Memórias Particulares dum combatente

Page 1

SÉRGIO AUGUSTO DOS SANTOS

Memórias Particulares dum combatente da 1.ª Grande Guerra. Porto

1972 – 1974


Ficha técnica Título Memórias particulares dum combatente da 1ª. Grande Guerra Autor Sérgio Augusto dos Santos Data da redação 1972-1974 Design e paginação João Fonseca Trabalhos fotográficos Rui Alcântara Impressão e acabamento … Data da edição 2018 Depósito legal …


SÉRGIO AUGUSTO DOS SANTOS

Memórias Particulares dum combatente da 1.ª Grande Guerra. Porto

1972 – 1974


4


Sérgio Augusto dos Santos 1917

Cruz de Guerra 2º classe 1917

Promoção por Distinção 1917

5


Nota prévia

06

9 de Abril de 1918. Ao fim da manhã, no rescaldo da batalha de Armentières ou de La Lys, o segundo-sargento Sérgio Augusto dos Santos, do Batalhão de Infantaria 15, é feito prisioneiro pelas tropas alemãs, juntamente com um grupo de camaradas que horas antes, havia recebido apressadamente a missão impossível de defender o reduto de Richebourg Saint Vaast, na chamada Linha das Aldeias. Seguir-se-á um penoso cativeiro, uma arriscada fuga do campo de prisioneiros de Illies, alguns meses a vegetar no que restava do Corpo Expedicionário Português e, finalmente, o regresso à Pátria pouco antes da assinatura do armistício. Sérgio Santos era trasmontano, natural da aldeia de Poiares, no concelho de Freixo de Espada à Cinta. Filho de um pequeno proprietário rural, ajudava o pai nos trabalhos do campo. A guerra apanhou-o em Bragança a cumprir o serviço militar; acabou por ser mobilizado e integrado no primeiro grande contingente expedicionário português, desembarcando em França a 2 de Fevereiro de 1917. Sérgio era, por natureza, um pacifista. Era também um sonhador, um visionário: ambicionava tirar o curso de regente agrícola, modernizar a lavoura rotineira da sua terra natal, plantar oliveiras e amendoeiras, talvez criar uma cooperativa agrícola e


instalar uma unidade de produção agro-alimentar – sonhos juvenis que o acompanharão pela vida fora. Militar por força das circunstâncias, o segundo-sargento Sérgio Augusto dos Santos sempre se comportou no teatro de guerra com apurado sentido do dever. Da sua folha de serviço em França constam os seguintes louvores: “ Louvado porque tendo caído nas mãos do inimigo durante a Batalha de Sur La Lys de 9 de Abril, em que a sua companhia tomou parte, empregou todos os esforços para se libertar em 16 de Junho, correndo os riscos inerentes ao acto que praticou.” (Ordem de Comando do Batalhão, de 14.07.1918). “Louva o 2º. Sargento do Batalhão de Infantaria 15 Sérgio Augusto dos Santos pela bravura, isenção e coragem de que deu provas no combate de 9 de Abril último, incutindo valor e ânimo às praças da 2ª. companhia que no posto de Richebourg St. Waast se bateram durante 4 horas sucessivas, só se rendendo quando, tendo os seus oficiais gravemente feridos, faltando-lhe as munições e achando-se em grande inferioridade numérica, se lhe tornou impossível resistir ao inimigo” (Ordem do Comando do C.E.P. nº. 273, de 5 de Outubro de 1918). Na sequência deste segundo louvor foi no mesmo dia condecorado com a Cruz de Guerra de segunda classe, e promovido por distinção ao posto de primeiro-sargento “pelo seu valoroso procedi-

07


08

mento nos combates de Abril último (…) pelo qual confirmou mais uma vez as suas qualidades militares já demonstradas durante a sua anterior permanência (…) na linha da frente.” Finda a guerra, o jovem trasmontano não regressou aos campos, prosseguindo na carreira militar. Poiares passou a ser apenas destino de férias ou de visita aos pais; mas nunca esquecerá os ares lavados daqueles montes, os horizontes largos do Penedo Durão, as temporadas passadas nas propriedades do Douro, as noites de verão ao relento, as lendas sobre a Calçada de Alpajares… E sempre que podia regressava e, num acto de amor, voltava a plantar amendoeiras na Veiga Redonda. Anos mais tarde, já reformado no posto de tenente, Sérgio passava grande parte do tempo a escrever. Escreveu sobre a sua terra (Carta aberta aos meus conterrâneos; Roteiro agreste) e, entre 19721974, redigiu as suas memórias pessoais e familiares (Memórias particulares dum combatente da 1ª. Grande Guerra). A narrativa dos vinte e um meses passados em França, que agora se publica, não pertence à literatura justificativa; trata-se da evocação pessoal de vivências inesquecíveis, enriquecida com pormenores de natureza militar, num registo autêntico, preciso, rigoroso. Pensamos que o seu autor se sentiria feliz se pudesse ver impressas essas memórias, que dacti-


lografou vagarosamente, pensadamente, sentidamente. Por isso, cem anos volvidos sobre a batalha de La Lys e trinta sobre o falecimento do nosso Pai, esta edição constitui para nós um imperativo – é, mais do que uma homenagem, uma manifestação de afeto e de saudade. Dina Maria de Alcântara Santos Manuela de Alcântara Santos Maria Fernanda Alcântara Santos

09


NO R.I. 30 Em Braganรงa

10


Retomemos o caminho das Memórias que estamos escrevendo. Em 15 de Janeiro de 1915 devia começar, como de facto começou, a escola de recrutas a que eu fora destinado, no Forte de S. João de Deus (antigo quartel de um regimento de cavalaria) em Bragança. Para lá me dirigi, com as guias do costume, com dois dias de antecedência, viajando de comboio desde Barca de Alva até essa cidade, com transbordo no Tua. De ali para diante uma pequena locomotiva conduziu o comboio ao local de destino pela via estreita que recentemente havia sido concluída, sob o impulso final do conselheiro Bessa, um bragançano ilustre, que se interessou pelo melhoramento, com inteiro agrado dos seus conterrâneos. Era a primeira viagem que fazia, para além dos concelhos vizinhos de Freixo. Por esse motivo me agradava observar a paisagem duriense, onde grandes obras se incrustavam ao longo do rio (túneis, pontes, aterros e trincheiras), para que a via ferroviária se concretizasse num facto importante, no quadro da escassa rede das comunicações regionais. Esse melhoramento acabara com o tráfico dos barcos rabelos no Alto Douro, com excepção da Barca de Alva ao Saltinho para Freixo de Espada à Cinta, que continuou a fazer-se ainda por largos anos, até que a estrada nacional n.º 221 estabeleceu a ligação com a Barca. A paisagem ribeirinha tinha um suave encan-

