte Estoril antes de terem sido comprados pela companhia e integrados no novo processo urbanizador.
A Norte da Cova da Castelhana, com a fachada secundária virada a Poente, encontramos ainda um imóvel interessante, a Casa de Nossa Senhora da Conceição que, construída a partir da tipologia dos chalets de veraneio, integra ainda alguns dos princípios estéticos das antigas casas aldeãs do interior rural Cascalense. São de salientar, por um lado, as escadarias em madeiras apensas à fachada lateral e, à frente, no terreno que confina com a Avenida de Itália, um imenso tanque / lago que, com origem naturalmente relacionada com o regadio que existiria na quintinha que descia em direcção à ribeira, serviu mais tarde de tanque onde nadavam harmoniosamente os cisnes do proprietário. Interessante também é verificar a antiguidade dos muros da casa, homogéneos em toda a extensão da propriedade e com a linearidade que as técnicas construtivas do final do Século XIX já permitiam, mas que na face virada para o Monte Estoril exibem ainda hoje os imensos calhaus desemparelhados que lhe davam aquele cunho velho que o romantismo exigia. Um pouco adiante, já na Rua Soldado Francisco Almeida, para além de ser possível desfrutar de uma magnífica paisagem sobre o Vale da Amoreira, centrada na ribeira com o mesmo nome mas que se estende de forma ininterrupta até à Terceira Circular e ao Carrascal de Alvide, encontramos um interessante marco delimitador da propriedade original da Companhia Monte Estoril. O marco, em pedra calcária branca, tem gravada a sigla CME, de Companhia Monte Estoril, e explica o contexto e a forma que marca as construções existentes na zona envolvente. Depois deste pequeno desvio, o regresso ao cerne efectivo do Monte Estoril faz-se em direcção ao Largo Ostende. Coração da parte alta da povoação, o largo centraliza o sonho de Henrique de Moser e de Carlos Anjos quando idealizaram para ao Monte Estoril uma estância turística de excepção, que fosse capaz de ombrear dignamente com os melhores destinos turísticos dessa época. A caminho do Largo Ostende existem vários pormenores e detalhes que importa sublinhar e que, para
o visitante atento, fornecem uma imagem extraordinariamente inesquecível desta terra tão especial. A primeira peça importante é o chafariz em ferro forjado que se situa na Rua de Espinho. O exemplar, digno de uma nota especial por se inserir na primeira fase do projecto de promoção urbana do Monte Estoril, marca precisamente o ponto de apoio a partir do qual se deveria estabelecer a “Riviera Portuguesa”. Deste lugar, através de um canal que nunca chegou a ser construído, deveria sair a água que alimentaria o lago artificial que a Companhia Monte Estoril planeou construir no espaço que acabou por herdar esse topónimo. O lago, espécie de repositório maravilhoso da magia que se concentrava na nova indústria turística, deveria integrar-se na paisagem de uma forma natural e aqui, na actual Rua de Espinho, deveria ter sido construída a estrutura de motores e bombas que garantiria o controle das águas que o alimentavam. Desse projecto, que mais do que uma ideia foi um sonho que quase se concretizou, sobrou precisamente o pequeno e singelo chafariz, hoje envolvido em carros que por ali passam a grande velocidade, mas que preserva a identidade de uma terra que se consubstanciou a partir do universo onírico de três homens geniais. Na Avenida da Castelhana, são de salientar duas peças que também elas nos transportam no tempo para o Monte Estoril romântico novecentista: as cocheiras / garagens situadas no meio da avenida; e a antiga escola primária, propriedade da Sociedade Escolar do Monte Estoril, onde hoje se encontra a sede da Academia de Letras e Artes. Ambos os edifícios, cada qual com as suas características, se inserem num Monte Estoril que carrega consigo os mais poderosos e inquietantes desaires que quase sempre acompanham os sonhos inconcretizados, mostrando em todo o seu esplendor que a dimensão diminuta dos espaços organizados nessa época, acometidos pela ideia de que era fundamental apelar à diferença e concretizar a edificação a partir de estereótipos que impusessem a moda e a forma de organização do pensamento, deveria ser capaz de estabelecer na
localidade o fundamento da própria orgânica nova de que o próprio País – Portugal – tanto necessitava nessa época. Ambos os imóveis, hoje bem preservados e demonstrativos desse Monte Estoril de outras eras, foram edificados num arruamento sui generis que exige ele próprio alguns minutos de atenção especial. Em primeiro lugar pelo topónimo que ostenta: Avenida da Castelhana. E em segundo lugar, porque a sua fácies, sendo rua secundária que em nada interfere na cara limpa que a estância balnear procura impor a quem a visita, mantém incólumes os valores estéticos e cenográficos que foram determinados no master plan idealizado pela Companhia Monte Estoril. Ali se encontram, como em quase toda a povoação, as palmeiras e demais espécies exóticas que, enchendo os jardins com um glamour muito especial, se enquadram nos muros de pedra solta de aspecto rústico e que, não raras vezes, eram transformados em ruínas logo depois de terem sido construídos de novo. Depois, e com um cunho de muito interesse, a dimensão do arruamento, estreito, pouco linear e afunilado, contrastando por exemplo com as vizinhas Rua de Madrid e Rua de Espinho que lhe duplicam a largura e são designadas como – ruas – sendo que esta, estreita e pequenina, ostenta vigorosamente a designação – avenida – com a qual se impõe num espaço determinado pela incerteza, pela surpresa, pelo inesperado e pelo peculiar. É neste Monte Estoril, surpreendente a cada esquina, que encontramos a melhor expressão do Portugal do final do Século XIX e inícios do Século XX que, deslumbrados pela Riviera Francesa e pelo requinte das estâncias turísticas que se impunham pelo resto da Europa mais desenvolvida, se permite a nascer e crescer em torno de mitos de grandiosidade que o envolvem numa aura de mistério que se consolida na impossibilidade de verdadeiramente os compreender. De regresso à Rua de Espinho e ainda antes de entrarmos no vetusto Largo Ostende, merece uma atenção especial o casario de impressão quase humilde composto por habitações sem grande qualidade projectista mas que, compensando a sua
singeleza com pormenores decorativos que ainda hoje nos permitem vislumbrar o romantismo da Companhia Monte Estoril, se envolvem nas mesmíssimas palmeiras e nos muros de pedra solta que nos transportam na mesma viagem no tempo. Mas desçamos agora ao lago e imaginemos a riqueza paisagística que deveria estar plantada nos cérebros inexpugnáveis dos mentores do Monte Estoril. As casas, construídos à moda Suiça e com maravilhosos e frondosos jardins que se prolongavam até à água e, nas extremas das propriedades, uma frota de barquinhos a remos que deliciariam as crianças daquela época e serviriam de quadro onírico de amor para quem escolhesse a estância como local para cortejar a sua amada… um quadro idílico, hoje quase incompreensível depois de todo aquele espaço ter sido destruído e coberto com aberrantes condomínios de prédios de muitos andares e qualidade estética duvidosa, mas que foi suficientemente audacioso para redobrar os problemas financeiros dos dois sonhadores e de, com isso, pôr em causa a sobrevivência do Monte Estoril. Exemplificativo desse problema, já na fase final e de maior decadência da Companhia Monte Estoril, está o projecto maravilhoso do “Splendid Hotel” que, da autoria do conceituado e premiado Arquitecto Ventura Terra acabou por não ser construído devido ao facto de Carlos Anjos e o Conde Henrique de Moser não terem sido capazes de reunir os trezentos contos em que orçava a construção. Projectado para um lote à beira mar, impondo a ligação entre o mar e a serra num quadro onde o verde da paisagem se tornava no elemento envolvente da componente cénica que dá forma à nova estância balnear, o Splendid Hotel teria sido fundamental para consolidar a componente turística do projecto que, desta forma, centrando financeiramente a sua existência nos casinos e na diversão a ela associada, perdeu aquele que seria o seu projecto-âncora na área da hotelaria que permitiria afirmar o Monte Estoril como o grande destino de férias da Europa do seu tempo. Esta ideia de que a qualidade da oferta, sempre associada a preços mais
elevados, garante às estâncias turísticas a capacidade de seleccionar por cima o seu público preferencial, foi aliás mais tarde repescada pela Sociedade Estoril Plage e por Fausto de Figueiredo que, com o apoio da então paróquia de Santo António, do Prior Monsenhor António José Moita e do Conselheiro Driesel Schröter, reconsolidou o projecto inicial assente na premissa de que o elitismo que se conseguisse promover garantiria por seu turno a excelência do projecto e, dessa forma, facilitaria a engenharia financeira necessária para o manter vivo. E era isso, fora do seu tempo e longe dos meios que o Portugal futuro lhe haveria de conceder, que impediu a construção do novo hotel e que promoveu o fim de mais um sonho associado ao Monte Estoril romântico. Mas como sempre, os sonhos são circulares e, logo depois de Fausto de Figueiredo ter dado fôlego ao Parque Estoril e à sua Estoril Plage, outros houve que ousaram sonhar novamente o Monte Estoril original de Andrade Torrezão e da Companhia Monte Estoril. Como nada se tivesse chegado a fazer no lago, que durante muitos anos foi meramente uma enorme cratera a céu aberto, João Soares e João de Deus Ramos imaginaram para o local um extraordinário e inovador projecto pedagógico. A ideia, porque também nunca se concretizou verdadeiramente, centrava-se no aproveitamento do espaço aberto e central do velho lago sempre seco e das moradias que se construíram em seu torno sempre à espera da água para que elas próprias se transformassem nos chalets Suíços ansiados pelos que ali moravam, para inaugurar no Monte Estoril um bairro escolar globalizado e aberto. A ideia de bairro, centrada no conceito de espaço fechado e aberto simultaneamente, pressupunha a criação de uma espécie de campus escolar no qual alunos e professores se cruzassem de forma livre e independente no seio de uma escola que defendia uma pedagogia centrada na responsabilidade e nas capacidades individuais, fomentando a cidadania tão em voga naquela época. O Bairro Escolar do Monte Estoril, que existiu até que o sonho dos seus fundadores se desmoronasse também devido a
problemas graves relacionados com as verbas evidentemente essenciais para o fazerem crescer, foi um sucesso marcante e eminente. Ainda com muitos alunos vivos de boa saúde é quase impressionante perceber como as ideias pedagógicas inovadoras de João de Deus Ramos foram, de facto, essenciais para a formação de uma vastíssima comunidade composta por novas gentes… mais um sonho fora da sua época (7). De qualquer maneira, a excelência imperou, e o sonho do Conde Henrique de Moser e de Carlos Anjos de um lago ilustríssimo que mudasse os destinos do Monte Estoril, condicionado mais tarde com a ideia de um enorme potencial pedagógico e educativo que daí derivaria para cumprir objectivo idêntico, acabou por se transformar no final num verdadeiro projecto de excelência: o Colégio João de Deus. O Chalet da Condessa de Pomares, que Raquel Henriques da Silva caracteriza como sendo um dos melhores palacetes construídos no Monte Estoril na última década do Século XIX (8), albergou a sede do colégio entre 1936 e 1970, depois de ter sido a habitação de uma das figuras mais importantes do círculo de amigos da Rainha D. Maria Pia de Sabóia. Com a fachada principal virada para a Avenida de Sabóia e o portão monumental abeto para a Avenida das Acácias, este edifício surge inserido na primeira fase do processo urbanização da estância e, segundo a investigadora, apresenta as características morfológicas comuns desse período: “Durante muitos anos e até 1974, funcionou nela o Colégio João de Deus. O edifício, que conserva o aspecto da época, é a mais sólida construção do Monte Estoril neste período, claramente um palacete embora então seja referido como chalet”. A própria designação do imóvel, cruzando o carácter apalaçado com o designativo chalet, é por si só mais um excelente sinal do clima de cenário urbano que se efectivou desde o início do processo construtivo do Monte Estoril. As suas características próprias e a tipologia que presidiu à sua concepção, misturam-se com a humildade da casa de veraneio que, de forma despretensiosa a envolve numa aura mística de
espaço perdido nos recônditos arvoredos de uma povoação deslumbrante. São de salientar, para além do monumental pórtico da entrada Norte, que durante quase quarenta anos serviu de porta principal do saudoso colégio, a escadaria de acesso ao piso superior, colocada na fachada Nascente e, na fachada principal, o magnífico terraço envolvido por um gradeamento de ferro forjado pouco usual nas construções de veraneio daquela época. Em termos das estórias que compõem a sua História, e para além da já referida relação com o círculo próximo das mais altas figuras da Corte, importa sublinhar o comum acaso de por vicissitudes diversas ter albergado e ter sido a cara do Colégio João de Deus. Esse facto, que aconteceu depois da cisão que levou um grupo de professores do antigo Bairro Escolar do Monte Estoril a criarem um novo estabelecimento de ensino para tentarem concretizar aqui o sonho pedagógico de João de Deus Ramos, tornou-se possível depois do imóvel ter ficado devoluto e ter sido colocado no mercado de arrendamento. A chegada do proprietário do novo colégio ao Monte Estoril, o Professor Dias Valente, acontece também por um acaso que se prendeu com o facto de ter feito parte de um grupo de jovens universitários de Lisboa, do qual faziam parte os professores Aníbal Henriques e Freitas e Silva, que lideraram o processo de cisão do Bairro Escolar, e que lhe lançaram o desafio de vir para os Estoris tornar possível a concretização deste grandioso sonho. José Dias Valente, disponível para também ele partilhar do sonho grandioso do ilustre pedagogo, trás consigo para os Estoris o seu próprio sonho: o de recriar um ambiente familiar e acolhedor no seio do novo colégio que, para além de transmitir conhecimento e formar novas vidas, fosse essencialmente assente em valores humanistas que deram forma à sua própria formação pessoal. A amizade antiga que deu origem a este novo projecto, perdida nos tempos já longínquos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tinha sido interrompida durante os anos em que Aníbal Henriques estivera em Paris, e foi retomada, no final dos anos vinte, quando o Mestre João de
Deus convida o seu antigo pupilo para fazer parte da sua experiência educativa no Bairro Escolar do Monte Estoril. Dali ao Colégio João de Deus foi um pequeno passo construído sobre o edifício dos felizes acasos e, de facto, conjuga em si a grandiosidade e a plenitude de todos os grandes sonhos que os precederam na localidade. Os objectivos de Andrade Torrezão, antepassado ainda para mais da mulher de Aníbal Henriques – Fernanda Veiga Henriques, consolidaram-se na Companhia Monte Estoril pelas mãos de Henrique de Moser e de Carlos Anjos, mas concretizaram-se efectivamente, vários anos depois, quando o Colégio João de Deus conseguiu ultrapassar a sua condição de mero estabelecimento de ensino para se transformar numa espécie de cadinho de vidas no qual a componente familiar abarcava muito mais dos que os laços de sangue que não existiam entre os seus membros. A família do Colégio João de Deus, composta por professores, alunos, funcionários, família e vizinhos, sob a tutela patriarcal de José Dias Valente, é ainda hoje visível através das acções levadas a cabo pela Associação dos Antigos Alunos. Mesmo com alguns membros que saíram do colégio há já mais de setenta anos, o certo é que continuam unidos e sempre preparados para se reunirem e partilharem as estórias do colégio que muitas vezes se confundem com a própria história da sua vida. Para além deste edifício, onde funcionava a sua sede, o Colégio João de Deus tinha ainda dois internatos: o Edifício da Telha Verde, situado na Avenida Sabóia e demolido no princípio da década de setenta para edificação de um moderno condomínio; e a Villa Luiza, situada na Rua do Pinheiro, num edifício que para além de ainda hoje se conservar em belíssimo estado de conservação, preserva todas as características que deram forma à sua inclusão nesta fase embrionária da vida da localidade. A Villa Luiza, que se integra naquele que será porventura o primeiro conjunto de vivendas geminadas em Portugal, é um projecto da autoria do Arquitecto Ventura Terra que, de frente para uma das fachadas mais monumentais do antigo Hotel
Miramar, nessa altura a funcionar como Casino Internacional do Monte, é também um bom exemplo da forma como evoluiu a tipologia das casas de férias, mesclando já o romantismo Monte Estorilense com uma acentuada necessidade de rentabilizar espaços e de captar um novo público para enfrentar a concorrência que surgia com o início da urbanização do moderno Estoril. Para além destes dois imóveis, mas já de construção tardia, possivelmente dos anos cinquenta do Século XX, o Colégio João de Deus tinha ainda um outro edifício, também ele construído num enclave entre as Avenidas de Sabóia e das Acácias, onde funcionava a escola primária e o ginásio. Era aqui, numa espécie de pequeno anfiteatro existente dentro do ginásio, que se efectuavam os exames Nacionais, a partir do momento em que a legislação permitiu que eles fossem concretizados também pelos estabelecimentos privados de ensino. Nesta antiga componente do colégio funcionou até meados do corrente ano a Escola Preparatória do Monte Estoril que, em memória do saudoso pedagogo que no início do século veio para aqui criar um dos mais extraordinários projectos de escola de Portugal, se chamou também Escola João de Deus. Logo a seguir, quando a Avenida Sabóia sobe em direcção ao Lago, é possível encontrar ainda três imóveis marcantes na vivência urbana do Monte Estoril. O primeiro, também de traço do Arquitecto Ventura Terra, é uma casa interessante que conjuga os aspectos morfológicos do estertor do romantismo com os valores ecléticos da recém-nascida arquitectura Portuguesa, seguidos por outros dois exemplares de casas bonitas que resvalam um pouco para o ideal romântico do chalet de veraneio, incluindo apontamentos decorativos na linha daqueles que anos antes haviam sido sugeridos nos planos de construção de Carlos Anjos e do Conde de Moser, mas que experimentam, de forma atenuada, também alguns pormenores físicos das construções do projecto do Parque Estoril. Fundamental ainda para compreender o Monte Estoril, é um passeio de regresso através da Avenida das Acácias para,
num pequeno desvio efectuado através da Rua Vitorino Vaz, contemplar a casa que herdou o nome do seu primeiro proprietário e que, com os seus muros de pedra solta e densa vegetação, é um dos melhores repositórios da filosofia urbanística que presidiu ao nascimento da nova estância balnear. Os anexos da propriedade, que se estendem num lote vastíssimo que contorna todo o quarteirão e descem através da Rua Bijou, compõem o protótipo perfeito da excelência romântica, correspondendo detalhe a detalhe aos pressupostos subjacentes do espírito que José Jorge de Andrade Torrezão pretendera trazer para o já quase esquecido Pinhal da Andreza. No seguimento deste passeio, subindo novamente o troço da Avenida Sabóia que começa na Avenida Marginal e termina junto ao edifício da antiga estação dos correios, há a salientar um dos mais emblemáticos espécimes da primeira fase de construção da localidade: a Vivenda de Manuel Duarte. Conhecida nas publicações especializadas na época como “O Jazigo”, por ter sido a primeira a utilizar o ferro forjada em arquitectura habitacional, pois até essa altura era técnica usada exclusivamente nos cemitérios de Lisboa, a Casa de Manuel Duarte foi projectada pelo Pintor Vilaça, o mesmo que anos antes havia projectado o Palacete O’Neill em Cascais. Assumidamente cénica na forma como se relaciona com o espaço envolvente, e sublinhando a excentricidade do seu primeiro proprietário, “O Jazigo” surgia sempre acompanhado de uma quadra popular que conquistou fama no Monte Estoril daquele final de Século: “Aqui jaz Manuel Duarte. Se o vires em qualquer pasma, porque ele é um fantasma!” Nesta linearidade de apresentação “pouco sã”, no dizer dos comentadores sociais da última década do Século XIX, encontramos seguidamente a antiga Pensão Royal, hoje readaptada a condomínio privado mas conseguindo preservar os valores construtivos do edifício original. Ostentando de forma elegante um telhado em bico de águas muito pronunciadas, a Pensão Royal transmite ao passeante os contornos mais interessantes da existência eclética do projecto urbano do Monte
Estoril. O seu relacionamento com a formulação estética da Companhia Monte Estoril, sente-se ainda nos mesmos muros de pedra solta e na densa vegetação do jardim, culminando com a existência de vários pequenos anexos de aspectos semelhante ao dos melhores chalets das redondezas e dos quais ainda sobeja um. Logo depois da Pensão Royal surge a grandeza linear do Jardim Carlos Anjos, conhecido por todos ainda hoje como Jardim dos Passarinhos devido à grande gaiola com pássaros que fizeram as delícias de muitas gerações de crianças Monte Estorilenses. Centrado no chafariz e no pequeno lago que delimita o seu eixo axial, o Jardim Carlos Anjos prolonga-se através da esplanada em calcário que transforma a parte traseira do jardim numa espécie de anfiteatro no qual o actual quiosque funciona como fundo de cenário. Apesar de alvo de muitas críticas e do mau estado geral em que se encontram, vale a pena uma pequena visita aos sanitários, situados logo junto ao Parque Infantil, por manterem, quase cem anos depois da inauguração, as mesmas características que foram construídas pela Companhia Monte Estoril. Intactos na sua formulação estética, mereciam uma recuperação que fosse capaz de preservar o seu toque de ancestralidade, pois dele depende grande parte da mística que hoje continua a envolver toda a localidade. É precisamente dessa esplanada, que a vista abarca uma das mais interessantes perspectiva do antigo Monte Estoril. À direita, já no início da Avenida Sabóia, vê-se o bem recuperado edifício do antigo Hotel d’Itália, com o seu pórtico envidraçado de tom eminentemente neo-romântico e que abre para um pequeno estacionamento privado cujo muro define o final do Passeio Dr. Dias Valente. Do outro lado da rua, desta vez no princípio da Rua dos Estrangeiros, a Casa das Cebolas, da família Lacerda, cujo telhado coberto de lousas pretas quase deixa vislumbrar a fácies oriental dos palacetes russos. Neste conjunto, sobressaem ainda duas casas assinadas por Raul Lino, a Casa Silva Gomes e a Vivenda Rosário que, com a eminência orientalizante da sua
decoração neo-Árabe, constrangem o passeante a deambular um pouco mais através das surpresas que o quarteirão ainda reserva. Vê-se mais adiante a interessantíssima Vivenda Alexius e, logo a seguir, o que resta das antigas cocheiras. Ambos os imóveis, em conjunto com os dois de Raul Lino, formam um núcleo de grande expressão dramática na paisagem Monte Estorilense, invertendo os paradigmas da fase inicial da construção do povoado, e apelando a valores construtivos que assentam na linearidade dos traços e no apelo às emoções efectuado a partir da inserção de elementos decorativos. Na Vivenda Alexius, por exemplo, o toque direitos das empenas, que deixam no ar a falsa impressão de serem cegas, cruza-se com a colocação de pequenos triângulos de azulejo que, por sua vez, dão seguimento à azulejaria de teor arabizante que compõe as casas do Mestre Raul Lino. O Monte Estoril original, eivado de uma mística composta numa primeira instância pelas casas que compõem as suas ruas, faz-se também em torno das pessoas e das personalidades que marcaram o seu crescimento. São elas, mais ainda do que a mera linearidade da paisagem, que dão forma a uma existência que se torne irrepetível e que transforma uma terra única em Portugal num espaço onde se sentem no ar as memórias de todos os que a habitaram e que, mais ou menos excêntricos consoante a sua personalidade, partilharam cada qual à sua maneira um sonho que continua actual. O grande desafio de uma visita turística ao Monte Estoril não é, como acontece em muitas das mais bonitas cidades históricas de Portugal, o ser capaz de mostrar casas, ruas e pormenores da paisagens, cruzando-as com as informações que dão forma à sua História. No Monte Estoril, como aliás em quase todos os aglomerados urbanos que compõem o perímetro turístico dos Estoris, o desafio centra-se na capacidade de transmitir emoções que se associam aos elementos que vão ser mostrados. Tal dificuldade, ultrapassável de forma fácil se quem guia a visita trouxer no sangue as vivências interiores que os Estoris promovem, conduz o visitante para o universo dos
sonhos, transformando as meras recordações que se captam de um local como este em memórias extraordinárias que nunca mais se conseguem esquecer. Expressiva deste carácter onírico que transborda de uma visita ao Monte Estoril, é o conjunto de três vivendas construídas no sopé do Monte Palmela, já depois do início do Século XX e numa fase de decréscimo da capacidade interventiva da Companhia Monte Estoril, que foram assinadas por Rafael Duarte de Melo. A Vivenda Laximi, ainda na Avenida Sabóia, e depois as Vivendas Malvina e Laura, situadas já na Avenida Sanfré, denotam, segundo Raquel Henriques da Silva, o fim do romantismo e a transição para o período designado como Arte Nova. A nova expressão urbanística, verificável através da linearidade dos muros das propriedades que deixam de ser feitos em pedra solta para adquirirem um aspecto moderno e linear, justifica-se pela introdução do ferro forjado no topo das suas estruturas de suporte, denotando uma clara inovação que escapa por completo à determinação efectiva que a antiga companhia havia definido para a sua estância balnear. Logo a seguir, a Casa de São Francisco, também ela de época mais tardia, vem confirmar a orientação construtiva e marcam a visita com uma radical viragem para o Portugal Republicano que a visita pedonal do Parque Estoril virá complementar.
