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Copyright © 2015 by João Ernesto Reis Beltrão
Preparação de texto João Ernesto Reis Beltrão Revisão João Ernesto Reis Beltrão, Ricardo Beltrão, e Caroline Lima Orientação José Carlos Marques Produção editorial Caio Beltrão Sposito
Arte Coordenação Caio Beltrão Sposito Produção Gráfica Caio Beltrão Sposito Diagramação Caio Beltrão Sposito Fotografia Caroline Lima, Gustavo Boaventura e João Ernesto Reis Beltrão
Beltrão, João Ernesto Reis. Na terra e na grama - o futebol amador na cidade de São Paulo. Bauru, 2015
1. Futebol amador 2. São Paulo 3. Várzea 4. Clubes de elite 5. Sociabilidade
NA TERRA E NA GRAMA O FUTEBOL AMADOR NA CIDADE DE Sテグ PAULO
Foto: Gustavo Boaventura
Joテ」o Ernesto Reis Beltrテ」o
Dedicatória Aos meus pais, Iraci e Ricardo, que de todas as heranças possíveis, me deram a vontade de
Foto: Caroline Lima
mudar o mundo.
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Agradecimentos Agradeço aos meus irmãos, Thiago e Luiza, que pela diferença de idade também me criaram e sem nenhuma inveja, me proporcionaram uma vida com muito mais regalias do que a que os próprios tiveram. Ao meu cunhado, Antônio, por sempre me receber com um sorriso, independentemente da situação. Ao jovem e querido Luca, meu sobrinho, que há dois anos vem iluminando com sua graça o ambiente da nossa família. Não poderia deixar de agradecer à minha namorada, Carol, por seu companheirismo e carinho inabaláveis, me ajudando nos momentos mais difíceis desta empreitada e da vida. Gostaria de agradecer a todos que fizeram deste livro uma possibilidade real. Ao meu primo, Caio Beltrão, que com o prazo apertado, fez mágica na edição e no projeto gráfico. Aos meus amigos e companheiros do Hermanos, aos meus entrevistados do Pinheiros e do Autônomos, e a todos que me receberam tão bem no Inajar de Souza. Além deles, à Unesp, representada em todos os professores que me deram aula, principalmente ao Professor Zeca Marques, meu orientador neste projeto, e aos Professores Juarez Xavier e Claudio Bertolli, membros da banca examinadora que muito me ajudaram com suas correções e conselhos. E também à todos os demais que despertaram em mim um desejo em ser jornalista que eu mesmo não conhecia quando me mudei para Bauru. Falando em Bauru, como não agradecer aos amigos que fiz aqui, aquela família que de fato a gente escolhe para se apegar nos momentos
Foto: Caroline Lima
mais complicados. Desde a “rapaziada” da República Muleke Solto, pelo complicado convívio diário, mas que me garantiu um aprendizado além do comum. Até as “bens”, que me cobrando diariamente uma dedicação ao curso me fizeram um “jornalista” melhor. 9
Futebol Futebol se joga no estádio? Futebol se joga na praia, futebol se joga na rua, futebol se joga na alma. A bola é a mesma: forma sacra para craques e pernas de pau. Mesma a volúpia de chutar na delirante copa-mundo ou no árido espaço do morro. São voos de estátuas súbitas, desenhos feéricos, bailados de pés e troncos entrançados. Instantes lúdicos: flutua o jogador, gravado no ar — afinal, o corpo triunfante
Foto: Caroline Lima
da triste lei da gravidade.
Carlos Drummond de Andrade In Poesia errante
11
INTRODUÇÃO O que é tudo isso que eu vou falar?
15
CAPÍTULO 1 Quem faz acontecer e onde acontece?
25
CAPÍTULO 2 Homem do lado de fora das quatro linhas
51
CAPÍTULO 3 O jogador
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CONCLUSÃO Prorrogação 105
Foto: Caroline Lima
Fotografias 111
12
13
INTRODUÇÃO O que é tudo isso que eu vou falar?
15
“O futebol pode ser visto, analisado, admirado e imaginado de diferentes maneiras. Essa multiplicidade de olhares, a beleza do jogo e a presença marcante
mais diferentes classes sociais, mas predominantemente pobres, jogavam o seu futuro e, portanto, aquilo não era brincadeira.
e frequente do imponderável fazem do futebol o esporte mais popular, mais emocionante e mais surpreendente do mundo.
A Copa do Mundo da FIFA é um dos maiores eventos esportivos do mundo, sendo comparável às Olimpíadas. Segundo o Ministério do Turismo 2,
Pode ser visto como um jogo de habilidade, de criatividade e de fantasia;
em 2014, a final da Copa realizada no Brasil foi assistida por aproximadamente
um jogo técnico, científico, pragmático e planejado; uma disputa corporal e de
3,6 bilhões de pessoas em todo o planeta, enquanto quatro bilhões de
força física; um balé; uma metáfora da vida, com seus dramas, dualidades e
pessoas teriam assistido à cerimônia de abertura das Olimpíadas de
emoções; um grande negócio (cada vez mais); um entretenimento; uma catarse
Londres 3, em 2012. Apesar de inferior ao dos Jogos Olímpicos, o número da
para os torcedores; uma manifestação cultural, política e sociológica; de todas
Copa é muito expressivo. Temos que considerar que neste caso apenas um
essas formas e de outras que se possa imaginar” 1.
esporte é praticado, em disputa que envolve 32 países, enquanto que nas Olimpíadas de Londres estiveram em disputa 29 modalidades de 26 diferentes
No seu texto “Futebol, metáfora da vida”, retirado do livro, “Agenda brasileira”, Tostão, ex-jogador profissional de futebol, campeão do mundo com
esportes, envolvendo a participação de 191 países e treze territórios, segundo o Comitê Olímpico Internacional (COI).
a seleção brasileira em 1970, descreve o futebol da maneira mais simples para quem acompanha e é apaixonado pelo esporte. A miscelânea de possibilidades
Se correta e mencionada estimativa, metade da população mundial
criada pelo autor é capaz de, em dois parágrafos, mostrar muitas das facetas
esteve ligada no jogo final da Copa. Além dessa grande popularidade enquanto
que o futebol assume todas as vezes que é praticado. O texto está embasado
espetáculo esportivo, o futebol é certamente um dos esportes mais praticados
naquilo que o futebol profissional causa nos jogadores e torcedores, até
no mundo, e talvez o mais praticado de todos. Somente no Brasil, segundo
porque este é o ambiente no qual o autor esteve inserido durante boa parte
o Atlas do Esporte no Brasil 4, são mais de 30 milhões de praticantes entre
de sua vida.
profissionais e atletas de fim de semana.
Eu não virei jogador profissional de futebol. Desisti do sonho ainda pré-
Nem o COI nem a FIFA fizeram ainda um levantamento que considere, em
adolescente, quando tive a oportunidade de fazer um teste para entrar na
âmbito mundial, os números relativos aos atletas não profissionais, inexistindo
categoria de base do Esporte Clube Santo André. Não passei, muito por não
estatística que precise o número de praticantes do futebol no planeta. Já no
jogar tão bem quanto os outros garotos que estavam ali, mas também porque
plano profissional, consideradas as 207 confederações associadas à FIFA
eu não gostei de jogar futebol naquele lugar. Com o passar dos anos, pude
(número que supera o da Organização das Nações Unidas (ONU), hoje com
perceber que a realidade de uma categoria de base era muito diferente daquilo que eu compreendia como futebol. Até tentar entrar em um time profissional eu jogava futebol pelo prazer que ele me proporcionava. Os poucos dias de prática entre aqueles garotos me fizeram conhecer o lado mais competitivo do esporte. Eu queria me divertir, mas ali isso não seria possível. Garotos das
1. ANDRADE, Eduardo Gonçalves (Tostão). In: BOTELHO, André; SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). Agenda brasileira: temas de uma sociedade em mudança. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 214-223.
16
2. Disponível em: <http://www.turismo.gov.br/turismo/home.html>. Acesso em: 10 abr. 2015 3. Disponível em: <http://www.olympic.org/>. Acesso em: 10 abr. 2015 4. De acordo com o texto de apresentação, o Atlas "é a maior base de dados de acesso gratuito em língua portuguesa, com resumos em inglês, abrangendo a Educação Física, esportes e atividades físicas de saúde, lazer e turismo. Os dados são produzidos como serviço à comunidade, sem remuneração, por autores voluntários, por iniciativa do Conselho Federal de Educação Física e Conselhos Regionais de Educação Física". Disponível em: <http://www.atlasesportebrasil.org.br/ home.php>. Acesso em: 10 abr. 2015.
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193 estados-membros 5), existem hoje 265 milhões de jogadores de futebol no
que só passaria jogando futebol e reparei que este esporte é também uma
mundo .
representação da sociedade na qual ele está inserido.
6
A grandeza do futebol está retratada nestes números. Eles dão conta de
Hilário Franco Júnior, em sua obra “A dança dos Deuses: futebol, sociedade,
uma realidade profissional do esporte. Através deles temos uma noção de como
cultura” (2008), defende que o futebol é o meio de maior expressão cultural
essa realidade é importante mundialmente. Porém, quando me dei conta de que
da sociedade moderna. O faz demonstrando que ele é uma representação
não me tornaria um jogador de futebol profissional, busquei outras formas de
da vida das pessoas no seu cotidiano e que é capaz de assumir diferentes
estar próximo ao esporte. Além de continuar acompanhando os mais diversos
personificações no imaginário do jogador e principalmente no do torcedor.
campeonatos do esporte no mundo, eu conheci uma outra realidade. Já havia
Para o autor, o futebol representa a sociedade em diversas dimensões e pode
escutado em muitos lugares histórias sobre a várzea, sobretudo observando
ser considerado metáfora da mesma, desde um ponto de vista antropológico
a conversa dos adultos, que insistiam em dizer que este tipo de futebol havia
até o da sua linguagem. A pesquisa é baseada no futebol profissional, dando um
morrido. Com quinze anos, fui convidado para jogar no Hermanos de Pelé, o
grande destaque para o torcedor. No caso do Brasil, e expandindo a obra de
time de um primo de um colega de sala. Aquele dia eles não tinham um número
Franco Júnior, não é nenhum exagero considerar que os torcedores dos times
suficiente de jogadores para um amistoso e precisariam de alguns reservas.
profissionais são os atletas dos finais de semana que conheci.
Até então, eu tinha treinado apenas no Clube Atlético São Paulo (SPAC),
Outro pesquisador que trabalha a questão do futebol, mas que se
um clube da elite paulistana que eu conheci por intermédio de outro amigo.
preocupa em demonstrar como a relação do brasileiro com o esporte acabou
Ele era sócio e havia me convidado para jogar, acabei gostando do ambiente e
delimitando e consolidando a identidade nacional, é José Miguel Wisnik. Em
fiquei jogando como militante pelo clube por três anos 7. A proposta para jogar
“Veneno Remédio: o futebol e o Brasil” (2008), ele explicita como o futebol no
no Hermanos veio justamente quando eu não podia mais jogar no SPAC, pois
Brasil assume características viscerais. O título do ensaio é bastante elucidativo
no ano anterior eles haviam acabado com a política de militantes. O jogo com
sobre esta questão: o futebol é veneno e remédio, a oscilação imaginária entre
o Hermanos foi realizado em um campo de terra batida às margens da Avenida
o sucesso e o fracasso. Ele é capaz de mudar a atitude humana da “água pro
Salim Farah Maluf, grande avenida na zona leste de São Paulo. Como ela foi
vinho”, um local que permite a brincadeira e a ação “irresponsável” de um drible,
construída sobre o Córrego do Tatuapé e o campo estava à sua margem, este
mesmo movimentando uma grande quantidade de dinheiro. Elementos ainda
foi o meu primeiro contato com o futebol realmente jogado na várzea de um rio.
mais explícitos depois de uma Copa do Mundo, que realizada no Brasil, colocou mais dúvidas na história do futebol do país: qual foi o maior fracasso nacional,
Alguns anos se passaram e eu continuei jogando no Hermanos, foram
a copa de 1950 ou a de 2014? Depois de tantos títulos, mesmo ainda sendo a
diversas visitas aos mais distantes cantos de São Paulo. Acabei percebendo
única seleção pentacampeã mundial, ainda somos o país do futebol? Na visão
que, por algum motivo, muitas pessoas continuam jogando futebol, mesmo
de Wisnik isso fica evidente quando explicita: “Nele se joga um outro jogo surdo
sem a expectativa de se tornarem profissionais. Passei por muitas situações
em que está cifrado, sem ser representado, o destino da vida social” 8.
5. Disponível em: <http://www.onu.org.br/>. Acesso em: 10 abr. 2015
18
O futebol profissional é o objeto de estudo dos dois pesquisadores; eu
6. Disponível em: <http://www.fifa.com/mm/document/fifafacts/bcoffsurv/emaga_9384_10704. pdf>. Acesso em: 10 abr. 2015.
vou me prender à realidade que conheço. A intenção é demonstrar, através
7. Política na qual atletas não sócios são convidados para participar dos times do clube. O acesso dos jogadores às dependências do clube fica restrito ao seu horário de treino. Em geral, os militantes podem apenas treinar sem pagar as mensalidades do clube.
8. WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 55.
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desta grande reportagem, que será divulgada em formato de livro, o que é o
participar daquele jogo. Para eles aquilo faz muito sentido, o futebol amador
futebol amador jogado na cidade de São Paulo. Durante o texto, utilizarei o
é uma prática relevante no seu cotidiano, o que o legitima.
termo “futebol amador” para designar o futebol praticado na cidade de São Paulo, por pessoas que não jogam a modalidade profissional do mesmo, ou que
De tantos campos que conheci acabei percebendo a presença de três
não querem mais se tornar profissionais. Desta maneira, não usarei a palavra
tipos de futebol amador na cidade. Dois estão ligados historicamente à chegada
“amador” como simples antônimo de “profissional”, uma vez que as categorias
do futebol no Brasil. No final do século XIX, quando os ingleses trouxerem o
de base de times profissionais, segundo esta lógica, também seriam amadoras.
futebol para cá, ele era considerado um esporte para elite. Ele seria como a expressão da pretensa superioridade da raça branca sobre as demais raças.
Para designar o mesmo tipo de futebol eu poderia ter escolhido outros
Portanto, jogar futebol com pobres e pretos seria descaracterizar o esporte.
dois termos: futebol não profissional e futebol não oficial. O termo “futebol
Alguns clubes, fundados pelas elites paulistanas surgiram na mesma época,
não profissional” não cabe pois esbarra na questão das categorias de base.
como são os casos do SPAC, fundado em 1888, e do Esporte Clube Pinheiros,
A princípio aqueles garotos ainda não são profissionais por não terem os
no ano de 1900. Hoje, ambos os clubes têm ótimos campos de futebol, porém,
seus contratos de jogadores de futebol assinados. Porém, a vida que levam
para poder jogar nesses lugares é preciso ser da elite econômica. Além do
já é muito parecida com a dos jogadores profissionais. Mesmo sem a vivência
valor mensal que todo sócio paga para o clube, algo que gira em torno de cem
luxuosa proporcionada pelos grandes salários e pela exposição na mídia,
a duzentos reais por pessoa, é preciso comprar o título de sócio do clube. O
aqueles garotos já treinam em dois períodos, recebem ajudas de custo por
Pinheiros não tem mais títulos à venda, e para poder se associar uma pessoa
jogar nos times, tem cobrança por resultados, devem cuidar da sua saúde para
deve comprar o título de outro sócio, o que encarece a negociação, fazendo
estarem em forma na hora dos jogos, tal qual os jogadores famosos, o que faz
com que um título familiar custe algo em torno de trinta mil reais, segundo seus
com que a vida deles esteja muito mais próxima dos jogadores profissionais do
próprios sócios. O SPAC ainda tem títulos disponíveis, porém, é preciso que
que dos jogadores de final de semana.
qualquer pessoa que queira se candidatar passe pela aprovação da diretoria. Para isso, é necessário que outros dois sócios indiquem o nome deste possível
O outro termo, “futebol não oficial”, implica no fato de quem organiza os campeonatos. A Federação Paulista de Futebol (FPF), a entidade que
novo associado para os diretores. Além disso, também é preciso comprar o título por um valor não especificado no estatuto 9.
regulamenta a prática do esporte no Estado de São Paulo, não organiza nenhum campeonato que não seja disputado pelos times profissionais.
Outro futebol que pude reconhecer em São Paulo é o que surgiu em
Porém, dizer que o futebol estudado aqui é o “não oficial” é também dizer que
resposta ao futebol praticado pelas elites. Quando chegou ao Brasil, o esporte
ele é ilegítimo, secundário ou não divulgado. Como tive a oportunidade de
chamou a atenção da população pobre, que sem nenhum acesso a outros
conhecer os times e alguns lugares nos quais é praticado, digo por experiência
meios de lazer encontrou no futebol uma maneira fácil e barata de se divertir
própria que ele não pode ser tratado como ilegítimo, secundário ou não
coletivamente. Improvisando campos e bolas a população moradora dos
divulgado. Os jogadores do futebol amador dão muita importância para o
bairros mais pobres da cidade começou a criar seus próprios times e seus
jogo, mais importância do que eles dão para os jogos dos times profissionais
campeonatos. O futebol jogado pelos mais pobres, nos campos improvisados
para os quais torcem, fazendo com que essa prática não seja secundária;
nas várzeas dos rios, ainda existe. Não foram poucas as vezes que me deparei
ela é praticada de maneira explicita, e é até divulgada em pequena escala,
com times com décadas de história na várzea de São Paulo. Hoje, dada a condição
descaracterizando uma possível prática sem divulgação; além disso, os jogadores não estão infringindo nenhuma lei e ainda justificam o porquê de 20
9. Disponível em: http://spac.org.br/. Acesso em: 10/04/2015
21
de vida da população, são bem estruturados, têm estatuto e patrocinadores, e
Dessa maneira, a busca será justamente para compreender, através de
através do apoio dos comerciantes locais conseguem pagar seus jogadores. O
uma nova perspectiva, uma realidade na qual estou inserido. Mesmo tendo um
“bicho” é uma quantia em dinheiro que os diretores e técnicos desses times da
novo posicionamento, me colocando como pesquisador para estudá-lo, ainda
tradicional várzea paulistana pagam para os seus jogadores, é uma espécie de
serei jogador do futebol amador da cidade de São Paulo, e isso certamente
salário pago por partida. Em geral, o valor não é elevado, mas é um incentivo e
norteou a pesquisa. Talvez, as respostas que os meus entrevistados me
uma ajuda para qualquer jogador saber que vai ser pago.
deram sejam justamente as respostas que eu não encontrei para justificar o porquê eu ainda jogo futebol, sendo que já não tenho mais a possibilidade de
O terceiro tipo de futebol é mais complicado de caracterizar. Enquanto os outros dois tipos têm a sua relevância histórica, este é um novo tipo de
viver do esporte. E aí, talvez eu cumpra um pouco do objetivo de todos nós, de descobrir a si mesmo.
futebol amador praticado na cidade. Ele vai criando a sua identidade ao mesmo tempo que é jogado. Formado basicamente pela população de renda média que cresceu bastante no Brasil nas últimas décadas, os times ainda não apresentam estatutos e corpo diretivo bem estruturados como os times dos outros dois “futebóis”. Por um lado, não é preciso se associar a nenhum clube para jogar, mas por outro, ninguém recebe o “bicho”, fazendo com que esse futebol crie um novo ambiente para a prática esportiva na cidade. Estes três tipos de futebol que encontrei na cidade de São Paulo não significa que não existam outros tipos. Na verdade, em uma cidade de quase doze milhões de habitantes é provável que existam outros tipos de futebol. Porém, para que o estudo seja coerente, precisei delimitar um objeto sobre o qual irei me debruçar, essa foi a definição que me pareceu mais simples e democrática, no sentido de abranger o maior número de times e gerar uma definição fácil de ser compreendida durante o texto. Considerado este objeto, o objetivo será o de tentar compreender e elencar as semelhanças e diferenças entre os três tipos de futebol com os quais eu entrei em contato nos jogos que fiz com a camisa do Hermanos de Pelé. Afinal, em poucas oportunidades joguei contra o SPAC e em algumas outras enfrentei times tradicionais como o Baruel, que já tem mais de oitenta anos de várzea paulistana. O meio para o qual procurarei compreender as diferenças e semelhanças destes três tipos de futebol, será acompanhar pelo menos um time de cada um dos futebóis descritos. Tentarei entender principalmente a maneira como se dão as relações entre os jogadores, os técnicos e as pessoas responsáveis por organizar as partidas e campeonatos em cada uma das realidades. 22
23
CAPĂ?TULO 1 Quem faz acontecer e onde acontece?
25
Segundo o já mencionado Atlas do Esporte no Brasil, o futebol é o esporte mais praticado no Brasil. São mais de 30 milhões de praticantes
futebol, seja aos finais de semana ou nas noites durante os dias de semana,
, entre
criando assim um contraturno do emprego que mais se assemelha com um
profissionais e jogadores que se encontram aos finais de semana. Pensando
turno dobrado. Afinal, engana-se quem pensa que para essas pessoas esse
apenas nas agremiações profissionais, são aproximadamente 700 clubes, com
jogo é apenas uma maneira de lazer.
10
algo em torno de 20 mil jogadores registrados, segundo o site do movimento Bom Senso F.C 11. São números expressivos, mas que não retratam a grandeza
É na maior cidade do país, onde a vida é corrida e o tempo escasso,
do futebol no país. Afinal, a parcela esmagadora é de jogadores e times que de
que o futebol amador se desenhou de pelo menos três maneiras diferentes.
alguma maneira existem não pela busca da fama e da fortuna que alguns dos
O primeiro, que existe há mais tempo, é o jogado nos clubes sociais da elite
clubes e jogadores profissionais têm, mas por motivos próprios.
paulistana, e remete à chegada do esporte no país, quando fora importado da Inglaterra e deveria ser praticado apenas pela elite econômica da cidade, por
Além de todo o aparente profissionalismo, o futebol no Brasil está
se tratar de um esporte de “gentlemen”. No final do século XIX jornais ingleses
presente em todos os lugares; depois de tanto andar pelos campos de futebol
já deixavam claro quem deveria praticar o esporte: “De toda forma, é inegável
da cidade de São Paulo posso falar que os campos de futebol podem estar
que o futebol moderno visava forjar elites aptas a governar. Em 1864, o jornal
presentes nas mais diversas localidades, desde mosteiros religiosos até
londrino The Field definia-o como a preparação para futuros governantes. O
penitenciárias. Ele é personagem de diversos estudos, é parte importante da
futebol moderno nasceu como instrumento do darwinismo social” 12
cultura, da política e da arte nacionais. Para alguns o futebol é arte, para outros é religião, para o professor de literatura da USP (Universidade de São Paulo),
Esta modalidade tem as suas particularidades: é praticada apenas dentro
José Miguel Wisnik, no Brasil, ele é, ao mesmo tempo, veneno e remédio da
dos clubes pelos seus sócios. Os atletas-sócios jogam apenas entre si, ou
cultura e sociedade brasileira. Na sua visão, ele é capaz de retirar e representar
entre dois clubes do mesmo extrato social, não havendo uma grande troca
tudo aquilo de bom e ruim que nela existe. Ao mesmo tempo em que exprime
cultural dentro do jogo. Outro aspecto marcante deste tipo de futebol é que o
as melhores qualidades, também explicita os maiores defeitos.
jogador, sendo obrigatoriamente sócio do clube, deve conseguir arcar com as caras mensalidades cobradas, inserindo-se aí uma evidente barreira às classes
É pensando exatamente nisso que este livro se encaminha. O futebol
sociais menos favorecidas.
profissional já ocupa lugar de destaque na sociedade e principalmente na mídia. Mas para muitas pessoas jogar futebol é muito mais prazeroso do que assistir.