11


12

to. O grande rio bordejava as veigas cobertas de cepas de videiras, aqui e além, quantas vezes encarrapitadas pelas encostas, onde o casario das quintas punha uma nota alegre no quadro modesto da vegetação invernal. As suas águas, em movimento, mudavam-lhe o aspecto constantemente: umas vezes correndo velozes pelos rápidos declives dos seus leitos; outras espraiando-se pelas margens, ou remanescendo pelos fundões, com ligeiras fitas de espuma à superfície, a movimentar-se lentamente para jusante, formando desenhos curvilíneos muito variados em constante mutação. A estrada líquida vai aparecendo e desaparecendo, sempre encaixada num vale estreito e profundo, que muda de aspecto em cada curva que o comboio alcança, ao contornar as saliências debruçados sobre a margem do rio caprichoso, que corre livremente pelo fundo do ciclópico vale. O mesmo se nota no apertado leito do Tua, em menor escala, contudo, como que num arremedo caricatural do grande Douro. A partir de Mirandela, para montante, o comboio deixa o Tua e começa a subir a encosta do Romeu, que vai vencendo devagar e a custo. Depois passa pelo sobreiral dos Cortiços, antes de chegar a esta aldeia. Sempre subindo, vem a seguir Macedo de Cavaleiros, uma risonha e progressiva vila. Mais adiante chegamos a Rossas, a estação mais alta de Portugal. Começa então a descer pelas faldas da serra de Nogueira até atingir o vale do Fervença (um pequeno afluente do Sabor), em cuja margem esquerda está


ante chegamos a Rossas, a estação mais alta de Portugal. Começa então a descer pelas faldas da serra de Nogueira até atingir o vale do Fervença (um pequeno afluente do Sabor), em cuja margem esquerda está implantada a cidade de Bragança, entre a cidadela do Castelo e o Forte de São João de Deus. A cidade de Bragança transbordava de tropa em 1915. Tinha então dois regimentos de infantaria – o R.I. 30 e R.I. 10; o 6º Grupo de Divisionário de Metralhadoras, correspondente à 6ª Divisão Militar, com sede em Vila Real; uma Companhia da G.N.R., outra da G.F. e uma Esquadra de Polícia. A reorganização do Exército de 1911 deu-lhe a supremacia militar na Província de Trás-os-Montes, embora com a colocação provisória do R.I. 30 no Forte de São João de Deus, enquanto não fosse construído o seu quartel na vila de Alijó, como lhe haviam prometido, o que nunca viria a acontecer. É de notar ainda que a cidade de Bragança já possuía então um Liceu Nacional muito frequentado, em que parte dos professores eram oficiais do exército; uma Escola Normal e um Seminário Maior, além de bem dotada com Escolas Primárias. A militância, o ensino, a agricultura e o comércio eram as actividades principais da gente brigantina, e daquela que acorria à cidade para o exercício desses mesteres. A escola de recrutas que começou em Janeiro de 1915 foi dura para aqueles que vinham das regiões mais quentes do sul da província, sem estarem ha-

13


14

bituados ao rigor do Inverno bragançano, sobretudo ao vento glacial que vinha das serras de Montesinho e Sanábria, quando se mantinham cobertas de neve durante o Inverno e pela Primavera adiante. Logo de manhã cedo, depois do café, começava-se o dia com uma lição de ginástica sueca, antecedida por marchas em acelerado, para activar a circulação dos corpos enregelados pela aspereza do clima. A falta de um fardamento apropriado tornava ainda mais penoso o dia-a-dia dos recrutas. Era frequente, durante os dias mais frios de Inverno, quando a instrução se dava a pé firme em campo aberto, ao ar livre, que alguns soldados caíssem sem sentidos, sendo necessário conduzi-los para a caserna e metêlos entre cobertores, até que uma reacção benéfica os reanimasse. Por isso a instrução tinha de ser movimentada, nessas ocasiões, ou simplesmente teórica, debaixo de telha. A Primavera, porém, já permitia uma instrução mais variada, para além das lições teóricas sobre organização militar e armamento. Entrava-se numa prática de esgrima de baioneta, em ginástica aplicada, na táctica em ordem unida e extensa, serviço de segurança em marcha e em estação, patrulhas, tiro de carreira com as armas que lhes eram distribuídas (só espingardas e pistolas), especialidades de sinaleiros com bandeiras e alfabeto morse, condutores hipo e corneteiros. Dava-se grande importância à utilização da fer-


ramenta portátil (pá-picareta, machadinha martelo e serra articulada), segundo os ensinamentos da Guerra Russo-Japonesa, mas era relativamente simples, de acordo com a táctica de combate então usada. Durante três meses, no entanto, aprendeu-se muita coisa. Foi uma bela escola de camaradagem, de disciplina, de respeito e obediência aos superiores hierárquicos, de devoção e amor à Pátria, influenciado pelas canções patrióticas que nos ensinavam e pelos exemplos históricos de tantos heróis portugueses de antanho, como era timbre do Exército de então. Criaram-se amizades sinceras entre muitos camaradas, de acordo com afinidades e tendências de cada um. Aos que podiam e queriam pagar a diferença de custo entre o rancho geral e o de sargentos, era permitido arranchar com estes, com vantagem para os que dispunham de meios para isso. Usei dessa regalia. E não me dei mal com a pequena diferença de tratamento alimentar e a convivência que isso mais ou menos implicava. É que as refeições na “Messe” de sargentos também serviam para trocar impressões entre uma selecção de rapazes que ali convergia e de onde, tudo levava a supor, sairiam alguns futuros graduados. Outros, porém, pensavam em voltar para casa, logo que lhes fosse possível, “comprando” uma praça para lhes fazer o seu tempo de serviço de um ano, embora sem dispensa de mobilização, o que anulava qualquer vantagem visto se estar nessa contingência.

