JOãO BOsCO BeZerra BOnFim
Catalogação
O Auto de Santa Dica - Mas parecem falar em versos É isso estar bêbado ou não? - Mesmo sem querer, fala em verso Quem fala a partir da emoção.
(João Cabral de Melo Neto, Auto do Frade, diálogo entre o Oficial e o Provincial)
Os Carreiros
O Jornalista
Na Fazenda Mozondó, Nasceu muita cana doce E, entre as rudes touceiras, Não se sabia que fosse Nascer um anjo de cura De generosidade um poço.
Muita fama teve ela, Amiga de presidente. JK a admirava E lhe mandou sorridente Retrato autografado Para a amiga vidente.
Benedicta Cypriano Já nasce predestinada A obrar cura de males Que encontrasse na estrada, Fosse em Lagoa-Lagolândia Ou enfrentando emboscadas.
O Cavaleiro Mas o mundo do sertão Tão amado pelos Anjos Também era violento, Pois atacou seus encantos E fez fogo na Lagoa, Causando dor e espanto.
[outro segmento]
As Fiandeiras Mas voltemos ao começo Quando foi seu nascimento: Sendo ali sinal divino, Já demonstrava a semente De uma mulher de poder Para ateus e gente crente.
Os Romeiros Na primeira de suas mortes, Causou assombro à parteira. Mesmo antes de nascer, Mandou o recado primeiro: Era criança especial, Dos Anjos a mensageira.
As Fiandeiras Na segunda, aos dois anos, Teve a purificação. De seu franzino corpo Sangue jorrou, um Jordão; E mais o pus da limpeza, Livrando-a da danação.
O Boiadeiro Já na terceira, aos quinze, Espalhou-se essa notícia: Que Dica era finada, Mas ela sem rebuliço Retornou viva e fagueira Para curar injustiças.
O Jornalista Por fim, na quarta, se foi, Desencarnada um dia, Porém nunca abandonou Seu povo, sua maestria, E segue a curar com fé Vero Anjo da Valia.
[outro segmento]
Os Anjos A Fazenda Mozondó Elevava-se do chão, Pois essa terra comum Alimentava de pão O ricaço e o faminto Liberto da escravidão.
Os Romeiros Foi quando o Rio do Peixe Tornou-se o próprio Jordão, Passagem de santidade Dos ancestrais cristãos Onde o próprio Rei descalço Fazia sua pregação.
O Cavaleiro Pois o mal invade o corpo E criva também a alma. Ao tirar a terra-mãe, Do camponês tira a calma; Adoece a mão do homem Que tem vazia a palma. Então, a maior doença Era a falta da terra. Ao Coronel, toda a gleba; Nada ao roceiro que erra, De roça em rio expulso, Sem poder nem soltar berro.
Os Anjos As Fiandeiras Dica tinha a palavra E também o toque sutil Que lhe vinha pelos Anjos Ao povo aberto e gentil, Que, sem outro meio de cura, Permanecia febril.
Senta no chão Zé Gregório Morador de Catalão Venham todos meus irmãos Para o Rio Jordão E eu lhes dou a salvação!
[outro segmento]
O Cavaleiro Nesses sertões de Goiás Pobre só anda a pé. De remédio para doença Só tem mesmo sua fé Que se alimenta certeira Nestas casas de sapé. O que busca tanta gente Às margens do Rio do Peixe? Será glória, salvação? Será prazer e deleite? Nada disso, meus senhores, Ninguém vem pelo enfeite.
[outro segmento]
O jornalista Disseram que a fogueira Morreu com a Inquisição; Menos no sertão goiano Onde ela fez plantão, Queimando como a infiéis Quem, mesmo sendo cristão, Não rezava pelo credo De fechada oração Sem ver que a cristandade Assume toda feição, Mesmo sem ser romana Faz na cruz sua benção.
O Cavaleiro Não era só a medicina A condenar o hospital Aberto em toda a Lagoa A curar todo o mal Que adoecia o sertão De forma vil e brutal.
O Monge Benedicta Cypriano, Onde se viu tanta asneira? Como podes o batismo Confirmar dessa maneira? Não és bispo mitrado; És charlatã da ribeira!
O Cavaleiro Então, a Inquisição Como um tribunal civil Onde os donos da verdade Como bandido em covil Sentenciou a guerreira De forma cobarde e vil. Dica e seus companheiros, Às margens do Rio do Peixe, Resistem bem lá na mata E a forte fé não deixam. Juntos, a fraqueza é força! Não são gravetos, mas feixes.