O segundo futebol praticado na cidade de São Paulo remete aos tradicionais campeonatos de várzea. Ao mesmo tempo em que o futebol
O futebol amador de São Paulo, cidade que recebeu o primeiro jogo
chegou ao país e logo se instaurou nos clubes de elite, ele despertou o
competitivo do país entre funcionários das empresas ferroviárias inglesas, em
interesse das classes desprivilegiadas. Sem a estrutura e sem o dinheiro
1895, e também o primeiro campeonato, em 1902, segundo o levantamento
necessário para construir os seus próprios campos nos bairros pobres, a
do historiador Hilário Franco Júnior, na sua obra “Dança dos Deuses: futebol,
população se aproveitava das épocas de estiagem na cidade e jogava futebol
sociedade, cultura”, é o ambiente escolhido como cenário para conhecer
na beira dos rios, um local plano o suficiente para servir como campo de
melhor os motivos que levam diversas pessoas a se tornarem jogadoras de
futebol improvisado, esta área que seca na beirada dos rios quando não chove e que alaga nas chuvas é chamada de várzea.. Por ser praticado nesse tipo de
10. Disponível em: <http://www.atlasesportebrasil.org.br/> Acesso em 26 abr. 2015 11. Disponível em: <www.bomsensofc.org>. Acesso em: 26 abr. 2015
26
12. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 27.
27
local é que o futebol acabou recebendo o nome de futebol de várzea. Com a
assemelham-se também aos clubes de elite, onde os sócios-jogadores têm
expansão geográfica e a urbanização da cidade, tanto os campos quanto os
que pagar a mensalidade do clube para poder jogar.
rios foram perdendo os seus lugares, os córregos passaram a ser canalizados para dar mais espaço para prédios e avenidas, e, portanto, a várzea do rio
Mesmo, ainda que sem tantas características próprias que a diferencie
acabou. Porém, a cultura dos times e do futebol de várzea se manteve; nas
das demais, esta maneira de jogar futebol tem que ser levada em consideração
periferias da cidade existem times com muitas décadas de idade, com corpo
na pesquisa por dois motivos principais. Primeiro, porque vem crescendo e se
diretivo estruturado, sede, campo e estatutos que são respeitados.
desenvolvendo com o tempo, como exemplifica o crescimento dos números de quadras e campos de futebol para locação na cidade. Segundo, pelo fato
Nos bairros mais pobres, as agremiações de futebol amador bem
de que hoje já há um número grande de praticantes assíduos. Por exemplo, o
estruturados conseguem manter uma relação muito próxima com a sua
Jogos da Cidade, torneio realizado anualmente pela Prefeitura de São Paulo e
comunidade, e através de patrocínios dos comerciantes locais montam equipes
que não cobra inscrição, tem a primeira fase dividida entre as subprefeituras, os
fortes com os mais diferentes tipos de jogadores. Se por um lado existe um
clubes se inscrevem conforme o local da sua sede e disputam o campeonato
futebol em que se paga para jogar, na “várzea paulistana” do século XXI muitos
pela subprefeitura responsável. No ano de 2014, a subprefeitura da Sé, bairro
atletas recebem para participar destes times. O “bicho”, espécie de cachê
central, que tem poucos campos de futebol públicos e que abrange diversos
pago ao jogador no final de cada partida, é enxergado como um bônus pelos
bairros menores de classe média, teve a inscrição de 30 equipes, um número
jogadores, uma renda extra para ajudar em casa. Tanto que muitos dos que
grande de participantes. Com o Hermanos de Pelé, time que se enquadra
jogam na várzea tiveram passagem pelo futebol profissional, ou participaram
muito bem neste novo tipo de futebol, joguei este campeonato. De fato, os
das categorias de base de times profissionais de futebol e não conseguiram
nossos adversários eram times que aparentavam serem muito semelhantes
manter as suas carreiras.
ao Hermanos. Não tínhamos torcida organizada, nem nossos adversários. Os jogadores destes times, como nós, vinham de classes econômicas com poder
O outro tipo de futebol amador que pudemos encontrar na cidade de São Paulo é mais novo e transita entre os dois tipos de futebol historicamente
aquisitivo médio. E mesmo sem ter o incentivo de um cachê no final do jogo, todos se entregavam como se aquele fosse o último jogo da vida.
consagrados na cidade. Times mais novos, com alguns poucos anos de vida jogam entre si em um esquema que depende de uma organização estruturada
Com o desenvolvimento da cidade e com o crescimento da especulação
na boa vontade dos próprios jogadores. Estas equipes surgem quase sempre
imobiliária, dificultou-se a criação e a manutenção de campos públicos. Hoje,
na reunião de amigos que gostam de jogar futebol e que por diversos motivos
são muito comuns e bastante disputados os campeonatos realizados entre
não conseguem mais praticá-lo em outros espaços mas não querem parar de
estes times em campos reservados ou alugados com antecedência pelos
fazê-lo. Exatamente como aconteceu comigo. Sem a estrutura de um clube de
organizadores do evento. Ou seja, apesar de ainda caminhar entre dois tipos
elite, estes times ocupam os campos públicos da cidade, marcando amistosos
de futebol que são praticados há décadas na cidade, este tipo de futebol
e campeonatos entre si, assemelhando-se neste aspecto ao futebol jogado
chega criando um novo espaço no cenário do futebol amador de São Paulo,
nas periferias da cidade. Por outro lado, muitas vezes têm que pagar pela
mostrando que seus jogadores também são responsáveis por mantê-lo vivo.
arbitragem de um jogo, ou para se inscrever em um campeonato, por exemplo, fazendo com que este gasto seja dividido por todos os jogadores do time. A
A chegada aos locais nos quais se realizam os três tipos de futebol
partir do momento que eles têm um gasto, na contratação da arbitragem ou
já é suficiente para compreendermos completamente que são ambientes
na inscrição em um campeonato, sem ter rendimento proveniente do futebol, 28
29
diferentes e, portanto, são práticas do futebol com singularidades e
ginásios simultaneamente. O campo de futebol era lindo, todo gramado, com
representações únicas.
placar eletrônico, arquibancada em uma das laterais e vestiários posicionados tradicionalmente embaixo dessas estruturas, tudo muito limpo e organizado.
O Esporte Clube Pinheiros (ECP), clube tradicional da elite paulistana, tem na sua história a participação nos primeiros jogos realizados na cidade.
Com muita sinceridade, Evandro me revelava coisas que fugiam do
Foi fundado por imigrantes alemães e tinha o nome de Sport Club Germânia,
padrão de respostas que eu supunha. Formado em Educação Física e tendo
quando foi obrigado pelo governo a mudar de nome para Esporte Clube
jogado futebol boa parte da vida ele me explicou que, apesar da aparência
Pinheiros para se distanciar da ditadura nazista durante a Segunda Guerra
profissional, o futebol no clube está entre os esportes recreativos. Boa parte
Mundial. Hoje em dia, com 115 anos de história, o ECP se vangloria de ser o
daquilo que eu vi faz parte dos que eles chamam de esportes competitivos,
maior clube poliesportivo da América Latina, contando com 38 mil sócios, dos
como a ginástica e o handebol que treinavam no momento em que cheguei.
quais 20 mil praticam modalidades esportivas frequentemente.
Mesmo sendo tratado como um esporte recreativo pelo clube, aquela era, de fato, a estrutura do futebol.
Fui recebido na portaria, no dia 3 de fevereiro de 2015, por volta das 20 horas, e meu nome já havia sido liberado previamente pelo técnico do time
“O futebol está em outra área do Clube. Aqui temos esportes competitivos
adulto do Pinheiros, Evandro. Mesmo assim, foi necessário que eu apresentasse
e esportes recreativos. Futebol está no recreativo. Então futebol é só para
um documento e só aí pude entrar. Ao passar o alto muro que cerca todo o
sócio, futebol não aceita militante 13, futebol não disputa federação (...) disputa
clube já reparei que a organização e segurança eram assuntos imprescindíveis
os campeonatos interclubes de todas as categorias” – contou Evandro.
no local: todos os seguranças trajando ternos pretos e sisudos, os funcionários da limpeza com o uniforme de trabalho do clube. Uma dúvida surgiu naquele
Essa dicotomia dada pelos termos esporte recreativo e esporte
momento que só foi resolvida quando voltei para casa após longa conversa
competitivo mostra como é diferente, ao menos para quem organiza o esporte
com o técnico, “eu estaria entrando pela portaria dos funcionários?”. Quando
no clube, a relação do Pinheiros com o futebol. Exemplo disso é que outras
fui embora e passei na frente da luxuosa entrada dos sócios reparei que sim.
modalidades tão conhecidas como o futebol são “competitivas”, já que o ECP disputa as principais ligas nacionais no handebol, no basquete e no vôlei, tanto
A norma, que pode não parecer nada senão uma medida de segurança,
no masculino como no feminino.
diz muito mais das pessoas que organizam o espaço do clube do que podemos imaginar. As casas e apartamentos que têm duas entradas remetem a um
A opção por manter o futebol no clube ainda de maneira amadora
costume que vem da escravidão no Brasil: a porta de entrada da cozinha
é bastante explícita; ela parte da diretoria, mas é legitimada pela maioria
para os escravos e a porta de entrada da sala para os senhores e suas visitas.
dos jogadores. Para os sócios, o campeonato mais importante é o realizado
Como naquela situação eu era convidado de um funcionário, logo entraria pela
internamente, apenas entre os associados do Pinheiros. Até mesmo o torneio
entrada de funcionários – quando ainda garoto, ao acompanhar um amigo
interclubes, no qual jogam apenas os times de clubes sociais, gerou polêmica
sócio uma tarde no mesmo ECP, entrei pela porta de sócios.
na diretoria de futebol, fazendo com que, nos últimos anos, um novo torneio
Ao encontrar com o Evandro, na sala de reuniões do departamento de futebol do clube, já pude perceber que ali o esporte era uma coisa muito bem tratada, pois os treinos de modalidades diferentes aconteciam em quadras e 30
13. Política na qual atletas não sócios são convidados para participar dos times do Esporte Clube Pinheiros, muito comum em diversos clubes de elite. O acesso dos jogadores às dependências do clube fica restrito ao seu horário de treino. No Pinheiros, como muitos esportes têm categorias profissionais, vários militantes recebem bolsas, na intenção de criar futuros profissionais. Em geral, os militantes podem apenas treinar sem pagar as mensalidades do clube, mas não recebem para isso.
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interclubes fosse organizado. No início do campeonato, qualquer time com
a respeito, mas me lembro muito bem dele dizendo que os sócios mais velhos
clube social poderia participar, porém o desnível técnico e físico entre os times
estavam “enchendo o saco”. Segundo o meu colega, eles alegavam que os
era muito grande. Clubes profissionais de futebol como o Corinthians, ou que
militantes estavam gerando muitos problemas, perturbando os demais sócios.
encaram o esporte de maneira competitiva e não recreativa, tinham times bem
O que me soava estranho, uma vez que eu só tinha acesso ao clube nos horários
treinados. Através da política de militantes, na qual jogadores são convidados
de treinos e jogos.
a participar dos times, com acesso ao clube nos horários de treinos e jogos sem ter que pagar para se associar, conseguiam montar times mais fortes do
A ideia de ter um militante no time de futebol contrasta com os demais
ponto de vista físico e técnico, criando times semiprofissionais. A disputa, na
esportes proporcionados pelo clube. Nas outras modalidades os militantes
visão da diretoria do ECP e dos demais clubes que não aceitavam militantes,
são aceitos, e quando se tornam profissionais eles viram funcionários do clube,
tornou-se injusta.
explicitando a profissionalização do esporte. O que diferencia tudo isso é o fato de que os outros esportes no clube geram renda e uma imagem positiva
“Para mim, como técnico, é complicado montar o time todo jogo, todos
para os demais associados. Ser sócio ou funcionário do Pinheiros, para todos
trabalham e têm compromissos familiares. O time raramente se repete e eu
que encontrei nas visitas, era um orgulho. As camisas do clube, as bandeiras e
sempre tenho que me virar, dependendo do jogo eu tenho 13 jogadores, em
os adesivos nos carros deixam isso bastante claro. Porém, quanto mais velhos
outros eu tenho 20. Quando chegava o Corinthians, no dia de semana, com
vão ficando, os sócios passam a dar mais valor para seus projetos pessoais, e
preparador físico e pelo menos vinte caras para jogar, a gente sabia que seria
assim se interessam menos pela prática esportiva, principalmente em esportes
difícil. Tecnicamente a gente se iguala, mas no físico eles ganham e fica ainda
diferentes do futebol, que demandam uma preparação profissional no clube.
mais complicado pelo fato de eles treinarem” – explicou Evandro. Na intenção de fortalecer a imagem de clube vencedor, a diretoria A saída para esses clubes foi romper com os organizadores desse
mantém suas equipes competindo nos melhores campeonatos profissionais.
campeonato, fundar uma liga entre os clubes de elite paulistanos e iniciar
Os militantes e atletas profissionais entram neste flanco, a diretoria abre as
um novo campeonato, no qual nenhum time poderia ter militantes, com
portas do clube para, de certa maneira, levantar receitas e acariciar o ego dos
duras punições para quem tentasse burlar o regulamento. O Campeonato
seus associados.
Interclubes São Paulo hoje conta com 16 times, todos de eles clubes de elite que não aceitam militantes nas suas equipes, reservando o prazer de jogar futebol aos iguais da elite paulistana.
Apesar da identificação clubística existente nas demais modalidades, ela não se retrata no futebol.
Entre eles está o Clube Atlético São Paulo (SPAC), no qual joguei por
“O interno tem um papel mais importante que a seleção, 80% dos
três anos. Quando foi criado o novo campeonato sem militantes, o SPAC
jogadores da seleção priorizam o interno. Eles levam muito a sério. A motivação
estava começando a jogar o Interclubes, o clube havia participado de só um
(para jogar na seleção) os caras têm, porque é legal jogar na seleção, são
campeonato no ano anterior, o qual eu joguei, e pessoalmente não senti tanta
jogadores melhores, um nível técnico melhor, então o pessoal gosta. A seleção
diferença técnica quanto a que o Evandro havia defendido. No ano seguinte
não é para ganhar campeonatos, não existe pressão por resultados, a seleção
eu, meio sem saber porque, não pude mais jogar. Recebi a notícia pelo mesmo
é para motivar os jogadores do interno a irem para a seleção, para diminuir um
amigo que tinha me levado para jogar no clube que, a partir daquele momento
pouco da rivalidade do interno, o que é muito bom” - me explicou, Evandro.
o clube não aceitaria mais militantes. Ele, na época, me deu alguma desculpa 32
33
Claro, a fala de Evandro não exprime o ponto de vista dos jogadores e
atrás das pipas, muito contrastavam com aquilo que foi apresentado antes.
integrantes do Esporte Clube Pinheiros, mas ele os conhece e também sabe
Os campos de terra batida, sem nenhuma arquibancada, e cercados por
das dificuldades que passa. Jogar na seleção é um mérito, um reconhecimento,
uma grade repleta de rasgos, explicitam que ali o esporte é outro, a ideia é
mas o que é realmente importante para os sócios é ser campeão do interno.
diferente. O CDM (Clube Desportivo Municipal) Bento Bicudo tem alvará de
Para Evandro, que claramente se importa mais com os jogos da seleção, isso
funcionamento da prefeitura, mas deve ser mantido pela comunidade local,
é mais um fator de complicação. Para ele, os jogadores e os diretores estão
que deve arcar com os gastos de manutenção e reforma do local. A renda
mais preocupados em jogar e proporcionar uma competição interna forte e
para o funcionamento dos dois campos vem da locação do espaço para que
divertida do que ultrapassar os muros do clube e fortalecer ainda mais o seu
diversos times possam jogar ali aos finais de semana e também de um barzinho
nome.
que sempre “hidrata” os jogadores e torcedores do local com a mais gelada cerveja.
Essa característica mostra aquilo que o futebol tem de mais antigo: um esporte praticado entre os similares é mais prazeroso. A revista Sports,
Foi neste bar, de chão batido de cimento, que encontrei Birner, que até
periódico do começo do século XX do Rio de Janeiro, na sua edição de 6 de
então só conhecia pela televisão; sua visão competitiva do esporte não deixa
agosto de 1915, elucida muito bem a situação: “o futebol é um esporte que só
de favorecer o bom futebol. Para ele, o espetáculo criado pela mídia no futebol
pode ser praticado por pessoas da mesma educação e cultivo. (Se formos)
profissional acaba com a paixão dos torcedores, encarece os ingressos, afasta
obrigados a jogar com um operário (…) a prática do esporte torna-se um
os jogadores do público e sepulta a alma do futebol. Jogar profissionalmente
suplício, um sacrifício, mas nunca uma diversão” (Sports, 06/08/1915) . Essa
por uma camisa hoje em dia, na sua visão, é o mesmo que jogar por um cifrão.
característica da prática esportiva no clube de elite se mantém, garante que a
Para ele, o futebol de verdade se realiza ali, nos campos batidos da cidade,
competição entre os iguais é um meio de lazer e diversão, colocando de lado
onde ainda resiste um verdadeiro amor à camisa. A sua identificação com o
o resultado final.
clube é mais do que um relacionamento “profissional”, posto que nunca foi
14
jogador e sempre assumiu que iria apenas comandar e organizar o time; o ideal Vitor Birner, jornalista e técnico de um time de futebol amador de São
anarquista do Autônomos também agrada seu técnico.
Paulo, acredita fielmente no contrário. Na sua visão, o futebol não existe sem a competição. Em encontro realizado no CDM Bento Bicudo, um dos poucos
Entre conversas antes e depois do jogo, o ideal de competitividade,
campos que ainda sobrevivem nas várzeas paulistanas do Rio Tietê, no bairro da
mesmo em um amistoso, ficou explícito. Do campo, ele comandava seus
Lapa, ele revelou que na sua equipe isso sempre foi um ponto muito discutido.
jogadores aos gritos:
O Autônomos F.C., time do qual ele é técnico, foi fundado em 1º de maio de 2006, e defende um futebol autogestionário, com participação integral dos jogadores em todos os âmbitos do esporte, desde a organização dos jogos e campeonatos, até a lavagem dos uniformes.
“Pega, marca. Não juiz, não foi falta!” – entre outros “clássicos” dos homens de pé do lado de fora das quatro linhas. O Autônomos sempre atua como mandante de seus jogos no Bento
O local do encontro já é um choque, se comparado ao luxo do ECP. Os
Bicudo, lugar que eles já chamam de casa, ainda que tenham que alugar
cachorros ladeando as crianças, que corriam descalças entre os carros e
o espaço para jogar. Essa organização sempre vem de fundos diferentes, como algumas festas realizadas na sede, a venda de camisetas do time e, se
14. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.63
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necessário, uma divisão entre todos os participantes, encaixando a equipe em 35
um ambiente característico do novo futebol amador da cidade. Birner conta
jogador do Hermanos revidou uma entrada “criminosa” com uma cotovelada. Se
que esse é um costume comum entre os jogadores, que já visitaram alguns
naquele primeiro jogo eu me deparei com um clima de comunhão, hoje a rivalidade
países para jogar, como por exemplo a Inglaterra e a Argentina. Nos dois casos,
é tanta que a competição descamba com certa facilidade para a violência.
com o apoio do dinheiro conseguido na sede e cobrindo o restante do próprio bolso, fazendo com que quem pudesse mais pagasse mais, para ajudar aqueles com menores condições.
A competição é uma característica completamente ligada ao capitalismo, e o liberalismo defende como um dos seus pilares a livre competição pelos mercados e lucros. A competição no futebol não é uma maneira então de
Organizados por meio de uma autogestão e com ideais anarquistas, o
fortalecer o capitalismo? Birner é categórico nesse assunto: a competição
time principal compreende o futebol que pratica de maneira competitiva. A
vem da defesa de uma ideia, e vencer ali seria como mostrar que o Anarquismo
discussão ainda gera rusgas internas, e o próprio técnico revela que a criação
é possível, que um grupo coeso e capaz de se gerir sem uma estrutura diretiva
de dois quadros foi determinante para que o time se mantivesse unificado; o
formalizada também pode alcançar o sucesso.
primeiro compete visando a vitória, o segundo joga buscando o entretenimento. Muitos dos fundadores estão hoje no segundo quadro, não por deficiência técnica, mas porque acreditam que a vitória durante o jogo não é o que os traz felicidade; no quadro B todos jogam o mesmo tempo, e o resultado não tem tanta relevância.
“Até porque a vitória conseguida em grupo é muito mais prazerosa”, completa. Mas Birner rebate a ideia de que o time seja uma bagunça sem liderança. Para ele a presença de líderes é natural e ajuda o ambiente, mas nenhum líder ali se faz por força. As pessoas aceitam os líderes do grupo naturalmente, seja
A chegada de Birner no time foi determinante para essa mudança. Um
por história no clube ou vocação pessoal. Um aspecto que ele destaca é o
dos primeiros jogos que fiz com o Hermanos de Pelé foi justamente contra
fato de que todos precisam conversar e decidir, os líderes tomam atitude, mas
o Autônomos, num campo que eles alugavam na Avenida Salim Farah Maluf.
sempre escutam os demais jogadores.
O ambiente era quase o mesmo do CDM Bento Bicudo, o campo de terra, pequeno, irregular e sem arquibancadas, era bastante similar. Apesar de ser um amistoso importante, o clima era de comunhão, os dois times tinham muitos conhecidos entre si, eu não conhecia ninguém, mas via que os jogadores mais antigos do time que eu defendia tinham um grau de amizade com os nossos adversários. O jogo foi duro, competitivo, mas leal. Com o passar dos anos essa rivalidade foi aumentando, ninguém gosta de perder, principalmente para alguém conhecido.