O Estoril Franciscano Antes de ser o Estoril que hoje conhecemos, o espaço ocupado pela estância balnear era um local inóspito e desinteressante, no qual imperavam somente duas edificações com algum interesse para uma visita: de um lado, com a sua Igreja a marcar o espaço, o Convento Franciscano de Santo António do Estoril, e do outro, envolvido na expressão aziaga dos males de pele e das doenças, os Banhos do Viana. O seu topónimo – Estoril – diz-se que nasce precisamente do facto de ser um local estéril e abandonado, onde a natureza imperava ainda com as suas leis, e no qual o homem tinha produzido poucas ou nenhumas alterações. Tal como noutras zonas da chamada Costa de Lisboa, existem também no Estoril diversas fortificações que, estando neste momento muito alteradas na sua formulação original, são demonstrativas da importância estratégica que, antes do dealbar do turismo no início do Século XX, a localidade representava no plano global de defesa da barra de Lisboa. É, no entanto, a Igreja de Santo António e sobretudo a acção desenvolvida durante quase meio século por Monsenhor António José Moita enquanto pároco do Estoril, que representam o cerne da importância do Estoril no contexto de afirmação sócio-política do Cascais de então. Inserida num ambiente cosmopolita, onde a lógica turística impera, a Igreja de Santo António do Estoril, apresenta uma história repleta de vicissitudes que a tornam num local de excepcional interesse para o eventual visitante. As primeiras menções a este lugar, reportam a 1527, quando se noticia a existência de uma pequena ermida de madeira dedicada a São Roque com um altar a Santo António colocado junto à entrada, construído por Leonor Fernandes, moradora no Casal do Estoril.
Segundo Ferreira de Andrade, o terreno onde se erguia esta ermida, pertencia no Século XVI a Luís da Maia, que o terá doado à Ordem de São Francisco. Com pedras retiradas do antigo Convento de Enxobregas, os frades recém-instalados iniciaram de imediato a construção de um novo templo, ao qual foi anexado um pequeno eremitério e uma oficina artística. Em termos físicos, a igreja era composta por uma única nave, com três altares: no altar-mor estava uma imagem de Nossa Senhora da Boa Nova; nos dois restantes encontravam-se imagens de São Domingos e de São Francisco. Segundo a 'Crónica Seráfica da Santa Província dos Algarves', na qual se descrevem os edifícios da ordem de São Francisco, existiria ainda uma imagem de Santo António ao lado da epístola, no altar-mor. Uma imagem do santo taumaturgo existiria ainda, com cerca de três pés de altura, onde hoje se ergue o cruzeiro, junto ao adro da actual igreja. Os azulejos primitivos, datados de 1719 e 1751, denotam uma elevada qualidade de produção artística. Quase completamente destruída pelo terramoto de 1755, a Igreja conheceu no Século XVIII grandes transformações. Iniciadas em 1756, por iniciativa do guardião do templo, Frei Basílio de São Boaventura, as obras de recuperação foram feitas a um ritmo extraordinariamente rápido, havendo notícia de em 1758, pouco mais de dois anos após o seu início, se terem já concluído os trabalhos de reconstrução do altar, com a sua actual talha dourada. O mesmo frade, zeloso cumpridor dos seus deveres, alargou ainda o coro para o adro, em cerca de doze palmos dotando-o de três janelas rasgadas na fachada integralmente efectuada em pedraria, tal como hoje ainda encontramos, e encimada por uma imagem de Santo António colocada num pequeno nicho. Em 1834, quando foram extintas as ordens religiosas, o convento foi vendido em hasta pública a Manuel Joaquim Jorge, que nos terrenos anexos edificou um prédio de rendimento que alugava durante a época estival aos utilizadores das águas termais do Estoril.
Em 10 de Maio de 1916 a igreja foi entregue à Irmandade de Santo António passando a ser conduzida pelo eminente reverendo Padre António José Moita. A história desta igreja, no entanto, não termina aqui, uma vez que no ano de 1927 um incêndio destruiu o remodelado templo seiscentista. A luta contra o fogo travada pelos bombeiros das várias corporações presentes, permitiu a recuperação de grande parte do mobiliário, o crucifixo do altar, castiçais de prata e vários objectos de culto. O projecto da autoria do Arquitecto Tertuliano Marques permitiu salvar alguns dos antigos azulejos e manter a traça original do edifício, tendo-lhe sido acrescentados os frescos do tecto actual, da autoria de Carlos Bonvalot, bem como o conjunto azulejar, concretizado pelo Mestre Victória Pereira. Em 1929, na cerimónia de início do funcionamento da nova Paróquia do Estoril, já sob a orientação de Monsenhor Moita, encontramos o templo com o seu aspecto actual, espécie de bastião da memória de um Estoril de outros tempos. É este Estoril Franciscano, em que as estórias se impõem à História e no qual as personalidades que lhe dão forma se assumem como o mais relevante dos alicerces na formação do Estoril actual, que reside o principal pólo de interesse numa visita à região. Como aconteceu com o projecto inicial para o Estoril, sonhado por Fausto de Figueiredo, imaginado por Martinet mas, antes deles, também oniricamente centrado no pensamento de José Jorge de Andrade Torrezão, Carlos Anjos, Conde Henrique de Moser, José Dias Valente, para além de muitos outros, não é possível mostrar esta região de forma marcante e assumidamente deslumbrante utilizando as regras e os costumes tradicionais. Este Estoril, impossível de transpor em palavras e, como tal, de grande dificuldade descritiva, é um espaço que deve ser sentido e, através da sensação, transmitido de forma marcante a todos aqueles que o visitam. Cada esquina, cada pormenor e quase cada pedra da calçada Estorilense, guarda uma história que encerra segredos
inimagináveis. É este Estoril de emoção e memória, pleno de aromas, de trejeitos e de cores que formam o dia-a-dia daqueles que aqui vivem ou trabalham hoje, mas também dos muitos que os precederam por cá, que urge redescobrir, porque está repleto da essência mais profunda da Portugalidade e faz a diferença entre o destino turístico de qualidade que ele já é, e o destino de excepção, impossível de descrever, e que deve ser sentido e experimentado, que ele tem de voltar a ser. Hoje, neste início de Século conturbado e em que nem tudo é aquilo que parece ser, a Europa debate-se com problemas graves relacionados com a sua identidade. Portugal, e os Estoris em particular, possuem um manancial de História que assenta em quase um milénio de Nacionalidade e que, nesta abordagem sentida, faz toda a diferença e assegura um caminho de excepção em termos daquilo que de verdadeiro deixa transparecer. O Estoril tem um magnífico centro de congressos; hotéis excepcionais de várias categorias e com estilos paradoxalmente diferentes que se adaptam a todos os gostos e a quase todos os motivos de visita; tem campos de golfe marcados por paisagens inesquecíveis que são conhecidos e reconhecidos como dos melhores do Mundo inteiro; tem restaurantes que se caracterizam por serem capazes de redescobrir o melhor da gastronomia e da enologia Portuguesas e de, com isso, deixar uma marca de grande qualidade nas visitas que aqui aconteçam; tem um centro termal ultra-moderno que substituiu os ultrapassados Banhos do Viana e que fornece os seus tratamentos num ambiente de requinte, conforto e bom-gosto que os transformam numa referência inultrapassável na sua área de actuação; tem uma marina com excelentes condições a todos os níveis para ser o porto de abrigo de quem tem tempo, dinheiro e gosto para fazer do mar o cenário idílico para as suas férias; tem um conjunto de ofertas culturais, com museus, núcleos históricos, envolvência regional, galerias de arte, arquivos e bibliotecas, que são suficientes para atrair para a região milhares de visitantes que procuram muito mais do que o Sol e o mar para aquecerem as suas férias; tem um casino que é o
maior, o mais bem equipado, um dos mais conceituados e certamente um dos melhor situados da Europa actual; tem uma paisagem extraordinária, marcada pela beleza inigualável da Baía de Cascais e enquadrada pela mágica e verdejante Serra de Sintra; insere-se num espaço que se situa a pouco mais de meia hora de um grande aeroporto internacional e da capital do País; tem um microclima que, para além de reconhecido desde sempre, é impossível de repetir artificialmente em qualquer outra parte do Mundo; tem gentes e estórias que fazem da sua História uma preciosidade que urge conhecer; tem tradição ligada com as mais vistosas e conceituadas personalidades da vida mundial, desde jogadores de futebol, estrelas de cinema, cantores, actores e actrizes, para já não mencionar as grandes figuras da aristocracia mundial que, de forma directa ou indirecta, estão ou estiveram ligadas ao Estoril. Então o que falta para que o Turismo do Estoril se imponha? Só uma resposta surge no nosso horizonte. Uma atitude inovadora; uma abordagem diferenciada; e uma forma alternativa de sentir e partilhar este destino excepcional.
O Estoril Moderno
O adjectivo “moderno”, muitas vezes utilizado na academia para descrever a estância turística do Estoril, será porventura a melhor e mais completa palavra que permite descrever a povoação. Moderno, não só por ser recente e integrar hoje alguns exemplares dignos de nota daquela que se convencionou designar como “Arquitectura Modernista”, como também porque não existe, de facto um Estoril efectivamente passível de ser descrito de maneira linear que, tal como acontece noutros locais, possa transformar-se numa espécie de guia turístico convencional da região. Maria da Graça Gonzalez Briz (9), num excelente artigo de síntese publicado no saudoso Arquivo de Cascais, cita precisamente o grande vulto da produção turística do dito Portugal Moderno – Raul Proença – que, no Guia de Portugal que publicou em 1924, referindo-se ao Estoril é parco em palavras para descrever a povoação. O Estoril dessa época, já quase quinze anos depois de Fausto de Figueiredo, a partir da Sociedade Estoril Plage, ter dado o arranque à criação daquela que desejava que fosse o melhor destino turístico da Europa de então, não possuía, na perspectiva da autora, imóveis, monumentos ou quaisquer outros motivos especiais de interesse que sustentassem a produção do tal roteiro turístico. Ao contrário do que acontecia noutras partes do País, que nesse Guia de Portugal surgem profusamente descritas e enaltecidas pelo autor, o Estoril marcava exclusivamente pelas infraestruturas turísticas que esgotavam os motivos de interesse. Mencionando, aqui e além, as duas ou três casas acasteladas que se impunham à paisagem de praia, e que basicamente são o resultado na adaptação das antigas fortificações marítimas a casas de verão da aristocracia desse Portugal Moderno, essencialmente o Forte da Cruz, o Palacete Schröeter e a Casa de Santo António, Raul Proença demora-se a descrever o arroteamento da
urbanização e, sobretudo, os tapetes verdes de relva que deslumbravam pela beleza e pela largueza que traziam à paisagem. De facto, nessa altura, pouco mais havia para descrever e para fomentar uma visita mais demorada ao Estoril… No entanto, de forma quase inexplicável e que coíbe o ilustre autor a dedicar à nova estância turística um cuidado especial e um carinho que se nota das palavras que usa neste artigo, existe em torno do Estoril um ideal de sonho, um glamour que o precede e um mítico encantamento que não deixa ninguém indiferente. E voltamos ao paradigma de base que antecede, precede e condiciona quem pretende abordar o Estoril: a sensação de ser muito difícil encontrar palavras que sejam capazes de descrever condignamente a localidade e a nítida certeza de que as emoções que afloram o Estoril são sempre efectivamente muito maiores do que a pequenez que constrange a descrição. O Estoril, cadinho de memória e de memórias, misturando estórias com a História e sonhos de muitas gentes que por ali ousaram imaginar um local diferente, é largamente superior à coisa física que lhe dá forma e, dessa maneira, obriga a que quem quer que seja que o queira conhecer a perder-se nas emoções e na capacidade de o sentir, pois só dessa forma consegue aproximar o que dele apreende daquilo que ele efectivamente vai sendo. Esta premissa, tanto mais importante quanto sabemos que hoje a exigência associada ao turismo pressupõe que se conjuguem as emoções e as memórias com o lazer mais puro e o descanso que noutros tempos se buscava, torna-se numa das mais básicas condições para requalificar o turismo do Estoril, pois é ela que enquadra a oferta tradicional do Sol e do mar num pacote de férias mais amplo que, pelo seu carácter irrepetível, permite ao Estoril assumir-se como destino de excelência no Mundo actual. É precisamente isso que Maria da Graça Gonzalez Briz sublinha no texto de Raul Proença: “Em 1924, Raul Proença, ao escrever o artigo sobre os Estoris para o Guia de Portugal, elogia
a excelência da estância, mas não assinala um só exemplo de arquitectura particular já construído nos terrenos do parque. Eram as infra-estruturas turísticas que impressionavam os visitantes, grandiosas e europeias, numa apreciação que, entretanto, se tinha modificado com a propaganda crescente da nova indústria salvadora da pátria. «Há uma casa acastelada defronte da estação do Estoril, uma passagem de nível, uma álea de jardim entre banquetas, e logo o espectáculo de grande ar europeu do ‘parque’ em construção. (…) É já um campo enorme todo arroteado, com finas, verdes pelouses no chão macio. Cá fora as instalações eléctricas, lá dentro o jardim imenso, o esqueleto do grande casino em construção, com a sua colunata clássica, o grande edifício das termas, o Grande Hotel – tudo grande e europeu. Nos últimos planos as terras sobem, há manchas aveludadas de pinheirais ondulantes, maciços de verdura, e já casinhas guapas se alcandoram nos visos dos outeiros. De aqui a dez anos este parque enorme, com os seus 800 000 m.q. de superfície, o seu campo de golf de sete km, o seu hipódromo, os seus arruamentos para peões e veículos, as suas esplanadas sobre o mar, o seu casino (planta de Silva Júniro) completamente terminado, o seu teatro, e os outros dois hotéis que se projectam, será uma das estâncias da Europa onde mais doce correrá a vida (…)”. E o Estoril vai crescendo, eivado de sonhos e pesadelos que transcorrem nas suas ruas e avenidas como se fossem o sangue que nos circula nas veias. De longe em longe, nos recantos mais inesperados, recuperam-se ideias que se concretizam na impossibilidade das coisas que são sempre ilógicas e que ao comum cidadão parecem irracionais. Esta terra árida e leve, banhada pelas águas da Baía de Cascais que a salga até bem longe da costa, sendo por isso estéril e ínvia, é a mesma terra que parece adubada pelo ideal romântico que falhara no Monte Estoril e que ali veio encontrar o húmus necessário para poder florescer. Logo à entrada do Estoril, hoje um pouco coberta pela feiura inultrapassável da bomba de gasolina, vemos um desses
exemplos improváveis de arquitectura que só nos Estoril podem tornar-se em coisa concreta. São as cocheiras Santos Jorge, edificadas junto à casa do proprietário com o mesmo nome e que, na brancura do seu mármore, deixam antever os elementos cénicos que dão forma ao Estoril. Não existindo já a casa original, onde o ilustre proprietário viveu até à sua morte, e tendo a mesma sido substituída por um inexpressivo e desenquadrado condomínio privado, não é possível hoje mostrar com clareza o carácter inusitado daquela construção, mas Branca de Gontha Colaço e Maria Archer, nas suas “Memórias da Linha de Cascais”, publicadas em 1953, conheceram ainda bem os traços arquitectónicos que a caracterizavam, e deixam-nos uma descrição que é ilustrativa do carácter especial de um Estoril onde se privilegiam os sonhos: “A cenografia do Estoril tem um elemento decorativo logo à entrada, em que não podemos deixar de falar. É a garagem da família Santos Jorge. Nos princípios deste século {Século XX} essa família instalou-se no Estoril e mandou construir a sua casa entre os pinhais. Uma casa bonita, simples, sem nenhum aspecto especial. Mas as cocheiras… As cocheiras da Casa Santos Jorge, hoje em dia transformadas em garagem, mereceram ao proprietário um gasto enorme de fantasia. Dão nas vistas. Todos os forasteiros reparam no prédio estranho. Construção amável, com gaveto, situada entre a estação e o palacete acastelado da Família Barros, o da praia. Construção airosa, branca, leve, aérea, décimos arrendados por enfeites de pérgola. No alto, como escudo senhorial, uma enorme águia, em pedra branca – uma águia de asas abertas para um voo impossível… e fica-se a pensar se será um símbolo, essa águia de asas abertas, um símbolo da velocidade dos cavalos nobres amigos do homem que dantes levavam os seus donos em voo de águia de Lisboa ao Estoril…” Estávamos então a dois passos da actual Praia do Tamariz, conhecida na época como Praia do Juncal, marcada pela presença imponente dos diversos fortes que efectivavam a defesa da Costa de Lisboa. O primeiro, e talvez o mais importante, chamava-se de São Roque, e tinha sido construído directamente
sobre o areal, a meio caminho entre o Forte da Cruz e o de Nossa Senhora da Conceição. Em finais do Século XIX, depois de vendido em hasta pública, foi o mesmo parar às mãos de um ilustre capitalista de Lisboa, Ernesto Driesel Schröeter que, transpondo para o Estoril os ideais românticos que nessa altura grassavam no Monte Estoril, tentou recriar no ermo estéril onde se situavam as suas ruínas fortificadas, um palacete onde o exotismo fosse marca privilegiada. Nasceu assim o Palacete Schröeter, envolvido por uma espessa cortina de vegetação oriunda de diversas partes do Mundo que, plantadas sobre os canteiros que passaram a envolver o casarão, acabaram por se estender, prolongando as suas raízes através da praia, até ao vasto e desértico areal. A mais importante dessas plantas, que hoje consideraríamos infestante, foi o tamarindo e, pela forma como marcou a paisagem e a memória dos primeiros visitantes, acabou por se tornar no próprio designativo do local: o Tamariz. O Tamariz, palacete e mais tarde casa de chá, conjuntamente com a praia que lhe herdou o nome, depressa se tornou numa espécie de ex-libris das visitas a esta região. Eram diferentes, insubstituíveis e enchiam-se de memórias à medida que os Lisboetas que tinham os dez tostões necessários para comprarem o bilhete de ida-e-volta aos Estoris iam ocupando os rochedos até aí abandonados à beira-mar. Ramalho Ortigão, nas suas Praias de Portugal, é genial na forma como descreve a viagem, e ilustra de forma excepcional a razão de ser que preside ao carácter quase mítico do glamour do Estoril (10): “Se queres dar, leitor, o mais belo dos passeios permitidos ao habitante de Lisboa, fazer o que eu ontem fiz. Levanta-te Às cinco horas da manhã, num Domingo, veste-te à luz do candeeiro, porque em Setembro ainda não é bem dia a essa hora, pega na tua bengala e no teu binóculo e vai aponte dos vapores ao Cais do Sodré. Tomamos um bilhete de ida e volta no vapor de Cascais por dez tostões. Ainda é cedo, o vapor não parte senão às sete horas. Entramos no Café Grego e fazemo-nos servir de uma chávena de leite ou chá preto…”
Mas não se esgotava no Tamariz o conjunto de surpresas dessa praia tão especial. Logo ao lado, no outro extremo ao areal, merece uma especial atenção o Palacete Barros, também conhecido por Forte da Cruz, com as suas ameias medievais a espreitar por detrás do palmeiral. Como o primeiro, que Driesel Schröeter designou como Tamariz, também este foi edificado sobre as ruínas de uma antiga fortificação ali existente e que, como a argamassa que marca a construção do tal Estoril idílico e onírico que temos tentado descrever, assenta os seus alicerces sobre uma lenda, um sonho e um desaire que ainda hoje lhe enche as paredes fortificadas de pedra rude. Ainda no final do Século XIX, cerca de 1886, veio a banhos ao Estoril um capitalista Lisboeta chamado João Martins de Barros que, tendo uma filha muito doente a quem os médicos atribuíram prognóstico muito reservado e poucas possibilidade de sobrevivência, resolve trazê-la para a Praia da Poça, actual São João do Estoril e propriedade da Santa Casa da Misericórdia de Cascais, para se banhar nas águas da sua nascente e que corria terem o seu quê de milagrosas. E o milagre aconteceu. A menina curou-se dos seus males e sobreviveu mercê das qualidades terapêuticas das águas do Estoril, do clima excepcional da região e dos ventos serranos que chegavam a partir de Sintra. O pai, então, decidiu investir na região e adquiriu o dito forte com o intuito de nele construir uma casa de veraneio onde pudesse repousar com a família e acompanhar os tratamentos da sua filha dilecta. Conhecedor das melhores práticas construtivas dessa época e utilizando como modelos os palacetes imponentes do Monte Estoril romântico, acordou com o construtor César Lanze a edificação do seu castelo de veraneio. A obra, que decorreu a bom ritmo desde que se assinou a escritura de propriedade do velho forte, foi entregue de empreitada, por preço fixo, ao construtor que assumiu assim os riscos e os problemas técnicos da edificação. As contas mal feitas e os imprevistos que naquela altura tornaram muito mais caros os materiais e a mão-de-obra existente no local, fizeram com que a meio do processo já
estivessem praticamente esgotados os valores pagos pelo proprietário ao empreiteiro. Este, assumindo os seus erros e cumprindo integralmente o compromisso que assumira, acabou a construção e, dados os esforços e preocupações associados ao processo, acabou por se arruinar com o Chalet Barros e, de desgosto, morreu pouco tempo depois, deixando a pairar sobre o estonteante castelejo os desaires inóspitos de mais um drama romântico. É nesta plêiade de dramas sonhados, com o Forte da Cruz de um lado, as cocheiras Santos Jorge do outro, e o Palacete Tamariz no extremo Ocidental das praia, que se concretiza o cenário no qual Fausto de Figueiredo virá a edificar o Estoril moderno, assente no abraço fraternal que compunha as arcadas e o jardim, e encimado pelo edifício notável do novo Casino Estoril, com o qual pretendia deslumbrar literalmente quem visita a nova estância balnear e termal. Ainda hoje, quando nas noites de Verão se enchem as paredes do Tamariz com a batida da música e da festa que a Família Canto Moniz imprime às badaladas festas no seu bar ali construído, é sob a designação de Tamariz, ou seja, centradas nos velhos tamarindos que encheram a praia estéril, que a magia acontece. As memórias do Estoril de Santo António, marcadas pelo antigo convento Fransciscano e pela sujidade pouco recomendável dos Banhos do Viana, vão assim desaparecendo à medida em que vai nascendo um espaço novo, moderno e dinâmico. Os hotéis cosmopolitas enchem as ruas do Estoril dos melhores dramas mundanos e as estórias que dão forma ao novo espaço centram-se muito mais nos escândalos que vão nascendo no meio do casario recém-construído do que nas antigas estruturas toscas do Estoril de antanho. Resta muito pouco desse Estoril mais antigo e, para além da igreja e da casa de repouso (hoje paroquial) que Manuel Joaquim Jorge mandou edificar junto ao mesmo, pouco mais se reconhece desse período ancestral.