[outro segmento]
Os Carreiros
As Fiandeiras
Mas já sai de Vila Boa A tropa uniformizada Por veredas do sertão, No cerrado, sem estradas. É coragem que lhes move? Ou vergonha amarelada?
Benedito é de batismo, Divino é de apelido, Nomes comuns em Goiás Onde a fé faz sentido: Rosários sob o uniforme, Da Santa já têm ouvido.
O Soldado Benedicto Na fileira, bem composto, Não tem prazer na missão; Por outra, tem é desgosto. Nada tem contra a Dica, A matar não está disposto. Divino é outro soldado, Este vai bem lá na frente. Dele é o primeiro tiro? Alegria ele não sente: É Soldado pelo soldo, Não tem a raiva nos dentes.
[outro segmento]
As Fiandeiras
Os Carreiros
“Fogo!”, grita o Comandante; Chispas cospem os fuzis; Há labareda nas trempes; Os raios ferem os civis. Mesmo que a chama apague Assina com cicatriz.
Nas margens do Rio do Peixe Noss’ora da Conceição Povoado da Lagoa Terra boa, em promissão, Onde a pólvora explodiu Da luz fez escuridão.
O Boiadeiro Moradores da Lagoa Pelos Anjos alertados Ficam lá de prontidão, Mas não fogem assustados: A proteção é divina Pelos santos são blindados.
O Jornalista Das pesadas carabinas, Como num Auto de Fé, Mandam fogo na Lagoa De onde não arredam o pé, Conceição do Rio do Peixe E suas casas de sapé.
Os Anjos Senta no chão Zé Gregório Morador de Catalão Venham todos meus irmãos Para o Rio Jordão E eu lhes dou a salvação!
As Fiandeiras Os Soldados abrem fogo Lá embaixo, o que se vê: São as bolas desviando Pelos Anjos do poder, Livrando da morte certa As Legiões vêm valer. Valei-nos, ó Catalão! Valei-nos, Rei da Valia! A Lagoa pega fogo, É grossa a fuzilaria, Mas perdida é a mira Desfocada pelos guias.
[outro segmento]
As Fiandeiras Oh! Dica, esses teus pecados Não são deste ou doutro mundo, Pois errantes nascem todos Neste Vale tão profundo. Mas tu pagas pelos outros: Pelos vivos e os defuntos.
O Jornalista Nesse estranho tribunal Não há ata, nem sessão; Apenas sussurros prenhes De inveja e ambição: “Como pode a Pé-com-palha Nos trazer humilhação?”
Sentença: fogo de bala, Mas não pela lei civil. Porém, a lei do carrasco Oculto em seu covil A demandar pela morte De um coração gentil.
Os Anjos Ocultos em Vila Boa Em suas casas caiadas, De branco pintam o nome, Até o terno é alvejado. Só têm sujas as almas De cobardia lavadas.
O Cavaleiro
Do dito pelo suposto Sai a sentença, sem trégua: Haveriam de expulsar Num raio de muitas léguas A “Santa” e seus fanáticos E seu reino de quimeras.
Em Vila Boa Goiás Ergueu-se um tribunal. Não é toga o que vestem: Facão, chapéu e o sinal Do poder deste sertão Ungido por cabedal.
Sentença: fogo de bala Que é a fogueira destes tempos Sem o suplício da chama E o seu lento tormento Não visto por multidão, Mas oculto, por intento.
Em Trindade, outra vez, Redivivo o Santo Ofício, Decreta que a falsa Santa Ofereça um sacrifício: Sua vida pelo perdão – Este o preço, submisso.
As Fiandeiras Outras vozes, nas fazendas Ou mesmo na Meia Ponte: Santa tem que ser donzela! Mas esta faz uma afronta: Deitou-se já com um macho E faz-se agora de sonsa.
O Folião Outra voz – esta mais branda – Manda dizer em sussurros Que a Dica seja calada; Seu exemplo é um absurdo: Quer que a terra seja livre, Que as casas não tenham muro.
O Monge Benedicta Cypriano, Onde é que tens o juízo? Não sabes que o sagrado É para os que têm siso? Não és padre nem doutora; À fé causas prejuízo!
Onde foi que já se viu Uma matuta roceira Dizer que fala com os Anjos! Só mesmo sendo embusteira. Aproveita-se dos crentes Que vivem nessa cegueira!
O Folião E, assim, de voz em silêncio É que se ergue a fogueira. Cada tronco se faz lenha E compõem desta maneira A condenação dos justos À Santa que é feiticeira.
[outro segmento]
Os Anjos Senta no chão Zé Gregório Morador de Catalão Venham todos meus irmãos Para o Rio Jordão E eu lhes dou a salvação!