Ao organizar os campeonatos, o Autônomos, que promove anualmente a Copa Autonomia, convida na maioria das vezes times que são muito próximos dele próprio no que diz respeito à história. Os times dessa nova modalidade de futebol amador vão ao encontro de adversários com percursos parecidos, todos fundados por grupos de amigos que não tinham inserção no futebol elitizado e nem na várzea tradicional, utilizando um pouco dos dois lados. Esse tipo de futebol amador da cidade de São Paulo conseguiu criar um lugar antes não existente. A taxa de inscrição na Copa Autonomia sempre visa cobrir os
Nos últimos anos, o time do Autônomos mudou muito, os jogadores
custos da arbitragem, aluguel dos campos e compra de troféus. Todos os jogos
mudaram em si, poucos dos fundadores do time que eu encontrei no primeiro
são realizados no mesmo campo. Durante um mês do segundo semestre, o
jogo eu reencontraria hoje em dia. O time é realmente melhor do que em anos
CDM Bento Bicudo abre as portas para oito times competirem e defenderem
anteriores. Naquela primeira partida nós saímos vencedores por quatro a dois,
os seus ideais.
o último jogo entre os dois times, no fim de 2014 não chegou ao apito final, o Autônomos vencia e uma briga generalizada tomou conta do campo quando um 36
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Evento semelhante à Copa Autonomia foi a primeira Copa AE 2002, realizada no Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa, localizado no bairro
uma atitude incoerente, que no fundo não fortalecia em nada o evento ou esporte.
da Vila Clementino, um parque aberto ao público mas pouco conhecido por boa parte da população da cidade. Ele oferece diversas aulas e escolinhas de
Como é o primeiro campeonato organizado pela AE, apenas quatro times
muitos esportes. Criado na década 1980, até hoje tem pistas de atletismo,
participaram da competição, com jogos realizados em noites de terças, quartas
ginásios, piscinas e campos de futebol de ótima qualidade. A prefeitura mantém
ou quintas-feiras, em dois horários diferentes. Todos jogariam contra todos e
e disponibiliza o lugar para o uso de qualquer pessoa, e a entrada é franca, mas
os dois primeiros fariam uma final. A intenção é crescer, e Alex acredita que
nada convidativa. Escondido ao lado do Parque do Ibirapuera, o local é mal
isso será possível. Quando divulgaram o campeonato e estipularam o preço
iluminado, guardando um ar tenebroso. A organização do evento, a Associação
de inscrição a R$1.200,00 por equipe, imaginaram que teriam dificuldade em
Esportiva 2002 (AE 2002), conseguiu reservar os campos com a prefeitura
encontrar times dispostos a pagar tudo isso. Porém, em um dia, já tinham
mediante o pagamento de um aluguel. Como o acesso é irrestrito, aqueles que
preenchido as quatro vagas.
querem reservar uma quadra devem pagar o aluguel de acordo.
A ideia de ser uma associação é que assim eles conseguem uma inserção
Além de proporcionar uma prática esportiva para pessoas que encontram
maior no meio esportivo. Alex comenta que com isso conseguiriam fundos
dificuldade em se organizar para jogar futebol de maneira competitiva, Alex,
públicos e uma maior credibilidade no meio privado, já que para os próximos
presidente da AE, pretende fortalecer o esporte.
campeonatos a intenção é ter patrocínios. A ideia surgiu da própria realidade do grupo: os quatro fundadores da AE são formados na USP, em Educação Física,
“Aqui a gente se preocupa em dar qualidade ao futebol, fazemos questão
e jogaram futebol na faculdade. Quando terminaram a graduação, fundaram
de que tenha uma entrada bem feita, uma arbitragem de qualidade, um campo
um time amador e começaram a jogar amistosos nos campos da cidade. O
bom. A gente até disponibiliza o scout do jogo on-line. Tudo para fortalecer o
problema é que sem os campeonatos o time perdia integrantes e se tornava
esporte” - comenta.
algo esporádico, e jogar apenas amistoso desanimava os organizadoresjogadores. O lado bom foi que conheceram um bom número de times na
De fato, as entradas são bem feitas, e os jogadores seguem o protocolo
mesma condição, e surgiu daí a ideia de organizar o campeonato.
imposto pela organização. Mas também fica claro que poucos deles concordam com aquilo. Eles querem jogar futebol, e ter de entrar, cumprimentar todos
Observando os times que jogaram a final no dia 25 de março de 2015 é
os jogadores parecia como uma perda de tempo, uma atitude descolada da
fácil perceber que este “meio de campo” do futebol amador na cidade de São
realidade daquelas pessoas. Em todos os jogos que eu observei, em qualquer
Paulo está sendo ocupado também por um estrato social intermediário. Todos
um dos tipos de futebol estudado, essa foi a única vez que existiu um protocolo
os jogadores chegaram com os seus carros populares para o jogo, a presença
de entrada em campo. Aquilo está distante da realidade do futebol amador de
de universitários era bastante efetiva, boa parte dos conhecidos dos times
São Paulo e portanto descolado da vida dos jogadores. O protocolo de entrada
eram colegas de sala da escola ou da faculdade e hoje competem lado a lado.
nos jogos da Copa AE 2002, imita o futebol profissional. Naquele ambiente a
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entrada padronizada tem um sentido, serve ao menos, para que a televisão
“Nós jogávamos na faculdade, nos formamos e queríamos continuar
possa mostrar, jogador por jogador, quem está em campo. Fazer isso para um
jogando, essa foi a nossa saída” - relata Alex, enquanto arrumava os troféus
jogo sem transmissão e com uma dezena de torcedores me pareceu forçar
dos vencedores relembrando com saudade a época de faculdade.
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Apesar da saudade, Alex não mostra saudosismo. Ele relembra o
Toda a comunidade se alvoroça no dia de jogo do Índião. O Inajar de
passado com orgulho, mas demonstra que o presente também é gratificante.
Souza, tradicional time da várzea paulistana, sediado em uma rua próxima à Av.
Jogar no XV de Agosto, o segundo colocado da Copa AE 2002 (perdera a
Inajar de Souza, zona norte de São Paulo, ainda movimenta os finais de semana
final para o Hermanos de Pelé), era um prazer, mas ele revela que organizar
da população local. Chegar à sede do clube, local de encontro para a saída
o campeonato também é. Como a Associação é recente, este foi o primeiro
dos jogos, seria mais complicado se não fosse um lugar conhecido por todos.
evento que organizaram. E apesar de aceitarem todo tipo de mudança, de
Abaixar o vidro do carro e perguntar onde é a sede do Inajar é certeza de ser
uma coisa eles têm certeza:
bem tratado e receber a informação correta.
“Vai ser sempre no formato de copa, afinal a FIFA é tão rica e só faz a
“Tá vendo ali, onde tá parado o ônibus da prefeitura? É ali, eles já tão se
Copa do Mundo. Que nem a Copa que começou com oito seleções e hoje tem
arrumando para sair para o jogo” - informou o borracheiro que também ajudou
32, nós queremos crescer, se chegarmos a 12 vamos ficar muito felizes!” –
na localização.
completou, Alex. Logo que chego encontro Marcelo, Presidente do Inajar de Souza. Nosso O formato de sucesso da Copa do Mundo é uma inspiração para os
encontro teria acontecido antes, se não fossem os preparativos para o desfile
organizadores. O protocolo de entrada dos jogadores no campo imita o
de blocos de carnaval da cidade que levou o Inajar, em seu primeiro desfile, ao
protocolo da FIFA, uma atitude completamente descolada da realidade que
terceiro lugar. Entre um comando e outro, entre uma tirada de dúvida de um
está inserida. Esta fala revela que, além de levar campeonatos para um grupo
jogador ou de um integrante da bateria, ele foi me contando onde seria o jogo
de times e jogadores que estavam acostumados aos amistosos de final de
do dia. Um festival, jogo único que vale um troféu, seria realizado na favela da
semana, os organizadores também querem fazer dele um meio para conseguir
Xurupita, também na zona norte da cidade, contra o Só K-Nelas, que receberia
um bônus, um “bicho” ao final do expediente. Percebendo que esse tipo de
o Inajar em sua casa.
futebol está crescendo, e que a maioria dos jogadores tem um poder aquisitivo médio, a AE 2002 faz dos times de uma modalidade de futebol indefinida o seu público consumidor de um produto “elitizado”.
Ao partir para o jogo já conheço dois jogadores, Nilson e Eduardo. Nilsão e Duzinho, como são conhecidos, pertencem a duas gerações diferentes, e ainda dividem o mesmo campo. Duzinho atuou muitos anos pelo Nacional Atlético
O substantivo “várzea”, que na oralidade se tornou adjetivo e sinônimo de
Clube, time profissional do bairro da Lapa; jogou nas categorias de base e
coisa mal feita ou mal acabada, não corresponde em nada ao que encontrei
até disputou a Copa São Paulo de Futebol Jr. de 2008, ano que revelou os
na organização das equipes deste tipo tradicional de futebol. Os cenários
jovens talentos do Santos, Neymar e Paulo Henrique Ganso. Duzinho enfrentou
desenvolvidos nos quadrinhos do Zé Carioca e da Turma da Mônica de um
ambos na copinha e hoje joga no Inajar. Nilsão, por outro lado, é “macaco velho”
campo de várzea realmente correspondem ao cenário real, mesmo sem a
da várzea. Já ganhou três vezes a Copa Kaiser (o mais tradicional e disputado
presença da inocência infantil. A organização nos bairros periféricos se dá em
campeonato de várzea da cidade), por três times diferentes, e revela que a
torno de suas sedes, que funcionam ao mesmo tempo como museu do clube,
várzea já lhe deu muito, que tem como fazer um bom dinheiro ali.
bar, sala de materiais e uniformes, sala de reunião e sala da diretoria. Isso deixa claro que o movimento nascido na beirada dos rios e praticado pelos mais pobres se mantém vivo.
Ao chegar ao campo, percebo como é importante o futebol para aquelas pessoas. O caminho é sinuoso, cheio de subidas e descidas. No vale entre dois morros o campo está soberano. Apenas uma viela bem estreita separa a entrada
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para o bar e o portão do campo; de pé, encostadas na grade lateral, muitas
dos torcedores do Inajar. Estes se emocionavam e interagiam com a partida,
pessoas observam o jogo. As torcidas já estão indo para as suas posições:
enquanto as solitárias espectadoras apenas assistiam ao jogo, sem esboçar
atrás de um dos gols vai a bateria do Índio, na outra lateral e concentrada
grande emoção.
principalmente em cima dos vestiários, a bateria do Só K-Nelas. A outra linha de fundo é “VIP”: apenas dois jovens esperam a bola rolar sentados na grama
Antes de ir para o vestiário, Nilsão me mostrou no seu celular uma foto
do morro, vez ou outra ainda quebram um galho de gandula. Da janela dos
tirada por um drone e conta que foi um campeonato criado entre os times
edifícios que se erguem no morro muitas pessoas observam da sala de casa
próximos e amigos da região há uns poucos anos. Neste campeonato, Marcelo
o campo. Todo de terra e com as balizas e redes do gol já deterioradas pela
ainda joga e o Inajar é desmembrado em vários times pequenos, a final prendia
ação do tempo, o campo é pequeno, mas a terra é boa, plana e resistiu bem
a atenção de algumas centenas de pessoas coladas à grade.
às chuvas dos dias anteriores. As linhas de cal foram pintadas recentemente, para terror dos atacantes e zagueiros que sabem o quanto “rala” cair naquele pó branco. A atividade não poderia ser outra, chegamos e um outro jogo estava acontecendo. A partida começava a dar sinais de confusão, um jogador havia sido expulso, indignado disse que não sairia de campo. Este era um exprofissional que atuou no Atlético Mineiro durante a década de 1990. Por fim, a partida não terminou, não houve uma briga, mas o impasse e a necessidade de que o jogo seguinte começasse fez com que ambos os times voltassem mais
“Isso ai começou como brincadeira, agora é sério. Se não tiver todo ano dá briga” - afirmou Nilsão. “Você vai jogar com a gente esse ano né, Nilsão?” - interfere Tigues, um homem baixo e vestido dos pés à cabeça com as roupas do Inajar. Mais tarde vim a conhecê-lo e descobri que era um dos patrocinadores do time. “Ainda tenho que ver, tá longe” - desconversou.
cedo para casa. Fico conversando um pouco com o Tigues e ele já me oferece uma cerveja. A conversa com Marcelo é retomada quando o ônibus contratado pelos
Nego e recebo outra oferta. Seria feio negar? Eu não sabia como reagir, nunca
diretores do Inajar para levar os atletas e instrumentos da bateria para o local
havia sido tão bem recebido em um ambiente futebolístico antes. Nem mesmo
do jogo chega. O que seria um cenário novo para mim é, para os jogadores,
no ECP, com toda a sua “pompa” e etiqueta eu havia sido tão bem tratado.
torcedores e dirigentes do time um cenário sem graça. Apesar da presença da bateria, de pouco mais de duas dezenas de torcedores e algumas faixas, eles
- “Pode pegar João, aqui você não vai ter que pagar nada”, afirma Duzinho
afirmavam que naquele dia ninguém tinha ido ver o jogo, era o primeiro do ano
ao mesmo tempo em que me oferecia a cerveja novamente. Decidi aceitar, não
e as coisas tardariam a “pegar no tranco”.
quis passar uma impressão de “metido”.
Realmente não tinham os “bandeirões” e os fogos na entrada dos
Mais tarde, conforme fui conversando, também reparei que a presença
jogadores, mas era muito mais do que pude observar nos outros dois tipos
de um “jornalista” ali era incomum e boa parte das pessoas apresentava
de futebol amador da cidade. Dos jogos que acompanhei nos outros tipos de
resistência aos profissionais da área. Cheguei a pensar que talvez a intenção
futebol, apenas o Autônomos tinha uma bandeira. Ela ficava amarrada na grade,
de todos ali fosse me tratar bem, justamente para que eu não falasse mal do
atrás dos jogadores do banco de reservas. Do outro lado do campo, próximo
time. Ideia que eu mesmo neguei na visita seguinte. Eu já estava mais à vontade
ao bar do CDM Bento Bicudo, duas torcedoras assistiam a partida enquanto
com todo aquele ambiente e já conhecia mais algumas pessoas. Mesmo assim,
conversavam e bebiam cerveja, mas apesar de estarem acompanhando o
o ritual de me oferecer a cerveja foi repetido, dessa vez não aceitei.
jogo, o comportamento das duas mulheres era completamente diferente do 42
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A hora do jogo se aproxima e todos vão para o vestiário. Marcelo, sempre
dos jogadores mais lembrados pelos que estão em campo atualmente, e desta
preocupado e zeloso, buscando acertar os mínimos detalhes, chama os seus
maneira ele chegou ao cargo de Presidente como que naturalmente, como
jogadores para se trocarem e passa a escalação. A caminho do banco ele me
quem tem que assumir a responsabilidade de manter uma tradição que tanto
revela que hoje, no primeiro jogo do ano, todo mundo iria jogar, que valia a
lhe proporcionou momentos felizes.
pena saber como todos estavam e que contava muito a responsabilidade e a vontade de jogar no Inajar. Sempre buscam bons jogadores e querem montar times fortes, mas é preciso ter amor à camisa.
Guigo, logo que cheguei, foi-me apresentado como o primeiro imediato do time, um cargo responsável por intermediar a relação da equipe com pessoas que querem conhecer o Inajar. Ele não joga, mas sabe de tudo, entende
O jogo começa, e o que seria apenas um jogo festivo, com direito a fogos
como as coisas se organizam e tem o respeito dos jogadores e da diretoria. Vi,
de artifício quando o time local entra em campo, já dá a entender que não será
com frequência, ele fazer o “meio de campo” entre os jogadores, o técnico e
amistoso. Os times se respeitam, mas querem a vitória. Sem dúvida, vencer na
o patrocinador, Tigues. Sempre que alguém precisava resolver alguma coisa
várzea é uma maneira de mostrar a sua força como grupo, é impor-se. O lema
de última hora o escolhido era ele. A história do Inajar ele sabe “de cor e
de um time local estampado na camiseta de um dos espectadores mostra a
salteado”, e revelou que o Serginho Chulapa - lendário jogador que marcou
relação entre os times: “rivais, todos; inimigos, nenhum”.
sua carreira por ter defendido o São Paulo, o Santos e a Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982 - já vestiu as cores do time. Mas que hoje, para algum
Ao conversar mais com Tigues e Marcelo, vou percebendo que a
jogador virar profissional saído da várzea, é preciso de sorte e muito contato,
intenção é crescer. Com o apoio da Prefeitura eles querem iluminar o seu
pois os empresários dominaram o intermédio entre o jovem jogador e o clube
campo e colocar piso de grama sintética. A intenção é explorar as noites
profissional. Exemplo disso é que a função de olheiro está cada vez mais em
proporcionando uma escolinha de futebol para os garotos do bairro. Por
desuso. São elogiados os clubes que têm um software capaz de transcrever
enquanto, a Prefeitura já garantiu a iluminação, mas fazer o campo de grama
em dados as qualidades dos jogadores, e os scouts são mais valorizados do
sintética é complicado. Segundo Marcelo, a fila é grande e depende de sorteio.
que ver um jogo e analisar como é que os garotos jogam.
Com pouco apoio estatal, os diretores do Inajar se esforçam para conseguir fundos e manter o time vivo e jogando, e o apoio dos comerciantes locais é a
A influência dos empresários é tão grande que todos que observam o
maior fonte de renda de um time que tem gastos costumeiros. Os uniformes
jogo concordam em uma coisa: há muito jogador bom naquele campo, muitos
são lavados e separados antes dos jogos, é preciso contratar um ônibus para
deles poderiam jogar nos campos profissionais do Brasil. Nilsão, no encontro
levar a bateria, seus instrumentos e os jogadores todo final de semana. Além
seguinte, me contou que uma das Copas Kaiser que ganhou foi jogando no Vida
disso, os jogadores recebem o “bicho” combinado todo jogo. Nilsão me revelou
Loka da Vila Brasilândia, e que um pouco antes de chegar ao time o Elias, hoje
que alguns times na várzea gastam até R$3.000,00 por final de semana, mas
volante do Corinthians e da seleção brasileira, era reserva da equipe. Desde
essa não é a realidade dos jogadores e diretores do Inajar.
que a venda de jogadores para o exterior se tornou uma das rendas mais importantes dos clubes, a característica do nosso jogador mudou também: os
A relação dos jogadores com seus dirigentes e patrocinadores é sempre
mais fortes e rápidos, com maior atenção tática, são escolhidos em detrimento
próxima, mas ali todos os lados sabem que existe uma hierarquia. As decisões
dos jogadores mais técnicos, de drible e toque refinado. Afinal, serão mais
são direcionadas, e o corpo diretivo se esforça para fazer o melhor para o
fáceis de vender no futuro. Isso seria como negar as próprias origens, como
grupo. Marcelo foi ex-jogador do time, o qual foi fundado por seu pai, e hoje ele
parar de produzir um dos produtos mais genuinamente brasileiros.
dirige seu filho do lado de fora do campo. Sua vida está ligada ao Inajar, é um 44
45
Wisnik tem uma visão culturalista sobre o assunto, de que a realidade do
amigos, momento a partir do qual viram time. Até o momento em que estão
brasileiro é exprimida dentro das quatro linhas do esporte. Nas suas palavras,
todos trocados são colegas, conhecidos do clube ou militantes dos mesmos
“Pode-se dizer que, de maneira análoga, esses dois europeus sinalizavam,
ideais políticos. Neste caso, os torcedores são sempre parentes que torcem
quase ao mesmo tempo (um pouco depois da Copa de 1970), a capacidade
mais pelo sucesso individual do seu conhecido do que pelo sucesso do time. A
do futebol brasileiro de desvelar e imprimir, no futebol inglês, algo como uma
máxima de que o jogador passa e o time fica, nestes dois ambientes não é tão
outra lógica (…). Essa percepção do futebol espicaçava, por sua vez, o próprio
verídica assim. Como os torcedores dos clubes de elite e dos times do futebol
ritmo dialético do seu pensamento, levando-os, como no futebol, a dribles
amador de estrato social intermediário são próximos aos jogadores, se eles
vertiginosos que invertem e subvertem a dependência da cultura à economia,
pararem de jogar em seus times e o time continuar existindo, os torcedores
fundindo Marx e Nietzsche, augurando a utopia do homo ludens e do jogador-
também mudarão e virão outros nos seus lugares.
poeta” . No mesmo livro Wisnik ainda completa a ideia da subversão do futebol 15
à realidade local, compreendendo-a como um acontecimento antropofágico.
Organizar um jogo ou um campeonato nestas situações não parece
“Mas é uma modalidade de alta antropofagia, com certeza, que faz possível à
ser algo tão simples assim, pois envolve desde marcar o horário melhor para
cultura popular brasileira tomar para si a cultura colonizante, reinventando-a
cada jogador até pensar na logística de locomoção dos equipamentos, em um
sob um viés distinto e imprimindo-lhe uma outra configuração civilizatória –
possível prêmio, ou comemoração depois do jogo. Sem contar que sempre é
como acontece, justamente, com o destino do futebol inglês no Brasil” 16.
levada em consideração a relevância que o time tem para cada jogador. Evandro conta que sempre é complicado conciliar os horários de todos os jogos com
O local em que se pratica o futebol nos quatro ambientes descritos é
todos os jogadores. Alguns se esforçam, mas outros não vão às partidas por
diferente. Mas, de certa maneira, aqueles são os ambientes corretos para as
motivos que ele considera contornáveis. No Hermanos e no Autônomos isso
suas partidas. Se hoje o futebol é compreendido como espetáculo, se ele se
é discutido com todos os jogadores durante a semana, e o horário escolhido
resolve tanto fora das quatro linhas quanto dentro, os jogos estão sempre de
é aquele mais favorável para a maioria dos envolvidos. Como o Autônomos, na
acordo com os seus arredores. A partir do momento em que se pede (ou paga)
maioria dos casos, manda os jogos no Bento Bicudo, não existe um esquema de
por uma estrutura melhor, aquele que organiza o campeonato tem que acolher
carona ou uma mobilidade muito grande dos horários. No caso do Hermanos,
o que está sendo requisitado pelos seus jogadores-sócios-amigos.
eles buscam encontrar uma maneira de fazer com que os jogadores cheguem juntos ao local do jogo. Um ponto de encontro na Av. Sumaré, zona oeste de
Não haveria cenário melhor para um jogo do Inajar, do que um campo no
São Paulo, é, em boa parte dos casos, o ponto de saída. O horário marcado
meio da periferia da cidade e com torcida ao seu redor. Levar as cores do time
varia muito, e é calculado levando em conta a importância do jogo e a distância
não é levar uma ideia ou um brasão, mas é como levar todo um bairro; todos
do local onde será realizada a partida.
os moradores, antes mesmo de jogar, ou sem nunca terem jogado no time, se sentem representados pelos 11 homens em campo. No Hermanos de Pelé,
O EC Pinheiros consegue sempre marcar os jogos em um horário que
no Esporte Clube Pinheiros e no Autônomos a identificação se dá através da
favoreça os seus atletas, porém como disputa apenas um campeonato como
competição. Até a hora de entrar em campo os jogadores se reconhecem como
seleção durante o ano, ele também fica refém do mando de campo dos outros times. Metade dos jogos do campeonato são jogados em casa e metade fora.
15. WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 178
Em casa, o horário é controlado, mas nos jogos fora eles apenas aceitam o horário escolhido pelo time mandante, ainda tendo que organizar uma van
16. Idem, p. 181
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47
para levar todos os jogadores para o outro clube, o que dificulta a presença de
que fosse, sem brigas nem discussões, com jogos sem interferência externa
todos da seleção.
e preservando o evento e o esporte. A correria de Marcelo para encontrar um goleiro antes do jogo, já que o seu titular estava atrasado, até a maneira
No Inajar, apesar da proximidade dos jogadores com os organizadores,
como segurou todos no vestiário quando soube que o último jogador estava
eles não são consultados sistematicamente para firmar os horários dos jogos.
chegando, entra nessa malandragem de fazer o jogo acontecer da melhor
Isso é resolvido pela direção, e o jogador, apesar de muitas vezes falar o que
maneira possível. Ele sabia que o adversário não era fraco e não iria perdoar
é melhor, não tem muito o que fazer quanto a isso. Quando o time joga fora, e
a falta de um goleiro de ofício. André Marchina, veterinário e zagueiro do
na maioria das vezes, é esse o caso, uma vez que, na visão do Nilsão, os outros
Hermanos de Pelé, chegou à final pouco tempo antes de a partida iniciar, pois
times têm receio de jogar no campo do Inajar, o horário é do mandante. Ambas
teve uma emergência no trabalho. Ele era um dos que iriam dar carona, mas
as diretorias conversam, mas, de certa maneira, quem “bate o martelo” é o
com a adversidade todos os outros se desdobraram para fazer com que o time
dono da casa. Uma das coisas que não muda muito neste caso é que os jogos
estivesse completo no início do jogo. No Pinheiros, Evandro conta que a van
são quase sempre realizados nos sábados após o almoço, como manda o
para sair sempre pode atrasar um pouco. Quando a partida é em casa e o time
“horário sagrado” da várzea.
não está completo, alguma coisa tende a acontecer logo antes do apito inicial,
Alex, da AE 2002, revela que uma coisa que determinou os horários do campeonato foi a possibilidade de alugar os campos. Não havia muito horários disponíveis e ele foi adequando a marcação dos jogos conforme o possível. “Isso foi conversado com cada equipe e exposto inicialmente, todos saberiam, antes dos sorteios dos jogos, que poderiam jogar de terça, quarta ou quinta em dois horários diferentes. Todos aceitaram e aí houve o sorteio, com o jogo marcado não haveria mais trocas de horários”, explica. Apesar das características diferentes, um aspecto comum em todos os tipos de futebol é que o jogo vai acontecer, não importa como. Se será preciso chamar mais jogadores, eles chamam, se será preciso dar carona, buscar um jogador do outro lado da cidade, tudo isso é conversável nas entrelinhas da organização. Um jogador ajuda o outro, um dirigente, ou um torcedor podem “quebrar o galho” se preciso for. O jogo ser desmarcado por falta de organização entre os times, seja ele qual for, é que não pode. Até o último segundo tudo pode ser recombinado, mas jogar futebol, e principalmente ver o jogo acontecer, para quem o organiza, é uma satisfação pessoal incrível. Alex, ao final da Copa AE, não conseguia esconder a emoção. Na sua visão o evento foi um sucesso e tudo da maneira que a Associação gostaria 48
retardando o início do jogo em preciosos minutos. O mesmo acontece no Autônomos. Enquanto conversava com o Birner, fomos interrompidos por um jogador que veio perguntar da partida da semana seguinte. O técnico disse que provavelmente seria no mesmo horário, e o jogador respondeu que chegaria um pouco atrasado, se conseguisse ir. Com um ar de deboche, o jornalista disse que ainda ia ver, que qualquer coisa atrasava um pouquinho o jogo, mas que era pra ele correr com seus compromissos. Talvez seja sem perceber, mas no momento mais decisivo e mais íntimo, na hora da decisão a atitude de todos os organizadores é similar. A malandragem, o polêmico “jeitinho brasileiro”, que na visão de Wisnik é em muitas situações o que faz o futebol brasileiro ser como é, também entra em campo nos campos dos jogos amadores de São Paulo. E isso, independentemente de todas as diferenças, das relações hierárquicas explícitas, do fato da decisão poder ser conjunta e elaborada por todos os integrantes do time, ou poder ser definida por um grupo responsável por organizar os jogos e que seja externo aos dois times dentro de campo. Até um segundo antes de a bola rolar sempre existe solução para qualquer problema, em qualquer situação. Se existe o lugar comum de que, no Brasil, um dos problemas sociais é a falta de atenção aos protocolos organizacionais, nos jogos de futebol, para sorte de todos os que jogam e acompanham as partidas, essa característica também é remédio. 49
CAPĂ?TULO 2 Homem do lado de fora das quatro linhas
51
Vida de técnico de futebol nunca me pareceu ser fácil. Apesar de alguns
Podemos começar mostrando que nos três tipos de futebol observados
dos técnicos do profissional terem altos salários, eles sempre falam na mídia
existem diversas maneiras de se relacionar com o técnico, reservando para
que é um trabalho complicado, com muita pressão. Afinal, o que está em jogo
cada um deles particularidades bastante atreladas ao convívio pessoal com os
envolve a paixão de milhões de torcedores. Não à toa, dizemos que temos 200
jogadores e com o esporte.
milhões de técnicos da seleção brasileira, evidenciando como a pressão por resultados é uma realidade cotidiana desta profissão.
Devido à minha proximidade com os times do Hermanos de Pelé, por jogar costumeiramente na equipe, e do Autônomos, por serem os nossos
No amador, a vida deve ser mais simples, o ambiente é outro, o número
maiores rivais, consegui perceber, nos dois times do mesmo tipo de futebol,
de torcedores dos times é menor e os jogadores não recebem salários
duas formas de relação entre técnicos e jogadores bastante diferentes entre
astronômicos. Em boa parte são conhecidos entre si e não existe uma briga
si. Eu mesmo, sempre que jogo no Hermanos, me sinto um pouco técnico.
de ego entre ser titular ou não que seja tão forte e consiga derrubar o técnico.
Durante a final da Copa AE 2002, que acompanhei tentando me distanciar o máximo possível para a execução do livro, não resisti e me posicionei, achei
Mas o ambiente de menor pressão, ou de convivência mais amena
que uma escolha de substituição seria errada e disse para o Rodrigo, que era
não significa que a vida dos técnicos do futebol amador da cidade de São
o técnico encarregado no momento. Ele aceitou a opinião, não fez a troca
Paulo seja tão fácil. Cada um, do seu modo, no seu ambiente, se depara com
naquele momento, mas com o passar do jogo fez a substituição que eu havia
dificuldades e deve trabalhar muito para articular as soluções. A maneira de
lutado contra, e me provou que eu estava errado.
conversar para motivar os seus jogadores, saber como cada um reage a uma situação que o agrada ou não no campo, são realidades do futebol amador que
“Não existe pressão por resultados” - isso me soou de maneira estranha
também são bastante próximas dos “professores” profissionais, como dizem
quando ouvi a primeira vez. Até então, Evandro, o técnico das seleções
os boleiros. Alguns deles ainda esbarram no fato de não terem se preparado
do Pinheiros, tinha deixado claro que apesar dos jogadores darem mais
para a atividade. Eles podem ter jogado futebol quando mais jovens, podem ter
importância para o campeonato interno, eles adoravam a competição, que
aprendido observando e estudando por conta, mas sem ter feito capacitação
quando entravam no campo tudo se transformava e ali eles se entregavam
específica para o cargo, ou ainda podem ter que assumir a responsabilidade
de todas as maneiras. Naquele momento, pensei que a entrega dos jogadores
justamente porque alguém tem que fazê-lo.
era uma medida influenciada pela diretoria. Meu pensamento foi o de que a diretoria, de alguma maneira discreta, cobrava seu técnico e os seus sócios-
No futebol, a personalidade do técnico é determinante, dentro de campo a leitura dos jogadores é diferente de quem está observando de fora, alguém
jogadores. Eles precisariam dar resultado em campo, tudo para manter a mesma lógica de fortalecer o nome do clube através da vitória no esporte.
pode pensar que está jogando bem e não está, ou o contrário; afinal, é dele a função ingrata de escalar o time. Nenhum dos entrevistados, nem mesmo os
Na verdade, a diretoria havia contratado o Evandro para resolver um
jogadores, negou a necessidade da presença de um técnico, ao menos para
problema interno. Em 2003, quando chegou ao clube, ele deveria reerguer as
decidir quem deveria entrar ou sair. Também não foi negada a ideia de que ter
seleções adultas para fortalecer a competição no campeonato interno, na
alguém responsável por comandar os jogadores é decisiva. Estas semelhanças
mesma medida em que fosse abrandando as acirradas rivalidades entre os
me foram apresentadas logo de partida, mas a partir delas uma infinidade de
próprios sócios.
diferenças se fizeram presentes.
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“Aqui tem o campeonato interno, cada um monta sua equipe, eles já têm
previsto, o técnico ganhava a confiança dos jogadores. Apesar da franqueza de
os times mais ou menos prontos, e se inscrevem no campeonato. A gente
sua fala, o que ele não contou era o que aconteceria caso errasse. Como seria a
organiza, faz a tabela, contrata a arbitragem, disponibiliza o resultado no site do
reação dos jogadores caso o que ele havia dito não acontecesse? Será que ele
clube. É através do campeonato interno, de analisar os jogadores, que a gente
assumiria a responsabilidade? Será que teria a confiança dos jogadores para
convoca pra seleção” – completou Evandro, um pouco antes de confirmar que
continuar? Na sua visão, uma das coisas que mais o fez ter respaldo entre os
todos os diretores de futebol do clube participam do campeonato interno.
sócios-jogadores, foi que tiveram um desempenho muito bom logo no primeiro
Dessa maneira, quando chegou ao clube, o técnico deveria montar um
ano, justamente o ano de todas essas mudanças. Vendo que o desempenho
campeonato forte e competitivo, mas que fosse capaz de manter a unidade dos
havia sido acima da média com esse novo técnico, os jogadores começaram a
sócios do clube: a saída proposta pela diretoria e que ele acabou concordando,
se interessar e se empenhar mais pela seleção.
foi reerguer seleção. Apesar de ser um funcionário do clube, ele sempre gostou de mostrar Evandro revelou que quando foi contratado o mais importante era levar
que tem estabilidade no cargo, seu relacionamento com a diretoria é bom,
diversão através do futebol para os sócios. O interno estava mal organizado e
todos participam do campeonato interno e não existe reclamação. Hoje já
havia muita rivalidade entre os times, com uma disparidade muito grande de
está há mais de 10 anos no clube e a sua experiência no local de trabalho faz
qualidade técnica entre as equipes. Ele, com o respaldo da diretoria, mudou
com que ele compreenda muito bem tudo que está ao seu redor. Ele já havia
a fórmula do campeonato, o equilibrou e criou mais competitividade, além de
trabalhado em futebol universitário, também como técnico, e uma das maiores
colocar o “prêmio” que seria a convocação para a seleção. Isso valorizou o
diferenças é que lá muitas vezes era preciso mostrar a sua eficiência dentro de
campeonato e atraiu mais os sócios para participarem, tanto no adulto como
campo. Se no ECP ele apresentava o que ia acontecer no plano tático do jogo,
nas categorias infantis, fortalecendo a disputa.
na faculdade ele devia “encenar” o que os jogadores deviam fazer com a bola, como se movimentar e como eram as melhores maneiras técnicas de fazer
De fato, no jogo do campeonato interno que pude acompanhar, apesar
algum movimento, um chute ou marcação.
da disputa intensa pela vitória, não pude perceber uma rivalidade latente entre os sócios. No final do jogo, boa parte dos jogadores se cumprimentaram e em
Conta que no ECP isso é quase impossível, não existem horários para
comunhão foram para os vestiários. As únicas reclamações que pude perceber
treinos e tudo é decidido no jogo e com a quantidade de jogadores que vão
foram entre os jogadores do próprio time, o time perdedor jogou bastante
jogar naquele dia. Essa é uma realidade que pude perceber em todos os jogos
desfalcado, e boa parte deles culpava a derrota porque muitos não puderam
que observei, pelo menos uma vez eu vi os técnicos se “virarem nos trinta”
comparecer.
para armar o time. Era uma ausência inesperada, ou presença com a qual não estavam contando, que fazia com que toda a formação inicial fosse alterada.
Em função da mudança drástica logo na chegada, Evandro conta que o
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começo foi mais complicado. A sua relação com os jogadores da seleção não
- “Teve uma vez que eu fui para um jogo com cinco zagueiros e três
era simples, não havia brigas, mas ele só foi conquistando o espaço e ganhando
atacantes no time todo, e precisava ganhar. Toda vez é complicado de montar
a confiança dos jogadores conforme mostrava seu trabalho. Durante a
a seleção” – me disse, como quem quer mostrar que a dificuldade não está
conversa contou alguns casos de jogos onde era indagado por algum jogador
em gerir um time e extrair o melhor de cada jogador para cada posição, mas
devido a alguma opção tática que havia adotado. Sua resposta era a de que
sim em saber reinventar a tática conforme a necessidade, como quem dança
sempre existia motivo para tal e que conforme acontecia no jogo o que havia
conforme a música. 55
Sempre esbarrando nas dificuldades das datas para os jogadores,
Dentro de campo ele revela que não existe corpo mole, mas apesar disso
Evandro frequentemente repetia que isso era o que mais atrapalhava seu
sempre tem que pedir para os jogadores participarem de todos os jogos das
trabalho como técnico. Mostrava alguma contrariedade quando os jogadores
fases classificatórias. Nas finais, com a iminência de um título, mais sócios-
deixavam de ir aos jogos pelos mais diversos motivos. Me contando um pouco
jogadores se apresentam para o técnico. Ou seja, como o clube tem um bom
da sua história, consegui compreender porque ele tinha tanta dificuldade em
time, comparado aos que competem com ele, os sócios sabem que com
aceitar que para alguns, aquilo ali era só uma diversão. Ele disse que jogou
qualquer seleção eles vão passar da primeira fase, mas que na final, na hora do
futebol desde a infância, fez faculdade de Educação Física devido à sua
jogo bom, todos podem e querem jogar. O técnico já sabe disso e não esconde
proximidade com o esporte e hoje gosta muito de trabalhar com a modalidade,
de ninguém que o jogador tem que mostrar assiduidade para entrar nos jogos.
mas de certa maneira, as vezes, deixava escapar que os sócios do Pinheiros não
A qualidade técnica é importante, senão não haveria seleção, mas jogam
sabiam aproveitar a oportunidade que tinham. Para ele, e também para mim,
apenas aqueles que estão no time desde o começo do campeonato.
jogar os campeonatos estruturados e disputados nos melhores campos da cidade, como o clube participa, já seria uma motivação por si só, mas que pelo
- “Aqui a dedicação é fundamental porque ninguém é pago para jogar,
fato dos sócios estarem acostumados com aquilo, muitas vezes eles trocam o
então eles têm todos os compromissos pessoais do mundo para não ir aos
jogo e a competição por outros compromissos, que na visão do técnico seriam
jogos. E no final, acabam indo. Então a dedicação é pautada em presença.
supérfluos.
Porque tem jogadores que qualquer churrasco na casa do amigo, vai ao churrasco e não vai ao jogo e tem jogadores que deixam de trabalhar para ir
Claro, não estou no papel de julgar a atitude dos jogadores do Pinheiros,
para o jogo. É assim que você mede a dedicação” – explicou.
mas dou a razão para o Evandro. Desde que comecei a jogar futebol no Hermanos de Pelé, foram poucas as vezes que joguei em campos com um gramado razoável. Em campos bons como o do Pinheiros foram, com certeza, menos de cinco vezes. Na verdade, só me lembro de jogar em um gramado como aquele quando com o Hermanos íamos visitar o SPAC. O jogo tinha costumeiramente uma arbitragem duvidosa, e sabíamos que para jogar lá teríamos que aceitar a conduta violenta dos adversários e um juiz conivente com isso. Porém, para correr naquele campo valia a pena. Todas as vezes saíamos de cabeça quente do jogo. Se havíamos vencido a satisfação era enorme, no caso de derrota o final de semana ficava sem graça. Mas, sempre que o convite vinha, não hesitávamos em aceitar, e o mais impressionante era que, naquele dia, apareciam muitos jogadores do Hermanos. A qualidade do campo fazia a alegria de todos nós, mesmo que para isso tivéssemos que enfrentar mais que os nossos adversários. Apesar de defender que o maior desafio, para ele, era montar um time novo a cada jogo, me pareceu bem mais desgastante para o técnico o fato de ter que lidar com jogadores muitas vezes desmotivados pela competição. 56
- “Isso interfere para você na hora de escalar?” – intervi. - “Para mim (a interferência) é total” – completou. Para jogar o Campeonato Interclubes de São Paulo, o mais importante disputado pelo ECP, Evandro criou uma maneira complexa de inscrever a seleção. Como o regulamento do campeonato permite que os jogadores sejam inscritos até agosto, ele reserva algumas vagas para o final do período de inscrição. Assim ele ainda consegue levar outros jogadores que se destacaram no campeonato interno e tem mais disponibilidade de horários. Essa brecha no regulamento foi uma maneira de driblar o problema que, na visão de Evandro, é de todos que participam do campeonato, uma vez que todos eles sofrem para montar os seus times. - “Eu convoco geralmente 25, 28 jogadores e eu tenho até 35 para inscrever no campeonato, e ao longo do ano eu vou completando essa lista. Aí, em agosto, eu fecho essa lista com 35 e a gente joga o resto do ano com 57
esse número de jogadores. Para você ter uma ideia, eu convoco todo jogo os
Durante toda a partida fomos superiores, e o empate foi arrancado no
35 para 15, 16 irem para o jogo, que é o ideal. Muitas vezes tem dia que dá 11,
finalzinho ao custo de muita violência, e da ajuda determinante do juiz em lances
12, 13 contado” - explicou Evandro, mostrando que a maneira de ter o time é
capitais. Ao final da partida nos sentíamos mal por ter empatado, mas para nós
abrir a possibilidade para um número maior de jogadores do que seria o “ótimo”.
do Hermanos o pior foi o pós-jogo. O Leandro Iamin, capitão do Autônomos na época, dias depois, já com a cabeça fria, postou no site do Autônomos um
- “Por que esse é número ideal?” – perguntei. - “Porque muito mais é ruim já que não tem como colocar todos para jogar. Acontece uma vez ou outra de virem vinte jogadores. Numa fase final vêm vinte (jogadores), e aí eu dou preferência para quem veio mais, para quem teve mais participação durante o ano” – completou. Os problemas retratados pelo Evandro assemelham-se aos enfrentados por Vitor Birner, quando dirige o Autônomos F. C. Desde que chegou ao time, três anos atrás, ele admite que já viu muita coisa mudar, principalmente, do ponto de vista organizacional da equipe. A sua congruência com o ideal anárquico defendido pelos fundadores do time parece ser o que mais aproxima o técnico dos seus jogadores, ou pelo menos daqueles que quiseram a sua chegada. Ele assume que os membros mudaram muito nos últimos anos. Quando foi convidado para ser o técnico do “Auto” (diminutivo simples de Autônomos que apelida o time), Birner conta que a equipe passava por uma crise de identidade muito forte e as derrotas, com algumas goleadas homéricas, eram comuns. Com as derrotas começou a ser difícil manter um grupo de jogadores constante e o grupo estava perdendo muito da sua identidade como time, e com isso a sua bandeira da anarquia também se enfraquecia. Lembro bem de quando essas derrotas do Autônomos eram comuns. A rivalidade Autônomos e Hermanos de Pelé se fortaleceu muito nessa época. A diferença técnica era bastante evidente, nós sempre tínhamos o time mais forte. Até por isso entrávamos de “salto alto”. A hora que a bola rolava o jogo mudava completamente, a disputa era intensa, descambando para a violência em muitos momentos. Mesmo assim, em geral, saíamos vitoriosos. Porém, durante um amistoso em 2009, a história foi diferente, o empate arrancado nos minutos finais pelo Autônomos teve, para eles, gosto de vitória e para nós, derrota. 58
texto no qual se vangloriava de ter agido, no mínimo, de maneira antidesportiva. Melhor usar as suas próprias palavras para que eu não seja tomado por um jogo que também mexe muito comigo: - “Para bater uma falta, empurrei um rival com a mão em seu rosto. Num escanteio, jurei para outro deles que tinha o visto dando o cu na República. Noutra falta para cobrar rápido, cuspi no pé e no meião do hermano à minha frente. Dei dois pontapés violentos e propositais. A rispidez não se resumia só às minhas participações (...) A cegueira de um momento desse pode nos fazer matar alguém. Eu o mataria se pudesse. Comecei a trocar socos mirando o rosto dele, devo ter errado os 6 ou 8 movimentos que fiz, sei lá (...) Eles ficaram pequenos. O Guilherme, zagueiro deles, veio me dizer que eu “tava” de maldade (eu transpirava maldade!), e eu consegui convencê-lo que fui vítima de um ataque covarde, isso sim, e ele me deu razão. Estava claramente fragilizado para argumentações. Sei lá se faltavam 10 ou 5 minutos, mas me recordo que os caras não passaram mais do meio-campo desde então, ficaram recuados por inteiro. Cagaram nos shorts pretos (...) Foi um dos toques na bola mais relevantes da minha vida. Cobrei e a cabeça de Bruno Cannavan achou a bola. Golaço. 3×3. Eu tiro a camisa, jogo pra cima, e caio no chão junto dela. Numa poça d’água, choro duas poças”
17
– O relato é emocionante, mas não
esconde a conduta violenta do autor. Todos nós, do Hermanos, ao lermos esse texto, escrito dias depois da partida, ficamos “incomodados” (para não usar outras palavras que não caberiam aqui). Sabíamos que a partir daquele momento, daquele jogo e principalmente daquele texto, a convivência pacífica que então existia entre os dois times acabara. Não falo por todos os jogadores do Hermanos, mas para mim, isso é clássico, o mais importante de todos. E sei que para os nossos adversários também é. 17. Trechos extraídos de IAMIN, Leandro. Socos, cuspe, lágrimas e respostas. In: ____. 14 histórias de um capitão [página eletrônica]. Autônomos e Autônomas FC. [S.l.]: jan. 2011. Disponível em: <http:// www.autonomosfc.com.br/blog/14-historias-de-um-capitao-i>. Acesso em: 11 abr. 2015.
59
Enquanto conversava com Birner fomos interrompidos mais de uma vez
- “O Birner ainda não chegou?” – perguntei para um jogador que saia do
por alguns jogadores do Autônomos. Em uma dessas pausas, o jogador, até
campo para buscar uma bola que havia chutado por cima da baixa grade que
então desconhecido para mim, me convidou para jogar com eles um dia:
separava o campo do estacionamento.
- “Ah, eu já jogo no Hermanos” – respondi meio sem jeito.
- “Não sei. Deve estar no outro campo com o Auto A” – me disse enquanto passava apressado para evitar que a bola rolasse para a rua.