A excepção, merecedora de uma visita prolongada e sentida, acontece com o edifício Luís Vergani, situado na Rua de Nice, onde desde há mais de meio século funciona a conhecida e reconhecida Pastelaria Garrett. Tendo ali funcionado originalmente o Hotel Paris, faz parte do conjunto de edificações que serviam de apoio aos Banhos do Viana e que, depois de terem sido substituídos pelas modernas unidades hoteleiras, acabaram por readaptar as suas funções e por manter-se activas no seio da nova dinâmica urbana da povoação. O prédio, que ainda hoje se encontra figurativamente próximo daquilo que era naquela época, trás consigo as memórias vividas de um tempo em que o Estoril ainda não era elegante e em que surgia sempre relacionado com as enfermidades que buscavam a cura através dos banhos. A ocupação do mesmo pela pastelaria, que desde há muito tempo assumiu o seu carácter de pedra basilar da melhor sociedade Estorilense, centra em si próprio o cerne da História moderna do Estoril. Aos fins-de-semana, logo pela manhã para o pequeno-almoço e ao final da tarde para o chá, a Pastelaria Garrett enche-se de Estorilenses que ali vão para verem e serem vistos, trocando os cumprimentos que tantas vezes condicionam os equilíbrios políticos e sociais da região e mesmo de Portugal. Há muitas décadas atrás, ainda antes do seu bolo-rei ter ganho a fama que faz com que actualmente, na quadra de Natal, seja comum ver na Rua de Nice filas de muitas centenas de metros de gente que pacientemente aguarda a sua vez para adquirir aquela que é considerada como uma das melhores iguarias de Portugal, eram os queques ainda quentes que faziam as delícias de quem andava por lá. Os queques, bonitos e amarelos que saíam dos seus fornos, eram comidos ao pequeno-almoço pelos filhos das melhores famílias do local e que normalmente antecediam a entrada no comboio que os levava ao liceu, ao trabalho ou à empresa situada em Lisboa. Eram, desta forma, os queques da linha, adoptando um designativo que ganhou força social e que passou a descrever também os meninos bem comportados e bem penteados que do Estoril chegavam a
Lisboa através da linha do caminho de ferro… Os queques da linha, de bons modos e boas maneiras, são o repositório integral e total da genialidade de Fausto de Figueiredo, conjugando a linha de comboio, as acessibilidades a Lisboa e a própria formulação urbana e especial da estância com a criação de uma sociedade nova e moderna que suportasse o nascimento de um novo Portugal. Os comportamentos dos “meninos da linha”, apelidados de “queques” pelos que noutras partes da região de Lisboa os viam chegar de comboio sempre aprumados e muito bem-educados, nascem precisamente da capacidade que aquele empreendedor, através da sua Sociedade Estoril Plage, teve de promover os relacionamentos através da conjugação de diversos factores associados ao seu espaço. Como facilmente se verificará ainda hoje, e que infelizmente a história mais recentemente de Cascais tão tristemente comprovou, teria sido mais lógico e financeiramente significante que Fausto de Figueiredo urbanizasse o Estoril a partir da linha de comboio e da estação. Os terrenos que reservou para jardins e a largura das avenidas que os abraçam, fechando os relvados numa espécie de espaço particular pensado à semelhança de uma casa ou de um lar de família, poderiam ter sido enchidos com lotes de construção que renderiam muitos milhares de contos a qualquer promotor imobiliário. Mas Fausto de Figueiredo, tal como os seus visionários e sonhadores antecessores haviam ousado fazer no Monte Estoril, teve a capacidade genial se alargar o seu horizonte temporal e de vislumbrar no futuro os frutos da sua planificação no presente. Os jardins do casino e o conforto urbano que ofereciam, associado à proximidade da estação e na facilidade de acessos a Lisboa, promovem a vida ao ar e as caminhadas. Nada mais natural, para os capitalistas ricos que viviam nos lotes urbanos que envolviam o Estoril, do que saírem de casa a pé em direcção à estação. Nas caminhadas matinais que os levavam aos queques da Garrett e depois ao comboio que em pouco mais de vinte e cinco minutos os levava a Lisboa, depressa se foram conhecendo,
reconhecendo e estreitando laços de amizade e vizinhança transformando uma povoação completamente nova, construída de raiz para gente sem raízes comuns que pudessem partilhar e que suportassem a criação de vínculos de uma identidade sã, num Estoril onde quase todos são uma família constituída artificialmente pelo promotor, mas sólida nos vínculos que no seu seio vão criando. Os jardins do casino, confortáveis, elegantes e apetecíveis numa terra onde são raros os dias de chuva e para os quais o frio nunca vem, são o local onde naturalmente passeiam as senhoras e os filhos dos capitalistas que trabalham em Lisboa e que, não trabalhando elas, ali gastam as suas tardes entretendo os filhos e partilhando também elas um queque e um chá na vistosa Pastelaria Garrett. As crianças crescem em conjunto, partilhando diariamente aqueles jardins que sendo públicos quase parecem ser uma extensão da casa deles, e no qual desenvolvem laços onde a filiação conta menos do que as amizades que se vão impondo de forma sã. Nasce assim um Portugal moderno, atractivo e simpático, onde a cidadania e a identidade surgem bem vincadas e em que os costumes se assumem que devem ser diferentes. As crianças, pulando e rindo em brincadeiras pueris por entre as palmeiras, os tamarindos e as demais espécies exóticas que enchiam o Estoril, vão ouvindo a partilhando as conversas das mães no seu dia-a-dia despreocupado. Nas festas de aniversário, nos jantares de amigos, nos bancos do Colégio João de Deus e mais tarde dos Salesianos, vão consolidando os laços de família e recriando uma nova forma de viver em comunidade. Mas passa pela cabeça a alguém cuspir para o chão ou dizer palavrões dentro da sua própria casa? É evidente que não. E o Estoril, com os seus espaços urbanos excepcionais, é como se fosse a casa de cada um deles, que se vão habituando a um comportamento tendencialmente diferente daquele que caracterizava a juventude noutras zonas de Portugal. E se as mães, em conversas longas ou em torno de um queque e um chá, se vão demorando por ali, partilhando com as crianças o processo natural do seu
crescimento e dessa forma criando afinidades, como hão-de-ser chamadas pelos mais novos? Senhoras donas? A gente que está tão próxima? Que é a mãe do meu melhor amigo e que me viu crescer? Aquela senhora que mantém sempre aberta a porta de casa para que a criançada Estorilense por ali se espraie partilhando brincadeiras e o mistério agradável desta vida suave? É evidente que não. Não o sendo em ternos sanguíneos, são-no efectivamente por proximidade afectiva… são as tias do Estoril que, como os meninos da linha, darão fama a uma terra que se constrói através de um processo sociologicamente muito especial e o tornarão num espaço que, visto de fora, é diferente, agradável, sempre certinho e muito bem educado… E é novamente Ramalho Ortigão, nas mesmas “Praias de Portugal” que atrás citámos que explica como vai ser o Estoril, cerca de cinquenta anos antes de Fausto Figueiredo ter começado a sonhar com uma estância balnear excepcional, e de os meninos da linha, com a sua muito própria de ser e de estar, terem começado a encher os jardins com as suas brincadeiras infantis: “O sindicato de Cascais propõe-se transformar o lindo arrabalde do Estoril, onde junto da praia há uma rica nascente de água termal, em vila de banhos e de águas no moderno tipo elegante de Wiesbaden, de Trouville ou de San Sebastian. (…) Desde que se decidiu para todos os efeitos que isto é um alegre desfazer de feira, que depois de nós pode vir o dilúvio quando for servido, porque a gente vai acabar com o resto que há para perder o mais velozmente que se possa, - desde que esta decisão se tomou por acordo geral e a contento do maior número – o Estoril-les-Bains, tornou-se para nós uma necessidade social. A meia horas de Lisboa, por um caminho-de-ferro de luxo na margem do Tejo, Estoril-les-Bains com o seu grande estabelecimento de banhos, com o seu casino, com as suas salas de ópera e de concertos, com as suas roletas, com os seus pavilhões enigmáticos, com os seus cottages misteriosos, e com os seus camarões permanentes em gabinete reservado, é um imprescindível complemento da civilização que felizmente desfrutamos.”
O cunho luxuoso e exclusivista do Estoril, sentido desde o início e assumido pela generalidade dos seus principais propulsores, foi sempre determinante na assumpção de uma oferta de qualidade que estivesse entre o melhor que ia existindo no Mundo de então. Desde o primeiro momento, e mesmo quando os Estoris ainda estavam estéreis e se restringiam exclusivamente aos banhos de cariz curativo assentes na exploração precária promovida por Manuel Joaquim Jorge, o promotor que comprara em hasta pública os restos do antigo convento, que o Estoril centrou a sua existência na necessidade de captar novos públicos e de, com base nisso, conseguir promover-se e consolidar a sua existência. Também desde o início, de forma transversal a todas as épocas e a todos os tempos, o Estoril se debateu com as implicações e as polémicas políticas que resultaram do empreendedorismo que por ali foi acontecendo. A necessidade de fazer as coisas de forma diferente e, por vezes, a vontade de tornar concretas ideias que nasceram de sonhos e que em nenhum outro lugar poderiam passar da ideia que eram à coisa efectivamente tentada, fez com que o progresso tenha assentado em movimentos que tão depressa avançavam como logo a seguir recuavam, num vai-e-vem político sempre envolto em muitas conversas e em polémicas que acenderam as discussões nos jornais e nas principais revistas de sociedade. A primeira dessas polémicas aconteceu logo nessa fase inicial, e deveu-se precisamente à capacidade que um dos primeiros empreendedores teve de pensar para o Estoril um embrião daquilo que hoje chamaríamos o turismo de saúde. Contam-nos Guilherme Cardoso e José d’Encarnação, na sua “Para uma História da Água no Concelho de Cascais “ (11), que depois do Conselheiro João da Silva Carvalho ter adquirido a antiga Quinta do Viana em 1844, se levantou uma acesa polémica entre este e Joaquim Jorge, que havia arrematado em hasta pública o Convento de Santo António, devido à casa que o último construíra junto à igreja e que destinava a alojamento dos doentes que procuravam as termas do Estoril para curar os seus
males. Enquanto que o primeiro, com uma visão eminentemente imediatista entendia as águas como um remédio para os males dos outros e considerava o seu uso como uma obrigatoriedade quase de carácter de subsistência, o segundo entendia todo o espaço num horizonte de pensamento muito mais lato e moderno, considerando o Estoril não enquanto a estância exclusivamente termal que efectivamente ainda era, mas sim já como um pólo de atracção turística que deveria ser explorado e rentabilizado como único caminho que poderia sustentar o seu crescimento. O antagonismo entre a sordidez do segundo, ávido de lucro, e o beneplácito do primeiro, como seu espírito caridoso, foi para estes autores a grande questão que esteve subjacente ao nascimento do Estoril moderno. Em 1844, comprou a quinta do Estoril, onde se situavam as termas, o Conselheiro João da Silva Carvalho que teve uma questão, em 1845, com Manuel Joaquim Jorge, sobre a posse dos terrenos onde este estava a construir um prédio, junto ao antigo convento de Santo António do Estoril e que Joaquim Jorge tinha comprado, em hasta pública, em Outubro de 1835, após a sua incorporação na Fazenda Pública. O edifício em questão destinava-se a albergar as pessoas que vinham a banhos e, no entender do seu proprietário, o que levava o conselheiro a processá-lo era somente o vil e sórdido interesse de só ele arrendar as suas casas às famílias que vão aos banhos, pondo estas na dura necessidade de lhe pagarem rendas exorbitantes”. Esta polémica, tão actual hoje como era há cem anos, pressupõe sempre que existe uma necessidade efectiva de encontrar e de assumir a vocação turística do Estoril e de, dessa forma, se definir um posicionamento da estância que permita trabalhar eficazmente a sua promoção externa. Havendo várias tendências e opiniões em relação a este tema, importa precisar que a dicotomia se coloca na forma como se planeia a existência da região e se, no dealbar do Século XX, quando tudo estava por fazer e os planos e investimentos abundavam, hoje, quando a capacidade de pensar a largo prazo e de forma aberta se esvai, o problema se mantém mas colocado de forma inversa. De facto, e
ao contrário do que sucedia noutros tempos, tem crescido desde há alguns anos a esta parte, a incapacidade efectiva de se decidir qual é o posicionamento do Estoril e, nos poucos momentos em que isso aparentemente acontece, resulta sempre numa total ineficácia em termos de trabalhar, no campo da promoção mas também em termos de criação de infra-estruturas de suporte à decisão tomada. E se, por um lado, a escolha de transformar o Estoril num espaço privilegiado para o turismo de negócios e para os congressos, tendo-se investido muitos milhões de Euros para construir o Centro de Congressos e outras infra-estruturas de apoio a essa área de funcionamento, também por outro lado entidades terceiras se dedicam a manobras se diluição da marca Estoril na oferta da região da Grande Lisboa, tornando absurdos os investimentos e contrariando aquilo que cá dentro se vai fazendo. Em termos externos, quando nos dirigimos directamente aos mercados emissores e contactamos de forma efectiva quem potencialmente poderá estar interessado em fazer do Estoril o seu destino privilegiado para determinada área de existência, logo nos deparamos com contactos prévios e díspares efectuados por entidades terceiras que, sem enquadramento de qualquer espécie na realidade local, acabam por desenvolver abordagens paralelas mas contraditórias que põem em causa a credibilidade deste destino de excelência. Tal como aconteceu com Manuel Joaquim Jorge e João da Silva Carvalho, é fundamental que se perceba o que é, de onde veio e quais as possibilidade de crescimento do Estoril e, dessa forma, criar um plano global de promoção turística que alargue os horizontes da região de forma conexa, conjugando esforços, abordagens, investimentos e trabalho em prol de um futuro que se quer de qualidade, de grande produtividade e de uma significância quase transcendente. Licínio Cunha, figura de incontornável relevo nas políticas turísticas Nacionais desde há muito tempo, definia da seguinte forma o conjunto de premissas que estão subjacentes às motivações que asseguram público a um destino concreto (12):
“Atendendo a que as razões que levam as pessoas a deslocar-se assumem, nuns casos, carácter de obrigação e, noutro, carácter de satisfação pessoal, podemos distinguir entre motivações constrangedoras (negócios, reuniões, missões, saúde, estudos), motivações libertadoras (férias, desportos, repouso, cultura) e motivações mistas na medida em que, quem se desloca para participar em reuniões, missões ou mesmo por razões de saúde, frequentemente aproveita os seus tempos livres para, durante o dia ou fim-de-semana, praticar desporto, ver monumentos ou, mesmo, aproveitar a viagem para fazer alguns dias de férias”. E a noção de que estas motivações se conjugam de acordo com uma determinada receita para recriar a fácies de uma região, estiveram sempre presentes desde o dealbar do nascimento dos Estoris. José Jorge de Andrade Torrezão, Carlos Anjos, Henrique de Moser, Fausto de Figueiredo e mesmo Manuel Joaquim Jorge neste Estoril embrionário e ainda inexistente, pensaram e planearam a região em termos da definição de uma oferta que estivesse assente nesse pressuposto de base que se prende com a necessidade de responder aos apelos e aos interesses daqueles que potencialmente para cá poderão vir para alguma actividade desenvolver. As publicações de propaganda editadas pelo Estado através da Sociedade de Propaganda de Portugal, são unânimes na forma como a imensidão da capacidade de oferta do Estoril abre o leque das possibilidades a esta terra. Em 1935-40, Nuno Catharino Cardoso (13) sublinha que a heterogeneidade daqueles que habitam no Estoril, respondendo de forma conveniente aos desejos dos muitos visitantes que nessa altura transformavam a Praia do Tamariz num dos mais significantes destinos de férias em Portugal (nunca é demais relembrar, agora que se comemoraram os cinquenta anos da invenção do biquini, que em Portugal só no Tamariz se podiam ver as senhoras com esse novo modelos de fato-de-banho e que de todo o País chegavam “turistas” que tinham como único objectivo vir ver as estrangeiras que ousavam gozar o Sol Estorilense com essa diminuta indumentária) implicava a existência de diversos tipos
de oferta. Depois de elogiar o cosmopolitismo do Estoril, onde as nacionalidades se cruzavam de uma forma que a Europa só nessa altura começava a conhecer, o autor sublinha a grandiosidade e a modernidade dos edifícios Estorilenses, a beleza do seu parque e as arcarias que lhe forneciam um toque de glamour e simultaneamente de conforto que quase as transformava numa extensão das casas das suas gentes, Catharino Cardoso não hesita em considerar a pluralidade da oferta turística Estorilense como a principal base qualificadora do seu posicionamento: “Com hotéis de primeira ordem, tais como o Hotel Palácio Estoril e de todas as classes e com cómodas pensões, os Estoris devido ao seu clima privilegiado em que predominam magníficas temperaturas de Inverno e verão, tão benignas que até permitem que se tomem todo o ano banhos de mar e de sol, clima maravilhoso que dá mais de três mil horas de sol por ano, estão justamente destinadas a um grande e justo futuro entre todas as estâncias portuguesas”. E mais à frente, quando descreve os complementos da oferta do Estoril, também sublinha a existência de encantos naturais que se conjugam com os desportos que ali se praticam, referindo o golfe, o ténis e a natação com as áreas com mais interesse. Foi essa capacidade de visão, mais do que qualquer outro ensejo, que trouxe para o Estoril aquele que virá a ser a grande figura criadora da estância turística que ainda hoje é conotada com o que de melhor se vai fazendo. Fausto de Figueiredo, que chega aos Estoris em finais do Século XIX depois de se ter apaixonado pelas agruras verdejantes do Monte Estoril, onde construiu uma casa extraordinária no local onde antes se erguera um dos chalets que José Jorge de Andrade Torrezão mandara fazer, subverte por completo a dinâmica da terra e, ao contrário daquilo que era usual fazer-se, decide construir o Estoril sobre o antigo pinheiral, não atribuindo grande importância ao bucolismo da linha costeira e aos rochedos banhados pelas ondas, que até aí haviam sido o mote principal de quem apostava no turismo de veraneio.