15


16

Alguns Batalhões já tinham seguido para a África Portuguesa, cobiçada pelos Alemães. Outros (dizia-se) seguiriam com o mesmo destino, e também para a França, onde se jogava o destino da Europa e do Mundo, desde Agosto de 1914. Em 15 de Abril de 1915 terminou a minha Escola de Recrutas, como estava previsto. Passado um mês com “boas informações”, como era regulamentar, fui promovido a primeiro-cabo, passando a fazer serviço como tal no comando de guardas à guarnição (Cadeias Militar e Civil do “Principal”), de ronda à cidade e serviços diversos de quartel... Um dia, por ocasião da visita do Comandante da 6ª Divisão, com sede em Vila Real, então o Coronel Carmona, que depois da Revolução de 28 de Maio viria a ser Presidente da República, fui escolhido para sua ordenança. Isto passou-se em Agosto de 1915, no fim da Escola de Recrutas de Maio, na qual tomei parte como monitor. O referido coronel Carmona estava alojado no Hotel Virgínia, onde me fui apresentar, como simples formalidade, pois logo me dispensou do serviço de que pessoalmente me podia encarregar. A seguir, em Setembro de 1915, o R.I. 30, como todos os outros regimentos, mobilizou um batalhão de cerca de mil homens, para uma Escola de Repetição, como então se achava determinado. Essa “Escola” constou do seguinte: exercício de marcha, com armamento e equipamento regula-


mentar; segurança em marcha e em estação (Guarda Avançada e Postos Avançados); combate. Tudo isto num circuito que levou seis dias a percorrer, desde a saída de Bragança até ao regresso, com paragem em Sortes, Macedo de Cavaleiros, Torre de D. Chama, Edrosa e Mosca, que definiam finais de etapas, ao mesmo tempo que eram também locais de bivaque para passar uma noite em tendas de campanha. Estes seis dias consecutivos constituíram uma dura prova de resistência, em que muitos soldados soçobraram, principalmente à chegada a Macedo de Cavaleiros numa tarde de excessivo calor. O comboio de Bragança, nessa tarde de Setembro, encheu o Hospital Militar de estropiados pelo esforço de marcha exigido. Foi assim como que uma prova de resistência em que os mais fortes e melhor adaptados ficaram apurados para novas competições que iriam seguir-se. Eu, para não me não ver em condições de inferioridade, ia tomando, como outros também o faziam, uns ovos batidos com vinho e açúcar, nos “altos” das povoações, para ter mais força e alento. O certo é que isso deu o resultado desejado, sem que o estômago se ressentisse com a mistela que ingeríamos, a que alguns davam o nome de sopas de cavalo cansado. Tomou parte nesta maratona a banda do R.I. 30 que ia tocando à frente da coluna, nas passagens pelas povoações, para animar a soldadesca e impressionar a população. Esta banda estava destacada na sede de um batalhão do R.I. 3, em Valença, por a

17


18

Guarnição de Bragança estar servida pela banda do R.I. 10, mas foi convocada para tomar parte na Escola de Repetição com a sua unidade. No último dia de marcha, estando o Batalhão do R.I. 30 acampado perto da aldeia de Mosca, os componentes da banda receberam uma boa notícia. Até então os seus distintivos eram constituídos por liras de metal, colocadas nas passadeiras, a marcar a classe de cada um. Pois a partir dessa data, além das liras, que definiam a sua especialidade de músicos, passaram também a ter divisas, como os sargentos, passando a designar-se como tal, acrescentando a palavra músico, de que eles pouco gostavam, embora o fossem. Em todo o caso foi a satisfação de um desejo que os músicos militares vinham exprimindo com insistência, até que por fim lhes foi satisfeito. Ao fazer um ano de 1.º cabo tinha eu todas as condições para concorrer ao exame de 2.º sargento do Quadro Permanente. Visto que continuava na vida militar, por não haver licenciamento, devido ao estado de guerra latente, aproveitei o primeiro concurso tendo ficado em 3.º lugar, numa lista de seis concorrentes. As necessidades da mobilização que já se estava fazendo em 1916 para expedições a Angola e Moçambique, e ainda para a concentração de uma Divisão em Tancos, com o fim de posteriormente seguir para o campo de batalha em França, segundo


se dizia, fizeram aumentar os quadros de todas as unidades do Exército. Desta maneira foram logo promovidos a 2.º sargento, em 13 de Junho, todos os que haviam sido aprovados no último concurso, entre os quais eu me encontrava. Depressa, porém, começou a dispersão. Uns para um lado, outro para outro. O amigo Machado, de Castanheiro do Norte (Carrazeda de Ansiães) foi comandar uma diligência para Alijó, onde se encontrava o Distrito de Recrutamento do R.I. 30. Eu tive de seguir para o mesmo D.R., como amanuense, onde só estive pouco mais de um mês, presumo que por não dar o rendimento desejado na cópia de relações intermináveis de mancebos para alistamento, serviço para que não estava bem preparado nem manifestava interesse, ou para ser mobilizado como aconteceu a mim e a outros. Naquele tempo gostava mais de exercícios no campo, ao ar livre. O António Gata, de Freixo, ficou na Secretaria do Comando, como amanuense. O Bonet, de Bragança, seguiu para o R.I. 15, com destino ao 1.º Batalhão, que se achava mobilizado, em Tancos. A mim, pouco tempo depois de ter regressado de Alijó, coube-me a mesma sorte. Entretanto preparava-se a mobilização do 1.º Batalhão de R.I. 30, sob o comando do major Carneiro, que iria fazer um estágio preparatório na E.P.I., em Mafra, antes de embarcar para Moçambique. Era isto que me estava reservado se não tivesse seguido para Tomar, com destino a Tancos e depois a França.