- “Ah, então melhor deixar quieto” – completou. Eu concordei. Continuamos conversando como pessoas normais, completos de nossa
Olhei para trás, uma virada que não foi tão fácil, uma vez que no presente
sanidade e sapiência. Em um momento o Birner interviu, disse não entender o
momento eu me locomovia com muletas, e percebi que alguns jogadores
motivo daquela rivalidade. O jogador olhou pra mim e disse:
do Autônomos estavam em campo com um uniforme branco. Bom, não vai haver um Autônomos contra Autônomos, pensei, deve estar acontecendo
- “Jogar contra o Hermanos é diferente” – Concordei novamente. E assim
outro jogo lá. Fui até o portão e percebi na linha lateral o meu entrevistado
acabou a nossa conversa, com um sorriso e um cumprimento amigável das
dando instruções ao pé do ouvido para um dos seus jogadores. Já no fim da
duas partes, gesto que provavelmente não se repetiria se tivesse ocorrido
entrevista ele me contou que aquela conversa com um jogador era uma dica
dentro das quatro linhas. Posteriormente, durante a produção deste livro, ao
para que ele atacasse pelo lado esquerdo, não como fazia de costume pelo
tentar manter o contato com os jogadores do Autônomos não obtive mais
lado direito. Birner revelou que olhando de longe percebeu que o lateral estava
nenhuma resposta. Acho que a rivalidade ultrapassou os limites do campo e
acima do peso e isso iria facilitar o jogo do rápido atacante.
acabou influenciando os rumos desta publicação. Durante a partida foi quase impossível conseguir um olhar do técnico. No Autônomos, até a chegada do Birner, todos os jogadores jogavam o
Sempre muito focado em coordenar as ações defensivas do time, ele narrava
mesmo tempo em uma partida, sem levar em consideração a importância do
o movimento dos seus jogadores. Insistentemente, pedia para que sua linha
jogo, se o jogador já era do time fazia tempo, se aquele dia era o seu primeiro
ofensiva não fosse apertar a saída de bola e ficasse presa no campo de defesa,
jogo. A aceitação de Birner em ser um técnico passou por uma negociação.
pronta para o contra-ataque. Os jogadores atendiam e só subiam para a
Ele seria caso pudesse colocar em campo um time competitivo, sem ter que
pressionar o outro time no seu campo de defesa quando perdiam a bola no
respeitar a regra de que todos os jogadores jogassem a mesma quantidade
campo de ataque. Faziam isso mais na intenção de não levar um contra-ataque,
de tempo. A alternativa para aqueles que não aceitaram essas condições foi a
do que de continuar com a posse de bola. Outro momento que pressionavam
criação do Autônomos B, um segundo quadro, uma espécie de outra categoria
era quando o adversário cobrava um lateral no seu campo defensivo.
do mesmo time, no qual essa regra ainda é respeitada. Importante lhes contar que no dia que cheguei no CDM Bento Bicudo, local da nossa conversa, perdi
A estratégia montada por Birner era de quem estava acostumado com
um bom tempo olhando para um campo onde estavam os jogadores do
o lugar que estava jogando, o campo era curto e seus atacantes mais rápidos
Autônomos mas não enxerguei o Birner. O jogo já ia começar, estavam todos
que a defesa do outro time. Qualquer chute da zaga para o ataque e a bola
trocados, mas o técnico ainda não estava lá.
já chegava próxima da área. Ali, qualquer erro de um zagueiro ou do goleiro renderia um gol para o Autônomos. Levando em conta a péssima qualidade do terrão em que jogavam, esses erros eram muito mais possíveis do que em um jogo no gramado. Além disso, eles davam a bola para o outro time, que,
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mesmo tendo jogadores mais técnicos, ficavam presos na marcação apertada
um jogo do Autônomos, o Birner teria achado tudo normal, teria enobrecido a
do Auto. O campo era curto e a bola não rolava, quicava incontrolável, e o
atitude do seu jogador.
número de passes errados durante o jogo foi incontável. No final, mesmo com toda a tática, o Autônomos perdeu de um a zero. Apesar de toda a sabedoria,
São atitudes como essa que Birner defende e cobra de seus jogadores.
aquele dia o futebol mostrou que uma tática ajuda um time, mas além de
Para ele o embate psicológico dentro de campo também é definitivo, e vale sair
jogadores esforçados e aplicados taticamente, é preciso ter qualidade técnica.
das regras para causar um descontrole emocional no adversário e conseguir
Isso sobrou no outro time, que apesar de muitas vezes perdido em campo, se
vencer através disso. De tudo ele não está errado, mas também o faz porque
comparado ao adversário, tinha jogadores melhores.
tem o respaldo de quase sempre “jogar em casa”, e na várzea isso significa, costumeiramente, ter o apoio do árbitro. No próprio jogo do Autônomos o
- “E aí, gostou do jogo?” – me perguntou Birner quando nos encontramos
juiz apitava com dois pesos e duas medidas. As faltas cometidas pelo time do
para conversar no barzinho do “Bicudão”. Já havíamos nos apresentando antes
Birner eram quase sempre mais violentas e não eram punidas. Também pude
do jogo começar.
perceber essa atitude no jogo do Inajar de Souza, quando um pênalti claro para o time visitante, o próprio Inajar, não foi dado.
- “Gostei, foi bom...” – respondi meio sem graça. Não queria comentar muito do jogo que ele acabara de perder. Afinal, não sabia como ele iria responder à derrota.
De certa maneira Birner defendia uma linha tênue entre a agressividade, a conduta antidesportiva e o jogo competitivo, que demanda uma igualdade de condições entre os dois envolvidos. Ora, se o jogador do Autônomos pode
- “É, o jogo foi bom, o time deles era bom, mas jogamos bem também e
chegar violentamente em um dividida com o adversário que o juiz vai relevar, se
nem sempre vamos conseguir vencer” – me interrompeu, se mostrando uma
o zagueiro pode correr o risco de fazer um pênalti que o juiz não vai dar, então,
pessoa que lidava de maneira racional com a derrota.
a competição, que ele tanto valoriza, não é tão honesta assim.
Birner, durante toda a conversa, mostrava a importância que ele dava
Apesar da competição dentro de campo não parecer ser tão honesta,
para a competitividade e que isso se refletia nos seus jogadores. Pedia e
dentro do time ela o é, como me disse Birner. Qualquer um que quiser jogar
recebia entrega dos mesmos a todo instante. Em alguns momentos até revelou
no quadro A pode. Porém terá que saber que muitas vezes vai jogar pouco ou
que acredita que no futebol uma malandragem é muito bem-vinda. Para ele é
nenhum tempo e que conforme for aos jogos, conforme mostrar interesse,
aceitável que um jogador, mesmo que usando artifícios que infringem as regras
ganhará mais tempo em campo. O técnico, como não poderia deixar de ser,
do jogo, irrite o adversário com a intenção de expulsá-lo. O exemplo que usou
leva em conta também a qualidade técnica dos jogadores, mas admite que
no dia foi a mordida que o atacante do Corinthians, Emerson Sheik, deu no
poucas vezes colocou em campo o time mais forte que poderia.
zagueiro do Boca Juniors, Caruzzo, quando os dois disputavam a final da Copa Libertadores de 2012. Na ocasião, os dois caíram em uma disputa de bola, o
- “Eu fiz isso (colocar o time mais forte possível) ano passado na final da
zagueiro se levantou primeiro, e para tal se apoiou no atacante. Caruzzo, quando
Copa Autonomia, e perdemos” – me contou com o pesar de quem admite o
se apoiou, tomou uma mordida na mão. Como corintiano, naquele momento eu
erro que custou um título.
achei o lance de muita inteligência, e que o Emerson estava correto. Porém,
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foi uma agressão, e caso fosse percebida pelo juiz, este poderia ter expulsado
Seu discurso muitas vezes se assemelhava ao dos técnicos profissionais.
o jogador do Corinthians de campo. Acredito que se o mesmo ocorresse em
Talvez pela profissão ainda em exercício de jornalista esportivo, Vitor Birner 63
tenha adquirido o discurso ensaiado de alguns “professores”. Sempre dizia
No próprio jogo em questão ele colocou todos para jogarem, e manteve em
que o time tinha que jogar compacto, ocupando os espaços, e que na hora
campo boa parte dos jogadores por quase a mesma quantidade de tempo. Seu
de atacar deveria abrir espaços, que tudo não passa de um posicionamento
argumento foi que todos deveriam jogar, era começo de ano e ele queria ver
dentro de campo. Se no começo da conversa ele me revelou que era ali, naquele
como estavam, mas que no futuro isso mudaria. Porém, sabe que sempre vai
campo, que era jogado o verdadeiro futebol, e agora ele assumia esse discurso
ter de enfrentar a rotatividade, até por ter um problema que se apresentou em
próximo dos técnicos famosos, passei a imaginar se esse não seria o caminho
todos os tipos de futebol amador analisado. Não existe horário de treinamento,
do Autônomos. Talvez o time devesse começar a jogar contra times do futebol
e é no jogo que vai conhecendo os seus jogadores. Ou seja, eles treinam na
de várzea tradicional, buscar melhores jogadores, e então ter um time com
hora do amistoso e jogam nos dias de campeonatos.
muita força até mesmo para defender os seus ideais dentro de campo. Foi com certa rejeição que Birner me deu essa resposta: para ele isso só seria possível
Ao conversar com Luís Guilherme Ridenti, apelidado de Gueme, zagueiro
se tivessem um patrocinador, e convencer os jogadores do Autônomos, e ele
do Hermanos de Pelé, um time que se assemelha em muitos aspectos ao
mesmo disso, seria uma tarefa quase impossível.
Autônomos, sobretudo por jogarem no mesmo ambiente, nessa nova cena do futebol amador, pude perceber que a saída para os seus jogadores foi
Todas as vezes que Birner se referia ao time, me contava coisas como se
outra. Quando criado, em 2005, pelo Danilo Mandioca, também ele um dos
fosse uma pessoa que esteve ali desde a criação do Autônomos até o presente
fundadores do Autônomos (provavelmente este seja um dos motivos criadores
momento; ele se sentia completamente integrado à realidade da equipe, porém
da rivalidade atual), o Hermanos de Pelé seria um time de amigos que queriam
admitiu que nunca jogaria pelo Autônomos.
jogar futebol. Toda a sua base era de alunos e ex-alunos do Colégio São Domingos, escola particular localizada no bairro de Perdizes, zona oeste de
- “Não sei jogar, e isso nunca foi problema pra mim. Eu também nunca
São Paulo. Estes queriam jogar futebol, melhor ainda se isso pudesse ser feito
disse que um jogador deveria chutar ou dominar a bola de certa maneira. Eu
com os seus colegas de sala. Pouco depois do Hermanos completar um ano
cobro o que eu posso ensinar” – me respondeu quando eu perguntei se nunca
Danilo saiu do time, ele queria algo mais, acreditava (e acredita até hoje) no
tinha tido vontade de jogar.
futebol como um meio transformador da realidade. Foi neste momento que
Ainda completou a ideia dizendo que foi assim que ganhou a confiança dos seus jogadores. - “Às vezes eu chegava com uma ideia e dizia para o time jogar de uma maneira e eles não aceitavam. Eu falava que tudo bem, para eles jogarem da forma que pensavam ser a melhor, afinal isso é uma coisa importante aqui no Autônomos, mas já antecipava o que ia acontecer no jogo. ‘Vocês vão tomar gol assim e assim’ eu dizia. Como acontecia eles começaram a confiar em mim” – completou, mostrando como foi fazendo para ser aceito pelo time. Hoje, para ele, o processo de sua aceitação está completo, e muito
com outros amigos fundou o Autônomos F. C., deixando o controle da equipe hermana nas mãos do goleiro Thiago Picos e do zagueiro Gueme. Desde então, há mais ou menos nove anos, como conta o zagueiro, ele e o Thiago comandam o Hermanos. Hoje ele assume que já não é mais tão presente, a vida tomou vários rumos e ele acabou tendo menos responsabilidade na hora de marcar jogos e escalar o time do que já teve em anos anteriores. Jogando no time desde a sua criação, Gueme enxerga que o Hermanos está cada vez mais forte, mais sério, mais estruturado e isso passa por uma maturidade que todos os jogadores conquistaram. Apesar de não existir uma diretoria, ou de não terem um técnico oficial, ele avalia que hoje o time é muito mais organizado.
embora considere as ideias dos jogadores, não abre mão de escalar o time. 64
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- “Nós nunca tivemos vontade de ter pessoas de fora da equipe tomando
previamente escalado. Todos do time induziam o novo jogador a começar como
decisões, e ainda não queremos, mas sabemos que alguns precisam ter
titular, e aí uma nova tática era pensada para se adequar a esse novo jogador e
responsabilidade com o time. É aquela coisa que todo mundo toma conta mas
aos outros dez que restaram”. De fato, esse é um costume que eu nunca tinha
na verdade ninguém toma, então a presença do Thiago escalando o time é
visto em time nenhum, Gueme me lembrou disso com um sorriso no rosto,
importante, e a do Rick (Ricardo Mendonça, volante da equipe) marcando os
como quem ri de uma brincadeira feita durante seus tempos de moleque. Ele
jogos também” – me disse na tentativa de explicar a organização do time. De
completou me dizendo que gostava da “tradição”, que quase sempre antes da
fato, é muito comum olhar o banco de reservas do Hermanos, e só encontrar
roda eles já conversavam com o novo jogador e diziam “faz uma cena lá, mas
os jogadores suplentes. Estão todos sempre muito atentos e com vontade de
tira tal jogador que a gente sabe que ele vai ficar bravo, vai ser engraçado”. Eu
entrar, mas quem chama as alterações é, quase sempre, o técnico-goleiro de
mesmo passei por isso, na minha estreia tive que tirar um jogador para poder
dentro do campo.
jogar, e foi da forma que o Gueme lembrou, tudo previamente combinado.
Gueme conta que muitas opções já foram tentadas durante os dez anos
Em sua visão a evolução do time se deu ao mesmo tempo que os seus
de time. No início, todos os jogadores jogavam quase o mesmo tempo, as
jogadores se desenvolveram e amadureceram. Nestes dez anos os fundadores
alterações eram feitas sem muita preocupação com o resultado, ou com a
saíram do colégio, entraram na faculdade, se formaram e trabalham, alguns
importância do jogo. Eu mesmo já sofri com isso. Estava jogando bem em um
já se casaram e tiveram filhos. Nos muitos jogos do Hermanos que já estive
jogo de campeonato, porém tive de sair porque precisávamos rodar a equipe.
presente, seja jogando ou observando, também pude perceber que muita
O jogador que me substituiu entrou desligado, errou uma bola e para consertar
coisa mudou. A maturidade da equipe é uma coisa evidente. Hoje existem onze
fez uma falta. Na cobrança, gol de empate do time adversário. Neste momento,
titulares, há uma concorrência por vagas nesse time e todos os jogadores
um dos atacantes da equipe, que já não joga mais no Hermanos, me olhou de
sabem que a dedicação, sempre medida na frequência de presença nos jogos,
dentro do campo e perguntou:
é parte importante na hora do técnico decidir quem vai escalar.
- “Por que você saiu?”
Thiago é quem assume essa responsabilidade. Ele monta a escalação do time dias antes dos jogos, já pensa quais serão os jogadores que entrarão caso
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- “Não sei” – respondi. Ele, bastante indignado, até mais do que eu,
o time esteja ganhando ou perdendo, conforme evidencia o fato de que sempre
apenas balançou a cabeça e voltou para o centro do campo para recolocar
fica irritado quando um jogador bom e frequente chega ao jogo de última hora,
a bola em jogo. Essa partida, se não me engano, foi em 2011. Hoje a realidade
destruindo seu planejamento. Na visão de Gueme, o fato do Thiago assumir
na hora de substituir é outra, mas na época essas alterações ocorriam com
o papel de técnico se deu de maneira natural. Mas ele frisa que geralmente
frequência. Gueme, durante a nossa conversa me lembrou de uma brincadeira
Thiago não decide sozinho, e muitas das dúvidas ou mudanças são discutidas
que fazíamos “antigamente”.
pelo menos entre o Thiago e o Rick.
- “Alguns anos atrás fazíamos uma coisa que mostra como o time hoje
Durante a final da Copa AE 2002 pude perceber esse momento. No final
está mais consolidado. Sempre que chegava um jogador novo nós fazíamos
do primeiro tempo o Hermanos empatava o jogo, resultado que lhes dava o
uma roda, o Thiago dava a escalação do time com esse jogador começando no
título (como não joguei por estar machucado, não me sinto tanto como um
banco, e aí dizia que ele deveria escolher entre começar jogando ou na reserva,
vencedor desta campanha). Mas eles concordavam que estavam dando muito
sendo que se quisesse ser titular ele deveria tirar alguém que havia sido
espaço para o adversário fazer lançamentos, a sua arma mais perigosa, e 67
que portanto algo deveria mudar. Deco, zagueiro do time, chegou e disse que
Gueme sabe de toda a dificuldade, e concorda que a pessoa mais lesada
teriam duas opções, ou adiantavam a equipe para pressionar a saída de bola
com o fato de não terem um técnico que seja apenas técnico é o Thiago. Ele,
do XV de Agosto, ou se fechavam mais e confiavam no contra-ataque. Uma
na visão do zagueiro, deveria estar focado o tempo todo apenas no jogo, como
discussão começou, ela foi bastante organizada, bem mais do que eu imaginava
todos os jogadores, mas na verdade, muitas vezes, precisa se desligar e pensar
para um momento de intervalo de jogo, havia respeito à fala do outro, todos
nas substituições, e imaginar como ganhar um jogo entre um ataque e outro.
os jogadores colocaram suas opiniões, e até boa parte dos reservas também opinou.
- “Já aconteceram muitas vezes dele me perguntar coisa no meio do jogo, eu na zaga e ele no gol, a gente ia decidindo o que fazer com o time” – me
- “E aí, o que vocês decidiram?” – interveio Thiago ao ver que a discussão
contou Gueme. Isso também aconteceu comigo, algumas vezes no meio do
era ótima mas precisava de uma medida prática. A decisão tomada pelo grupo
jogo o Thiago me perguntou se eu aceitaria ser o único zagueiro para que ele
foi a de que deveriam atacar e pressionar o adversário, usando o argumento de
pudesse mandar o time para o ataque. Sempre aceitei.
que o Hermanos costumeiramente melhorava no segundo tempo e o XV havia cansado bastante no primeiro confronto. Thiago aceitou, avisou que todos
Apesar de toda a dificuldade colocada pela falta de um técnico, Gueme
deveriam coordenar as saídas do campo de defesa e manter as suas posições,
assume ser um risco que o time prefere correr. Na sua visão, seria complicado
sem fazer nenhuma oposição sobre a escolha do grupo.
para todos os jogadores ter um “estranho” comandando a equipe do lado de fora. Só aceitariam o papel de um técnico caso ele fosse um ex-jogador do
Durante o segundo tempo o Hermanos piorou seu jogo coletivo, a opção
time, ou um jogador afastado por lesão, como foi o caso do Rodrigo na final.
de sair para pressionar não surtiu efeito, os atacantes estavam correndo
Para ele, o time estranharia uma pessoa não aceitar, ou não pedir a opinião dos
sozinhos para marcar no campo de ataque, e isso fez com que os jogadores se
jogadores no intervalo. Aquela discussão para decidir o que fazer no segundo
cansassem mais que o normal. A ordem para retornar a marcação e parar com
tempo do jogo se apresentou, durante toda a conversa com o Luís, como uma
a pressão veio do banco. Rodrigo, jogador do time, que estava machucado e
das características da equipe, e foi frisado insistentemente pelo zagueiro que
não participara do campeonato, percebeu que a opção adotada estava errada
todos poderiam participar de tudo e qualquer coisa do Hermanos, mas que
e precisava ser mudada. Ordenou que o time voltasse para o seu campo, e nos
sim, era preciso existir alguém responsável por tomar a iniciativa em diversos
minutos finais o Hermanos conseguiu segurar a pressão do adversário e saiu
momentos, é necessário que alguém seja o responsável diretivo do time.
campeão. Se pudermos perceber diferenças drásticas entre dois times que ocupam Só de ver este jogo já pude observar toda a dificuldade de não ter um
o mesmo ambiente do futebol amador da cidade de São Paulo, imaginem o
técnico, as duas mudanças táticas que o time teve, no intervalo e no segundo
contraste com o futebol de várzea tradicional. Marcelo ocupa dois cargos,
tempo, foram propostas por jogadores, um de fora e outro de dentro do campo.
talvez os mais importantes, pois é o Presidente e o Técnico do Inajar de Souza.
O Thiago, que teria o papel de técnico, aceitou ambas colocações. Diferente
Tem papel de liderança e deve decidir o que será feito no aspecto diretivo e no
do Birner que de fora consegue analisar o jogo com mais racionalidade e
corpo técnico do time. Além disso, como já disse, foi importante jogador da
menos envolvimento e acaba percebendo melhor o que está acontecendo no
mesma equipe. A responsabilidade dele é grande, uma responsabilidade que
campo. Esse distanciamento, muitas vezes, faz com que o jornalista acabe se
nenhum outro técnico entrevistado ou observado tem. É ainda o único com
colocando como única voz na decisão tática do time.
uma espécie de pressão por resultado, seu time é patrocinado e o patrocinador quer vitória, tem torcida e bateria em todo jogo, participa de campeonatos que
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dão prêmios em quantias substanciais de dinheiro. Seus jogadores recebem
tão aparente. Antes do jogo começar eu fiquei com uma coisa na cabeça. Ele
para jogar, querem jogar pois sabem que assim receberão mais, então a
passou a escalação e disse a formação do time, usou um daqueles números
competição por uma vaga no time titular é evidente, ou seja, Marcelo ainda
que a mídia adora criar e os técnicos profissionais adotam para parecerem
tem que lidar com a pressão interna do grupo, manter todos os jogadores
mais professorais. Não me lembro se disse que iriam jogar no 4-3-3, ou no
motivados, mesmo uns jogando mais e outros menos, e ainda fazer o jogo
4-5-1, eu sei que ele queria três volantes e dois jogadores rápidos nas pontas.
coletivo se sobressair.
Disse que essa era a melhor formação para os jogadores que tinha no elenco aquele dia. E pronto. Não disse mais nada sobre a tática do time, se iriam jogar
Sem dúvida, ele é o técnico aparentemente mais pressionado, que teria
no contra-ataque, se iriam ficar com a bola, se iriam pressionar o adversário.
maiores motivos para se preocupar com a tática, com a maneira que o time
Disse para os jogadores sentirem o outro time, sabia que era time bom, mas
joga, que deveria se preparar melhor para o cargo. E durante todo o jogo ele
que confiava na sua equipe. E mandou entrarem no campo.
se limitou a corrigir gestos técnicos dos seus jogadores e movimentações individuais, em alguns poucos casos dizia o que deveria fazer um jogador, na
Cada jogador, cada qual ao seu estilo fez o aquecimento, uns correram,
maioria das vezes ele narrava com atraso, mostrando o que o jogador devia ter
outros brincaram com a bola e chutaram no gol para testar o próprio arqueiro
feito, quando o lance já havia se perdido. O técnico mais pressionado foi ainda
e o campo. Em poucos instantes ele desceu e chamou os jogadores para uma
o que menos reclamou com os juízes, o que menos cobrou faltas, cartões e
roda. “Ah, agora ele vai falar como vão jogar” - pensei. Na verdade, acho que
impedimentos do trio de arbitragem.
isso só pode ser um vício meu, vício de quem sempre teve técnico professor e não boleiro. O plano tático novamente não foi divulgado. O que teve foi mais
Ora, se ele era o técnico mais pressionado, porque não se portava como
uma conversa rápida, essa responsável por “incendiar” o time para o jogo.
tal? Durante todo o jogo ele conseguia conversar comigo, me mostrar o que estava acontecendo, me contar o porquê de não ficar no banco de reservas
- “Vamos pro jogo, concentrados e se entregando ao máximo, cada
com todos os jogadores e com o Tigues. Fazia isso tudo sem perder a liderança
um sabe o que tem que fazer em campo” – imediatamente pensei, “desculpa,
do time. Em um dos nossos encontros uma atitude incomum saltou aos olhos.