O Folião Quantas vidas o vivente Terá para oferecer? Quantas mortes comandadas Pela língua do sofrer, Pelo punho dos juízes, Pelas rédeas do poder!
O Cavaleiro Cada fuzil, neste dia, Atira na bala a voz De quem persegue a Dica Que contra ela é algoz: Pela boca dos fuzis, Fala a crueldade atroz.
Os Anjos Às margens do Rio do Peixe Elevou-se acima do chão A Calamita dos Anjos, Também chamada Jordão; A vera Terra-Sem-Males, Amada da multidão.
A Parteira Que mal fez a Benedicta Pra receber esse dom? Os espíritos, em conselho, De sua boca emitem som: Avisos, conselhos, leis, Anúncio do que há de bom. Que bem fez Benedicta Para tal merecimento? Ela própria é parte Das Falanges do além Que, quando a visitam, perde O seu sentido terreno.
O Folião Nem bem, nem mal lhe movem; O que a move são os guias A trazer cura e conforto Aos entes da Freguesia E aos males incuráveis, Bálsamo que alivia.
O Cavaleiro Esse o crime de que acusam Benedicta Cypriano: Seria ela, em verdade, A própria voz do engano, A iludir as almas, Deles virando tirana?
O Folião Mas quem pode ser juiz Neste ou no outro plano? Não, decerto, os Coronéis, Que se ocultam sob o manto De uma lei térrea e carrasca Que não atinge os Anjos.
O Cavaleiro Mas atinge a mulher fêmea Que ousou desafiar O baronato do gado E das terras de Goiás, Trazendo fé e esperança Aos deserdados de lar.
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[outro segmento]
Os Anjos
Os Anjos
Lá vêm os Canelas Pretas Agora estropiados. O Comandante lhes grita Que não sejam tão lesados. É imperativa a surpresa Para cercar os fanáticos.
Senta no chão Zé Gregório Morador de Catalão Venham todos meus irmãos Para o Rio Jordão E eu lhes dou a salvação!
As Fiandeiras Mal sabe o Comandante Que seus passos são previstos. Já alertaram os Anjos E, na Lagoa, sem risco, Os esperam as Falanges Como escudos do perigo. Ainda ontem, brincando, Com as mocinhas de lá, Pilhéria fez um dos Anjos: “Moças, seus namorados, Divisa e Canelas Pretas, Se dirigem para cá!”
As Fiandeiras Cospem fogo as metralhas Uma de cada lado. Não falam língua de gente, Mas palavras de soldado Para matar os fiéis Dos Anjos deste reinado. Estralam gritos de guerra E com a sílaba “tá” Escrevem todas as palavras, Monologam em tá tá Alegres em riso franco Gargalham: tá tá tá tá tá. Do alto da Gameleira Se organiza a resistência. A bandeira lá erguida Não é de pedir clemência, Mas da Falange dos Anjos A repelir a demência.
Os Anjos Cada bala que a nós chega Desvia-se a outro rumo. Assustam-se os Soldados “Teremos perdido o prumo?” “E por que não morre a Dona? Será ela de outro mundo?”
O Cavaleiro Na copa da Gameleira Comandando a Legião Com sua bandeira branca Segurada pela mão, Detêm balas de metralhas, Deteriam as de canhão. Porque na Nova Canudos, Também chamada Jordão, Combatem Anjos guerreiros Como na Anunciação. E o Conselheiro é Dica – Outra voz, mesma oração. [outro segmento]
Os Anjos
Os Anjos Senta no chão Zé Gregório Morador de Catalão Venham todos meus irmãos Para o Rio Jordão E eu lhes dou a salvação!
O Cavaleiro Na Fazenda Mozondó Onde habitam os Carindongos, O Comandante da tropa Armado de rifle e assombro Destruirá este reino Não deste, mas de outro mundo. Os Carindongos chamados Pela pecha militar Não são guerreiros de espada De outra via é o seu lutar. Pelejam de olhos ao céu Na esperança milenar.
Senta no chão Zé Gregório Morador de Catalão Venham todos meus irmãos Para o Rio Jordão E eu lhes dou a salvação!
Os Anjos Senta no chão Zé Gregório Morador de Catalão Venham todos meus irmãos Para o Rio Jordão E eu lhes dou a salvação!
Os Anjos Dois mil anos passarão; Do dois mil não passará! Faltando apenas três horas, Grande Deus há de mandar Castigo aos pecadores, Só se salva o que purgar. Já quase no Paraíso Esta é a Terra-Sem-Males. Lá fora, todos cativos, Aqui nós somos iguais: Terra e pão repartidos Neste sertão de Goiás.