19


NO R.I. 15 Em Tomar e em Franรงa

20


Foi nos primeiros dias de Setembro de 1916 que recebi guia de marcha para me apresentar no R.I. 15, em Tomar. Lembro-me de ter feito viagem desde Bragança até Paialvo, com transbordo no Tua e em Campanhã, com uma senhora viúva do Coronel Inocentes, que seguia para Lisboa, onde tinha família. Do Tua para diante apareceram terras novas para mim, só conhecidas através dos mapas ou por conversações entre amigos mais viajados. De Paialvo até Tomar, a uns sete quilómetros de distância, utilizei a diligência da carreira, puxada por uma parelha de cavalos valentes, chegando pela manhã ao R.I. 15, onde me apresentei, depois de ter passado pelo Quartel-general da 3.ª Região Militar, localizado nesta cidade. Na sede do R.I. 15, em Tomar, só estive um dia. Depois de ter recebido o equipamento e uma espingarda, fui mandado seguir para Tancos pela via ordinária, isto é, a pé, por ter sido destinado à 2.ª Companhia do 1.º Batalhão que fazia parte da 1.ª Divisão concentrada no Polígono Militar de Tancos. O Batalhão do R.I. 15 fazia parte do 1.º Regimento de Infantaria, com mais outros dois batalhões, um do R.I. 7, de Leiria, outro do R.I. 2, de Abrantes. Estavam todos na parte ocidental do polígono, já perto da Ribeira do Erval, de onde se elevava a água, ali captada para satisfazer as necessidades da cidade de “pau e lona”, onde acampavam todas as unidades que constituíam a 1.ª Divisão do C.E.P., no efectivo aprox-

21


22

imado de 25.000 homens, com o seu Quartel-general, Armas e Serviços vindos das diversas regiões do País. Não pretendemos, nem isso nos era possível, dar uma ideia precisa da orgânica de uma Divisão delineada nos moldes anteriores à Guerra de 1914, nem da utilidade militar que teriam os seus exercícios desactualizados, tanto no relativo às guerras de movimento como no que já se estava então passando em França, na guerra de trincheiras. Muito se tem dito e escrito sobre esse assunto. A nós que tomámos parte nos seus deslocamentos e exercícios de combate, ficou-nos a ideia de ser pesadona, de fraca mobilidade, mal dotada de meios de comunicação, demorando um tempo demasiado a escoar-se pelos pontos iniciais de passagem, como grandes engarrafamentos das unidades que a constituíam. Isto talvez se devesse, pelo menos em parte, aos oficiais comandantes das unidades, por não respeitarem os horários elaborados pelo E.M., ou mesmo à falta de prática destes oficiais na liderança com a manobra de grandes unidades, compostas de diferentes armas e serviços, com velocidade e características de marcha diferentes. De qualquer modo aquelas faltas ou irregularidades eram aborrecidas e fatigantes, sobretudo para a infantaria, que era obrigada a passar horas a pé firme, com equipamento e armamento às costas, à espera de poder entrar na coluna de marcha, em bicha que parecia interminável. Felizmente os exercícios de conjunto no


quadro da Divisão foram poucos. Um, foi a Parada de Montalvo, entre a Barquinha e Abrantes; os outros constaram das Manobras Finais do Alto Alentejo, na zona do Gavião, com as marchas e agrupamentos consequentes. No fim das manobras todas as unidades que compunham a Divisão regressaram directamente ao seu quartel. Algumas dessas unidades fizeram o percurso a pé, como foi a caso do 15, desde o Gavião até Tomar. Outras seguiram de comboio, embarcando nas estações mais próximas. Tudo isso se passou um pouco precipitadamente, parecendo a muitos querer evitar-se concentrar novamente a Divisão em Tancos, com receio que esta marchasse sobre Lisboa e derrubasse o governo “democrático” do Dr. Afonso Costa. Este rumor era alimentado por uma intensa e dupla campanha política sobre a entrada ou não entrada de Portugal no teatro de Guerra Europeia. O chefe do Governo era o principal obreiro da participação, embora se soubesse não ser essa a opinião dos nossos aliados ingleses, que não solicitaram a nossa intervenção militar na Europa, pois sabiam muito bem que seriam eles a arcar com as despesas do nosso transporte, do armamento e manutenção, como viria a acontecer, com todas as consequências da nossa dependência, da nossa subalternidade. Mas os políticos têm modos de ver originais. E algumas vezes também acertam. Neste caso, porém, ainda

23


24

hoje se mantém a incógnita. Valeria a pena o sofrimento, o sacrifício e perda de tantas vidas inocentes com a participação activa de Portugal no teatro da Guerra, na Europa, em 1914-1918? Depois dos exercícios finais, a Divisão de Tancos foi dispersa. Só em França ela viria a reconstituir-se, já com outra organização. O fermento da revolta latente ficou a levedar, contudo, como se verificou no frustrado levantamento de Machado dos Santos, em Tomar, e na rebelião vitoriosa de Sidónio Pais, pouco mais de um ano depois, em 5 de Dezembro de 1917, já em pleno engajamento de Portugal na Guerra da Europa. A instrução em Tancos correu pelo sistema então vigente, no quadro das pequenas unidades, até ao Batalhão, em repetições do que se ensinava aos recrutas, sem as necessárias adaptações aos ensinamentos colhidos nos primeiros anos da Grande Guerra. O B.I. do R.I. 15 era comandado pelo major Cadaval, uma completa nulidade militar, sem qualidades de decisão nem de comando, que se apavorava ao ver um oficial do Estado-maior, mesmo de patente inferior à sua. Quem lhe valia para o desenrascar era o seu ajudante, o tenente Calisto, um oficial simpático e sabedor que desmentia o que o seu apelido pudesse insinuar. Mas o major, quando tinha de comandar com a sua própria voz, na ordem unida, embora auxiliado pelo seu ajudante, continuava a dar o flanco, pelo