Marcelo, mas você não disse nada, ninguém sabe o que tem que fazer no
Marcelo se posicionou na lateral oposta à do banco de reservas, queria se
campo”. Se eu fosse jogador no momento já teria comprado uma vaga fora do
distanciar para poder comandar melhor a equipe. O banco estava de um lado,
time. Mas, como eu não era, o pouco de consciência que tive salvou a minha
mas todos em campo só seguiam as ordens do homem posicionado na outra
entrevista e possivelmente esse livro todo.
lateral. Algumas vezes os jogadores o faziam porque escutavam o seu nome ser chamado, outras porque queriam a aprovação em uma boa jogada, ou
O mais impressionante foi que ninguém interferia, todos realmente sabiam
porque já sabiam que escutariam a cobrança na situação inversa, e aí era mais
o que fazer dentro de campo, ou ninguém ousava desafiar a liderança. Quando
fácil olhar logo e ver se aprendia algo.
ele terminou quem falou foi o capitão, Nilsão, que interveio e completou com um discurso que evocava o tipo de jogo tradicional do Índião. Ali todos deviam
Marcelo esteve tranquilo durante todo o jogo, a circunstância também
jogar com raça em primeiro lugar, deviam chegar em todas as bolas e depois
apoiava a tranquilidade, era o primeiro jogo do ano e valia mais a pena perceber
de toda entrega deveriam jogar futebol, e ainda citou os jogos finais do ano
quem estava bem ou mal fisicamente, talvez até para estabelecer quem iria
passado (2014) quando o time mudou as suas características e não obteve
aos jogos seguintes, qual seria o time titular nos jogos importantes do ano. No
bons resultados.
encontro seguinte, dois finais de semana depois, essa tranquilidade já não era 70
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Quando o jogo chegou ao final eu compreendi o que tinha acontecido
O respaldo do técnico vem de um lugar que aqueles jogadores
no campo. Marcelo era o técnico com mais respaldo por parte dos seus
compreendem e respeitam muito bem, o campo de futebol. Ele não precisa
jogadores. Eles jogam pelo time, pelos companheiros e pela torcida, mas jogam
ser uma espécie de oráculo e dizer o que vai acontecer antes das partidas para
pelo técnico também. Com uma dica para um jogador específico ele era capaz
ganhar a confiança dos seus jogadores (como fizeram Birner e Evandro para
de mudar a tática, e ninguém fazia diferente do que ele falava, sabiam que se
serem aceitos), pois sua história vestindo a camisa do time nos anos anteriores
ele dizia era por algum motivo que melhoraria o jogo do time e o seu individual.
garante esse respaldo. Ele se porta de maneira muito honesta e trata todos
Uma das poucas vezes que ele cobrou um dos seus jogadores foi quando o
os jogadores igualmente, seu próprio filho foi substituído no segundo tempo,
Jorge, seu filho, mudou a maneira de bater a falta.
Jorge não gostou, mas Marcelo sabia que a sua responsabilidade era com o time e que deveria fazer isso.
- “Quem vai pegar essa Marcelo?” – já tinha pegado intimidade e me dei a liberdade de perguntar no meio do jogo. A resposta foi política.
Como um técnico antiquado em tempos que o futebol estudado, onde o futebol numeral tem se destacado, Marcelo se comportava como uma pessoa
- “Temos muito bons jogadores para bater essa falta, umas três ou quatro
que entendia o jogador, cortava as relações de distanciamento ao tratar de
opções, eles se decidem lá, mas o Jorge é o melhor, ele já fez dois gols de falta
igual para igual o boleiro. Sua ideia é a que vai ser posta em campo, não existe
em outro jogo hoje” – me contou tudo isso de costas para o campo, e não viu
diálogo quanto a isso, é o técnico que decide os titulares e como eles vão
justamente o Jorge sair da bola.
jogar. Qualquer mudança necessária quem faz é ele, o que poderia criar um
- “Ô Jorge, não vai pegar?” – indagou ao próprio filho, mostrando que apesar do discurso político ele sempre soube quem iria cobrar aquela falta. A resposta veio com o jogador mostrando que deixou o companheiro bater. – “Não, pode pegar, bate aí” – com o respaldo do técnico, ironicamente conhecido por saber bater muito bem na bola, Jorge tomou a frente e arrumou o montinho de terra e a bola. O jogador que ia fazer a cobrança somente foi para a área, aceitando a opção do treinador. A cobrança veio, forte e no canto do goleiro. A bola passou por cima do gol. - “Jorge, por que mudou a cobrança? Já fez gol assim hoje, tem que bater por cima da barreira, pô!” – Essa foi a única vez que o técnico transpareceu nervosismo ou insegurança, o jogo ainda estava zero a zero, e o Inajar tinha dado duas oportunidades para o adversário em erros da defesa. De resto o jogo era bom e bem disputado no meio de campo. Marcelo me pareceu ficar mais nervoso porque não viu o próprio filho marcar o gol, ao desperdiçar a cobrança de falta.
ambiente apropriado para a insatisfação do próprio jogador. Mas, na prática, o que acontece é justamente o contrário. Eles gostam e esperam a dica do seu treinador, sabem que se fizerem o que ele diz vão ajudar o time, agradar o técnico e provavelmente desenvolver melhor o seu futebol. Ali, naquele ambiente, com aqueles jogadores e com aquele técnico, existe uma escola, eles são alunos do professor Marcelo, e ele não é um professor que busca o benefício próprio, sabe que tem que dar satisfação para o patrocinador e para a torcida, mas tem consciência de que só vai fazer isso se os seus jogadores jogarem o melhor que puderem. A relação entre os jogadores e o seu técnico é também uma relação de poder. Sempre que existe alguém que define o que você deve fazer, como deve se comportar uma relação de poder se estabelece. Entre estes dois polos, jogadores e técnico, quem detém o monopólio da força é o técnico, afinal ele decide a tática e a escalação. Para se legitimar no poder o técnico utiliza duas ferramentas importantes para convencer seus subordinados: consenso e coerção. Segundo o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa consenso é: “concordância ou uniformidade de opiniões, pensamentos, sentimentos,
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crenças etc., da maioria ou da totalidade de uma coletividade”
; coerção,
Já o novo ambiente do futebol amador parece mais propício para uma
segundo a mesma fonte, é: “ato ou efeito de reprimir, repressão. Força exercida
discussão sobre as melhores opções para o time dentro de campo. Tanto
pelo Estado para fazer valer o direito” 19. Ou seja, extraindo o conceito do
Thiago, goleiro que atua como técnico do Hermanos de Pelé, quanto Birner,
dicionário e trazendo para a realidade do futebol amador da cidade de São
técnico do Autônomos A, tomam as suas decisões depois de algumas
Paulo, consenso é todo o aparato ideológico e que gera concordância entre os
conversas com seus jogadores.
18
dois polos, e coerção é o movimento de imposição da vontade do mais forte no momento de decisão. Isso não significa que a coerção seja uma coisa ruim. O
No Hermanos de Pelé isso fica muito claro. No começo do jogo ele usa
técnico, no caso, usa do seu poder e impõe a sua vontade, mesmo estando em
do seu poder e escala o time, não existe muito diálogo. Mas durante a final e
discordância com um ou mais membros da equipe, para o bem geral do time.
em outros jogos que acompanhei, muitas vezes, o goleiro apenas observava o que seus jogadores estavam dizendo, mas no intervalo, quando acreditavam
Nos quatro times descritos neste capítulo pude perceber que essa
que algo precisava ser mudado, todos tiveram voz e a decisão escolhida pelo
relação ocorre através destas duas ferramentas de sociabilidade. O fato de
técnico foi a que a maioria escolheu. Birner, também escuta seus jogadores, à
aquelas pessoas jogarem modalidades diferentes de futebol, dos times terem
sua maneira o técnico disponibiliza espaço para todos. Da mesma forma que
histórias diferentes entre si, e ainda de cada jogador e técnico terem também
Thiago, quem escala o time titular é o jornalista. Porém, e também no intervalo,
as suas próprias histórias dentro de cada equipe, fazem com que as relações
ele espera que seus “atletas” venham com indagações e impressões sobre o
entre estes sejam sempre diferenciadas umas das outras.
que está acontecendo dentro de campo, a partir disso ele toma uma decisão. Nos dois casos o consenso se faz importante e evidente, a abertura para o
Evandro, funcionário do ECP, não tem o problema de ter que dar resultado dentro de campo. Porém, tem que montar um time novo a cada partida, os
diálogo fica bastante clara durante os jogos, e todos podem opinar, quem joga, quem dirige e quem está no banco de reservas.
seus jogadores são muito inconstantes, e por fim é sempre ele quem decide a escalação do time, não existe um diálogo dele com os seus jogadores.
O que diferencia as duas equipes é o fato de um ser apenas o técnico,
O técnico, neste caso, por ter o respaldo da diretoria para tal, usa a coerção
um integrante que veio de fora para comandar e reerguer a competitividade
para montar a equipe.
do time, que deve ficar do lado de fora das quatro linhas e observar o jogo todo sem, obrigatoriamente, se envolver emocionalmente com ele. Enquanto o
Quem mais se assemelha ao Evandro, do ponto de vista de usar muito
outro, Thiago, é também jogador, e portanto, emocionalmente envolvido com
mais a coerção é justamente quem mais se diferencia dele nos outros dois
o jogo. Além disso, espera que aqueles que estão do lado de fora o ajudem a
aspectos. Marcelo tem todos os seus jogadores à disposição aos finais de
comandar a equipe. Sua história se confunde com a do time e tudo aquilo que
semana, porém existe uma pressão por resultado. O patrocinador pressiona, a
ele aprendeu sobre futebol, foi jogando e sendo técnico do Hermanos.
comunidade pressiona, e a torcida também pressiona. Mas, na hora de entrar em campo quem decide é ele. O respaldo para tomar as decisões vem dos
Apesar de todos os conflitos que podem vir a existir na relação entre um
jogadores que confiam no seu técnico, porém o diálogo também não aparece.
técnico e seu jogador, os quatro times estudados mostraram, dentro de suas
Coerção novamente, ali quem decide é o professor Marcelo.
individualidades, que a maneira em que se dá essa relação de poder é, em cada caso, a melhor para o conjunto de jogadores e técnico.
18. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Objetiva, 2009, p. 527. 19. Idem, p. 488.
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Birner nunca jogou, não fundou e não conhecia bem os jogadores antes de começar a ser técnico do Autônomos, mas compartilha dos fundamentos ideológicos do time, o que é fundamental para seus jogadores. Thiago, tal qual Marcelo, é a história do time. Os dois são respaldados pela equipe e ambos decidem em momentos delicados. Mas, no caso de Thiago a participação dos jogadores é sempre solicitada, enquanto, no caso de Marcelo, isso não ocorre. Evandro, depois de tantos anos como técnico das seleções do Pinheiros, já conhece a maioria dos seus jogadores, mas sempre foi o técnico o responsável por decidir quem joga e como joga, e o faz pelo simples motivo de ser esta a função do cargo que ocupa como funcionário do clube. No fim, todos tem a mesma intenção. Thiago, Birner, Marcelo e Evandro querem o melhor para seus times, todos querem a vitória, e sabem que para isso alguém tem que se assumir o papel de técnico. A relação que se constrói em cada caso está ligada intrinsecamente à história de cada time, e hoje é do jeito que é pois foi se construindo junto com a história dos times, dessa maneira se apresentou como a melhor opção para a relação entre técnicos e jogadores, sendo que estes até podem se confundir entre si.
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CAPĂ?TULO 3 O jogador
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“Eram eles os donos da bola, marca Mac Gregor, quando sem refletir a
Chico não se referia apenas ao futebol profissional. Na mesma crônica
desembarcaram na América do Sul, um século atrás. No Rio, em São Paulo,
ele conta a sua experiência ao assistir um jogo de futebol entre garotos na
em Buenos Aires, os ingleses detinham, além de todas as bolas, o monopólio
periferia de Paris. Ao observar o jogo ele rapidamente reconheceu a sua
das chuteiras, camisas listradas e dos campos de grama inglesa, como manda
definição. Os jovens jogadores brancos sabiam se posicionar, mas a plástica
a regra, perfeitamente planos e horizontais. Em sensacionais torneios, com
do drible ficou sob a responsabilidade do camisa nove de um dos times. Um
turno e returno, jogavam então Inglaterra versus Inglaterra. Aos nativos,
garoto com feições árabes, que marcou o primeiro gol do jogo e não hesitou
além da liberdade de torcer por uma ou outra equipe, sobrava a alegria de
na comemoração ao gritar “Ronaldooooo”.
catar e devolver as bolas, que já naquele tempo os britânicos catapultavam com frequência. Em 1895, segundo a crônica paulistana, confrontavam-
Apesar da distância geográfica, podemos dizer que ele reconheceria o
se Railway Team e Gas Team, quando huma pellota imprensada entre duos
mesmo cenário no Brasil. Os jogadores do futebol amador na cidade de São
athletas subiu aos céos e foi cahir às mãos de hum assistente. D’improviso o
Paulo também buscam se reconhecer nos jogadores famosos do futebol
cidadão sequestrou a pellota. Meteu-a sob o braço e escafedeu-se no matagal,
profissional. Os cortes de cabelo são a primeira semelhança. Ainda restam
perseguido por dezenas de crioulos. Foi alcançado ao cabo da meia hora, às
poucos moicanos de Neymar. Hoje são mais comuns os cortes de cabelo que
margens do rio Ypiranga. E celebrou-se ali, em terreno pedroso e cascalhudo,
imitam o do atacante corintiano Paolo Guerrero.
o primeiro jogo de bola entre brasileiros, com cincoenta actuantes e nenhum goalkeeper” (Chico Buarque, “O moleque e a bola”, jornal O Globo/Estado, 21/06/1998) 20. Esse excerto da crônica do músico Chico Buarque, O moleque e a bola, relembra o que seria o primeiro jogo realizado por brasileiros no Brasil. O primeiro jogo que, portanto, não foi praticado pela elite do país. A partida que, desde então, fez mudar a história do esporte mais praticado por nós, brasileiros. Na visão do músico, o jogador brasileiro tem um jeito único, ele se relaciona com a bola de maneira íntima, gosta de tê-la para si, de ter o domínio total da ação sobre ela e se compreende como ator principal do jogo apenas quando manuseia o objeto. Ele chamou, portanto, os jogadores brasileiros de “donos da bola”. Os europeus, jogadores mais apegados à tática, com movimentação mais disciplinada dentro de campo, que se desfazem da bola com facilidade, que compreendem o seu funcionamento dentro do time como o de uma engrenagem em uma máquina, denominou como os “donos do campo”.
20. WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 218-219.
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A vida de um jogador de futebol profissional é sempre retratada pela mídia como uma vida luxuosa. Todos eles têm carros caros, as melhores roupas, e a quase inseparável companhia de belas mulheres. Desta maneira, a mídia vende para a população em geral a ideia de uma vida perfeita. Sem contar que, na hora do trabalho, a pessoa se divertirá jogando futebol. Hilário Franco Júnior, historiador da Universidade de São Paulo, defende, em sua obra “A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura”, que o futebol é uma representação do mundo contemporâneo. Para isso, constrói metáforas do futebol em cinco áreas do conhecimento: sociologia, antropologia, religião, psicologia e linguística. A metáfora religiosa construída para o futebol consegue explicar o papel do jogador de futebol no imaginário da população. Ele parte de um lugar comum, o de que futebol é religião, e a partir daí desenvolve a sua comparação. Dessa maneira, ele abre o capítulo com a frase: “Se futebol é religião, é natural a reverência de que são objeto os seus principais personagens, os jogadores, alguns comparados a deuses” 21. Mais adiante no
21. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 259.
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texto ele desenvolve a ideia e conclui que os deuses são os times de futebol, e que os jogadores são, na verdade, sacerdotes da religião.
A questão é que, mesmo sem a perspectiva de poderem chegar ao futebol profissional, muitos dos jovens que desistem pelo caminho continuam praticando o esporte de maneira amadora, nos três ambientes do futebol
O torcedor, que assume papel de fiel, não muda de time conforme
amador estudados aqui: o jogado nos clubes de elite, o da várzea tradicional, e o
mudam os jogadores da sua equipe. Da mesma maneira que um fiel não muda
praticado em campos da Prefeitura, ainda que sem a organização estruturada
de religião quando um sacerdote morre, ou se desliga da mesma. No futebol
da várzea tradicional. Pude perceber que muitos dos jogadores, em qualquer
moderno, essa relação fica ainda mais clara com jogadores que trocam
uma das categorias, tentaram se tornar profissionais quando jovens, ou ao
constantemente de time. Nas palavras do historiador: “em certo momento
menos tiveram esse sonho.
das ciências religiosas os santos foram vistos como cristianização dos heróis do paganismo, e a estes é que os jogadores corresponderiam. A favor dessa
Pedro Figueira, jogador da seleção do Esporte Clube Pinheiros, clube de
antologia está o sentido etimológico de ‘herói’ – ‘guardião’, ‘defensor’, ‘protetor’,
elite da cidade de São Paulo, e do Hermanos de Pelé, um time da nova cena
exatamente a função que se espera que o futebolista exerça pelo seu clube.
do futebol amador da cidade, contou que desde pequeno tinha esse sonho.
Se adaptarmos ao futebol a classificação dos seres proposta no século v a.C.
Sempre gostou de jogar futebol e via na vida de “boleiro” a melhor carreira
pelo poeta grego Píndaro – deuses, heróis, humanos – os primeiros seriam os
a seguir. Com o passar dos anos, percebendo que a vida de um jogador
clubes, os segundos os jogadores, os terceiros os torcedores” 22.
profissional não era tão “bela” quanto ele imaginava, acabou desistindo da ideia.
No Brasil, devido à cultura futebolística, é muito comum as pessoas
Ao chegar no primeiro ano do ensino médio, então com quatorze anos,
torcerem por algum time de futebol profissional. Desde que nascem, os
Pedro começou a treinar no Nacional Atlético Clube, time tradicional da cidade
brasileiros já têm definido um time para o qual deverão torcer. Desta maneira,
de São Paulo. Localizado no bairro da Lapa, o clube que foi fundado em 1919, não
boa parte dos jogadores de futebol, tanto do amador como do profissional,
vive mais os seus tempos de glória, quando participava costumeiramente da
tem a predileção por um time de infância. Ou seja, os profissionais, antes de
primeira divisão do Campeonato Paulista de Futebol. Em 2015 está disputando
serem ídolos (heróis, na conceituação de Hilário Franco Júnior), são também
a série A-3 do paulista, a terceira divisão do campeonato. A tradição em revelar
fiéis.
bons jogadores sempre acompanhou o Nacional. Dessa maneira, o clube se mantém ativo tendo categorias de base muito fortes, apesar do profissional É na busca por se tornarem famosos, e também pela qualidade de vida
não figurar mais entre as divisões de elite do futebol estadual.
que é vendida pela mídia, que muitos garotos buscam se tornarem jogadores profissionais.
Pedro conta que com o passar dos anos teve que fazer uma escolha. Para continuar jogando no Nacional, teria que sair da escola e abrir mão dos estudos
A questão é que o futebol profissional não tem lugar para todos os que
de qualidade que os seus pais lhe proporcionavam, para poder treinar em dois
desejam seguir a carreira. Nilsão, volante do Inajar de Souza, time de futebol de
turnos (manhã e tarde). Escolheu continuar estudando em uma boa escola.
várzea tradicional da zona norte de São Paulo, em um dos nossos encontros,
Sabia que o fato de treinar no Nacional não lhe daria a certeza de se tornar um
pontuou muito bem a vida de quem tenta se tornar jogador de futebol: “é muita
profissional, que aquilo lhe garantiria uma remota oportunidade de alcançar
desilusão. Viver de futebol é muita desilusão”.
seu sonho de criança. Quando tomou essa decisão ele estava começando o “terceiro colegial”, e sem querer parar de jogar futebol, voltou a treinar no
22. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 261.
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Pinheiros, clube ao qual sempre foi associado. 83
Essa volta repentina para o futebol no clube proporcionou para ele uma
campeão tinha tratamento de luxo. Ele era jogador do time da AG Madeiras,
ótima oportunidade. Através do contato com outros sócios ele conseguiu ir
uma empresa do ramo de madeiras e ferragens localizada no Brás, em São
para os Estados Unidos e fez universidade lá. Pedro tinha bolsa atlética, era
Paulo. Como o dono da empresa gostava de futebol e acreditava que vencer a
jogador de futebol da Wingate University, e pagava uma pequena parcela da
Copa Kaiser seria uma propaganda importante para a sua loja, proporcionava
mensalidade da universidade justamente por ser do time. De certa forma,
muitas “mordomias” para seus atletas. Todos eram empregados na empresa, e
apesar de não ter se tornado jogador de futebol profissional, o esporte abriu
além do salário como funcionário, a cada jogo ganhavam o “bicho”.
as portas para uma oportunidade que poucas pessoas têm no Brasil. Ele estudou quatro anos fora do país, conheceu outra língua e outra cultura. Além
- “Era a maior mordomia, a gente jogava no domingo e ninguém ia
disso, jogou futebol de maneira extremamente competitiva. Ele conta que o
trabalhar na segunda, o chefe deixava. A gente estreava uniforme novo quase
nível dos jogadores do campeonato universitário nos EUA era alto, existiam
todo jogo. Alguns dias antes da final ele alugou quartos em um hotel, ficamos
muitos estrangeiros nos times das universidades, e que a preparação física era
lá desde quarta-feira comendo e descansando bem para jogar só no domingo”
impressionante.
– disse Nilsão, enquanto relembrava dos tempos bons que passou no futebol de várzea.