Depois de adquirir a antiga Quinta do Viana, em parceria com Augusto Carreira de Sousa, funda a Sociedade Estoril Plage que marca o nascimento do Estoril moderno. A principal característica da nova estância, também ela pouco usual no Portugal dessa época, é a definição prévia dos objectivos do projecto. Antes de começar a construir e de passar à concretização das ideias de forma a garantir o dinheiro de que tanto necessitava para transformar em realidade o sonho que ele tinha imaginado, Fausto de Figueiredo opta por contratar o arquitecto francês Martinet a quem encomendou o projecto global para uma “Estação Marítima, Climatérica, Thermal e Sportiva”, facto que representa a primeira aproximação a um master-plan urbano jamais experimentado em Portugal. E depois de concluído o plano, do qual publicou uma brochura promocional com o mesmo nome, apostou tudo o que tinha numa campanha de propaganda que transformasse o Estoril que ele tinha sonhado mas que não existia ainda numa iniciativa recebida com entusiasmo pela melhor sociedade Portuguesa, pelo poder político e, mais importante ainda, pelos bancos dos quais ele necessitava para obter o necessário financiamento. Para convencer o governo, Fausto de Figueiredo sublinha o carácter inovador do Estoril e, sobretudo, a sua capacidade de atracção a um novo tipo de turistas que exige qualidade, comodidade e divertimento e que está disposto a pagar por isso, trazendo assim uma mais valia evidente para um Portugal que se debatia (como sempre) com problemas grandes de endividamento. Como refere Maria da Graça Briz, no trabalho atrás referenciado “Para Fausto de Figueiredo o que interessa à economia Portuguesa é um turismo de luxo, o que implica não só a construção de grandes hotéis, mas também de casinos, anexos e de diversões de toda a ordem. Daí a necessidade de apoio do Estado às iniciativas privadas que promovam projectos globais de qualidade”. E nada teria sido possível, sobretudo em termos da alteração legislativa que foi necessário fazer para que o Estoril se concretizasse naquele seu tempo, sem que os principais intervenientes nesta aventura tivessem deixado de se
comprometer com os principais órgãos de poder local e Nacional, sem os quais dificilmente se teriam conseguido reunir as condições mínimas necessárias para tornar concreto o empreendimento. O Conselheiro Driesel Schröeter, que anos antes havia sido peça essencial no processo de reconstrução da Igreja de Santo António e que mantinha os laços estreitos que possuía com Monsenhor António José Moita, o Prior do Estoril, foi a figura central que permitiu a Fausto de Figueiredo consolidar as suas ideias ao ter apresentado, nessa altura enquanto Ministro da Economia, uma proposta de alteração legislativa à câmara republicana. O próprio promotor, depois de ter sido Vereador na Câmara Municipal de Cascais, viu-se obrigado a assumir a presidência da edilidade e de, dessa maneira, conseguir obter o poder necessário para alterar as regras do jogo e conseguir empreender. Pouco mais de quarenta anos depois da Companhia Monte Estoril ter imaginado um projecto diferente para a região, foi Fausto de Figueiredo que, com a sua capacidade empresarial e a visão política que demonstrou ter, mudou literalmente o mundo inteiro para que se criassem as condições essenciais para que o Estoril pudesse nascer. Depois, quando o Parque Estoril passou do papel à prática, generalizando a bipolarização entre aquilo que havia sido imaginado e aquilo que, de facto, acabou por ser construído, gerou-se todo um manancial de sobreposições idealistas que com o trabalho de Fausto Figueiredo acabaram por transmutar por completo o ideário urbano que havia presidido à sua criação. As cerimónias que permanentemente vão acompanhando o nascimento do Estoril, quase todas precedendo a construção em si própria e servindo basicamente como campanhas de marketing nas quais Fausto de Figueiredo também foi um génio, pois angariava assim os apoios necessários à consolidação dos seus projectos e à concretização das suas ideias, são por si só determinantes na percepção que temos deste Estoril tão especial. A já referida investigadora Helena Matos, no mesmo trabalho atrás mencionado, sublinha precisamente esse facto, mostrando que a diferença que existe entre a obra e a ideia que a define, é
fundamental na maneira como o Estoril nasceu e foi crescendo: “A inauguração do Estoril Palácio Hotel tivera efectivamente foros de grande acontecimento para que concorreu também um vasto programa de festas que os jornais noticiavam indistintamente sob o título “Na Costa do Sol” ou “Na Linha de Cascais” e que davam conta de espectáculos de fogo-de-artifício na baía, festas infantis no Tamariz, estreia no Casino Internacional do filme Cobra com Rudolfo Valentino seguido de baile com a orquestra de jazz-band, bandas de música no Parque Morais, da Parede. De Cascais a Pedrouços, do golfe ao futebol, das primeiras horas do dia às últimas da noite, os acontecimentos destinados a assinalar esta inauguração sucediam-se e as notícias sobre eles igualmente. A noção do papel que a imprensa poderia desempenhar num projecto como este leva a que se encontre Fausto de Figueiredo e alguns dos seus colaboradores mais próximos, quer dinamizando acontecimentos directamente, quer através da Sociedade de Propaganda da Costa do Sol. É esta sociedade que encontramos, por exemplo, a patrocinar duas semanas depois da inauguração do Estoril Palácio Hotel, as regatas de Cascais que, neste ano, até terão taças a concurso com nomes dos diários da capital”. Como em quase todos os espaços pensados previamente e construídos de raiz, o Estoril desta época divide-se entre o conjunto de ideias expressas no plano global inicialmente apresentado e defendido que foi, no caso específico do Parque Estoril, também aquele que serviu de base à campanha promocional que permitiu a alteração de regras e a adaptação da legislação para que a estância tivesse nascido e, por outro lado, a vontade, o ensejo, a capacidade operativa e a disponibilidade financeira dos proprietários de cada um dos lotes que foram sendo ocupados. Em todos estes planos, e principalmente naqueles que colaboraram na criação da Costa do Estoril enquanto destino turístico de prestígio na Europa de então, a figura do promotor, com intervenção directa em cada detalhe de uma vasta rede de planeamento que ele sabia ser essencial na definição da imagem externa do destino que estava a fazer,
estava sempre presente. A genialidade de Fausto de Figueiredo, sentida em todos os momentos desta fase de arranque do Estoril moderno, transmite-se à totalidade dos intervenientes no processo e, contrariando um pouco aquilo que era usual fazer, consolida-se a partir dos resultados que alcança, reforçando a posição do Estoril à medida em que vai conseguindo trazer para cá gente nova, empreendedores corajosos e pessoas com a visão necessária para transformarem o local na estância internacional que ele sonhara fazer. A arquitectura urbana, sempre associada às vontades pessoais de quem a promove e/ou adapta, vincula-se muito mais à necessidade prática de habitar, cruzada em espaços como o do Estoril em que a componente cénica é imensa, com a necessidade efectiva de a utilizar para se impor na sociedade e para causar impacto sobre quem a observa. No final do processo criador (e é importante sublinhar que ainda hoje, em pleno Século XXI, não está concluído o original plano de loteamento que a Sociedade Estoril Plage previu em 1915) a face do empreendimento marca-se pelo vínculo que tem à ideia criadora mas, também, ao conjunto de vontades e expressões individuais que se conjugam no seu perímetro urbano. Marieta Dá Mesquita, num magnífico apontamento que publicou sobre a necessidade de reconsiderar a forma como abordamos essa expressão personalizada no seio de uma análise à arquitectura residencial, sublinha precisamente esse facto que, no caso concreto do Estoril, surge de forma multiplicada e que transcende largamente o espírito crítico dos estereótipos académicos que a abordam (14): “Em síntese pode concluir-se que muitos são os caminhos em que se inscreve a problemática da história da habitação – uns enfatizando o arquitecto criador e a carga estética do objecto; outros acentuando o papel dos mecenas; outros ainda polarizando a análise no quadro institucional, social e económico da produção dos edifícios habitativos, outros ainda contemplando os suportes codificados e finalmente os que articulam a arquitectura com o quotidiano e procuram reconstruir funções e usos dos espaços privados numa
interdependência estreita com a evolução das concepções da família, do indivíduo, da sociabilidade. Torna-se assim imperativo repensar os conteúdos deste campo de investigação em ordem a um conhecimento mais sustentado e revelador dos seus múltiplos significados”. No caso específico do Parque Estoril, a contemplação referida pela autora acentua-se ainda mais pois, para além de todos os pressupostos de base que ela descreve, acrescenta-se ainda o contexto histórico, político e social ímpar que caracterizou os Estoris naquela época e que, em conjunto com a morfologia estética e arquitectónica das casas, acabou por gerar uma abordagem muito alternativa e deveras prolixa do relacionamento social que se gerou no seu seio. Tudo isto, que Fausto de Figueiredo previu e promoveu, denota o posicionamento diferenciado do Estoril relativamente a outros projectos congéneres que nessa altura começavam a aparecer e denota um esforço hercúleo e extemporâneo que a Sociedade Estoril Plage encetara no sentido de dotar a sua estância de um ambiente que fosse capaz de condizer. Logo no projecto do parisiense Martinet, quando os primeiros esboços do futuro Estoril vão sendo mostrados aos potenciais investidores, toda a traça da estância assenta na magnificência e na monumentalidade do edifício do casino, a partir do qual se reorganiza todo o espaço e que, com a sua assumida componente de representação, acaba por ser o elo de ligação entre a diversidade de abordagens estéticas que depois se vão concretizando. Na descrição que apresenta do projecto, basicamente para sublinhar a grandiosidade de um conjunto de ideias que são de longe muito superiores à capacidade que Portugal efectivamente tinha nessa época para as concretizar, Maria da Graça Gonzalez Briz atribui especial importância à cenografia do conjunto, facto que posteriormente acabará por transformar-se no elemento catalizador do Estoril contemporâneo. Desse projecto original, e para além de indicações variadas relativas ao traço que cada lote teria de vincar para que o conjunto resultasse harmonioso e
impactante, são de salientar o já referido edifício do casino, o grandioso Hotel Palácio, o novo Hotel das Termas e o estabelecimento termal, centrado numa formulação arquitectónica ainda de tom romântico que ia buscar à mítica ligação de Roma à água e as banhos a sua inspiração primordial: “Como no exterior, o desenho precioso dos pavimentos continua o carácter excepcional que tal equipamento deveria ter. Em seguida, os edifícios destinados ao comércio de luxo, como eram originalmente, com os seus dois corpos extremos de altas arcadas e a galeria assente em colunas monumentais a toda a altura do edifício. Estas galerias deviam continuar-se, ao longo do parque, pela grande pérgola ou latada artística que se abria numa buvette a meio do seu percurso. O segundo edifício em importância era o grande hotel da estância, o Palace Hotel, com afinidades de gosto com o casino, decoração luxuosa e articulado em dois corpos de modo a que a entrada principal se praticasse na fachada Sudoeste, ou seja, virada ao mar. O estabelecimento termal era um enorme edifício que ocupava o terreno entre o Hotel Palácio e o Hotel das Termas e que, como já se disse, mostra um corpo central de inspiração romana, com uma vasta cúpula de caixotões que cobria o átrio de decoração clássica e que se abria para o exterior por um arco liso de proporções monumentais. A planta compõe-se de dois espaços distintos ligados por uma galeria envidraçada: o primeiro ocupando os dois espaços que ladeiam o grande hall rectangular, destinava-se ao balneário propriamente dito; o segundo era constituído pela piscina coberta, ladeada de colunata e pelos vestiários para damas e cavalheiros. O Hotel Termal completava o conjunto das edificações do lado direito do parque. A planta é equivalente à do Hotel Palácio mas as fachadas são menos elaboradas onde a decoração se limita, praticamente, aos remates das cornijas. Do lado oposto do jardim ficaria o Hotel do Parque, já no meio do pinhal, de carácter mais rústico, que lembra modelos de montanha como se construíam, por exemplo, no Tirol. Finalmente, o estabelecimento de banhos de mar, a construir sobre a praia, recupera mais uma vez o gosto tipicamente francês
nas fachadas e na decoração dos pavimentos interiores. O edifício erguia-se sobre um terraço esplanada em frente ao mar”. De facto, em 1915 como em quase todos os projectos de índole semelhante que até hoje se apresentaram em Portugal, existia uma assumida distância entre as ideias que surgiam no projecto e aquilo que se ia concretizando na realidade. Vicissitudes diversas a quem não serão alheias a participação desastrosa de Portugal na Primeira Guerra Mundial e o estado de penúria que caracterizava o País desde o declínio que se acentuara com a implantação da república, tornavam o projecto do Estoril uma obra grandiosa e demasiado magnificente para um País recalcado com problemas práticos cuja premência em resolver se impunham no quotidiano. Mas nada disso impediu o génio do promotor de se efectivar e de, dessa forma, consolidar uma forma nova e alternativa de olhar para Portugal e o compreender. Fausto de Figueiredo, directamente ou através da estrutura de colaboradores próximos de que se rodeou, conseguiu impor uma dinâmica empresarial que contornou as dificuldades e recuperou as potencialidades naturais que esta região tinha para lhe oferecer. Ao trabalhar dessa forma, centrando a sua abordagem não nos problemas que lhe tolhiam a capacidade de intervenção e de decisão, mas sim nas competências adquiridas e nas mais valias que envolviam os seus projectos, ele atinge um patamar de excelência que é ainda hoje, de forma assumida e efectiva, o principal alicerce sobre o qual assenta o glamour extraordinário que envolve os Estoris e que os transforma, mesmo nesta época de crise e de incógnita relativamente ao presente, no terceiro destino turístico do País em termos de volume de negócio, de número de dormidas e de reconhecimento externo. A grande diferença de 1915 para agora, que resulta também de um contraste profundo entre o empreendedorismo de Fausto de Figueiredo e as iniciativas oníricas que o precederam sobretudo no Monte Estoril, centra-se no papel desempenhado pelo Estado em todo o processo. No caso em apreço, paradigmático em todos os sentidos e nesse também, existiu uma
enorme capacidade de o Estado e as demais instituições se adaptarem às vicissitudes naturais do projecto, reordenando o seu papel de maneira a criarem as melhores condições possíveis para a sua concretização. Como é evidente, isso aconteceu possivelmente de forma pontual e mercê da capacidade que a todos os níveis o empreendedor possuía para influenciar o poder (é fundamental não esquecer o papel activo e interventivo que fausto de Figueiredo teve enquanto vereador e mais tarde como Presidente da Câmara Municipal de Cascais) dali resultando a capacidade que ele teve de contornar obstáculos, de alterar orientações e sobretudo de adaptar as ideias originais à praxis que na realidade se impôs ao seu programa. Uma das principais inovações deste período de adaptação do projecto do Estoril, surge com a abertura do mesmo à imaginação e ao traço de arquitectos privados. Contrariando a determinação original, em que todas as ideias surgiam da orientação expressa pela administração da companhia, e em que os arquitectos se limitavam a concretizar nos seus esboços aquilo que eram as determinações emanadas pelos promotores, Fausto de Figueiredo depressa entendeu que a abertura a novos nomes e a novas promessas da arquitectura Portuguesa traria ao Estoril uma associação profícua a figuras de relevo em áreas em que a inovação era sempre determinante e, por outro lado, garantirlhe-ia espaço para impor à sua estância uma linha de orientação urbanística que estivesse de acordo com os mais modernos parâmetros do que se fazia por essa Europa a renascer. O primeiro grande nome deste conjunto de ideólogos do nóvel Estoril é António Rodrigues da Silva Júnior, arquitecto responsável pelo projecto do original Casino Estoril e que, mercê de vicissitudes diversas que se prendem com as dificuldades atrás descritas, acaba por não ter a oportunidade de ver construída a sua obra-prima tal como tudo fizera prever. O primeiro casino, efectivamente inaugurado anos mais tarde num edifício de notável traça modernista ainda hoje existente nas traseiras do actual, foi assim uma espécie de evolução natural da pureza e da singeleza do projecto original, mostrando também
ele a forma como evoluiu, se alterou e adaptou o conceito à realidade política, cultural e administrativa Nacional. Digno de uma especial atenção numa visita ao Estoril actual, é também o edifício onde funciona o Hotel de Inglaterra, originalmente projectado por Silva Júnior para Alexandre Nunes de Sequeira. Tendo sido referenciado na revista “A Construção Moderna”, numa edição de 1917, como um dos exemplos mais interessantes da linha projectada por Martinet e, dessa forma, traduzindo efectivamente o espírito do Parque Estoril, o imóvel apresenta uma formulação arquitectónica de linhas regulares e espírito clássico que, conjugada com a sua estrutura decorativa e a inserção espacial, num ponto sobranceiro aos jardins e ao próprio casino e desfrutando de uma extraordinária vista sobre toda a estância, o transforma numa das mais conseguidas peças do original projecto de Fausto de Figueiredo. A componente cénica associada a esta peça patrimonial, conjugada com o facto de ser, enquanto estabelecimento hoteleiro, uma referência incontornável na dinâmica turística Estorilense, fazem do Hotel de Inglaterra um ponto de visita obrigatório numa qualquer deambulação pelo Estoril moderno. Ainda inserida nesta primeira fase de conceptualização de uma forma nova de imaginar o futuro de um local, merece também especial atenção o edifício da estação. Embora a sua linha de arquitectura não possua nenhuma característica especial, e se insira na orientação construtiva que deu forma a toda a linha-férrea de Cascais, a estação de comboios do Estoril foi o cerne de um processo conduzido a muito custo pelo próprio Fausto de Figueiredo que, de forma a tornar sustentável todo o seu projecto Estorilense, consegue electrificar a linha de Cascais. De facto, percebendo que a mobilidade e a proximidade que a mesma representava em termos do acesso e da proximidade efectiva a Lisboa, seria essencial para a consolidação da imagem de marca do Estoril, não só porque fomentaria a sua componente habitacional, tornando mais apetecível para a sociedade endinheirada do Portugal moderno viver na nova estância recém criada mantendo a sua actividade profissional na
capital, como também porque dotaria a componente eminentemente turística de um pilar de suporte que colocaria o Estoril no centro de uma espécie de mega-estância turística na qual Lisboa, Sintra e Cascais surgiriam como evidentes espaços-satélite, Fausto de Figueiredo envidou todos os esforços e movimentou todas as influências possíveis de maneira a garantir que de facto conseguia concretizar essa electrificação. Inaugurada em 1926, a electrificação diminui drasticamente os custos de exploração da linha e reduz de forma significativa o tempo da viagem em direcção a Lisboa. Isto para não falar dos evidentes benefícios que tal modernização trouxe em termos de conforto para este transporte. É desta época e deste esforço hercúleo do incansável promotor que o Estoril angaria um dos grandes símbolos da sua existência cosmopolita. Colocando a sua estância no centro da própria Europa civilizada e fina, a electrificação da Linha de Cascais – a primeira a conhecer tal modernidade em todo o País – criaram-se as condições para que as grandes linhas comerciais europeias ficassem efectivamente ligadas a este destino. Logo depois da inauguração de 1926, obviamente efectuada com toda a pompa e a circunstância a que a Sociedade Estoril Plage havia habituado Portugal, Fausto de Figueiredo consegue que o SudExpress, vindo directamente de Paris, tivesse como estação terminal o próprio Estoril. Ou seja, para qualquer turista endinheirado na Europa, tornava-se possível entrar no comboio na maravilhosa cidade de Paris e sair directamente, sem passar por Barcelona, Madrid ou sequer Lisboa, na pequena estação de comboios do Estoril, consagrando assim com a aura própria do prestígio internacional a nóvel estância com a qual havia sonhado durante tanto tempo e que estava a concretizar com muito esforço, dedicação e trabalho. Quase cem anos depois da concretização do projecto do Estoril, num excelente trabalho destinado a definir dezassete estratégias de mudança para construir um Portugal diferente, Henrique Neto traçava um quadro de base historiográfica em que definia as principais características do empresariado