que era ridicularizado pelos comandantes de Companhia, mesmo em formatura de Batalhão. Para ilustrar as suas indecisões e o desespero dos comandantes de Companhia, narraremos o seguinte episódio, que até parece uma anedota! O Batalhão achava-se formado em ordem unida em coluna dobrada. O seu comandante, major Cadaval, movimentava-se na sua frente, montado no seu cavalo, acompanhado pelo seu ajudante, visivelmente nervoso, preocupado com qualquer manobra que tivesse em mente. De repente estacava voltado para o Batalhão e gritava a plenos pulmões: Batalhão! Sentido!... Em seguida esquecia-se do que queria ordenar e punha-se a andar para um lado e para o outro, deixando ficar o Batalhão especado na posição de sentido! Comandavam as companhias da frente (1ª e 2ª) os capitães Meneses e Pais, respectivamente, os quais vendo a perplexidade do major, e não querendo sacrificar desnecessariamente as suas subunidades, ordenavam pouco depois: 1ª companhia... descansar!... 2ª companhia... descansar!... As 3ª e 4ª companhias seguiam na mesma esteira. Por sua vez, o major, quando chegava à frente da sua unidade repetia logo: Batalhão!... Sentido!... E nada mais dizia. Abstracto e indeciso continuava a cavalgar para um lado e para outro. Algumas vezes até desaparecia!... Um certo dia, quando isto aconteceu pela terceira vez, o capitão Meneses chamou pelo camarada do lado, em voz alta, de maneira que foi ouvido em

25


26

todo o Batalhão: “Ó Pais! Sabes o que me dá vontade de fazer?!” e acrescentou logo à sua pergunta: “É de mandar o major à merda!” Pode calcular-se o efeito daquela frase, caída como uma bomba num Batalhão mobilizado, em formatura de coluna dobrada! O resultado de tudo isto foi a instauração de um processo disciplinar, sendo o major Cadaval afastado do serviço activo, por incompetência profissional, no fim das manobras de Tancos. E se calhar era mesmo isso que desejava, pois assim se viu livre de seguir para França, o que sem dúvida ele muito temia. A 2ª companhia a que eu pertencia, como já se referiu, era comandada pelo capitão Pais, irmão de Sidónio Pais, tendo como subalternos os tenentes Mendonça e Zaide, mais o alferes Santos, respectivamente comandantes do 1º, 2º e 3º pelotões. Os sargentos, todos bons camaradas e amigos, eram o Bonet, eu e o Casquinho, do quadro permanente, e o Políbio, o Rodrigues e o Lopes do quadro miliciano. Estes últimos já haviam tomado parte numa expedição a Moçambique, sendo, portanto, considerados veteranos das campanhas coloniais. Depois do regresso a Tomar, o Batalhão mobilizado ficou alojado numa dependência do Convento de Cristo, com entrada pelo Norte, pelo portão que dá entrada para o Claustro da Micha. Ficou alojado nas salas e corredores do rés-do-chão, onde se tinham colocado enxergas em fileiras, com travesseiras


e mantas, para passar as noites. A muitos soldados foi concedida licença registada, por tempo determinado, por turnos, pois se aguardava que a ordem de seguir para França surgisse brevemente. O 4.º trimestre de 1916 foi muito agitado. Estava então no Governo o chamado partido “democrático” chefiado pelo Dr. Afonso Costa, apoiado por uma maioria parlamentar conseguida por falcatruas eleitorais e processos demagógicos. O Dr. António José de Almeida, inspirado orador republicano, muito contribuiu para a implantação do novo regime. Chefe do Partido Evolucionista, na oposição, combateu persistentemente o partido democrático, tanto na Câmara dos Deputados como no Jornal República de que foi fundador. Mas acabou por se reconciliar com os seus adversários políticos, formando com eles a chamada “união sagrada”, em plena guerra, mais por patriotismo que por concordância política. O Partido Democrático, reforçado com a benevolente neutralidade do Partido Evolucionista, desenvolveu uma intensa campanha a favor da entrada de Portugal na Guerra da Europa, manobrada por vários processos, chegando-se ao cúmulo de se darem vivas à guerra! É claro que aqueles que davam vivas à guerra, em comícios e arruaças, não tinham intenção de ir lá parar, ou podiam livrar-se dela com a ajuda dos seus correligionários pseudodemocráti-

27


28

cos, como de facto veio a acontecer em muitos casos. Aqueles que se manifestavam contra o despotismo vigente eram perseguidos pela “carbonária” ou “formiga branca”, como era conhecida a polícia secreta de Afonso Costa, recrutada entre a maçonaria, que operava em toda a parte, tanto na vida civil como na militar. Encontravam-se ainda por cicatrizar as feridas abertas pela perseguição religiosa, não tanto pela Lei da Separação da Igreja do Estado, de 1911, que foi considerada uma lei necessária, naquele tempo, mas pelos abusos que o seu cumprimento originou. Os exaltados “democratas” maçónicos julgavam-se no direito de insultar e ofender os crentes, achincalhar o clero e as manifestações religiosas, excessos esses condenados pelos católicos portugueses, que é como quem diz pela maioria da Nação. Eu soube por vias travessas - amigos que tinha no Quartel-general da Divisão de Tomar - que havia sido colocado no “livro negro”, que significava contrário à situação política que então vigorava no país. Não sei que motivos concorreram para isso. Talvez fosse pelo simples facto de não concordar com certos exageros que se cometiam, verberando-os entre amigos, principalmente na Pensão da Senhora Rosa, onde vários camaradas e civis, todos jovens, nos encontrávamos e discutíamos. Mas na verdade eu não tinha política partidária. Era a favor da ordem nos espíritos e nas ruas, do direito de cada um pensar e crer como entender, da disciplina das forças arma-


das, que entendia servirem para honrar e defender a Pátria, pondo-a acima de qualquer partido. Não dava vivas à guerra, que considerava estúpida e desumana. Mas estava disposto a sacrificar-me pelos direitos de Portugal, sempre que estivessem ameaçados. E, neste ponto, parece que não divergiam as opiniões no Exército, embora houvesse duas correntes definidas quanto à forma de intervenção no conflito. Uns queriam a nossa participação nos campos de luta da Europa; outros eram da opinião que devíamos encaminhar os nossos esforços defensivos para o Ultramar Português, onde já havíamos sido atacados pela Alemanha, em Naulila, no Sul de Angola, e no Norte de Moçambique. A Alemanha declarou guerra a Portugal, com o pretexto do apresamento dos seus barcos comerciais que se achavam refugiados nos portos portugueses. Dizia-se que esta acção tinha sido imposta pela Inglaterra, ao abrigo da velha aliança anglo-portuguesa, que sempre tem funcionado unilateralmente na defesa dos interesses britânicos. O Governo entendia que era na Europa que se decidiria, em última análise, o futuro do Ultramar Português. E de facto, este era cobiçado por algumas potências em luta, entre as quais se encontravam a Alemanha e a Itália, além da nossa tradicional aliada, que já nos tinha mutilado Moçambique, em 1891, e se preparava para se apoderar de outras parcelas, por intermédio das companhias majestáticas, ali instaladas.