- “Durante a pré-temporada, no começo do ano, a gente treinava três vezes por dia, e em dois deles fazíamos treinos físicos cansativos. A rotina era bastante desgastante. Quando começavam os campeonatos a gente treinava menos, mas tínhamos que viajar muito e era muito complicado assistir as aulas” – explicou Pedro, sobre a sua rotina de então. Ele revelou que em alguns momentos jogar futebol deixou de ser uma coisa prazerosa, como acontecia quando era criança. Nilsão não teve a mesma “sorte”. Quando tinha dezesseis anos estava procurando times para poder ingressar na categoria de base e quem sabe virar jogador. Porém, acabou tendo uma filha, e com a responsabilidade de ser pai, largou o futuro incerto do futebol, que naquela época ainda não dava nenhum dinheiro, para começar a trabalhar e sustentar a família. Vinte anos depois de ter desistido da carreira de ser jogador profissional, Nilsão ainda joga fielmente aos sábados no Inajar de Souza e às sextas-feiras em uma quadra society alugada por ele e mais alguns amigos. Durante esses vinte anos, ele garante que viveu muita coisa no futebol de várzea da cidade de São Paulo. Jogou por alguns times diferentes e conseguiu ganhar três vezes a Copa Kaiser, campeonato que teve a sua última edição em 2014, e que era o mais disputado entre os times de várzea da capital paulista. Nenhuma delas pelo Inajar. Nilsão conta que em um dos anos que foi 84
- “E por que você saiu de lá?” – perguntei. - “A sociedade que mantinha a loja acabou, aí não tinham como manter o time com a mesma estrutura” – contou. - “Foi aí que você começou a jogar aqui no Inajar?” – perguntei imaginando que ele era um jogador recente na história do time. - “Não, eu jogo aqui desde moleque, desde os quinze, dezesseis anos. Todas as vezes eu saia daqui para jogar em um outro lugar porque me pagavam mais. Mas eu gosto de jogar aqui, eu enfrentei o Inajar duas vezes na Kaiser e foi foda” – contou como quem confessasse uma grande traição. Nas duas vezes que jogou contra o Índião, Nilsão contou que foi complicado, que ele é muito identificado com o time e que se sentiu mal de jogar contra. Ambas as vezes ele saiu vitorioso, mas com um gosto amargo na boca. Hoje ele assume que não faria mais essa troca, seus filhos gostam do Inajar e pedem para que ele jogue lá. Nilsão é completamente identificado com o clube que defende, aproximando-se muito da ideia de sacerdote defendida por Franco Júnior. No último jogo do Inajar que acompanhei, realizado no bairro do Parque São Domingos, zona noroeste da cidade, ele começou no banco, disse que estava 85
se curando de uma dengue e se sentia fraco. Marcelo, na posição de técnico
- “Ela (a esposa) queria a minha total atenção. Como eu gostava de jogar
acatou o pedido do jogador. Mas foi rapidamente cobrado pelos presentes
no Hermanos e aquilo era uma coisa que me fazia muito bem, ela se sentia
no local. Seu Jura, vice-presidente do time de futebol do Inajar, e um dos
traída pelo futebol, já que naquele momento do jogo eu não dava atenção
fundadores do time não conteve as palavras.
para ela” – o casamento não terminou por isso, contou ele, houveram muitos outros motivos. Mas poder voltar a jogar no seu time, com os seus amigos, com
- “O Marcelo, porque ele tá no banco? Tem que por ele para jogar!” – indagou. A pergunta foi em tom de brincadeira, mas fazendo uma cobrança
frequência semanal, foi uma das coisas que fez com que superasse bem o fim do relacionamento.
real. Apesar de saberem que o futebol não vai mais trazer um conforto - “Ele disse que está doente, que não ia conseguir jogar hoje” – respondeu Marcelo, na defensiva. - “Doente? Ah não, ele tem que jogar!” – Completou Jura. Apesar da pressão, Marcelo não colocou o jogador, e disse para Nilsão ficar tranquilo. Porém, como ele era o único reserva de linha no dia, não demorou muito até que precisasse entrar. Um dos garotos que estava na partida havia se machucado em uma dividida e não conseguiria continuar no jogo, obrigando o técnico a fazer a alteração. Na volta do jogo, pude conversar mais um pouco com o Nilson. No carro ele revelou que sabia que teria cobrança em casa. Disse para a esposa que saíra para o jogo apenas para ajudar o Marcelo, que não iria jogar. Como jogou, sabia que ela iria ficar brava e que isso seria um problema: - “Pior que ela falou: ‘eu vou ficar cuidando de você a semana toda, para você ir jogar bola no sábado, é sempre assim’” – completou Nilsão, que apesar de saber que compraria uma briga com a esposa, não resistiu à vontade e foi para o jogo. Essa relação dos jogadores com o seu clube, no futebol amador de São Paulo, é sempre muito complicada. E não está relacionada ao tipo de futebol praticado pelo jogador. Histórias como essa do Nilsão eu escutei diversas vezes, nos três ambientes que visitei. Luís Guilherme, o zagueiro Gueme do Hermanos de Pelé, contou que enquanto foi casado, sua ex-esposa encarava os jogos do Hermanos como uma amante do marido. 86
econômico, que não ganharão mais dinheiro, esses homens continuam jogando. Mesmo que para isso tenham que comprar briga em casa. Como pude perceber, os motivos para essa escolha não são tão evidentes. Em boa parte, eles não retiram a sua renda principal do futebol, ainda perdem grande parte dos seus finais de semana sem se encontrar com seus familiares. Estes são motivos para não jogar que estão presentes nos três tipos de futebol amador da cidade. Mesmo assim, uma infinidade de jogadores continua ocupando os campos da cidade. Cada jogador tem o seu próprio motivo para continuar jogando futebol. Mas como a prática deste esporte, pelo número de jogadores, não é um fato isolado em um grupo pequeno, não podemos pensá-la dessa maneira. Logo, existe alguma motivação social que faz com que todas essas pessoas não consigam abandonar os campos de futebol da cidade, mesmo que em um primeiro olhar tal prática pareça só trazer malefícios. Roberto da Matta, em sua obra “Universo do futebol”, busca compreender qual a importância dos jogos para a sociedade. Na sua visão, é equivocado pensar que a sociedade e o esporte praticado por ela estão desassociados. Nas suas palavras: “enquanto uma atividade da sociedade, o esporte é a própria sociedade exprimindo-se por meio de uma certa perspectiva, regras, relações, objetos, gestos, ideologias etc., permitindo, assim, abrir um espaço social determinado: o espaço do esporte e do jogo. É assim, suponho, que uma produtiva ideologia do esporte pode ser praticada, sem os riscos das reificações e projeções rotineiras, quando o esporte é tratado como um epifenômeno ou atividade dispensável e secundária e a sociedade como uma 87
realidade individualizada e monolítica” 23. Ou seja, segundo o autor, é impossível pensar a prática esportiva desligada da sociedade em que está inserida.
Times como o Hermanos de Pelé surgiram a partir do final da década de 1990. Com o crescimento da população de renda média observado nas últimas décadas, um novo perfil de jogadores de futebol se desenhou. Eles se
No futebol amador praticado na cidade de São Paulo, isso não é diferente.
reconheciam principalmente como grupos de conhecidos do trabalho ou do
Até é possível que times com características semelhantes aos encontrados
colégio, e que queriam jogar futebol. Porém, sem o poder aquisitivo para se
no futebol amador de São Paulo existam em outros lugares. O Brasil não é
filiarem aos clubes de elite, e sem a inserção na várzea tradicional, começaram
único país marcado por uma grande desigualdade social e que nas últimas
a se organizarem por si mesmos. Ocuparam os campos públicos da cidade e
décadas apresentou um crescimento expressivo da população com renda
mais atualmente também alugam campos ou quadras para jogar.
intermediária. Essa é uma realidade de boa parte da América Latina, e sabemos que os nossos vizinhos são tão apaixonados por futebol quanto nós. Porém,
A criação deste novo tipo de futebol amador parece assim fortemente
são culturas diferentes, e é plausível pensar que times iguais aos nossos não
associada ao que vem ocorrendo no país, onde o estrato intermediário da
surgiriam em outro lugar.
pirâmide social vem “engordando” nas últimas décadas. Segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas, em 2002 a classe C, com renda familiar entre
O Inajar de Souza é reconhecido como uma marca da zona norte de São Paulo. É tão forte que tem penetração nas escolas do bairro, por exemplo.
R$1.065,00 até R$4.591,00 mensais, correspondia a 44% da população brasileira, e já em 2008 ela correspondia a 52% 24.
Como contou Marcelo, eles disponibilizam treinos na quadra poliesportiva da escola pública que fica na rua da sede do clube para os garotos do bairro. Além
Hilário Franco Júnior também pensa no futebol como uma metáfora da
disso, no dia das crianças, mesmo sem a ajuda da Prefeitura da cidade, eles
sociedade na qual está inserido. O autor acredita que uma das metáforas mais
contratam diversos brinquedos infantis como pula-pula e escorregadores, e
fortes existentes é a metáfora antropológica. Na sua visão, o futebol fortalece
colocam na rua, para que todas as crianças possam se divertir. Em dias de
um espírito clânico bastante claro na sociedade contemporânea. Organizados
ensaio do bloco de carnaval do Inajar de Souza, segundo ele, a rua fica tomada.
em volta dos times que defendem, os jogadores são guardiões do “totem” de toda
São mais de dez mil pessoas na rua, sendo preciso até interromper o trânsito
uma comunidade representada por eles. Nas suas palavras: “A palavra totem,
na Avenida Inajar de Souza para que não ocorram acidentes.
vinda do vocabulário do índios norte-americanos Ojibwa com o significado de ‘sinal’, ‘marca’, ‘família’, indica objeto que serve ao mesmo tempo de identificador
O Pinheiros, apesar de ter sido fundado pela elite paulistana com a
de pertencimento à comunidade e de cimentador dessa identidade coletiva.
intenção de manter forte as suas características europeias, não fica de fora
É representação de animal (às vezes de vegetal, mais raramente de objeto),
desta realidade. O futebol é tratado como esporte de entretenimento, mas
considerado ancestral e protetor do grupo. Sem entrar na discussão muito
nas categorias adultas, é o que é mais valorizado e praticado pelos sócios.
técnica, que não interessa aqui, do significado do totemismo, quer dizer, da
As demais categorias precisam de militantes e jogadores profissionais
organização social centrada no totem, lembramos apenas a antiga definição
contratados, inclusive alguns estrangeiros, para que o time tenha sucesso no
do antropólogo norte-americano Alexander Goldenweiser: ‘socialização de
ambiente profissional. Porém, o campeonato interno de futebol é formado por
objetos e símbolos de valor emocional’. Ora, como a imagem de um clube de
muitos times, revelando a predileção brasileira por esse esporte.
futebol inegavelmente é objeto de alto valor emocional compartilhado pelos
23. DAMATTA, Roberto. Esporte na sociedade: um ensaio sobre o futebol brasileiro. In: DAMATTA, Roberto (org.). Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982, p. 24.
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24. NERI, Marcelo Cortes (coord.). A nova classe média. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas / Instituto Brasileiro de Economia / Centro de Políticas Sociais, p. 29. Disponível em: <http://www.cps. fgv.br/cps/classe_media/>. Acesso em: 01 abr. 2015.
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seus seguidores – que chamam a camisa com as cores e brasão de ‘manto sagrado’ – pode-se dizer que eles compõem uma sociedade totêmica” . 25
- “Os mais novos costumam mudar mais de time, depois de um tempo a gente não quer mais mudar, a gente gosta de jogar com quem a gente conhece. Eu mesmo fui chamado para jogar no time que é o atual campeão, mas não quis
O historiador está se referindo aos times profissionais, mas podemos
ir. Eles são muito ‘malas’. E eu jogo num time de mais molecada, que eu me dou
transpor a sua definição ao futebol amador. Na cidade de São Paulo, nos
melhor”. – me contou Pedro. Mais tarde, no mesmo dia, ele viria a perder de
três tipos estudados só percebi a presença de uma torcida estruturalmente
quatro a um para o time que o havia convidado para jogar.
organizada no Inajar de Souza. Em todos os jogos, pelo menos uma parte dos ritmistas da bateria foi acompanhar os jogadores, bandeiras e faixas com
Luís Guilherme me revelou ainda uma outra característica do Hermanos
os dizeres do time eram sempre presentes. O que evidencia a característica
de Pelé. Pelo fato de serem todos amigos, de se conhecerem há muito tempo,
clânica deste tipo de futebol.
a torcida se confunde com os jogadores. Para eles, o que mais os motiva a participar dos jogos não é pensar na vitória, é sempre pensar que algum amigo
Nos outros dois tipos, tanto no ECP, quanto no Hermanos de Pelé, não observei a presença de torcidas organizadas. A plateia dos jogos se resumia
seu adoraria estar ali jogando e se entregando no seu lugar, mas que por algum motivo ele vai ficar só na torcida naquele dia.
aos parentes e amigos dos jogadores. Porém, havia uma torcida, e de fato, como nos jogos do Inajar, os torcedores ficavam nervosos e se importavam com o resultado.
- “Pra gente o que mais motiva não é pensar em como vamos ganhar. É pensar que nós estamos jogando e outras pessoas próximas a gente não podem. Motiva muito olhar pro Ro (Rodrigo, outro jogador da equipe) machucado e ver
Nessas duas modalidades, ficou claro que muitas vezes a torcida era para
ele indo em quase todos os jogos acompanhar a gente” – me explicou Gueme,
apenas um jogador. No jogo do Pinheiros, por exemplo, o pai do Pedro Figueira
durante a conversa que tivemos. Apesar disso, ele revela que não sabe o que
acompanhava o seu jogo, e ficava nervoso quando os companheiros do seu
será do time em um futuro distante. Afinal o time ainda está muito vinculado
filho não correspondiam em campo. Apesar do torcedor estar lá devido à sua
aos seus próprios jogadores, sem ter uma estrutura para se manter sozinho
afinidade com conhecido íntimo, o fato deste jogador depender do time, fazia
como instituição.
com que a torcida fosse para toda a equipe. Dessa maneira, é possível perceber que todos eles, sem importar de No caso do Pinheiros, que tem uma estrutura de jogos e campeonatos
qual modalidade participam, se reconhecem como imagem e semelhança dos
montada há muitos anos, e que é disponibilizada pela diretoria para o
seus times. Não foram poucas as vezes que, durante as entrevistas, escutei de
entretenimento dos próprios sócios, essa relação clânica fica clara. Pedro
jogadores frases que confundiam a pessoa física com o time.
conta que no campeonato interno do clube existe a possibilidade dos jogadores mudarem de time durante o campeonato. E que de fato acaba se
O exemplo mais claro disso é a vida de Marcelo, técnico e presidente do
fortalecendo uma espécie de mercado de transações de jogadores, onde um
Inajar de Souza. Em um dos encontros ele contou que foi jogador profissional
tenta convencer o outro a participar do seu próprio time.
de futebol. Entre vários times, jogou no Anderlecht, da Bélgica, e no América, do México, dois dos times com as maiores torcidas de seus países. Mas que sempre que voltava para o Brasil de férias não deixava de jogar no Inajar. Ele fora criado ali, seu pai fundou o time, e todas as vezes que podia convidava o
25. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 220.
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filho para participar dos jogos. Ele gostava de jogar e, quando se aposentou 91
do futebol profissional, virou jogador de várzea. Hoje, apenas comanda o time
O autor quase sempre trata da relação do futebol com as seleções de seus
e o organiza, tentando sempre manter viva a cultura de quando o Inajar foi
países, principalmente a seleção brasileira. A questão, porém, pode ser aplicada
fundado pelo seu pai. Ele revela:
facilmente ao ambiente do futebol amador de São Paulo. Os jogadores se desligam das suas realidades cotidianas e por um momento defendem o que
- “Hoje eu não sei mais o que é a vida sem isso aqui. Eu tenho uma chácara
o autor chama de “identidade nacional em dimensão lúdica”, por um momento
em Mairiporã, meus filhos e a minha mulher me pedem para irmos para lá no
eles são os defensores daquelas “cores”, daquele “brasão”, como disse Hilário
final de semana. Quando eu vou e não assisto o jogo eu fico mal humorado, não
Franco Júnior. Na hora do jogo, eles se apoderam para defender seu time e seu
consigo ficar tranquilo lá sabendo que está tendo jogo em São Paulo” – conta.
grupo. Seja ele respaldado por toda a comunidade que representa, ou apenas
Mostrando que a sua relação com o time não é apenas de técnico, e que muitas
por uma pequena parcela de amigos-jogadores.
vezes é uma relação tão próxima quanto a que tem com a sua família. Basta ver que ele abre mão de momentos com ela para comandar o time.
Outra metáfora criada por Hilário Franco Júnior é a de que o futebol é um retrato da sociedade do ponto de vista psicológico. Para ele é inegável
Wisnik, professor de literatura brasileira na Universidade de São Paulo,
que o campo de futebol é um dos ambientes psicologicamente mais intensos,
acredita que o futebol se apresenta como um remédio da sociedade moderna.
principalmente para o jogador de futebol profissional que vive aquela rotina
Ele defende que o ser humano tem uma natureza violenta por si só, e que
descolada da realidade da maioria da população por quinze ou vinte anos.
em alguns momentos, para sanar essa necessidade de violência, as guerras
Quando está de volta à vida “comum”, o jogador tem dificuldade para se
se faziam necessárias. Na sua visão, com o fortalecimento da era industrial
readequar ao dia a dia sem treinos e jogos, e muitos deles acabam retornando
as guerras entre as principais potências deixaram o plano bélico e passaram
para o futebol no papel de técnico.
para o plano econômico (entre países com desigualdade militar elas são mais frequentes). Dessa maneira, o futebol surgiu como um meio capaz de saciar a
Apesar de ser um jogo coletivo, e de ter implicações coletivas, o futebol
necessidade de violência de todo ser humano. O autor transcende essa ideia
também trabalha com a identidade de cada indivíduo. Nas últimas décadas se
e defende que “o futebol libera uma adrenalina real, ‘menos poderosa que
tornou frequente a presença de psicólogos nas comissões técnicas do futebol
a do combate físico’ mas de todo modo efetiva, na forma de um compacto
profissional, evidenciando a pressão a que esses jogadores estão expostos. No
emocional. O futebol reconstituiria assim a identidade nacional em dimensão
amador o ambiente não é de tanta pressão, mas outros aspectos psicológicos
lúdica, de maneira ‘temporária e facultativa’, diluindo no jogo o seu núcleo
trabalhados pelo autor se repetem nas três formas de futebol estudadas.
belicista, sem deixar de contemplar aquele impulso que a falta de guerras e aventuras deixa sem gratificação” 26.
A primeira delas é que o futebol se desenha como uma maneira constante de conseguir o sucesso pessoal. Apesar de contabilizarmos os pontos em
Ou seja, na visão do autor, o futebol é ainda uma maneira de o jogador
grupo, os jogadores são responsáveis por gestos técnicos individualizados. O
corresponder à uma necessidade psicológica social. O ser humano precisa da
grande goleiro que evita a maioria dos gols e o artilheiro do time quase sempre
batalha, e da violência, e o futebol é uma saída para essa necessidade humana.
têm destaque sobre os demais jogadores. Isso se dá também nos jogos amadores de futebol.
26. WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 396.
Mesmo sem ter participado da final da Copa AE 2002 por estar machucado, Rodrigo, atacante do Hermanos de Pelé, fez questão de relembrar
92
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outro jogador, o Vittor, que foi o artilheiro da Copa, que ele (Rodrigo) ainda
Apesar dos jogos do futebol amador de São Paulo não repercutirem
era o maior artilheiro da história do Hermanos, “com muitos gols na frente
como o futebol profissional, essa atitude pode ser facilmente encontrada em
do segundo”, como gosta de afirmar, o que mostra como essas medidas são
ambos os tipos de futebol estudado.
importantes para a satisfação pessoal dos jogadores. Os jogadores também buscam a vitória a todo instante. Jogar machucado, Ou então Nilsão, quando viu Seu Jura cobrando o técnico Marcelo para
ou fora das suas condições ideais de jogo, foi uma das coisas mais comuns
que ele entrasse em campo. Que apesar de ter ficado sem graça, por ver
que encontrei durante a pesquisa, em qualquer um dos ambientes estudados.
seu amigo em saia justa por um pedido seu de ficar no banco, gostou de ter
Qual seria o motivo pessoal do Nilsão em jogar, mesmo depois de ter ficado
reconhecido o seu lugar como titular absoluto do time.
doente toda a semana, se não a forte vontade de vencer? Ele deveria buscála, mesmo que para isso fosse necessário colocar em risco a sua própria
Até mesmo Pedro, que mesmo depois de ter perdido para o time
saúde. O sentimento de que não estaria fazendo todo o possível pela vitória
campeão do campeonato interno do ECP, foi convidado novamente, dessa vez
consumiria todo o seu final de semana. Quando voltávamos depois do jogo
pelo técnico da equipe, para entrar no time.
para a sede do Inajar ele revelou: a princípio ele sairia de casa apenas para
- “Quando quiser vir jogar pela gente será muito bem-vindo” – disse o técnico do atual campeão. - “É, vamos ver o que acontece lá pra frente” - desconversou o jogador, depois de ter dado uma risada sem graça, embora aparentemente satisfeita. Outra característica psicológica que podemos observar tanto no futebol profissional como no amador é o que o autor chama de “obsessão pela vitória”. Essa característica é bastante difundida no meio capitalista, ganhar sempre, vencer a qualquer custo, é uma das coisas mais difundidas atualmente. Porém, nas palavras do autor: “na maioria das atividades o sucesso não se torna público, fica restrito aos próprios limites do segmento profissional. Com futebolistas ocorre o oposto, sua profissão é exatamente ultrapassar os rivais, conseguir vitórias conhecidas por todos. Seus sucessos e fracassos repercutem, são amplamente informados e comentados, despertam amores e ódios, amores e desprezo. Mesmo jogadores famosos vivem na inconstância da vitória” 27.
ajudar Marcelo, dirigindo o ônibus até o local do jogo. Como se sentiu melhor ele levou a chuteira para poder ficar no banco. Na falta de outros jogadores reservas acabou entrando na partida. Mesmo com a derrota, ele aparentava estar muito feliz por poder ter jogado. Um dos argumentos de Pedro para a derrota do seu time no jogo do campeonato interno do Esporte Clube Pinheiros foi a de que o time estava incompleto. Muitos jogadores não puderam comparecer, e dentre os doze que foram, eles tinham três machucados. Os três que jogaram no esforço estavam com pouca ou quase nenhuma mobilidade. Eu, que estava assistindo aquele time jogar pela primeira vez, pessoalmente tive a impressão de que o centroavante não jogava tão bem. Porém, ele era um dos machucados, e Pedro garantiu que era um dos melhores do time, mas que hoje não conseguia jogar devido à lesão no joelho. Nos jogos do Hermanos de Pelé, essa relação ficou evidente quando reconheci no Rodrigo um jogador que foi ser técnico do time em um importante jogo, justamente por não poder jogar. Mesmo sem nenhuma expectativa de participar do jogo, por estar se recuperando de uma séria lesão no joelho, ele foi para o campo com a intenção de assumir um papel que ele nunca tinha assumido antes. Quando chegou ao jogo, contou que naquele dia não havia
27. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 305.