Português, utilizando a ligação aos meios de produção e o conservadorismo em demasia para explicar as razões do pouco sucesso e da falta de empreendedorismo de um Portugal a viver plenamente o Século XXI (15): “Já referi anteriormente que os empresários Portugueses têm tanta ou mais capacidade de assumir riscos do que quaisquer outros, mas já não diria o mesmo em relação à sua vocação para inovar e diferenciar: copia-se demasiado em Portugal. Também não é positiva a preferência que dão à posse e detenção dos meios físicos de produção, em detrimento dos factores imateriais da competitividade, como o marketing, a comercialização, a distribuição, a organização, a qualidade e o valor estético. De facto, a cultura dominante entre o empresariado Português é a do proprietário, não havendo uma verdadeira cultura empresarial, onde o objectivo seja o de criar a maior riqueza possível com o mínimo de recursos”. Este quadro, que quase ousaria caracterizar como dramático, é de facto a linha geral que permite perceber o Portugal empreendedor e dinâmico que efectivamente não temos. Mas é, também, a antítese completa daquilo que foi o empresário e empreendedor Fausto de Figueiredo e, talvez por isso, é a melhor explicação e a mais plausível para o sucesso extraordinário alcançado pelo projecto do Estoril. A todos os níveis, desde a capacidade de criar de novo algo que não existia no País e de utilizar um local estéril e vazio para definir de raiz toda a orientação do seu projecto, até à extraordinária iniciativa de conseguir conjugar todos os parceiros e players em torno de uma ideia sua e de um projecto nunca antes imaginado em Portugal, coadjuvado pelo facto de alcançar a proeza de transformar em comum desiderato aquilo que numa primeira instância era ideia exclusiva dele, Fausto de Figueiredo foi a antítese do comum empresário Português e jogou sempre num quadro que poucos tiveram antes dele, ninguém ousou acompanhá-lo na sua época e, depois dele, foram raros aqueles que conseguiram seguir o seu exemplo. A sua determinada aposta no marketing, muitas vezes antecedendo até a
concretização do objecto que pretendia promover e deliberadamente valorizando a componente estética e o invólucro em detrimento do miolo que, de qualquer forma, e sabendo ele de antemão que teria de se adaptar às circunstâncias de um Portugal que sempre foi um País difícil e que naquela época atravessa um período em que essas dificuldades apareciam agravadas por uma multiplicidade de factores variados, teria de ser o melhor que se conseguisse atingir utilizando os recursos que estavam ao seu alcance, foi factor decisivo na promoção do Estoril e, posteriormente, na concretização efectiva do seu projecto. Foi a cultura empresarial de Fausto de Figueiredo, condicionada em primeira instância pela sua inexplicável visão e discernimento, mas também pela capacidade intrínseca de apostar tudo na criação das condições que ele sabia serem essenciais para o seu sucesso, que transformou o projecto de Estoril num caso único de sucesso, contrariando aquilo que Portugal sempre conseguiu ser. Apesar das condições adversas, das contra-vontades por parte de quem controlava o poder, e até de circunstâncias terríveis que envolveram todo o processo (é fundamental não esquecer que a Primeira Guerra Mundial aconteceu precisamente entre 1914 e 1918 sendo precedida e sucedida por uma conjuntura evidentemente adversa a este tipo de empreendimentos), ele foi capaz de fazer nascer o Estoril a partir do nada, criando na vida real as estruturas que eram somente uma ideia e concretizando um sonho que poucos seriam capazes de sequer perceber. Para mais, como Henrique Neto sublinha também, Fausto de Figueiredo debateu-se com o grande obstáculo que sempre condiciona negativamente a vida dos empreendedores Portugueses: o Estado e a sua intervenção na concretização dos projectos. Ontem como hoje, e muitas vezes contrariando até as próprias necessidades imediatas do País, o estado constrange com as suas práticas desarticuladas a capacidade empreendedora da sociedade civil, condicionando a sua capacidade de arriscar e de investir na criação de estruturas
produtivas de riqueza: “Mas o grande obstáculo dos empresários Portugueses, já o disse antes, é o Estado. Porque em nenhum lugar existem empresários dinâmicos, com espírito de risco, rigorosos, disciplinados, que procuram a qualidade, cumpridores e socialmente responsáveis, quando integrados num ambiente desorganizado e terceiro-mundista, indisciplinado, sujo, em que a chico-esperteza não apenas compensa, mas é, frequentemente, a única forma de sobrevivência (…). Sejamos francos, não há milagres, e há muitos anos que, em Portugal, o Estado deseduca o país. Ainda poderia acrescentar outros constrangimentos: a corrupção, o privilégio dos amigos e dos financiadores partidários; um mercado de capitais em perda acelerada de credibilidade; um sistema fiscal em que as empresas com a sua contabilidade devidamente organizada são as que merecem o privilégio, duvidoso, de receber a visita dos fiscais das finanças, ao mesmo tempo que as empresas que não apresentam as suas contas ao fisco, ou não pagam os seus impostos, sobrevivem sem quaisquer problemas; onde o sistema educativo se afadiga a formar filósofos e psicólogos, destinados a ser empregados de escritório, mas cria limitações de entrada no sistema de ensino aos candidatos a engenheiros e a médicos, de que o País tem absoluta necessidade”. Mas os milagres são possíveis e Fausto de Figueiredo é disso exemplo. Contrariando as vicissitudes de um Estado que, como em quase todos os muitos séculos que compõem a nossa história, se afinca nos benefícios imediatistas que resultam da criação de problemas a quem tem a capacidade, a vontade e a coragem de empreender, e que promove a corrupção em prol da obtenção de benefícios que alimentam a máquina do sistema, a Sociedade Estoril Plage conseguiu subverter os processos e criar um Estoril extraordinário que ainda hoje se mantém como o terceiro maior destino turístico Português. Como é evidente, não se compôs de facilidades o processo de fazer o Estoril e Fausto de Figueiredo, com a capacidade rara de analisar e compreender os contextos prolixos em que trabalhava, foi obrigado a recriar muitas vezes as suas ideias antes de as pôr em prática. Como
referimos atrás, foi Vereador e Presidente da Câmara Municipal de Cascais e, dessa forma, criou a partir de dentro, as condições de que necessitava para fazer a estância da forma inovadora como sabia que deveria acontecer. Rodeou-se também de gente com igual capacidade, vontade e discernimento. Não são alheios ao Estoril moderno, as figuras extraordinárias e irrepetíveis do Conselheiro Driesel Schröeter e de Monsenhor António José Moita. Mas, conjugando os esforços, o espírito de iniciativa e os muitos interesses vigentes, nasceu neste espaço a primeira região turística de Portugal e um programa vasto de promoção internacional que o Estoril actual ainda não teve sequer total capacidade para compreender. Os problemas que Portugal enfrentou no início do Século XX, com um défice estrutural que parecia impossível de resolver, foram agravados de forma drástica pelo advento da guerra e no Estoril, onde os ritmos de vida eram diferentes, tudo parecia tender para um descalabro que infelizmente deveria culminar no insucesso do projecto. Mas a revolta militar de 28 de Maio de 1926, com a alteração radical dos pressupostos subjacentes à orientação do Estado e com a posterior chegada ao poder de António de Oliveira Salazar, alterou de forma drástica a situação, reinventando paradigmas que foram amplamente partilhados pelos Portugueses e que encontraram no Estoril uma montra privilegiada que serviu de suporte à nova postura Nacional e à recuperação de Portugal num âmbito e numa escala que o passado recente dificilmente deixaria antever. A inauguração da Colónia Balnear de O Século, logo no Verão seguinte, em 1927, marca efectivamente o arranque das condições que conduzirão ao sucesso do projecto do Estoril. Depois, com a inauguração no dia 5 de Outubro de 1929 da Feira das Amostras do Estoril e, no ano seguinte, a inauguração do Hotel Palácio, convergem para o Estoril as atenções dos principais mentores do Estado Novo, que aqui encontram as condições ideias para o enaltecimento do empreendedorismo de índole Portuguesa. Não deixará de ser interessante que, na inauguração atrás referido, na qual estiveram presentes todas as
grandes figuras do Estado, coadjuvadas pelo apoio que o próprio Presidente da República ofereceu ao projecto do Estoril, um dos poucos que não aceitou o convite para a festa foi o então Ministro das Finanças, Oliveira Salazar, demasiado empenhado nessa altura a resolver o problema do premente défice externo. O mote, no entanto, é sempre o mesmo e Salazar, depois de se tornar Chefe de Estado, encontrará também ele, neste Estoril moderno, as fundações que mais tarde utilizará para reformular o aparelho governativo e para incentivar tudo aquilo que era o espírito de iniciativa Português. Depois da inauguração do novo Hotel Palácio, daquilo que se tornará mais tarde no embrião da futura Feira do Artesanato do Estoril, e da realização no Estoril do primeiro prémio de automobilismo do Automóvel Clube Português (ACP), surge novamente o génio empresarial de Fausto de Figueiredo ao anunciar a apresentação na estância da futriqueira “festa dos maillots” que, sob o chapéu da moda e das mundanidades Parisienses, trás para aqui um evento de enorme visibilidade Nacional e internacional e coloca definitivamente o Estoril nas principais revistas da moda Portuguesas. A Festa dos Maillots, preparada por António Ferro ainda antes de este assumir os destinos da propaganda Nacional, é o primeiro ensejo para a criação de uma política de turismo que, coadjuvada pelo sentimento de que o que se fazia em Portugal era sempre melhor do que aquilo que podíamos encontrar lá fora, enche de brio os Portugueses e, principalmente, aqueles que escolheram o Estoril como novo local de residência. É António Ferro o primeiro, aliás, a defender a criação no Estoril de um campo de golfe condigno e qualidade de nível Europeu. Este desporto, quase totalmente desconhecido em Portugal e dos Portugueses, estava ainda em fase embrionária no resto do Mundo mas António Ferro tinha tido um contacto com ele durante uma viagem que fez aos Estados Unidos da América. A descrição que dele faz no diário de viagem, associada um apontamento manuscrito que junta ao texto original e que aponta este desporto como a aposta certa para um Estoril
florescente, mostra bem o impacto que ele próprio teve, possivelmente em conivência com a Sociedade Estoril Plage e com Fausto de Figueiredo, como principal impulsionador da construção do Golfe do Estoril que hoje tão bem conhecemos. E não hesita em descrever de forma notável o novo desporto, salientando, pela importância que tinha na captação de turistas Ingleses que sendo de religião Anglicana ele imaginava que pudessem ter pruridos em divertir-se com os Portugueses, o facto de ele ser transversal a idades, credos e cores e de promover uma afectiva comunidade que gira em seu torno promovendo os espaços onde o desporto acontece (16): “O golf, na América, como na Inglaterra, é uma religião. Há tantos jogadores como protestantes. Talvez mais… O católico americano não duvida confraternizar, num campo de desporto, como seu inimigo protestante. A verdade é que a América, de Norte a Sul, é um campo de golf. Nada mais saudável, mais limpo, mais claro do que assistir a uma partida matinal nos grounds do Hotel del Monte. Na varanda do restaurante de madeira, do restaurante do breakfast, assisto, depois dum sono completo, sem reticências, à partida dos jogadores, alegre partida, uma ondulação de tons claros, o loiro das cabeleiras eléctricas das ladies e das girls, as camisolas brancas, as calças cinzentas, axadrezadas, o horizonte verde, o azul do céu, as bolas que saltam, os boys vestidos de neve, alguns passos atrás, com o saco onde guardam as pás os apetrechos do jogo. Espectáculo onde os olhos ganham saúde, agilidade, exército disciplinado da manhã clara, da manhã pura… O golf é o desporto dos que não fazem desporto, os passeios largos em boa companhia, a caça prolongada das bolas sensíveis…”. E mais adiante, estabelecendo uma ponte com um Portugal que necessitava avidamente de novos caminhos que o fizessem regressar à senda do progresso e do desenvolvimento: “Quem tiver em Portugal a iniciativa de construir um grande hotel, que seja, ao mesmo tempo, uma gare confortável de campos de golfe, terá a sua fortuna feita, uma fortuna instantânea. O golf atrai os americanos e os ingleses, como a mulher atrai o homem, como o
íman atrai o ferro. Ofereço este ovo de Colombo aos hoteleiros e aos homens do turismo, em Portugal… Ponham-no de pé, se foram capazes”. Numa nota não datada que publica posteriormente em associação a este caderno de viagem, é o próprio António Ferro, na primeira pessoa, quem sublinha a felicidade de ter visitado o novo campo de golfe do Estoril: “Está satisfeita, em parte, a minha aspiração. O golf do Estoril, com a sua colecção de vistas, que vai ilustrando e suavizando o caminho dos jogadores, possui todas as condições e todo o charme para se transformar, dentro de poucos anos, num grande formigueiro de americanos e ingleses…” O próprio Presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar, virá a público em concordância com estes princípios, salientando, num livro que publicou em França e em língua francesa, sobre a forma como se dedicou à construção de um novo Estado Português (17): “O homem é essencialmente vaidoso, e diz-se – mas parece-me que isso não é exacto – que a mulher o é ainda mais. Deste defeito natural provém o desejo de agradar, a tendência para a ostentação, a busca do supérfluo. Alguém afirmou que não havia nada mais necessário do que o supérfluo e, ao dize-lo, constatou uma grande verdade, relativa às convenções sociais. Mas se se considerarem as coisas sob o aspecto do simples bom senso, esta expressão traduz uma mudança na vida económica, pois a ordem natural das necessidades humanas é alterada ou invertida pelo facto de aquilo que é absolutamente indispensável para viver dar lugar àquilo que se pode dispensar”. E é precisamente aí que se centra o cerne do nascimento e desenvolvimento deste novo Estoril. A busca incessante pelo dispensável, associado ao facto desse dispensável se tornar indispensável, gerando uma abordagem alternativa às prioridades que enformam a vida e tornando essenciais alguns aspectos que até essa altura jamais alguém teria a ousadia de utilizar. O luxo do grande resort, o direito ao descanso, ao lazer e ao deporto, associado numa componente de promoção familiar que
permitira reconstruir a tradicionalidade da Família Portuguesa, conjuga-se no Estoril com a capacidade de captação da riqueza estrangeira e, desta forma, colaborando com o próprio Estado para o dotar dos meios essenciais à administração da coisa pública. A então Costa do Sol, hoje Costa do Estoril, funciona basicamente de forma subordinada a este novo paradigma que Oliveira Salazar aqui traça, reformulando os princípios da economia e dando ensejo para que o próprio País, avidamente necessitado de novas estratégias de produção de riqueza para inverter o défice público Nacional, possa encontrar um caminho de progresso numa Europa em que o crescimento é fundamental. E se o progresso e a modernidade configuram a norma que define o crescimento e a consolidação do plano de urbanização do Estoril, a sua transformação em cerne da vida política de uma Europa convulsa e perturbada também não é alheia ao sucesso que alcançou a nova estância criada pela Sociedade Estoril Plage. Ainda antes do descalabro que a Segunda Guerra Mundial representou para o Mundo e, principalmente, para o velho continente, e de a ignomínia que a acompanhou ter trazido para a paz podre que se vivia no Estoril grande parte das figuras de maior relevo dos regimes que iam caindo, já a Guerra Civil Espanhola o tinha colocado sob os focos da atenção Europeia. Depois da implantação da república em Espanha e de a revolta militar ter ditado o início da guerra, foi no Estoril que se reuniram os falangistas que daqui planearam a retomada do poder. O episódio da morte do General Don José Sanjurjo Y Sacanell, general do exército e Marquês de Riff que liderou o processo contra-revolucionário e coordenou os Falangistas, depois de o avião de onde levantou vôo de uma pista improvisada no aeródromo da Quinta da Marinha ter caído na povoação da Areia e de ele ter morrido carbonizado, foi motivo suficiente para concentrar em Portugal, e mais precisamente no Estoril, grande parte das atenções da imprensa internacional. De facto, entre o Hotel Palácio onde as mais eminentes figuras do partido conservador se instalavam e de onde coordenavam todo
o esforço de guerra e o Hotel Miramar, onde o próprio Sanjurjo vivia e de onde assinou vários documentos oficiais que conduziram a episódios marcantes no esforço da Guerra Civil, o Estoril era o centro onde tudo se passava em plena luz do dia e com a descontracção que só esta terra poderia suportar. O então embaixador espanhol em Lisboa, Cláudio Sánchez-Albornoz, insurge-se contra essa facto e descreve em vários documentos oficiais a forma como nas esplanadas do Tamariz ou mesmo nos cafés e salões de chá que envolvem as arcadas, partidários da Falange se encontram sem qualquer espécie de pejo, e até mostrando claramente o armamento que utilizam na guerra, vão trocando impressões e combinando o que farão durante todo o processo. Numa carta que assina em Lisboa no dia 5 de Agosto de 1935, que Helena Matos transcreve no seu livro “Um Século de Turismo”, o embaixador não hesita em mostrar o seu descontentamento pelo facto e de apelar ao Estado Português para que a situação seja resolvida: “No dia dois, no Tamariz (restaurante da praia do Estoril) estiveram a tomar aperitivos quatro falangistas (…) colocando sobre a mesa, para chamar a atenção, quatro cápsulas de bala (…) dois deles estavam feridos e tinham sido tratados no Hotel Palácio do Estoril (…). O quartelgeneral dos revolucionários espanhóis em Portugal, acha-se instalado no palácio que tem no Estoril a Marquesa de Arguelles, aí faz-se a recruta de voluntários aos quais no momento de partirem para a fronteira, são entregues armas, munições e um punhal, saindo já com o uniforme fascista”. Conhecido é também, pelo impacto que teve nos meios sociais mais relevantes de Portugal, a participação no esforço de guerra de diversas figuras eminentes da vida social Portuguesa que, apoiando a Falange, acabaram por tomar parte activa no desenvolvimento dos acontecimentos e no desfecho final deste triste período da História de Espanha. A mais conhecida, por ter o brevet de piloto e por ter sido abatido diversas vezes durante o tempo em que colaborou na guerra tendo sempre sobrevivido, foi a de Dom Simão do Santíssimo-Sacramento Cotta Falcão de Menezes, conhecido pelo pseudónimo de Pedro Falcão, saudoso
académico da ALA – Academia de Letras e Artes e escritor de grande reputação nos círculos culturais Nacionais. Pedro Falcão, dando largas à sua imaginação e ao seu conhecido espírito aventureiro, voluntariou-se para colaborar na guerra ao lado do partido franquista e, também ele, dessa forma indirecta, acabou por contribuir para a atenção que os meios políticos de todo o Mundo dedicaram ao Estoril. Helena Matos, no trabalho atrás referido, não hesita em caracterizar o Estoril dessa época, e sobretudo o papel que a localidade teve na Guerra Civil Espanhola, como o “centro de conspiração internacional”, sublinhando que desde que o General Sanjurjo se instalou no Hotel Miramar, e dali começaram a ser emitidos os comunicados oficiais que determinavam o avanço e os recuos das tropas, que o Estoril firma o estatuto não-oficial de quartel-general da oposição espanhola. À medida em que a situação em Espanha se vai tornando mais caótica, e a insegurança grassa no seio das grandes cidades do País vizinho, começam a chegar ao Estoril um cada vez maior número de gente que, procurando a paz e a segurança que não tinham na sua pátria, usufruem aqui desses benefícios ao mesmo tempo que estão perto das principais figuras da nova direita Espanhola. O clima social do Estoril, centrado na capacidade de acolhimento que a estrutura turística existente promovia, criava as condições de excelência para que tudo se passasse de forma muito normal, ditando ritmos de vida que pareciam alheios à instabilidade geral que caracterizada a Europa nesse tempo. Com a chegada ao poder de Hitler na Alemanha, e com o agravamento das condições políticas em quase todo o velho continente, o Estoril vai-se assumindo como porto de abrigo privilegiado. Numa primeira fase, em que a guerra ainda não tinha sido declarada mas em que o mal-estar já existia, como destino de férias no qual se podiam usufruir de uns dias de descanso e lazer salvaguardados pela segurança que o clima de paz garantia. Numa segunda fase, depois da guerra assumida oficialmente, como porto de abrigo de exilados endinheirados
que aqui encontravam condições quase perfeitas para instalarem as suas famílias evitando quaisquer percalços que estivessem directamente relacionados com o quotidiano do conflito. O Estoril enquanto espaço de exílio, paradigma hoje bem conhecido da historiografia Nacional e bem aproveitado pela indústria do turismo como sustento da promoção externa que se procura fazer desta região, é assim mais um contributo que vai ajudar Fausto de Figueiredo a consolidar o seu projecto e a transformar a estância numa das mais conhecidas e conceituadas orientações de férias durante o período seguinte. O papel do promotor na fundamentação dos esforços que garantem ao Estoril chegar a esta fase de conceito não é, de todo, aspecto irrelevante no desenvolvimento do processo. Fausto de Figueiredo, como por vezes se ouve dizer, não foi somente alguém com muita sorte que conseguiu surgir em cena na altura e no local exactos para que tudo acontecesse naturalmente. Pelo contrário. Como vimos atrás foi necessário que desenvolvesse activa participação na estrutura política Nacional, numa época em que Portugal atravessava um período de crise quase tão grave como aquele que agora conhecemos. Para além disso, preparando-se em termos técnicos, teve a visão genial de perceber que os acontecimentos se preparam à priori e, desta forma, foi criando as condições para que os acontecimentos fossem previstos e se tornassem consequentes. Em termos práticos, foram muitos os esforços e projectos desenvolvidos directamente por Fausto de Figueiredo para gerar as condições necessárias à consolidação do projecto do Estoril e, no seu dia-a-dia, não será alheio ao seu papel a crescente autonomia que o sector do turismo, inicialmente associado à propaganda, teve relativamente a outros sectores do Estado. O próprio trabalho de António Ferro, fundamental para a criação da estrutura de imagem do próprio Estado-Novo, não aconteceu sem a presença do ilustre promotor Estorilense e, nesse caso concreto, também ao Estoril aproveitou a visibilidade e o conceito que o ideólogo político foi granjeando cá dentro.