29


30

Naquele tempo, em Portugal travava-se uma luta sem tréguas entre partidos. O povo, esse conservava-se calmo, na expectativa, sem ser ouvido nem convidado a pronunciar-se em tão melindrosa conjuntura, da qual sairia tão profundamente sacrificado. Alguma coisa se tramava também na sombra, entre militares, sem que eu desse por isso, semelhante ao que teria acontecido com a Divisão de Tancos, que foi dispersa abruptamente, para evitar a sua revolta, como mais tarde se soube. Porém, as ramificações da revolução latente não foram cortadas completamente com aquela medida. De facto, a 13 de Novembro de 1916, reuniram-se vários oficiais do R.I. 15, entre eles os capitães Pais e Meneses, sob o comando do oficial da Armada, almirante Machado dos Santos, um dos fundadores da República. Formaram o Regimento, sem oposição, com toda a força disponível. Em seguida marcharam para Abrantes, a reunir-se ao R.I. 2, mas não foram por Tancos pois não contavam, naquele momento, com o apoio da unidade ali aquartelada. Em Abrantes tiveram a decepção de não ver convergir as forças militares da Beira e outras com que contavam. O regimento de Artilharia desta localidade, comandado pelo coronel Hipólito, também não aderiu ao movimento. Este oficial convenceu os amotinados a regressarem a Tomar, com a sua força armada, equipada e municiada, sob os respectivos comandos. Aqui foram presos os cabecilhas, jun-


tamente com outros responsáveis, mas só depois de eles próprios se entregarem à autoridade militar superior, como havia sido acordado com o coronel Hipólito, o que constituiu, até certo ponto, uma prova de camaradagem e de confiança mutuamente respeitada. No referido dia 13, por acaso, eu comandava a guarda ao aquartelamento do Convento de Cristo. Não mexeram comigo, nem com a guarda. Ali nos conservámos durante três dias, que foram quanto durou a frustrada intentona. As transferências que se seguiram desorganizaram o quadro do R.I. 15, principalmente de oficiais e sargentos, com grande dificuldade de substituição, sem prejuízo de outras unidades já mobilizadas ou em via de mobilização. O Ministro da Guerra, major Norton de Matos, era um homem de pulso forte que vencia todas as dificuldades para atingir o objectivo do Governo, que era a mobilização de um Corpo Expedicionário Português (C.E.P.), para intervir, juntamente com os Aliados, no teatro da Guerra Europeia. É claro que a nossa Organização Militar não condizia com as outras forças aliadas que operavam no conflito. Nem o armamento e equipamento, principalmente com as forças inglesas, com as quais teríamos de cooperar, incorporados numa das unidades britânicas, e que viria causar embaraço. Já tínhamos enviado uma Missão Militar para estudar esses e outros assuntos no próprio campo da

31


32

luta. Mas nessa altura, porém, o objectivo mais urgente era expedir as tropas, sem curar das suas necessidades fundamentais, que se confiou demasiado serem satisfeitas pelos aliados. Cito só o caso essencial do fardamento, principalmente o vestuário interior, de pano-cru, impróprio para o clima que tivemos de enfrentar. O barrete de bivaque de lã grosseira, e os safões alentejanos eram uma caricatura formal da nossa pobreza. Ah! Como nós invejávamos as finas camisolas e ceroulas dos soldados ingleses, fabricadas com perfeição nas suas fábricas de lanifícios com a mais pura lã australiana! O seu calçado era robusto e perfeito. O melhor de tudo o que fabricavam era para o seu Exército. Cá era o contrário. Tudo aldrabado. Mais adiante focaremos outros aspectos desta questão. Voltemos aos preparativos da partida. No que se refere ao Batalhão Expedicionário do R.I. 15, foi nomeado seu comandante o major Ferreira do Amaral, um experiente oficial das campanhas de África, com fama de valoroso e disciplinador, que sabia conduzir os seus subordinados com uma linguagem própria e persuasiva. Com ele vieram alguns oficiais para preenchimento dos quadros das companhias, não tantos como eram precisos. E também alguns sargentos para substituir outros que foram transferidos por terem tomado parte do movimento de 13 de Novembro. Entre estes lembro-me do Baltazar de Castro e do Elias, vindos de Chaves; do Frazão, de Coimbra; e do


Viriato, da Casa Pia. Foram transferidos, entre outros, o Casquinho, o Gaspar e o Neves, todos do Algarve. Não se sabia o dia da partida, mas estava para breve, pois foram concedidas curtas licenças para despedidas da família. Eu aproveitei e fui a Poiares com esse fim, mas não tive coragem de dizer abertamente a meus Pais que ia para a Grande Guerra. Contudo, pus minhas irmãs e pessoas da intimidade ao facto do que se passava. A despedida fezse serenamente, embora com emoção interior, tendo sido acompanhado até à saída da povoação por algumas pessoas amigas, certamente também emocionadas, como bem se compreende. Mas a hora era grande! E se em nome da Pátria se exigia aos seus filhos e humildes soldados o sacrifício de defendê-la, onde quer que seja, era obedecer, era partir consciente de que cumpriria corajosamente a sua obrigação. Meus Pais não tinham necessidade da minha pensão de sargento, mas eu indiquei-os para recebê-la, como se achava autorizado. Acho que eles ficaram reconhecidos com esta atenção, aliás bem merecida. Em França eu receberia outro vencimento de 40 francos mensais que as autoridades portuguesas julgaram suficiente para as despesas particulares. Mas isto na retaguarda era uma miséria. Não dava para frequentar um “estaminet”, nas horas vagas, nem para oferecer um café ou uma cerveja aos nossos camaradas ingleses em retribuição de gentileza igual.