[outro segmento]
Os Anjos Avia!, que evêm as tropas Canelas Pretas, vorazes, Do reino da opressão. São eles os capatazes Vêm à Nova Jordão Sangrar moças e rapazes. Eia! Para suas casas! Não temam as armas, o mal. Não são balas deste mundo Que ferem nosso sinal, Assinalados que fomos Neste reino de iguais. [outro segmento]
O Cavaleiro A outrora Praça dos Anjos Agora é praça de guerra. Aqui se ouvia o Conselho; Agora a Metralha berra! Onde se orava a esperança, O grito da morte impera. Ousou Dica mostrar força No País dos Coronéis Pra combater a Coluna De Cavaleiros fiéis. A esperança libertária De um País ao revés.
O Jornalista Queriam a força dos Anjos Só se fosse submissa Como o crente que ajoelha E ouve calado a missa; Não o profeta que grita Por liberdade e justiça.
[outro segmento]
O Boiadeiro Do Goiás da Vila Boa Os manda o Coronel Sá Pra desarmar o Jordão Armado de enxada e pá E da fé mais poderosa Que o sertão faz brotar.
As Fiandeiras Valei-nos, Rei da Bondade, Valei-nos, Rei da Valia, Que as tropas de Caiado Já avançam, com artilharia, A vencer nossa República Cansada da Tirania.
[outro segmento]
As Fiandeiras A cada bala cuspida Há um anjo pra defender Um escudo de santidade Contra o fogo do poder. Mil vidas eles tivessem Mil balas iam suspender. [outro segmento]
As Fiandeiras “Fogo!”, grita o Comandante; Chispas cospem os fuzis; Há labareda nas trempes; Os raios ferem os civis. Mesmo que a chama apague Assina com cicatriz.
Essa execução sumária Malgrada fosse a perícia Dos Canelas Pretas em farda Falha por injustiça. Mais vale a voz dos anjos Que as metralhas da polícia.
O Cavaleiro Comanda-os José Sueste A Falange, qual romanos, A defender o Império De invasores desumanos, Nest’outra Jerusalém Insurrectos, soberanos.
Os Anjos Senta no chão Zé Gregório Morador de Catalão Venham todos meus irmãos Para o Rio Jordão E eu lhes dou a salvação!
[outro segmento]
O Cavaleiro Nunca se viu tanta tropa Pra fazer simples prisão. É caso de guerra aberta Lançada pelo sertão: Mais de cem homens em armas Marcham para o Jordão. Se abrigados da Justiça? Se o Comando tem mandado Pra prender simples mulher Para que tanto soldado? Ou se tal fuzilaria Era de caso pensado? A outrora Praça dos Anjos Agora é praça de guerra. Aqui se ouvia o Conselho; Agora a Metralha berra! Onde se orava a esperança, O grito da morte impera. O que temem desse povo, Valentes Canelas Pretas? O que eles portam são rifles? Ou inofensivas varetas? O estandarte porta um escudo? Ou será mera bandeira?
[outro segmento]
As Fiandeiras Difícil para os Soldados É explicar o fracasso: Diante de tanta bala, Como não lhes fere o aço? Será escudo ou bandeira Que ergue o crente no braço?
Vejam, Irmãos, que o medo É a prisão dos Encarnados. Mesmo vendo que em escudos Os protegemos dos soldados, O pavor lhes faz correr Ao Rio do Peixe, afogados!
Os Carreiros Já deixam a praça de guerra Os soldados assustados. Há fogo pelas palhoças, Fumaça pra todo lado. Não ficam pra ver os mortos, Seguem de bico calado. Divino e Benedito Ainda na tremedeira Mal seguram os fuzis, Perderam a mão certeira. Bambas as pernas, vacilam Pelas pedras da ladeira.
[outro segmento]
Os Anjos Senta no chão Zé Gregório Morador de Catalão Venham todos meus irmãos Para o Rio Jordão E eu lhes dou a salvação! [outro segmento]
A Parteira De todas as quatro mortes Que Bem’Dica padeceu Foi essa – que não contada – Tirou mais do que era seu: A sua pureza d’alma Roubada pelos sandeus.
Os Anjos Verdade que o fogo queima, Verdade que acesa a pira. A lenha se torna brasa, A brasa se torna cinza. Mas também tempera a alma De ferro, em aço mais fino. Eis que o fogo da Lagoa, Além do sangue inocente, Temperou com chama e plasma: Fé e bravura dessa gente, Chamuscadas da metralha Resfriam no Rio do Peixe. A têmpera de Benedicta É a mesma dos heróis Em seu corpo adolescente. Não são as balas que doem; É a fé que se lhe corta Em país de iguais.