Na então Costa do Sol, e para além do já mencionado PUCS (Plano de Urbanização da Costa do Sol), que serviu de base programática à edificação dos lotes que a Sociedade Estoril Plage ia promovendo, foi essencial o conjunto de campanhas promocionais imaginadas por Fausto de Figueiredo mas também as acções efectivas e infra-estruturais com as quais ele alterou as condições físicas que constrangiam o seu projecto. A campanha de erradicação das moscas e mosquitos, cruzada com os desfiles de moda e os manuais de bom-comportamento e de boas práticas no turismo, em que ele foi pioneiro, surgem associados a trabalho efectivo que ele desenvolveu de modo concreto. O aspecto mais visível da intervenção directa e do empenhamento de Fausto de Figueiredo no seu projecto, que será a mais cabal explicação para o sucesso que alcançou e para os resultados que as sucessivas guerras lhe vão trazendo, é a sua participação no I Congresso Nacional de Turismo que se realizou em Janeiro de 1936. Numa intervenção longa e bem fundamentada, possivelmente em linha com as principais orientações que o próprio António Ferro havia emanado anteriormente, Fausto de Figueiredo vem defender uma reorganização política e administrativa do sector do turismo que se verificará ser essencial para que o sector possa afirmar-se internacionalmente. É ele, por sua própria voz, quem apresentará ao congresso a pretensamente inusitada ideia de separar o sector do turismo do Ministério do Interior e de, aproximando-o directamente da Presidência do Conselho de Ministros e do próprio António de Oliveira Salazar, o tornar num braço autónomo que actua directamente no plano político. Sem estas alterações, que obviamente trouxeram implicações efectivas à capacidade que o empresário e empreendedor teve para concretizar o seu projecto no Estoril, jamais Portugal poderia aspirar a assumir a posição de destaque e de relevo que granjeou mercê dos problemas que afectaram a Europa no período das duas guerras mundiais. A grande mais valia de Fausto de Figueiredo, mais do que a sua capacidade de intervenção política, centrava-se nos
resultados que ia obtendo no Estoril. De facto, e os números não enganam, a facturação da região duplica entre 1938 e 1941 e o promotor, reforçado com esses factos, acaba por obter um crédito redobrado juntos do poder decisor numa altura em que era fundamental para Portugal ser capaz de encontrar novas formas de responder aos desafios emergentes. Para além disso, como bem sublinha Helena Matos, os resultados financeiros dos seus projectos, são consolidados por um glamour cada vez mais relevante e visível que, para além de se centrar na capacidade de transformar sonhos em realidade que o Estoril sempre teve, também passava pelo conceito que ia ganhando à medida em que as grandes personalidades da política, da moda, do cinema, da literatura, da poesia, da diplomacia, da música e do cinema iam chegando a carregando consigo uma aura de prestígio que se tornou fundamental para consolidar o sucesso de todo o empreendimento: “Enquanto os números que revelam a crescente procura turística se juntam os nomes de alguns desses forasteiros, então é como se o resultado final dessas contas de deve e haver passasse a ser sublinhado a dourado. Seja pela luz que emana dos títulos que alguns desses recém-chegados ostentam e de que os duques de Windsor são o melhor exemplo; seja pela dimensão lendária das suas fortunas, como acontece com o Barão de Rotschild; seja ainda pela fama que lhes advém do seu estatuto no mundo do cinema ou da literatura, como serão os casos do escritor Stefan Zweig ou o realizador cinematográfico Herbert Wilcox, devidamente acompanhado pela actriz Anna Neagle. Mas nestes anos, em que quem fosse ao Estoril tanto se podia cruzar nasproximidades da estação com o historiador Mircea Eliade que aí alugara casa, e vinha todos os dias de comboio para Lisboa onde trabalhava na Embaixada do seu país, como com a jovem Indira Ghandi ou o piloto SaintExupéry, o mais fascinante é o secreto mundo da Costa do Sol. Esse mundo em que entre o casino, o fausto dos hotéis e a Boca do Inferno, jogam tudo por tudo, homens como o jugoslavo Dusko Popov e o inglês Ian Fleming, agentes secretos ao serviço de diferentes e antagónicas majestades”.
No trabalho que publicámos em finais da década de noventa do Século XX sobre a História da Paróquia de Santo António do Estoril, transcrevíamos uma pequena estória de espionagem que é essencial para se compreender o clima de caos social total em que nesta altura vivia o Estoril: “Uma das histórias mais típicas é a que relata a vinda de um espião inglês para o Hotel do Parque onde se tentou fazer passar por Alemão. Depois de se hospedar e de beber um copo no bar do hotel estava confiante. Falava fluentemente alemão e ninguém parecera dele duvidar. Voltou para o quarto e ao deitar-se descobria, debaixo da almofada uma bandeira inglesa e uma velha gravata de Eton, Fora descoberto e alvo de uma brincadeira…” Mas uma das mais interessantes histórias do Estoril desta época que então publicávamos, não só pela forma como afirmativamente possibilita a compreensão da verdadeira importância assumida por esta localidade no contexto sóciopolítico europeu, como também pelo rocambolesco que a envolve, é a de Miloch Tsrnhanski, diplomata e escritor Juguslavo exilado no Estoril entre 7 de Maio e 21 de Agosto de 1941. Possuidor de um diário minuciosamente descritivo da sua estada em Portugal, ao qual o autor junta algumas observações de carácter pessoal sobre a realidade que o envolve, Miloch Tsrnhanski oferece-nos uma perspectiva única sobre o Estoril, da qual, para além de estarem afastados todos os laços de uma afeição que nunca chegou a sentir por esta localidade, estão também afastadas as implicações sociais que uma estadia prolongada no local lhe provocaria. As incongruências características das vidas daqueles que, tal como o diplomata em questão, se vêm obrigados a abandonar posições sociais e carreiras profissionais sem sequer poderem olhar para trás, abraçando com ensejo realidades que dificilmente poderão restituir-lhes as condições de vida anteriores, concretizam-se no Estoril a partir de um pressuposto negativo. O que isto quer dizer, como o aponta o autor em questão no seu diário, é que o Estoril dos exilados é uma terra sem futuro, uma
vez que aqueles que ali habitam, esforçando-se por manter uma imagem e uma posição da qual depende a sua sobrevivência e que, no entanto, não corresponde à realidade, não possuem planos de vida ou horizontes de esperança, morrendo um pouco todos os dias, à medida que iam chegando as notícias do avanço do eixo, e revivendo também sempre que os aliados conseguiam ganhar terreno aos seus inimigos. Normalmente, como aliás acontece com Tsrnhanski, estas incongruências acompanham o exilado logo desde a sua saída do País natal, concretizando-se no Estoril e provocando aí uma atmosfera que, para além de ser muitíssimo artificial, acaba por ser também vazia de conteúdos e de expressão. Neste caso específico, a incongruência inicia-se com a condição diplomática do seu autor que, no início de 1940, quando se começam a sentir os problemas que enformam a Segunda Guerra Mundial, deixa de poder representar um País independente, uma vez que na prática, e em termos políticos, a Jugoslávia havia sido já invadida e conquistada pelas tropas alemãs, que a dividiram com a Itália, Hungria, Bulgária e Albânia. No entanto, e como o próprio refere no seu caderno diário que a Revista História publicou em 1988, enquanto a fome e a destruição grassavam em Belgrado, os membros das embaixadas em Roma, onde ele se encontrava, continuavam a viver e a manter os seus privilégios, usufruindo de dinheiros públicos que, teoricamente pelo menos, pertenciam aqueles que faleciam ao sabor da falta de alimentos e das armas: «Enquanto Belgrado jazi, ensanguentada e em ruínas, e as pessoas, pelas nossas aldeias, procuravam comida, nós tínhamos um comboio especial que nos conduzia para o incerto». Todo este paradigma, assente no pressuposto de que nem sempre aquilo que parece é verdadeiramente assim, acabou por encontrar no Estoril o palco privilegiado para se desenvolver. Em nenhum outro local desta Europa devastada, onde a inconsistência da História gerou mortes e destruição maciça, seria possível gerar um clima de paz e de sã convivência no qual fosse possível a estes expatriados conseguirem pelo menos manter a fachada social das suas vidas, e ousar existir sem os
constrangimentos próprios de quem acabou de ter de fugir. Estas incongruências, nascidas de uma Europa a viver um dos mais problemáticos e caóticos períodos da sua História, mantém-se ao longo da vida dos exilados, sendo transportados para o Estoril onde florescem. Na viagem que empreende para Portugal, onde ouvira dizer que «se vivia bem», Tsrnhanski é informado de que não voltará a receber o seu ordenado pago pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros Juguslavo, ficando, por isso, a seu cargo durante o período em que residirá em Portugal. A própria entrada no País, motivada pelos problemas já mencionados, acaba por se revestir de alguns episódios bastante pitorescos que, pelas suas características, acabam por ser bastante úteis para a compreensão daquilo que foi a chegada a Portugal de todos aqueles que, neste período, procuram no Estoril a estabilidade de que dependem para viver. No percurso de autocarro que o viajante faz entre a Estação de Santa Apolónia, onde chega de comboio, e a vila de Sintra, onde passará os seus primeiros dias em Portugal, Miloch Tsrnhanski é informado bastantes vezes dos grandes perigos que, em Sintra, resultavam da actividade sismológica, quase recebendo um curso de formação que lhe explicava a forma de actuar caso acontecesse uma catástrofe natural desse género. Segundo o cicerone que acompanha o contingente Juguslavo recémchegado a Portugal, já de si tão fragilizado pelos enormes problemas que a guerra lhes acarretou, os tremores de terra que acontecem «normalmente» em Sintra, fazem «fender as paredes», aconselhando por isso os seus conterrâneos a, caso a situação se verificasse, manterem-se nos vãos das janelas, onde teoricamente encontrariam a segurança. Se, no que concerne a Sintra, teoricamente o mais interessante apontamento de uma aventura como esta, os comentários do ilustre diplomata são lacónicos, abordando exclusivamente a sua paisagem e a beleza natural envolvente, em relação ao Estoril encontramos uma descrição entristecida que permite perceber o desânimo e o mal-estar que envolvia as
estadias no nosso País daqueles que se viam obrigados a abandonar as suas terras, as suas gentes e as suas profissões. De facto, para além de representar o fim da viagem para o exílio que, como se deve entender, é sempre um momento de mudança que é acompanhado pela novidade que vai desanuviando o espírito e que desaparece quando a instalação no novo local se processa, o Estoril, representa o último pedaço de terra europeia antes do Oceano Atlântico, a única barreira que separa os desgostosos exilados do sonho dourado da América, objectivo praticamente inatingível para a maioria daqueles que gastaram todas as suas economias na viagem até este extremo ocidente da Europa. O mar do Estoril, contemplado por muitos olhos que nostálgica e permanentemente sonham com a família, casa e amigos deixados para trás é, como dizem muitos poetas da região, salgado com as lágrimas vertidas pelos que cá chegaram carregando unicamente na bagagem o peso das saudades e o desânimo da vida... Para além de todos os percalços que facilmente se imaginam que acompanham este tipo de situação, agravados nesta época por dificuldades ao nível do estabelecimento de comunicação com os países de origem e que fazia com que os exilados no Estoril ficassem literalmente desprovidos de notícias relativamente aos seus familiares e amigos que ficaram no meio do cenário de guerra, os cerca de quatro mil dólares que os navios espanhóis exigiam para os transportar para a segurança da terra americana onde era permitido o retomar dos sonhos, eram praticamente impossíveis de conseguir obter por parte da maioria dos que aqui chegavam. Desta maneira, e normalmente sem quaisquer perspectivas em vista, restava-lhes contentarem-se com o observar da praia, sonhando sempre com um futuro que teimava em não chegar, a esperança que partia de cada vez que um dos navios se afastava do areal do Tamariz. O General Hristitch, superior hierárquico de Miloch Tsrnhanski e funcionário altamente colocado do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Jugoslávia, é apontado por este como um dos mais melancólicos exemplos da situação vivida nesta época: «Hristitch vem à praia do Estoril e senta-se entristecido. Olha
como chegam as ondas, do alto do mar. Diz simplesmente que não podemos atravessá-lo a nado». Outro ponto negativo da vida dos exilados menos conhecidos no Estoril tem a haver com o Casino Estoril. Era, por um lado, o espelho vivo de um ambiente repleto de charme e de sedução que não deixava ninguém indiferente mas, por outro, representava o espaço de perdição onde se perdiam as poucas economias que conseguiam subsistir à fuga e, muitas vezes, a própria esperança de vida: «Ali, um nosso Cônsul, da Albânia, perdeu até ao último centavo que tinha economizado na vida, e um nosso secretário ganhou cinquenta e quatro mil Escudos. Um outro secretário, todavia, até dinheiros públicos jogou, matou a mulher e suicidou-se depois». As aparências, mais do que o conteúdo, marcam assim a vida nos Estoris deste período, obrigando cada um a mostrar qualquer coisa que não sente e a fingir ser alguém que pura e simplesmente não é. Aquilo que os outros pretendiam que cada um fosse, determinava a conduta, os princípios e a forma de funcionar das pessoas, criando um cenário de paz podre de tal forma marcante que era possível a germanófilos e a aliados cruzarem-se nas ruas com um sorriso nos lábios. O Hotel Atlântico, por exemplo, hasteou orgulhosamente a bandeira alemã nazi, com a sua cruz gamada, tal como o comprovam as fotografias de Emília Gamboa publicadas por Guilherme Cardoso (18). Por ali, como é evidente, e principalmente em 1938, data da fotografia em questão, circulavam em permanência inúmeros refugiados, exilados políticos e portugueses, todos de forma directa ou indirecta, afectados pelo fulgor de uma guerra que praticamente devastou a Europa de então. O pacifismo e a perseverança na manutenção de um clima de estabilidade e convivência social, essencial para garantir ao Estoril a manutenção do vigor do seu plano urbanístico profusamente utilizado pelo Estado para arreigar as suas posições políticas, alicerçam-se assim num esforço de aparência que muito pouco tem a haver com aquilo que verdadeiramente sentiam os Estorilenses que transcendiam
aquela vivência cosmopolita de um Estoril moderno, chic, grandioso, atraente e intelectual. E o diplomata Jugoslavo não fica por aqui na sua apreciação relativamente ao Estoril. Constatando factos e descrevendo o seu dia-a-dia no seio da complicada e desequilibrada mole social que partilhava o Estoril como destino, a estância vivia de e para a ostentação e tudo transpirava falsidade e fingimento. O parque do casino, por exemplo, é abordado no seu diário de uma forma comparativa, pela magnificência da sua flora e pelo enquadramento paisagístico que apresenta, com as suas áleas permanentemente floridas e com as suas palmeiras ululando ao vento, tal como se estivessem a dar sombra aos túmulos milenares dos Faraós egípcios, com um parque que existia na Jugoslávia no local onde Miloch Tsrnhanski costumava passar as suas férias de infância, e onde a elite da sociedade desse País se dirigia para encontrar o repouso que sucedia ao ano de trabalho. A diferença, segundo o diplomata, está no aroma que, ao contrário do que seria de esperar, no Estoril é fedorento devido à utilização do estrume que possibilita a exuberância das espécies vegetais. A essência da beleza, nesta localidade que tanto constrange a já de si frágil existência social do antigo Embaixador Juguslavo, é a putrefacção, que faz parecer belo aquilo que na verdade mais não é do que a artificialidade da existência. Laconicamente, ao contrário do que seria de esperar de um espírito culto e observador, muito interessado na literatura Nacional e sobretudo em Camões, de quem compra um livro de sonetos que o acompanhará na sua posterior viagem para Inglaterra, termina com uma única observação que pretende traduzir aquilo que pensa sobre o aspecto do Estoril: «Cheira Mal»... Mas não cheirava tal mal assim aquele Estoril e, se o diplomata não estivesse tão dilacerado interiormente pelas dores que a guerra lhe impusera, certamente conseguiria encontrar, na confusão permanente que caracterizava o dia-a-dia naquele lugar tão especial, motivos mais do que suficientes para tomar consciência da sorte que teve por ter tido a oportunidade de ali
estar em segurança durante tanto tempo. O estrume utilizado nos jardins do Estoril, que tresandava num fedor terrível mas dotava as flores e plantas de cores vivas que encantavam todos aqueles que por ali circulavam, era somente um pormenor de segunda importância numa estância turística e balnear de primeira qualidade que nessa altura, respondendo prontamente as invectivas do Estado Português, conseguiu adaptar-se à vicissitudes da época e contribuir em larga escala para a capacidade de recuperação de Portugal e dos Portugueses. Mas os benefícios que o Estoril trazia aos exilados e que o diplomata Jugoslavo conheceu muito bem, não se ficam por aqui. No Hotel de Inglaterra, onde ficou hospedado durante o tempo em que aguardou a viagem para a Grã-Bretanha, encontrou todas as condições que lhe permitiram responder a um binómio que, embora complicado, caracteriza bem a forma de vida de quase todos aqueles que neste período procuraram em Portugal a tão esperada paz: por um lado, em consequência da sua vida, posição profissional ou ascendência social, quase todos possuíam uma posição e um estatuto que lhes permitia usufruir de uma série de regalias e benefícios; por outro lado, o fenómeno da guerra, eminentemente provocador de desequilíbrios que afectaram profundamente a vida da Europa, havia-lhes retirado quase todo o dinheiro que possuíam e que, como sabemos, lhes garantia a posição social e o estatuto que detinham quando aqui chegaram. Para manter o estatuto e a posição, como é evidente, tornava-se necessário possuir dinheiro; para possuir dinheiro, era fundamental que, a tudo o custo, fossem capazes de manter a posição social que anteriormente possuíam. Miloch Tsrnhanski atinge os dois objectivos enquanto esteve no Estoril. Consegue, por um lado, manter o seu estatuto e importância, mesmo perante o cenário de completo caos em que se encontrava o seu País e, por outro, consegue o dinheiro e os meios necessários (muitas vezes angariados com o apoio de famílias Estorilenses ou mesmo com o patrocínio da própria Sociedade Estoril Plage) para poder seguir para Inglaterra e garantir assim um futuro para a sua vida de emigrante. O preço a
pagar pela estadia, obviamente insuportável para alguém que, como ele, havia perdido tudo, é ultrapassável, uma vez que lhe é atribuído um quarto, a preços módicos, devido ao facto de ter os canos estragados e apenas possuir água quente... Como se vê, até no exílio, com todos os problemas que envolvem este fenómeno, o Estoril permite parecer aquilo que se não é. O diplomata Jugoslavo, através deste estratagema, consegue manter as aparências, garantindo, com tudo isso, a continuidade dos benefícios que estavam inerentes à sua imagem e, sobretudo, a tão desejada autorização de residência em Inglaterra. E se nos ativermos com atenção às principais premissas que envolvem a existência do Estoril nessa época, até o apelo às aparências nos surge envolvido pela explicação lógica que deriva do seu contexto. De facto, numa época de incerteza completa e absoluta como era aquela, em que aquilo que sabemos hoje relativamente aos episódios que deram forma à guerra, nem sequer era sonhado naquele tempo, faz sentido que o apelo tenho sido no sentido de dotar Portugal de uma espécie de cara sorridente que, actuando como chamariz ou atractivo, fosse capaz de inverter a tendência generalizada de empobrecimento que a Europa dita periférica estava a sofrer. Era fundamental gerir as aparências e, desta forma, promover lá fora uma imagem excepcional de uma região que havia sido planeada utilizando parâmetros de superior qualidade. Não existia mentira nesta abordagem ao Estoril porque a sã convivência, e o clima de paz que aqui se sentia, era verdadeiramente aquele que desejavam e procuravam todos os Europeus daquela época. E assim se explicam os casos e os episódios que tantas e tantas vezes aqui aconteceram, bem como as estórias que o próprio diplomata Jugoslavo não hesita em transcrever e que, como a que se segue, mostram bem o cuidado e atenção que as autoridades dispensaram a esta terra tão especial. Em determinada noite quente de Agosto, quando o mar muito sereno convidava a um mergulho, o diplomata adquire uns calções de banho que se vendiam em pequenas bancas junto à Praia do Tamariz. Convencido de que estava preparado para o