33


34

*** Depois da minha curta licença, quase no fim de Janeiro de 1917, o B.I. 15, devidamente equipado, mas sem armamento, com o quadro de sargentos completo e o de oficiais ainda desfalcado, pôs-se a caminho do embarque com garbo e disciplina exemplares, não obstante as deficiências de comando agaloado. A despedida de Tomar foi emocionante e grandiosa, dentro da ordem que a disciplina militar não dispensa. Com a banda militar à frente, tocando uma marcha de guerra, o Batalhão deu uma volta pela cidade, com as ruas e janelas apinhadas de gente, muita que viera de longe, para despedir-se dos parentes e amigos expedicionários. Depois o Batalhão seguiu a pé para Paialvo, onde um enorme comboio especial o aguardava para conduzi-lo ao Cais de Alcântara. Todas as bagagens levavam o rótulo de HAVRE, que depois se verificou não ser o verdadeiro destino mas sim um embuste para despistar a espionagem alemã, que fervilhava em Lisboa. Ao largo, no estuário do Tejo, estavam ancorados muitos e grandes navios de carga ingleses, adaptados a transporte de tropas. Não tinham nome. Designavam-se por letras maiúsculas. Ao B.I. 15 foi destinado o transporte A, para onde foi levado imediatamente, após a chegada do comboio. Naquele transporte aguardou o Batalhão mais de uma semana, também para iludir a espionagem. Neste entretempo foram concedidas algu-


mas licenças para visitar Lisboa, com a condição de regressar no mesmo dia. Eu consegui uma dessas licenças, juntamente com o camarada Rodrigues, que conhecia muito bem a capital, e eu gostava de conhecê-la. Andámos pela Baixa de eléctrico e também no “chora”, tendo almoçado no conhecido restaurante “João do Grão”, que já existia naquele tempo, e me parece que ainda hoje está no mesmo sítio. À tarde regressámos ao nosso barco. A Policia Militar andava muito activa, apanhando os expedicionários que vagueavam pelas ruas da cidade, recambiando-os para o cais de embarque, de onde os rebocadores os conduziam ao seu barco de transporte. Num dia próximo do fim de Janeiro de 1917, quando a 1.ª Divisão já estava concentrada no estuário do Tejo, pronta a partir, o Presidente da República, Dr. Bernardino Machado, lembrou-se de fazer as suas despedidas aos expedicionários, e ao mesmo tempo que expressar-lhes os seus desejos de boa viagem e felicidade. Era uma visita protocolar feita a todos os barcos que estavam para partir, sem sair do seu escaler, acto este que os militares deviam agradecer, quando mais não fosse para corresponder à cordialidade do Presidente da República, como legítimo representante da Nação. Pois não correu assim, embora os oficiais e sargentos tentassem acalmar os soldados, interessando-se viva e directamente para que tudo corresse bem.

35


36

Esse procedimento concorreu para atenuar actos mais exaltados, sem contudo os evitar completamente. As coisas passaram-se, em resumo, mais ou menos assim: à hora marcada para a visita presidencial achava-se quase a totalidade do Batalhão aglomerada no tombadilho do Barco A. Quando o Presidente se aproximou com a sua comitiva, a soldadesca rompeu inesperadamente a balir, como se fosse um rebanho de carneiros aprisionado no redil. Ao mesmo tempo, de entre uma multidão difícil de controlar, voavam latas de conserva na direcção do escaler presidencial, que circundava vagarosamente o barco, enquanto o Presidente Bernardino Machado se desfazia em contumélias, tirando e pondo o seu tradicional chapéu de côco, com a elegância que lhe era habitual. Não sei o que aconteceu com outras unidades embarcadas e prontas a seguir uma viagem arriscada, pela grande ameaça submarina. Mas aquele facto entristeceu-me profundamente, fossem quais fossem os motivos de tão estranho procedimento, que revelou, sem qualquer dúvida, quanto a propaganda contrária à guerra tinha penetrado no coração dos soldados, capciosamente, com a afirmação insidiosa de que tinham sido vendidos como carneiros. Ao que pode chegar a cegueira política quando desencadeia campanhas difamatórias de tanta gravidade! A entrada de Portugal na Guerra de 1914-1918, nos campos de batalha da Europa, não foi resolvida de acordo com os superiores interesses da Nação?


Este foi um assunto muito discutido que levou revolucionariamente Sidónio Pais ao poder e à morte, que os inimigos políticos não perdoam, nem mesmo quando os seus ideais e pontos de vista tenham fracassado, ou se deixassem ultrapassar por outros mais actualizados. Creio bem que ainda hoje se não sabe, ao certo, se foi um bem ou um mal para a Nação Portuguesa, considerada no conjunto pluricontinental e multirracial em que estava integrada. O que se sabe é que foi um acto legítimo do Governo que legalmente a representava, embora sem a devida correspondência da vontade popular, que seria contrária, em meu entender, se tivesse sido consultada. Mas não o foi, como parece devia ter sido em uma tão grave emergência. No Tejo pairava a incerteza quanto ao dia da partida, que dependeria de vários factores, mas toda a gente sabia que estava para breve. De facto, num dia cinzento do fim de Janeiro de 1917, quando o crepúsculo da tarde caía sobre Lisboa, os navios de transporte ancorados no porto começaram a levantar ferro, um após outro, e a dirigirem-se Tejo abaixo na direcção da barra. Ao largo eram aguardados por uma flotilha de contratorpedeiros ingleses e portugueses, que formariam a escolta do comboio até ao porto francês de destino. A primeira noite da viagem foi de temporal medonho, como eu nunca tinha visto, nem sequer