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produzido nada no trabalho, apenas pensando em como ajudar o time. Ciente 95
de que aquele poderia ser o jogo do primeiro título do time, Rodrigo, que já havia
situações intermediárias, ‘joga-se como se vive’, definiu o espanhol Miguel
participado como técnico dos outros jogos da Copa AE 2002, se preparou para
Askargota, técnico da Bolívia na Copa de 1994” 29.
assumir aquela função com a qual não estava acostumado, mostrando que tudo valeria por aquela vitória.
Os jogos que observei nos três tipos de futebol que estou estudando - a várzea tradicional, o futebol jogado nos clubes de elite e o novo futebol
Além do desejo interno de obter a vitória a qualquer custo, que é muito
amador da cidade de São Paulo, onde não se paga e nem se recebe para jogar
particular de todos os jogadores observados, pude perceber que eles estão
- mostraram muitas diferenças entre si, algumas delas relacionadas ao estilo
também preocupados com o fato de que a sua vitória seja reconhecida, cada
de jogo, outras devido ao lugar no qual é praticado.
um pela sua coletividade. Como disse Franco Júnior, a vitória no dia a dia não é divulgada, mas a vitória no campo de futebol é reconhecida por aqueles que
Dentro de campo, todos os jogadores pareciam se entregar ao máximo na
importam para os jogadores. O autor, como trata do futebol profissional, está
busca da vitória, como já busquei evidenciar na discussão sobre as identidades
se referindo à cobertura jornalística dos jogos, e que portanto é divulgada para
individuais. Logo, a ideia de que um time de futebol se entrega mais que o outro,
boa parte da população.
não cabe nestes casos.
No futebol amador isso não acontece, mas para o jogador destes times
Porém, fora dele, o tratamento que é dado para o jogo de futebol
talvez isso não seja o mais importante. Aparecer no noticiário diário, talvez
é muito claro. No Inajar de Souza, como o futebol é um dos poucos meios
não seja aquilo que desejam. O que parecem querer é o reconhecimento pelos
de entretenimento e lazer que as pessoas mais pobres têm, o jogo no final
seus iguais, que tenham com seus parentes, amigos e vizinhos o respaldo que
de semana tem uma importância ímpar. Todos os envolvidos com o time
os jogadores profissionais têm na grande escala. Em qualquer um dos tipos
se resguardam para o evento. Definitivamente, aquele momento é o mais
de futebol, o respaldo mais importante na hora dos jogos era dos parentes.
importante da semana para aquelas pessoas.
Da mesma forma que o Pedro gosta que seu pai vá assistir o seu jogo, Nilsão atendeu o desejo do filho e hoje joga só pelo Inajar. Thiago, goleiro do Hermanos de Pelé, logo que o jogo do título chegou ao fim, foi buscar a sua filha que acompanhara todo o jogo nos braços da mãe.
arrumar para a hora do jogo. Quando o ônibus chega, todos se apressam para partir ao local do jogo. A partir daquele momento, todos são Inajar e defendem as cores da agremiação. Exemplo disso, é que a rainha de bateria do bloco de
Além da identidade individual, o futebol também trabalha com as
carnaval do Inajar de Souza, acompanha quase todos os jogos e torce como
identidades coletivas. É neste momento que pude perceber o maior número
poucos na arquibancada. Ela ainda leva a sua filha, uma criança de quase três
de diferenças entre os jogadores do futebol amador, que até então se
anos, e conta que um dos seus maiores desejos é que a filha goste tanto do
comportavam de maneira muito similar. Na visão de Hilário Franco Júnior, “os
quanto ela própria.
esportes parecem sintetizar e expressar as psicologias coletivas (...) o futebol se tornaria a maior manifestação da alma coletiva das sociedades modernas” . Partindo dessa ideia, ele completa: “do rígido planejamento tático do alemão
28
aos malabarismos individuais dos africanos, passando por todo um leque de 28. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 315.
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Desde cedo, as pessoas já chegam à sede do clube e começam a se
Para os jogadores do Esporte Clube Pinheiros, a relação com o time, antes do jogo começar, é menos intensa. Para eles, o futebol que o clube proporciona é uma maneira de se entreter entre as todas as possibilidades que as pessoas
29. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 315.
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da elite paulistana têm. Exemplo disso é a dificuldade que o Evandro, técnico
Os dois times em campo sempre tentavam sair jogando desde a sua
da seleção do clube, tem para montar os times. Na sua visão, muitos jogadores
defesa até o ataque, construindo as jogadas desde o começo. Nem mesmo
deixam de participar dos jogos por que preferem participar de outros eventos,
os goleiros repunham a bola em jogo com chutões, eles sempre procuravam
que ele julga serem menos importantes.
algum jogador que estivesse próximo e desmarcado para fazer a reposição com a mão.
No Hermanos de Pelé, pude perceber características que encontrei também nos times dos outros dois tipos de futebol. Quando o jogo é de
Para Chico Buarque, aqueles seriam os donos do campo, muito mais
campeonato a preparação é diferente, os jogadores pensam a semana toda
apegados ao posicionamento tático e à sua movimentação individual, do que à
naquele momento. Quando não existe jogo de campeonato programado para
relação próxima com a bola. Ironicamente, eles atuavam no melhor gramado
o final de semana é complicado conseguir número suficiente de jogadores para
possível. Além disso, eles têm a bagagem histórica que carregam. São os
marcar um jogo. Ou seja, na hora do amistoso o futebol se torna apenas mais
herdeiros da elite que trouxe o futebol para o país, e portanto, são os mais
uma maneira de entretenimento, uma das opções entre as várias que aquelas
próximos do jogo praticado na Europa.
pessoas têm. Na hora do campeonato, ele se torna objeto de obsessão dos jogadores, que se preparam durante a semana para a partida.
Por outro lado, o futebol jogado na várzea tradicional era quase sempre baseado em ataques rápidos e lançamentos longos. De fato, o campo em
As diferenças não aparecem apenas no relacionamento dos jogadores
péssimas condições dificultava a troca de passes, porém, o excessivo número
com seus times. A maneira como jogam também é diferente. Resgatando a
de buracos também dificultaria a condução de bola, e nem assim os jogadores
ideia de “donos do campo” e “donos da bola”, de Chico Buarque, que eu já citei
deixavam de tentar driblar. Pelo contrário, muitas vezes, a tentativa de drible
no começo do capítulo, pude perceber que o futebol se diferencia bastante
era incentivada pelo técnico Marcelo.
nos ambientes estudados. Na visão de Wisnik, essa atitude dribladora do brasileiro, que pude No Esporte Clube Pinheiros o futebol é muito mais tático. Pedro, que
perceber principalmente na várzea, é uma herança do nosso processo de
também joga no Hermanos de Pelé, reconhece a diferença dos dois tipos de
abolição da escravatura. Um processo historicamente recente e que não
futebol.
ocorreu devido à pressão interna, e sim devido à uma imposição política e econômica externa. Nas suas palavras: “numa sociedade em que o trabalho
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- “Eu acho que o jogo no Pinheiros é mais técnico e tático, por causa do
manual era estigmatizado e em que o trabalho escravo recebia o nome de
campo bom. Na várzea (o Pedro identifica o Hermanos de Pelé como um time
obrigação, ‘dar pontapés numa bola’, ao arrepio de qualquer obrigação, ‘era um
de várzea, mas para o estudo, a equipe não se enquadra na várzea tradicional),
ato de emancipação’ do atavismo da condição escrava. (...) Mais do que qualquer
é necessário lidar com um monte de adversidades. O campo ruim, o juiz que
outro esporte, o futebol dava lugar a essa gana, da parte de descendentes de
favorece o dono da casa e a intimidação do adversário” – contou quando
escravos ou não, de brincar com a obrigação, de meter os pés pelas mãos e
perguntei o que ele via de diferente em cada um dos jogos. De fato, o jogo
de explorar a margem ampla e única de gratuidade, de invenção individual, de
no Pinheiros era muito centrado no toque de bola, haviam poucos dribles e
produtividade e ócio. (...) Nele, mulatos criam uma linguagem lúdica (a curvatura
lançamentos diretos da defesa para o ataque.
da reta e a quadratura do circo) na qual se costuram os fios mal amarrados da
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escravidão mal abolida e sem projeto, e que se convertem numa afirmação esplêndida de potência, que é ‘promessa de felicidade’” . 30
Por outro lado, a maneira que jogam futebol e a sua relação com a comunidade que representam e com os times que defendem é completamente diferente. Os jogadores do Inajar representam uma vanguarda, uma luta por
A criação da linguagem que Wisnik defende, e o tipo relação que os
uma vida melhor, uma tentativa de ascensão social de toda uma classe oprimida
jogadores têm com a bola ainda se fazem bastante presentes. Se os jogadores
historicamente. Até por isso têm o apoio incondicional da sua torcida, uma vez
do ECP são os donos do campo, os jogadores do Inajar são os donos da
que todos eles compartilham desses desejos.
bola. A qualidade do campo interfere no tipo de jogo, mas a forma de jogar e a concepção de tipo de futebol se fazem presentes mudando a maneira dos
O futebol no Hermanos está também relacionado ao entretenimento.
jogadores agirem. Todos os jogadores naquele campo querem insistentemente
Porém, não é negada a capacidade de fuga da realidade que o esporte
a bola, pedem ela, e quando têm a posse insistem em não se desfazer da mesma.
proporciona para essas pessoas. Apesar da vida mais confortável, eles não são plenos na sociedade de consumo atual, e veem no futebol um meio para
No Hermanos de Pelé, a tentativa sempre é por um jogo de futebol
se realizar. Talvez por isso que a presença da torcida, apesar de pequena, seja
de mais toque de bola. Durante a conversa antes da final da Copa AE 2002,
mais comum do que nos jogos realizados nos clubes de elite. O próprio Pedro,
sabendo que o campo de society possibilitaria a troca de passes, foi pedido que
jogador dos dois tipos de futebol, assume essa ideia.
os jogadores se concentrassem nos passes e na atenção tática. Durante toda a partida a tentativa era justamente essa, de que o time controlasse a posse
É no Pinheiros que o futebol assume a sua característica única e exclusiva
de bola e buscasse o gol construindo a jogada desde a sua defesa. Porém,
de entretenimento. Ao que me parece, os jogadores se importam com o
o único gol do time no jogo saiu de uma jogada individual. Vittor conseguiu
resultado de maneira individualizada, eles querem ser campeões para saciar
um drible no meio de campo e lançou Pedro, um jogador de meio-campo que
a sua vontade própria de vitória. Como sabem que é necessário um time
se apresentou surpreendentemente no ataque. Ele ganhou do zagueiro na
forte, eles fazem concessões nas suas vontades para o melhor da equipe.
velocidade e tocou por cima do goleiro para o fundo do gol, mostrando que
A identificação com o clube e com seus companheiros de time vêm depois
apesar da intenção de serem os donos do campo, aquele time ainda depende
da vontade de vencer individualmente. Durante a nossa conversa, Evandro
muito da “irresponsabilidade” tática e da criatividade de seus jogadores.
revelou uma característica bastante singular dos sócios com filhos no clube. Quando uma criança vai para a seleção, ela não tem muita noção do que isso
Apesar da semelhança na atitude individual dos jogadores nos três tipos
significa. É seu pai que, em geral, fica orgulhoso do sucesso do filho, como se o
de futebol, no jogo e na identificação coletiva eles se diferenciam. Por um lado,
objetivo alcançado por este fosse um objetivo alcançado pelo próprio pai, que
podemos concluir que os jogadores procuram jogar futebol pelos mesmos
a partir deste momento começa a se vangloriar do sucesso perante os demais
motivos. Eles querem ser reconhecidos como vitoriosos pelos seus similares,
sócios, evidenciando como o sucesso individual é uma questão importante
querem abrandar o seu desejo por violência e pela competição imposta pela
para aqueles sócios-jogadores.
sociedade capitalista na qual estão inseridos. Ainda podem ter vivido muitos anos no futebol, e agora não sabem mais viver sem ele, não conseguem compreender a própria vida sem o apoio do futebol.
Mesmo com tantas diferenças, todas essas pessoas se relacionam com o futebol porque ele é um meio de expressão da própria sociedade brasileira. Como jogador de futebol amador, digo tranquilamente que esse esporte é um meio pelo qual todos nos reconhecemos e identificamos, com estes grupos de
30. WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 241-242.
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jogadores não poderia ser diferente. 101
A crônica de Chico Buarque nos conta sobre o primeiro jogo realizado no Brasil e jogado por brasileiros. Naquela ocasião, o “roubo” da bola, foi uma maneira de mostrar que aquele seria um esporte democrático, por mais que houvessem pressões para que isso não acontecesse. Hoje em dia, talvez por ainda terem de encarar campos ruins, os jogadores da várzea tradicional mostram que ainda são os responsáveis por manter vivo o “famoso” futebol brasileiro. O futebol de drible, de ginga, de lazer e certa “irresponsabilidade”. Mesmo o capitalismo pedindo cada vez mais “donos do campo”, jogadores que os clubes profissionais conseguiriam vender com maior facilidade para o exterior, ainda produzimos “donos da bola”, garotos que invejam e não querem dividir o objeto, que na visão de Wisnik é: “um fio que liga a infância e a vida adulta sem que um corte inevitável as separe” 31.
31. WISNIK, José Miguel. Veneno Remédio: o futebol e o Brasil, Companhia das Letras, 2008, São Paulo, p. 59
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103
CONCLUSテグ Prorrogaテァテ」o
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Comecei este livro me propondo a identificar as semelhanças e
Essa luta não é característica dos outros dois tipos de futebol, afinal
diferenças entre três tipos de futebol amador com os quais me deparei sendo
um é praticado pela elite econômica da cidade e o outro, principalmente,
jogador de uma dessas modalidades. Durante a produção da obra busquei
por jogadores de renda média. O que acontece no jogo é que essas pessoas,
evidenciar que essas são diferenças que ficam claras sobretudo do ponto de
muitas vezes, buscam se diferenciar do futebol de várzea tradicional. Exemplo
vista organizacional de cada um dos “futebóis” estudados.
disso é que os jogadores do Pinheiros não jogariam na várzea, segundo o técnico da seleção e um dos próprios jogadores. Times como o Hermanos de
Só de chegar aos locais do jogo pude perceber diferenças evidentes. O
Pelé e o Autônomos jogam nos mesmos campos que o Inajar, talvez por não
protocolo para entrar no Esporte Clube Pinheiros não poderia ser imaginado
terem acesso aos campos de qualidade dos clubes de elite. Ainda revelaram
em nenhum dos outros dois tipos de futebol. A qualidade do campo também
que seria difícil se inserirem na várzea tradicional, não surgiram na periferia
é um ponto a ser considerado, só o ECP eu vi jogar em um campo com grama
da cidade e não têm o apoio da comunidade local, como o Inajar tem. Sem
natural, de ótima qualidade, diga-se de passagem.
essa identificação, não conseguem o patrocínio necessário para manter times
Apesar de o futebol de várzea tradicional e o da nova cena do futebol
organizados como os da várzea tradicional.
amador da cidade serem jogados em campos similares entre si - na maioria
Apesar das diferenças em termos dos jogos, dos locais nos quais
das vezes de terra batida, e em algumas outras em campos de grama sintética
são realizados, e da relação próxima ou não com a torcida, os jogadores se
- o ambiente em um caso é completamente diferente em relação ao outro.
comportam de maneira muito similar, e todos se entregam em campo durante
Por exemplo, a presença fiel de torcedores nos jogos do Inajar de Souza,
toda a partida. Mas a principal semelhança é que todos eles se realizam naquele
time tradicional da várzea paulistana, é uma realidade que modifica muito o
campo, não importa a sua realidade econômica.
ambiente da partida, e que eu só pude perceber nesse tipo de futebol. Nos jogos do Hermanos de Pelé e do Autônomos, a torcida não se faz presente,
Eu sentia isso na pele todas as vezes que ia jogar, me desligava da minha
pelo menos não da maneira que ela acompanha os jogos do Inajar. A presença
realidade e colocava tudo naquele jogo. Todos os outros jogadores com o
de pessoas assistindo as partidas da nova cena do futebol amador é similar ao
qual conversei também me revelaram essa realidade. Apesar de jogarem em
público dos jogos do ECP. Em ambos os casos a plateia se resume à presença
ambientes completamente diferentes, jogar futebol para eles era uma maneira
de amigos e familiares que vão ali para torcer pelos seus conhecidos.
de se realizar, de se satisfazer em um momento diferente do seu cotidiano de trabalho, e de ter um possível destaque como os jogadores de futebol
Apesar das diferenças quanto à realidade dos torcedores nos três tipos
profissional têm.
de futebol, não posso dizer que os jogadores do Inajar se entregam mais por serem empurrados pela sua torcida. Dentro de campo a entrega de qualquer um
Para mim, escrever esse livro foi um movimento de autodescobrimento.
dos jogadores é a mesma. Eu mesmo nunca me entreguei pouco nos diversos
Olhando de fora pude me reconhecer em muitos dos jogadores, de qualquer
jogos sem torcida em que participei. Porém, a presença da torcida é reveladora
um dos tipos de futebol praticado. Ainda não sei responder o motivo pelo qual
de outra realidade: o Inajar é parte importante da sua comunidade e a torcida
gosto tanto de jogar futebol, mas posso afirmar que esse jogo, da maneira
acompanha o time porque se sente representada por aqueles onze jogadores.
amadora que é praticado em São Paulo, tem uma relevância social indiscutível.
Reconhece nos jogos de futebol do Índião, além de um lazer, um meio de se fazer
Justamente por ser um meio de sociabilidade, em uma sociedade cada vez
ouvir na luta diária por uma realidade melhor para a população mais pobre.
mais individualista, ele garante uma troca de conhecimentos e ideias que não existe de maneira tão grandiosa em outros ambientes, seja por ser uma prática
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difundida por toda a cidade e que tem um grande número de praticantes, mas principalmente por estar ligada tão intimamente à realidade brasileira.
Movimento semelhante ocorre no outro extremo do futebol amador de São Paulo, como é exemplo o Pinheiros, um dos clubes mais conhecidos da cidade. Jogar na seleção do Pinheiros não é coisa fácil, é preciso saber jogar. Mesmo
Eu sempre soube que o futebol é importante para o Brasil, afinal quase
o sócio que só joga por entretenimento é obrigado a manter relacionamentos
todos nós torcemos para um time e nos identificamos com ele. Porém, com o
próximos com outras pessoas. Apesar desse relacionamento se resumir ao
meu crescimento, que se confundiu com o “boom” do capitalismo no futebol,
convívio com a elite paulistana, não podemos negar que ao menos um espaço
injetando grandes quantidades de dinheiro no esporte profissional, pude
para discussão e conversa no clube exista. O contraste da relação do Evandro
perceber também que um tipo de futebol, que não tem destaque na grande
com o futebol que é praticado pelos sócios é o exemplo disso. Ele e o Pedro me
mídia, é mais importante para boa parte da população. O futebol amador, pelo
pareceram concordar que o futebol é mais do que entretenimento, e buscam
menos as três maneiras que identifiquei na cidade de São Paulo, são um campo
cotidianamente mudar essa realidade no clube, e aos poucos, vão ganhando o
fértil para mudanças estruturais. Afinal, é ali que aqueles jogadores se revelam
apoio de mais sócios e quem sabe um dia, consigam a abertura do clube para que
e se posicionam como agentes da sociedade na qual estão inseridos.
outros times, de realidades diferentes da deles, joguem no Pinheiros.
Este livro, ao final, me mostrou que nem o futebol, e nem qualquer outro
Responder a pergunta que me propus na introdução deste livro não é
esporte, são somente meios de se manter a saúde em dia. Quando desisti de
tão simples. Quando conversei com o Gueme, do Hermanos de Pelé, ele me
jogar futebol profissionalmente, de fato, era pior jogador do que os outros
revelou que um dos seus sonhos era ver o Hermanos caminhando com as suas
meninos, mas aquele ambiente não me agradou. Não me agradou porque se
próprias pernas, e compartilho desse ideal com ele. Ainda estamos muito longe
mostrou fechado, eu não podia falar, muito menos questionar o técnico da
disso, mas quem sabe um dia também não realizamos esse sonho. Manter um
equipe. Sabendo que eu não me adaptaria aquilo perdi a vontade que tinha de
time de amigos do colégio por dez anos já é algo do qual nós podemos nos
ser jogador de futebol, percebi que o prazer, para mim, é estar em um ambiente
orgulhar. Olhando para trás, percebi como mudei desde que entrei no time,
no qual tenho a oportunidade de me posicionar. A minha experiência com as
a maturidade que disse existir nos demais jogadores do Hermanos de Pelé
categorias de base não me proporcionou isso, mas ainda acredito que esse
também existe em mim.
ambiente de conversa também possa existir no futebol profissional. Com essa ideia na cabeça, e olhando para tudo que vivi jogando e De qualquer maneira, essa é uma realidade com a qual eu, pessoalmente,
observando o futebol amador, compreendo um pouco porque jogo futebol,
não me acostumei. No Inajar a abertura para a participação dos jogadores
porque ele é um meio capaz de mudar a realidade das pessoas. Ele mudou a
nas tomadas de decisão não é explícita como no Hermanos de Pelé, mas
minha, e percebi que mudou também a das pessoas que jogam e acompanham
ela existe. O técnico, os jogadores, os dirigentes e a torcida se conhecem e
o Inajar e o Esporte Clube Pinheiros, provando que ele é um agente de
se reconhecem como time e parte integrante de uma história longeva, uma
mudanças que não escolhe personagens. Basta que o futebol exista para que
história de algo que já é mais do que um time de futebol, e todos se importam
se crie um espaço de troca de ideias, e ao trocarmos ideias estaremos em
com isso. Todos querem ver o Inajar de Souza, um símbolo da sua comunidade,
constante mudança.
mais forte, e na intenção de melhorar, pelo menos, o cotidiano do time, todos se esforçam e colocam suas opiniões.
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Início de confusão no jogo do Autônomos F. C. O juiz dessa partida, de camiseta na cabeça, era também jogador do Auto. Créditos: Caroline Lima
Time do Inajar de Souza pronto para a partida. Ao lado dos jogadores, membros da direção e torcedores mirins. CrÊditos: Caroline Lima
Marcelo, tĂŠcnico e presidente do Inajar de Souza, comanda seus jogadores de dentro do campo. CrĂŠditos: Caroline Lima
A bola incontrolĂĄvel no jogo do Inajar ĂŠ observada pelos jogadores, pelo juiz, e pelos torcedores na arquibancada improvisada. CrĂŠditos: Caroline Lima
Do meio de campo, sócio doEsporte Club Pinheiros, reclama com a defesa. Créditos: João Ernesto
Jogador do Hermanos de Pelé no momento em que pode decidir a vitória do time e a sua satisfação pessoal. Créditos: Gustavo Boaventura
O campo do jogo do Hermanos de Pelé é similar ao dos jogos do Inajar de Souza, a falta de torcida mostra a diferença de ambiente. Créditos: Gustavo Boaventura
Antes da partida começar, torcida e bateria do Inajar de Souza marcam presença no campo do adversário. Créditos: Caroline Lima
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