refrescante acto de entrar nas águas pacatas da baía de Cascais, Tsrnhanski faz-se ao mar e diverte-se durante cerca de uma hora, na companhia de uma funcionária da embaixada que também aqui se encontrava exilada. Quando saiu da água, dois sujeitos vestidos à civil e trajados rigorosamente com chapéu de côco abordaram-no, mediram-lhe os calções e multaram-no enviandoo à polícia por andar pela praia em tronco nu. Ciente da sua posição, bem como dos privilégios a ela inerente, o diplomata dirige-se ao Terreiro do Paço, em Lisboa, onde procura explicar que, para além de não conhecer a proibição de frequentar a praia em tronco nu, os calções havia-os comprado na própria praia, devendo, por isso mesmo, possuir o tamanho legalmente apontado como mínimo necessário para a via pública. A polícia, após conversa bastante longa, concede-lhe um perdão, em atenção à sua condição diplomática e ao facto de estar temporariamente a residir no Hotel de Inglaterra, facto que, à partida, parece deixar transparecer um certo estatuto que lhe estaria inerente. De facto, para Miloch Tsrnhanski, o Estoril representou um momento paradigmático da sua vida. As críticas que aponta aos espaços e às suas gentes, muito embora importantes para tornar possível um entendimento mais profundo da forma como se estabeleciam os equilíbrios que garantiram ao Estoril o estatuto privilegiado que sempre possuiu no contexto Nacional, são, no entanto, bastante despropositadas, pois foi precisamente a singularidade que sempre caracterizou o Estoril que lhe permitiu a manutenção de uma imagem que, de facto, já não possuía, bem como o contacto permanente, através da partilha de um hotel de excelente qualidade e conhecido internacionalmente, com os ricos judeus fugidos do regime nazi, os quais lhe garantiram a aparência suficiente para ser acolhido em Inglaterra onde aguardou o fim da guerra. Embora paradigmático, porque representativo da situação que caracterizava a vida dos exilados no Estoril, e por ter publicado já no fim da vida um extenso apontamento sobre os dias de sofrimento que o afectaram desde o princípio da guerra,
o diplomata Jugoslavo não foi o primeiro nem tão pouco o mais importante dos exilados que para aqui se dirigiram por motivos políticos. A primeira notícia que possuímos de um contacto entre o Estoril e a população exilada, data de 3 de Agosto de 1939, quando Helena Vacaresco, escritora e poetisa romena, se hospedou no Hotel Palácio, um dos locais mais conhecidos na Europa e que fazia parte da propaganda oficial do regime. Muito embora se não saiba o que veio realmente fazer a Portugal e muito menos ao Estoril esta delegada da Roménia à Sociedade das Nações, organismo que precedeu a O.N.U. na organização da política internacional após a Primeira Guerra Mundial, alguns investigadores são de opinião de que veio preparar a vinda de Carol, filho de Fernando, Rei da Roménia, com quem mantinha uma relação muito próxima. Muito embora sejam muito parcas as informações referentes a esta visita, são extraordinariamente importantes para compreender o posicionamento político da estrutura oficial Cascalense nessa época, e sobretudo, para entender qual foi verdadeiramente o papel do Estoril neste vasto teatro onde os golpes, contra-golpes e demais episódios rocambolescos que envolveram os exilados, tanto contribuíram para a história da guerra e o Mundo. Segundo José Vegar, jornalista do Jornal Expresso, a história do Estoril do exílio deveria fazer-se a partir dos fundamentos documentais que ainda se conhecem, razão pela qual, a propósito da organização, em 1995, de uma exposição subordinada a este tema, publica uma peça na qual apresenta uma misteriosa 5ª Divisão da Câmara Municipal de Cascais, dependente do Presidente da Câmara, mas dirigida por antigos polícias, que se dedicava a elaborar ficheiros exaustivos de todos os estrangeiros que se hospedavam no território municipal de Cascais. Esta divisão, em termos práticos, era um departamento municipal com funções policiais e de vigilância aos estrangeiros que reportava directamente à Polícia de Vigilância e Defesa do Estado. Para o jornalista mencionado, a informação constante deste arquivo é de extrema importância na
reconstituição histórica de um período tão importante da História de Portugal (19): «No livro de registos da 5ª estão todos os seus movimentos – como controlo de estrangeiros e ocorrências de crimes – e assente toda a correspondência do serviço com a PVDE, que amiúde lhe solicitava a relação dos estrangeiros no concelho. No entanto, o bem mais precioso que deixaram para a história foi um arquivo bolorento mas disciplinado, composto de escassos milhares de fichas rectangulares como fotografia e nome de estrangeiros, bem como respectivas moradas e número de passaporte. No verso, números de processos. A estas fichas juntam-se as dos hotéis». Um dos factos mais importantes apontados por esta peça, na qual se aborda de uma forma muito exaustiva o Estoril do Exílio, prende-se com a distinção que, segundo o autor, o Estado português faria entre refugiados e exilados. A grande diferença entre as duas situações, mais do que aos motivos que alicerçavam a fuga e posterior chegada a Portugal, baseavam-se nas posses do recém-chegado, sendo considerados refugiados os que tinham obrigatoriamente de se hospedar em casas particulares ou pensões, que nesta altura proliferavam no Estoril, e exilados todos aqueles a quem as suas posses garantiam um estilo de vida que era compatível com a qualidade com que se pretendia dotar a localidade. De entre os muitos exilados chegados entre 1936 e 1955 a Portugal, considerando os primeiros passos da Guerra Civil Espanhola como propiciadores de inúmeras chegadas de refugiados, os mais eminentes, pela forma como acabaram por contribuir para a transformação da face do Estoril, foram aqueles que haviam possuído um ceptro real nos seus países. De facto, desde Eduardo de Windsor, até Humberto II de Itália, muitos foram os reis, rainhas, príncipes e princesas, que procuram no Estoril a paz que os seus países haviam perdido com a Segunda Guerra Mundial. A primeira a chegar, em Junho de 1940, foi a grã-duquesa Carlota do Luxemburgo, que se instalou na Vila de Santa Maria, no Estoril. De seguida, chegou o já mencionado Eduardo de
Windsor, acompanhado pela sua esposa Wallis Simpson, que ocuparam muito temporariamente uma casa junto à entrada da baía de Cascais. De acordo com o artigo publicado no Jornal Expresso, o casal real inglês teria a intenção de se manter durante mais tempo em Portugal, só que, contrapondo-se aos seus planos, as muitas movimentações de espiões nas localidades de Cascais e do Estoril, acabaram por trazer problemas ao ex-monarca, que daqui seguiu para as Bahamas: «Os Duques de Windsor ficaram instalados na casa de Manuel Ricardo Espírito Santo Silva, e quase causara um problema diplomático a Salazar. A história ainda hoje é obscura mas passa por um plano de um agente do III Reich, Walter Schellenberg, que com a colaboração do japonês Kijuro Suzuki tentou aliciar Eduardo para uma caçada em Espanha, com o objectivo de o raptar posteriormente para Berlim. Os ingleses estavam a par do estratagema, e resolveram o problema diplomaticamente, nomeando Eduardo governador das Bahamas. O paquete ‘Excalibur’ veio buscá-lo a Lisboa com destino ao seu território». Depois, seguindo a regra que a Sociedade Estoril Plage inserira no seu código de conduta informal relativo à recepção destas ilustres personalidades estrangeiras, chegaram a Portugal várias figuras grandes da vida política Europeia pela mão do Cônsul de Portugal em Bordéus Aristides de Sousa Mendes: Otto e José de Habsburgo, vivendo este último durante muitos anos na localidade. Carol da Roménia, possivelmente em sequência da preparação do caminho que lhe havia feito a diplomata Helena Vacaresco, chega em Maio de 1941, tendo no final dessa década chegado também a princesa Joana da Bulgária e Helena Karageorgevitch da Sérvia, irmã do Rei Alexandre da Jugoslávia. Por fim, em 1946, chega o mais mediático de todos os exilados, que viveu até ao final da sua vida na casa de Cascais, o Rei Humberto II de Itália, que no Estoril desenvolve vasta obra de âmbito social. Numa notícia publicada pelo Jornal ‘A Nossa Terra’, no dia 15 de maio de 1964, é possível ler uma nota emitida pela Rainha Maria José, indicando que desejava voltar
urgentemente a Cascais porque o ar que ali se respira, bem como as suas águas termais, tornarão mais fácil e rápida a convalescença de Humberto de Sabóia. Para além destes e de muitos outros que vão sendo descobertos aos poucos nos arquivos ainda por explorar dos nossos hotéis, é importante sublinhar a presença no Estoril de Juan de Bourbon y Batenberg, filho do Rei Dom Afonso XIII de Espanha e pai do actual rei Juan Carlos I; os Condes de Paris; o já referido escritor Stefan Zweig; o compositor Ignacy Jan Paderewsky; o escritor Maurice Maeterlinck; e o sempre eminente Mircea Eliade cujo impacto junto à estação descrevemos mais atrás. Em 1962, após um percurso muito problemático que se iniciou com a morte do Rei Boris III da Bulgária, ocorrida após um curioso encontro com Hitler em que este lhe solicitou que assinasse um documento aprovando a deportação dos judeus búlgaros para a Alemanha, chega ao Estoril a Rainha Giovanna da Bulgária, acompanhada dos seus dois filhos, o Rei Simenon II e a princesa Maria Luísa. Filha do Rei Vittorio Emmanuele II de Itália, a rainha pertencia à casa real de Sabóia, encontrando no Estoril grande número de familiares também no exílio ou descendentes de antigos membros casados em Portugal. Segundo Joaquim Baraona, numa abordagem biográfica à estadia da Rainha da Bulgária em Portugal, esta personagem reveste-se de uma importância fundamental, uma vez que se enquadrou, na perfeição, em toda a dinâmica social do Estoril (20): «A Rainha Giovanna, pela simplicidade, pela forma como se integrou e tem participado na comunidade, pelo ambiente social que a envolve e pela dedicação ais problemas de solidariedade, é uma das personalidades a quem além do respeito natural que merece, é dedicada a maior atenção e carinho». Numa entrevista publicada na revista ‘Estoril Image’, datada de 1989, o Arquiduque Josef Árpád von Habsburg Lothringen, da antiga Casa Real da Hungria, refere-se ao Estoril como um local de paz, onde, ainda criança, conseguiu readquirir uma vida que a guerra havia destruído. Referindo-se ao que
sentiu quando aqui chegou acompanhado de alguns irmãos e de uma perceptora, as suas palavras deixam transparecer alguma emoção face ao Estoril e à sua vivência (21): «A sensação de maravilha, de ter voltado um pouco ao que tinha sido a minha infância. Havia paz, uma natureza muito bonita, um ambiente de solidariedade e carinho. Mas sobretudo – e não se deve esquecer que eu era apenas um adolescente – havia comida; já não era preciso roubar batatas e assá-las numa fogueira no meio da floresta, rodeados de neve e do troar dos canhões aos longe...» Referindo-se especificamente ao Estoril, um pouco mais adiante, a principal palavra é verdadeiramente a solidariedade que sentiu quando aqui chegou: «Durante os primeiros tempos, vivemos de uma jóias que uma tia nossa, também refugiada em Portugal, tinha trazido. Quando esse dinheiro acabou, funcionou uma cadeia de solidariedade que é das coisas mais bonitas e mais agradáveis que tenho visto na minha vida. As famílias do Estoril e Cascais ajudaram-nos; abriram-se as portas para podermos ser educados e alimentados». O impacto que a chegada deste conjunto de visitantes tão especial teve no Estoril, foi enorme e transversal a diversas áreas da sua existência. Por um lado, foi decisivo na afirmação da estância em termos internacionais e, apesar das experiências de alguns terem sido um pouco mais amargas do que aquilo que seria desejável num espaço onde a fruição e o lazer são a característica fundamental, o certo é que a gratidão e o carinho que a maior parte deles levou daqui, e colocou durante anos a fio nas principais revistas sociais Europeias, acabou por ser um contributo muito importante para o reconhecimento externo da região. Por outro, em termos de estruturas de apoio, desde unidades hoteleiras, a restaurantes e até à construção de casas particulares, marca também um ponto de viragem que é fundamental para compreendermos o Estoril actual. O movimento social em torno dos exilados, e a necessidade de conseguir facultar-lhes estruturas de apoios adaptadas às suas necessidades e às condições financeiras que para aqui trouxeram, obriga a estância a alargar o âmbito do seu alojamento e é
sobretudo nesta época que nascem no Estoril os hotéis de pequenas dimensões, as casas de charme e as muitas pensões e residenciais que alargam o espectro do público que para cá vem. Depois, em termos da construção dos lotes que a Sociedade Estoril Plage dedicou para habitação particular, é também época de grande e acelerado crescimento pois se antes da chegada dos exilados o Estoril já surgia envolto em charme e era um atractivo para quem necessitava de se afirmar na sociedade Portuguesa moderna, a partir deste momento passou a ser (literalmente) a terra onde moravam reis, rainhas, príncipes, princesas, condes e barões e, como tal, o local onde a vizinhança era extraordinariamente eclética e interessante. Num terreno de gaveto situado na ligação entre a Rua João das Regras e a Rua do Algarve, na terceira fase do projecto global de urbanização do Estoril, podemos encontrar um imóvel que mostra bem o impacto e a força que este movimento de exilados teve na consolidação do Estoril moderno. A casa, onde habitou o Rei Carol da Roménia e cujas diminutas dimensões descrevemos mais atrás, é hoje um moderno e luxuoso condomínio privado que mantém a fachada e o pórtico da antiga residência real. Quem lá vive actualmente, e necessariamente há pouco tempo pois a reconstrução do imóvel é muito recente, diz certamente que vive na casa do Rei Carol da Roménia… E embora ele tenha falecido já há bastante tempo, o certo é que a sua presença neste espaço continua a condicionar a existência do Estoril e a definir normas e princípios de funcionamento. Se é assim agora, numa época consideravelmente diferente, fácil se torna perceber o impacto que teve e a forma como condicionou a construção das casas, das fachadas, dos muros e até a definição das estradas Estorilenses. A arquitectura de traça modernista, que é hoje um dos mais importantes trunfos de uma visita ao Estoril, atravessa de forma diagonal as estórias a que o Estoril assistiu neste início de século. Conhece-las, percorrendo rua por rua e olhando demoradamente para a forma como definiram o carácter cénico da povoação, é compreender melhor
a História da Europa e de Portugal em época ainda demasiado recente. Raquel Henriques da Silva, no quinto caderno dos Roteiros do Património, obra notável que a Câmara Municipal de Cascais publicou recentemente (22), dedica um olhar atento à arquitectura modernista e traduz de forma assaz curiosa os resultados desta orientação que Fausto de Figueiredo atribui à necessidade de moldar o Estado aos interesses do novo projecto: “Relacionada com o surto de loteamento e construção, está a criação, em 1921, da Comissão de Iniciativa para Fomento da Indústria de Turismo de Cascais, regulamentada pelo decreto nº 8046, de 24 de Fevereiro de 1922. E, já na vigência do Estado Novo, a reforma da contribuição predial e paralela constituição de um fundo nacional de construção, destinado a promover e subsidiar as iniciativas particulares, que vieram proporcionar um novo alento às companhias de urbanização que proliferavam na capital e eram cada vez mais activas no Estoril, graças à abundância de terrenos e à crescente procura. De facto, os anos 20 marcam o início de uma ocupação de índice elevado, tema de várias críticas na imprensa especializada, e o Estado Novo, com a legislação de 1931 para protecção e embelezamento das zonas de turismo em redor de Lisboa – Queluz, Sintra, Cascais e Estoril, criara o primeiro instrumento de intervenção do Estado no empreendimento de Fausto de Figueiredo, completado nos meados da década pela criação do Gabinete de Urbanização da Costa do Sol”. Deixando antever que a liberdade que havia acompanhado o nascimento do Estoril ficara cerceada com a criação destas novas estruturas, a autora atribui-lhes paralelamente um papel de relevo no sucesso do projecto. E se de facto assim é, pois os instrumentos de apoio então criados, principalmente o Fundo Nacional de Construção, afiguraram-se essenciais para dotar os investidores das condições financeiras necessárias à aquisição e construção no seio destes empreendimentos, o certo é que podemos também perceber em quase todos, de forma mais ou menos directa e determinante por parte do próprio Fausto de
Figueiredo, a actuação indelével da sua mão de político assertivo e inovador. Contrariamente ao que sucedeu à Companhia Monte Estoril, que sucumbiu devido à ineficácia dos instrumentos de apoio então existentes, Fausto de Figueiredo preocupou-se em angariar as condições necessárias para que eles existissem e, dessa forma, lhe assegurassem os meios essenciais para que a concretização fosse perfeita. Por isso, o Gabinete de Urbanização da Costa do Sol, e o posterior Plano de Urbanização da Costa do Sol – o polémico P.U.C.S. que tanta polémica levantou até à aprovação do primeiro Plano Director Municipal de Cascais - e os demais instrumentos criados pelo Estado foram, numa primeira instância, meios que a própria Sociedade Estoril Plage sabia serem imprescindíveis para a consolidação do projecto. Não será estranho a todo esse processo que, no dia 31 de Agosto de 1930, quando o próprio Presidente da República assistiu à inauguração do Hotel Palácio, Fausto de Figueiredo tenha sido condecorado com a Grã-Cruz de Mérito Agrícola e Industrial… Em termos práticos, o projecto da autoria de Martinet que a Sociedade Estoril Plage utiliza como base do seu plano global de urbanização do Estoril, dedica-se a pouco mais do que aos espaços centrais e às peças mais importantes da fachada cénica da nova estância balnear. Mesmo o casino, que inicialmente teve traço de Silva Júnior, foi posteriormente adaptado às necessidades efectivas do poder e aos novos gostos que se consagravam, surgindo como uma peça marcante do movimento modernista e afastando-se dos estereótipos e linhas orientadoras do projecto francês original. É curioso verificar que, por volta dos anos em que tudo isto vai acontecendo no Estoril, o arquitecto de destaque do projecto da Estoril Plage, António Rodrigues da Silva Júnior, publica na revista “A Arquitectura Portuguesa” (23), em vários fascículos que vão sendo divulgados entre 1930 e 1933, um trabalho absolutamente notável mas muito inesperado sobre o continente perdido da Atlântida. Subordinado ao título
“Subsídio para a Reconstituição Histórica, Geográfica, Etnológica e Política da Atlântida”, Silva Júnior publica uma efectiva descrição, com desenhos de plantas, alçados e paletas cromáticas daquilo que teria sido o plano global de urbanização do continente perdido. Criado com bases em teorias teosóficas, próprias de uma Europa ainda em pleno clima neo-romântico, o trabalho em questão consagra o conceituado arquitecto como o visionário que nada tem a haver com a modernidade que se impunha ao Estoril e que, marcando até a cisão em relação à abordagem urbanística da Companhia Monte Estoril, deveria salvaguardar o sucesso da componente promotora da estância balnear. Na obra atrás referida, a investigadora Raquel Henriques da Silva não hesita em considerar o afastamento de Silva Júnior como um importante contributo para a consolidação da estrutura arquitectónica e urbanística do novo Estoril, chegando mesmo a considerar a sua substituição como o mais importante ponto de viragem em todo o projecto: “Mas a vantagem do ponto de vista do modernismo, do atraso na realização das obras é ainda mais decisiva no casino, inaugurado a 15 de Agosto de 1931, sobre as fundações do edifício projectado por Silva Júnior, que mostra uma volumetria já perfeitamente modernista, cedendo apenas, nalguns pormenores, ao gosto artes decorativas. Marcando a viragem do gosto nacional, mas também da empresa proprietária, é um importante modelo para a arquitectura imediata do Estoril, com um projecto, realizado ainda nos anos 20, por um arquitecto francês chamado Raoul Jourde. Teve a colaboração de Pardal Monteiro (1897-1957) no acompanhamento das obras finais e a documentação gráfica encontrada recentemente, está toda assinada pelo arquitecto Porfírio Pardal Monteiro e apenas as perspectivas possuem o nome de Jourde”. A mesma autora sublinha um outro aspecto prático que virí condicionar toda a existência arquitectónica do Estoril e a prática construtiva inovadora da Sociedade Estoril Plage, criando constrangimentos imensos à vida social da localidade: a substituição do arquitecto principal da Câmara Municipal de
Cascais que deixou de ser Tertuliano Lacerda Marques para passar a ser Jorge Segurado. O primeiro, que Raquel Henriques da Silva considera ser o “campeão dos modelos tradicionalistas”, era peça fundamental na criação do Estoril moderno e teve um papel de grande intervenção na obra paroquial que atestava a sua proximidade ao Pároco Monsenhor António José Moita (24) e às principais decisões tomadas por aquela estrutura da Igreja na criação da povoação Estorilense. O segundo, oriundo de uma escola diferente, ficou conhecido na Câmara Municipal de Cascais pela forma como travou a aprovação de projectos de carácter tradicionalista sempre em prol do surgimento de modelos modernistas mesmo quando essa formulação estética surgia associada a uma menor qualidade global do projecto. Esta mudança camarária, consolidada pelo próprio afastamento de Silva Júnior dos projectos encomendados pela Sociedade Estoril Plage, vai implicar toda a uma nova dinâmica nas construções que se efectuarão no Estoril, invertendo a abordagem de Martinet e consolidando o papel das novas instituições entretanto surgidas e o próprio poder do Estado que nessa altura se reconstruía sob novo comando. Opinião idêntica tem a investigadora Maria da Graça Gonzalez Briz que, no trabalho já mencionado, não hesita a atribuir a Jorge Segurado um papel de grande impacto nas alterações formulativas do novo plano do Estoril: “(…) É um edifício de composição simples mas assumidamente modernista que Segurado aprovou (se é que não teve mais alguma participação no caso), Se as tendências estéticas destes anos já marcavam uma viragem a favor do modernismo, a presença de Segurado na Câmara só podia acelerar o processo. Foi o que aconteceu nos anos que se seguem com resultados bastante interessantes”. Depois de concretizadas as peças mais importes na definição da fachada cénica do Estoril, o casino, o Hotel Palácio e as Arcadas do Parque, dedicou-se a Sociedade Estoril Plage a lotear e a definir o crescimento da componente habitacional do projecto.
São de salientar, pela forma como reorganizam o espaço, mas também pela maneira como ainda hoje condicionam a nossa forma de olhar para os Estoris, os lotes de largas dimensões e a sua colocação virada a Sul, de forma a usufruírem da relação directa com a estrutura do parque e, acima de tudo, de maneira a salvaguardarem a componente estética associada à modernidade que se desejava implantar na zona. As orientações da sociedade, expressas nas escrituras de venda dos lotes aos particulares que desejavam construir as suas casas no Estoril, garantiam a toda a estância uma linha orientadora que define o crescimento urbano do espaço e que, na sua componente formativa de âmbito social, assegura o crescimento de uma comunidade marcada pelas ideias que presidiram à criação do povoado. Exemplos emblemáticos deste Estoril podemos encontrálos na Avenida Biarritz (Casa de Norberto Mascarenhas Pedroso e Casa Augusto de Assis), na Avenida dos Bombeiros Voluntários (Casa Alberto de Melo e Sousa e Casa Elísio Leitão Vieira dos Santos) e na Rua da beira Litoral (Casa Shalimar do Arquitecto Jorge Pereira Leite), na Rua Melo e Sousa (Casa Ramon Gomez de la Serna, Casa de Camilo Farinhas – com traço também de Norte Júnior - e Casa António Júdice Bustorff da Silva). Deste período, salientam-se as aprovações de projectos em que o mote se coloca ainda nos revivalismos arquitectónicos que seguem o traço conservador do Mestre Raul Lino, com diversas casas de grandes dimensões e destaque que ainda hoje se podem ver na zona central da urbanização. É também nesta altura, e seguindo a mesma orientação formulativa, que encontramos no Estoril a maior influência de Norte Júnior, que se consolida ainda nas diversas intervenções promovidas directamente pela Sociedade Estoril Plage. Maria da Graça Gonzalez Briz sublinha esse facto, atribuindo o carácter tardio do revivalismo em torno da denominada “Casa Portuguesa” ao próprio vínculo conservador que presidira à concepção inicial: “Na verdade, todas as moradias construídas pela Companhia são variações da “casa portuguesa, embora a qualidade das restantes fique muito
aquém da inventiva do grande arquitecto (Raul Lino)”. Esta mesma investigadora assegura que o projecto mais tardio promovido directamente pela Sociedade Estoril Plage é uma casa construída para Luís Teixeira Beltrão, em 1923, num terreno de gaveto situado na Avenida Dom Nuno Álvares Pereira e hoje infelizmente em avançado estado de ruína. Daí por diante, e sobretudo a partir dos anos 30 quando os constrangimentos estatais atrás mencionados se impõem, surge então em plena força a proposta estética do modernismo Português e, com ele, a chegada ao Estoril de uma série de novos arquitectos que põem fim ao que restava da ideia original do projecto de Martinet. Terminam nesta altura os ultrapassados torreões, os beirais, os alegretes e as varandas de ferro, e abre-se caminho para abordagens onde a ligeireza das linhas e as volumetrias vincadas à sobriedade das formas geométricas que transformam por completo o Estoril. Um dos melhores exemplos ainda hoje visíveis desta abordagem moderna ao Estoril centra-se na Villa Monserrate, na Rua Engenheiro Álvaro Pedro de Sousa, num projecto de remodelação assinado conjuntamente pelos arquitectos Pardal Monteiro e Luís Cristino da Silva. Também de Pardal Monteiro, a Casa de José Espírito Santo Silva é também um bom exemplo. Adelino Nunes assinou, em 1933, num processo envolvido numa grande polémica por ter surgido de forma associada a um projecto prévio da autoria da empresa Anglo Portuguese Telephone, os traços que darão forma ao edifício dos TLP, na Estrada Marginal em frente à Igreja de Santo António do Estoril. A escolha deste arquitecto, que se tornará marcante no panorama modernista do Estoril, ficará associada ainda à Casa de Maria da Câmara Posser de Andrade e, mais tarde, ao importante projecto do edifício dos correios, no lote de ligação da Avenida Marginal com a Avenida de Nice. Raquel Henriques da Silva, no roteiro atrás mencionado, não poupa aliás elogios ao carácter inovador deste edifício: “Assumindo claramente o valor plástico das volumetrias assimétricas, sem recorrer, praticamente, a elementos decorativos para animar as fachadas, o arquitecto
mostra um grande domínio dos valores modernistas, aproximando-se como nunca da arquitectura holandesa. A demonstrá-lo está, não só o hábil jogo de planos e linhas neoplasticistas, mas também a criação de um espaço novo, em termos urbanos, conseguido pela esquina dinâmica, espacial e volumetricamente evidenciada pelo poderoso cilindro, elemento gerador de toda a organização do espaço interior”. Outros exemplares dignos de nota, apontados no mesmo roteiro, são a Casa de São Francisco, com projecto de António Varela para António Cortez de Lobão (Avenida Marginal); a Casa de Nossa Senhora da Visitação, a Casa Girasol (na Rua de Inglaterra) a Casa Claridade; a Casa Vale Florido da autoria de Luís Cristino de Sousa na Avenida General Carmona; ou a Casa Boavida no mesmo arruamento. Todos estes exemplos, que permitem compreender a forma como evoluiu e se adaptou o projecto de Fausto de Figueiredo às contingências e vicissitudes próprias de um País também ele em transformação, têm uma situação cronológica situada entre 1930 e 1940. Daí por diante, já com o promotor original muito afastado do cerne decisório que deu forma ao que ali se fez, o Estoril evolui ao ritmo de toda a região, passando a ser alvo do rol de críticas que acompanham a densificação construtiva da então Costa do Sol (actual Costa do Estoril) e que vão crescendo de forma paradigmática até finais da década de 90 do Século XX. A partir dessa altura, morreu o sonho de Fausto de Figueiredo e, com ele, desapareceu para sempre o ímpeto onírico e utópico de José Jorge de Andrade Torrezão, Carlos Anjos, Henrique de Moser, Monsenhor António José Moita, João de Deus Ramos, Aníbal Henriques e Dias Valente. Todos eles, falecidos já há muito tempo, tiveram a sorte de não conhecer o desmembramento social e a anomia que se instalou na terra que tiveram a capacidade de imaginar. Resta hoje, quando o turismo se reafirmou como uma das poucas áreas em que Portugal ainda pode florescer, termos a capacidade de reconhecer e revitalizar as ideias e os valores propagados por estes empreendedores e, dessa forma, sermos
capazes de ver, sentir e amar o Estoril como preciosidade irrepetível que ainda é. Para tal, mais do que tratados sobre cada uma das peças que compõem o seu património; mais do que visitas guiadas que nos transportem de projecto em projecto e de construtor em construtor; mais do que desdobráveis e panfletos de grande qualidade gráfica que descrevem o sol, o mar e os equipamentos que o Estoril tem; precisamos de nos deslumbrar com esta terra tão especial. Só assim, verdadeira e assumidamente deslumbrados, conseguiremos transmitir, com alma e coração, o carácter vincado de um Estoril onde as sensações que cruzam com as memórias e as estórias nos trazem novas Histórias que nos obrigam a sonhar.
Conclusão São poucas, como vimos, as palavras Portugueses que possuem a abrangência suficiente para descrever o Estoril. Este espaço, que de estéril a local de excepção, se assumiu como referência a nível Nacional e internacional, vão cerca de cem anos extraordinários, nos quais sonhos e ideias se cruzaram em projectos. O Turismo do Estoril, actividade centrada neste charme quase místico que o Estoril transparece, é a capacidade de gerar movimentos centrados nas experiências que esta terra oferece e que urge conhecer para que sejam devidamente rentabilizadas e aproveitadas de forma a que gerem emoções fortes e memórias que perdurem no tempo. Neste apontamento crítico, que pretendeu atravessar de forma diagnóstica aquilo que foi, o que é e o que pode vir a ser o Estoril, demos especial relevo à excelência daqueles que nestes últimos cem anos tiveram a coragem para acreditar neste local especial e para, com base nisso, gerarem projectos diversos que levaram longe o nome desta terra. Agora, nesta altura em que tantos e tão grandes desafios se colocam a este País, está na hora de o Estoril voltar a assumir o seu papel de excelência na promoção externa de Portugal para, dessa forma, voltar a contribuir avidamente na angariação de novos sonhos, novas ideias e novos projectos que consubstanciem um novo Portugal. Para tal é fundamental que todos os que intervêm no Estoril, desde os hoteleiros, os comerciantes, os promotores da restauração, as entidades públicas e privadas que aqui estão sedeadas, os que cá moram e mesmo aqueles que visitam esta terra, tenham consciência efectiva do produto que têm em mãos. E não é fácil consegui-lo. O Estoril, misto de estância balnear e de residência privilegiada, nasceu e cresceu basicamente nas mentes dos que o imaginaram, sendo que existe uma diferença
abissal, levada ao extremo nalguns casos, entre aquilo que o Estoril é e aquilo que deixa transparecer. Mesmo as ruas, as casas e os jardins, que noutros locais assumem um papel de solidez estrutural sendo aquilo que são e não enganando ninguém, são no Estoril peças significantes e plenas de identidade cénica, numa espécie de palco em que tudo pode ser resultado da magia a acontecer. É assim o Estoril: um lugar onde as mil sensações se constroem não em torno do que efectivamente lá se vê mas sobretudo daquilo que se sente. É este o Estoril que José Jorge de Andrade Torrezão sonhou há já 150 anos, um local onde cada um podia reencontrar o caminho pessoal em direcção à felicidade e à concretização dos seus sonhos. Um caminho no qual avançaram também Carlos Anjos, o empreendedor empresário que ousou tudo (até a sua própria existência) para dotar o Estoril com uma Alma reforçada e verdadeiramente transcendente. Também por lá andou o Conde Henrique de Moser, ilustríssima figura do empresariado Português que, mercê do sonho em que embarcou, liderando a Companhia Monte Estoril com o seu amigo Anjos, logrou trazer até Cascais a linha de comboio que tornou o Estoril num espaço completamente diferente. Mas nenhuma destas figuras estaria completa sem uma menção especial a João de Deus Ramos que, depois dos sonhos alheios se terem esboroado sob o peso sempre terrível das situações concretas, teve a capacidade de olhar para as ruínas e sonhar para ali com algo de completamente diferente. Não o conseguiu directamente. Isso é certo. Mas pela mão de Aníbal Ferreira Henriques, Álvaro Themudo e José Dias Valente, ainda assistiu à excelência completa do seu projecto concretizado no único sítio de Portugal onde as coisas podiam ser diferentes: o Estoril… Foi isso que trouxe ao Estoril a genialidade de Fausto de Figueiredo. Com a sua capacidade de sonhar sonhos que quase parecem impossíveis de serem pensados, quando mais de serem tentados ou vividos efectivamente. Mas assim foi. Com a ajuda preciosa de Monsenhor António José Moita, o Prior do
Estoril que deu forma ele próprio ao sonho de uma Igreja conjugadora de esforços que com a força da Fé fosse capaz de sonhar com vidas excelentes! E também o Conselheiro Driesel Schröeter, que nem sequer cá tinha nascido, e que lutou afincadamente com Fausto de Figueiredo para tornar o Estoril na última estação da linha do Sud-Express! Diz-se hoje amiúde, por esse Portugal fora e em cada esquina dos nossos organismos de poder que o grande problema de Portugal é ser um País periférico, colocado no canto de uma Europa ávida de resultados e de rendimento que é incompatível com o lugar onde nascemos. Nada mais errado como nos mostraram os sonhadores que deram forma ao Estoril. Portugal está na cara da Europa, num local pleno de potencialidades e em situação estratégica excepcional para salvaguardar os interesses do Mundo inteiro. Mas há que acreditar nisso. É fundamental acreditar verdadeiramente que é possível subverter o Mundo, a realidade e as coisas, e fomentar um ciclo de crescimento e prosperidade tal como eles o fizeram. Porque o Estoril é mágico ainda hoje. Carregado de um charme que transborda da sua História, que se compõe nas suas estórias e que nos deixa perfeitamente desconcertados quando temos a possibilidade de conhecer de perto. E para o conhecermos precisamos mesmo de nos perder lá dentro. Não é necessário não saber a rua, não ter um GPS à mão ou perder o Norte numa qualquer noite coberta de nevoeiro. Perder-nos no Estoril significa limparmos os sentidos com as ideias pré-concebidas e com os estereótipos daquilo que nos ensinaram ser o correcto. Só assim, invertendo a linearidade das coisas e impondo uma nova razão que promova uma maneira alternativa de olhar para este espaço, vendo desde logo que está tudo por fazer, podemos aspirar a conhecer efectivamente o Estoril e, dessa forma, condenar-nos a nós mesmos a nunca mais o esquecer. Em termos do turismo o grande desafio coloca-se exactamente aí. Não é preciso inovar, imaginar coisas diferentes
ou debater-nos com projectos megalómanos onde a impossibilidade nos estarrece. Basta ressuscitar o que já foi feito, reprogramando a mentalidade de forma a gerar consensos em torno de uma forma nova de entender este conceito. Quem visita o Estoril desta forma nunca mais o esquece. Como não esquecerá jamais, as casas, as ruas, os jardins, os hotéis, os restaurantes, os campos de golfe, o casino, o centro de congressos, as praias ou as termas que temos cá dentro. Porque viverá as emoções próprias que só aqui podem nascer e, desta maneira, desejará voltar, trazer amigos e família e regressar ao Estoril num movimento cíclico que lhe garanta a felicidade de o sentir verdadeiramente. O momento que atravessamos é crítico para esta terra. Para além dos desafios sem igual que condicionam a vida em Portugal, ao Estoril acrescenta-se uma anomia crescente que tem afastado as suas gentes. Mas o Estoril, uma vez mais, tem mostrado que tem condições, meios e gentes com capacidade para lhe garantir um futuro. Numa das últimas sessões das “Tertúlias do Monte” que a ALA dedicou ao turismo, o Director do Centro de Congressos do Estoril, Pedro Rocha dos Santos, sublinhou precisamente essas potencialidades contextualizando-as numa série de projectos de excelência que o próprio está a implementar com evidentes benefícios para a imagem externa da região. À sua volta, num paradigma de qualidade que garante o futuro da ideia que deu forma aos Estoris, nomes como António Aguiar, Isabel Magalhães, Pedro Bamberg Garcia ou Linda Pereira, são o melhor garante de que existe, de facto, um caminho de vanguarda que assegurará a importância desta terra no contexto Nacional e internacional. Os cem anos de História desta região, associados às muitas estórias carregadas de gentes que lhe deram forma, exigem uma postura de frontalidade, rigor e respeito. Só dessa maneira garantiremos que os nossos netos poderão usufruir da excelência sempre que quiserem deambular cá dentro. Porque o Estoril vale mesmo a pena.
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Hotel Palácio (*****) Rua Particular 2769-504 – Estoril Tel. 21 464 80 00 www.palacioestorilhotel.com
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Centros de Congressos Centro de Congressos do Estoril Avenida Amaral 2765-192 – Estoril Tel. 21 464 75 75 www.estorilcc.com
Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril Avenida Condes de Barcelona 2769-510 – Estoril Tel. 21 464 85 00 www.eshte.pt
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Golfe Clube de Golfe do Estoril Avenida da República 2765-273 – Estoril Tel. 21 468 01 76 www.golfestoril.com
Academias e Instituições ALA – Academia de Letras e Artes Avenida da castelhana, nº 13 2765-405 – Monte Estoril Tel. 21 468 56 04 www.academialetrasartes.pt
Junta de Freguesia do Estoril Rua do Vale de Santa Rita, 45 2765-281 – Estoril Tel. 21 464 61 40 www.jf-estoril.pt
Paróquia de Santo António do Estoril Igreja de Santo António do Estoril Avenida Marginal 2765 – Estoril Tel. 21 468 03 42 www.paroquiadoestoril.com
Centro Comunitário do Estoril Rua Dom Afonso Henriques, 1760 2765-576 – Estoril Tel. 21 468 67 97 www.cpestoril.pt
Centro Comunitário da Senhora da Boa Nova Rua do campo Santo, nº 441 2765-307 – Estoril Tel. 21 467 86 10 www.cpestoril.pt
Fundação Cascais Avenida Clotilde, nº 52N 2765-266 – Estoril Tel. 21 402 90 30 www.fundacaocascais.pt
Turismo do Estoril Avenida Clotilde Edifício do Centro de Congressos, 3ª 2765-211 – Estoril Tel. 21 464 75 70 www.visiteestoril.com
Estoril Convention Bureau Avenida Clotilde - Edifício do Centro de Congressos, 3ª 2765-211 – Estoril Tel. 21 466 81 67 www.estorilmeetings.com
Notas & Referências (1) AGOSTINHO, Santo, Confissões, Lisboa, Livraria Apostolado da Imprensa, 1984. (2) COLAÇO, Branca de Gontha e ARCHER, Maria, Memórias da Linha de Cascais, Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1943. (3) SILVA, Raquel Henriques da, Sobre a Arquitectura do Monte Estoril 1880-1920, in Arquivo de Cascais – Boletim Cultural do Município, nº 5, 1984. (4) MATOS, Helena, Costa do Estoril: Um Século de Turismo, Cascais, Junta de Turismo da Costa do Estoril, 2000. (5) SILVA, Raquel Henriques da, A Paisagem do Património, Actas dos X Cursos Internacionais de Verão de Cascais, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 2004. (6) HENRIQUES, João Aníbal, O Estoril e a Paróquia de Santo António, Cascais, Fundação Cascais, 1999. (7) Ver o capítulo sobre a educação no Monte Estoril e o livro “O Colégio João de Deus no Monte Estoril” da autoria do exaluno José Pires de Lima e da Associação dos Antigos Alunos do Colégio de João de Deus. (8) SILVA, Raquel Henriques da, Sobre a Arquitectura do Monte Estoril 1880-1920, in Arquivo de Cascais – Boletim Cultural do Município, nº 5, 1984. (9) BRIZ, Maria da Graça Gonzalez, A Arquitectura do Estoril: da Quinta do Viana ao Parque do Estoril – 1880-1930, Arquivo de Cascais – Boletim Cultural do Município, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, nº 8, 1989. (10) ORTIGÃO, Ramalho, As Praias de Portugal, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1943. (11) CARDOSO, Guilherme e ENCARNAÇÃO, José d’, Para uma História da Água no Concelho de Cascais, Cascais, Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento de Cascais, 1995. (12) CUNHA, Licínio, Economia e Política do Turismo, Lisboa, McGraw Hill, 1997.
(13) CARDOSO, Nuno Catharino, A Arte, Os Monumentos, A Paisagem, Os Costumes, As Curiosidades da Costa do Sol, Lisboa, Sociedade de Propaganda de Portugal, (s.d.) (14) MESQUITA, Marieta Dá, Notas para um Itinerário do Espaço Habitativo: Leituras da Arquitectura Residencial – Alguns Problemas, Episteme, Ano I, Nº1, Dez.97 / Jan. 98. (15) NETO, Henrique, Empresas e Empresários, Reformar Portugal – 17 Estratégias de Mudança, Lisboa, Oficina do Livro, 2002; (16) FERRO, António, Novo Mundo - Mundo Novo, Lisboa, Editora Portugal Brasil, (s.d.) (17) SALAZAR, António de Oliveira, Como se Constrói um Estado, Lisboa, Mobilis in Mobile, 1991; (18) CARDOSO, Guilherme, Estoril - Passado a Preto e Branco, [s.l.], Associação Cultural de Cascais, 1996; (19) VEGAR, José, Destino Cascais, Jornal Expresso, 29 de Setembro de 1995, pág. 91; (20) BARAONA, Joaquim, Personalidades da Costa do Estoril, Cascais, Supereco Propaganda Ldª., 1995, pág. 181; (21) Estoril é a Minha Pátria Sentimental, Estoril Image, Ano I, Nº1, 1989, pág.14; (22) SILVA, Raquel Henriques da, A Arquitectura Modernista, Roteiros do Património, nº 5, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 2010. (23) JÚNIOR, António Rodrigues da Silva, A Atlântica – Subsídio para a Sua Reconstituição Histórica, Geográfica, Etnológica e Política, in A Arquitectura Portuguesa, Lisboa, 1930-1933. (24) Ver a descrição do processo de reconstrução da Igreja de Santo António do Estoril, em 1927, no nosso trabalho mencionado na nota (6), bem como o relevo que o Arquitecto Tertuliano Lacerda Marques teve junto de Monsenhor António José Moita na definição do papel da paróquia na criação do moderno Estoril.