37


38

imaginado! Vagas enormes batiam estrondosamente no costado do navio, varrendo o convés da proa à popa. O pesado Barco A tão depressa subia à crista das ondas alterosas, como se afundava nas depressões cavadas entre elas, para montar novamente à crista das que se lhe seguiam. Parecia, contudo, aos ignorantes das coisas do mar, como éramos todos nós, que o fazia com muita dificuldade. Por isso o nosso temor. A tripulação inglesa mantinha-se vigilante, mas a quase totalidade dos soldados portugueses caiu enjoada, de cor macilenta, sem força para reagir ao vómito que a atormentava! Tive a impressão calamitosa de que se houvesse um torpedeamento, naquela altura, ninguém se salvaria, nem sequer tentaria fazê-lo, tal era o estado de abatimento físico e moral em que aquela gente se encontrava! De manhã, a tempestade amainou. Eu tinha resistido ao enjoo, assim com mais alguns camaradas, sentindo simplesmente ligeiras ameaças, que passaram com um pouco de ar fresco no convés. Mas no porão da minha Companhia, onde desci para animar os soldados, o cheiro era nauseante, o espectáculo desanimador. Todavia, este aspecto foi melhorando pelo dia adiante, por altura do Cabo Finisterra, e mais acentuadamente quando o navio entrou no Golfo da Gasconha, num mar de vaga larga, a tender para a bonança. Assim se foram passando dois dias, animados pela faina dos contratorpedeiros, que farejavam o mar à frente e nos flancos do comboio, na procura


de submarinos inimigos, como activos cães de caça, tão depressa se vendo de um lado como no outro, explorando o mar afanosamente com a velocidade dos seus 40 nós horários. Pela manha do 3.º dia de viagem aproámos ao grande porto de Brest. Estávamos no 2.º dia de Fevereiro de 1917, já no 3.º ano da Primeira Grande Guerra, cujos efeitos perniciosos se estenderam a todo o mundo, directa ou indirectamente pela primeira vez na História Universal. Após o desembarque, a minha Companhia ficou alojada no Quartel do R.I. 3, onde também nos forneceram alimentação igual à dos soldados franceses. Outras companhias ficaram nas dependências do Matadouro Municipal. Começámos logo a contactar com a população francesa, onde não se viam homens na idade do serviço militar, dos 20 aos 45 anos, por haverem sido atingidos pela mobilização geral. Mas todos os habitantes da cidade se mostraram com certa curiosidade e muito atenciosos ao receberem os primeiros combatentes portugueses. Notava-se, contudo, muita gente vestida de luto, com uma certa tristeza no olhar, e um aparente cansaço causado por mais de dois anos de uma guerra atroz, com a perda de parentes e amigos, e o sofrimento desgastante de forças físicas e morais. No entanto a gente moça divertia-se nos carroceis que funcionavam num dos largos da cidade;

39


40

e o portuguesinho bisonho, mas sempre alegre (les portugais sont toujours gais), logo se associou à brincadeira, nos dois dias que estivemos em Brest, tanto mais que lindas e alegres raparigas nos incitavam para isso. Mas foi sol de pouca dura. Só dois dias, ou melhor dizendo: duas tardes de brincadeira, que o tempo não deu para mais. Depois meteram-nos num comboio especial, muito comprido, que conduziu o Batalhão completo, em dois dias e duas noites seguidas, até à estação de Aire-sur-la-Lys, no Norte da França. Estava um tempo frigidíssimo. E nós lá seguíamos dentro das carruagens, a rodar pelas grandes planícies da França, muito friorentos, embrulhados nos capotes, com as pernas e os pés envoltos em cobertores de lã. Levávamos rações de campanha para três dias. Assim atravessámos a Bretanha e a Normandia, passando depois por Rouen e Amiens, que nos lembre. Pelo caminho tivemos algumas paragens para reabastecimento da locomotiva, entre elas duas mais demoradas para distribuir café quente a todo o Batalhão, mandado preparar antecipadamente pelos caminhos-de-ferro franceses. Quando chegámos à pequena cidade de Airesur-la-Lys já ali se achava instalado o Q.G. da 1.ª Divisão do C.E.P., que ficou adstrita ao III Exército Britânico sob o comando do general Hasting. Nesta zona, na aldeia de Marthes, havia sido também já


montado o Campo Divisionário de Instrução, cedido pelos ingleses; foi nomeado seu comandante o capitão Bento Roma, um oficial muito competente, activo e disciplinador. Neste campo rigorosamente mecanizado, onde tudo se fazia em marcha acelerada, se formaram os oficiais e sargentos instrutores que haveriam de preparar as unidades portuguesas, segundo o modelo inglês, sobretudo com as especialidades exigidas pela guerra de trincheiras. Dava-se especial importância à esgrima de baioneta, levada até ao exagero do “minuto de loucura”, ao lançamento de granadas de mão e de espingarda, aos gases e fumos, à camuflagem, às metralhadoras ligeiras e espingardas, ao tiro com as diversas armas. De uma maneira geral tocava-se em tudo o que dizia respeito à infantaria, em face da guerra que se estava travando. As armas pesadas (metralhadoras e morteiros) constituíam especialidades à parte, dadas em outros campos de instrução. Do armamento recebido pela infantaria portuguesa, igual ao da inglesa, sobressaía a espingarda Lee Enfield, uma verdadeira arma de guerra para aquela época. Era robusta, de boa precisão no tiro, com uma baioneta de meter medo, quando bem manobrada na estocada. De aí a especial atenção que merecia a esgrima de baioneta. Quanto à metralhadora ligeira Lewese, era muito delicada no seu funcionamento, mas ia sat-

41


42

isfazendo, quando bem afinada, porque se não dispunha de outra melhor. A reorganização das nossas unidades fez-se também de harmonia com a inglesa. Os regimentos da nossa infantaria, a três batalhões, foram transformados em brigadas a quatro batalhões. Estes aumentaram o efectivo da sua formação de comando, que as companhias também passaram a ter. Os pelotões desdobraram-se em três secções, cada uma com dois grupos de oito homens, sendo um de atiradores, outro de metralhadoras. Ficaram assim com mais mobilidade, maior descentralização, com melhor eficiência. Os pelotões eram comandados por oficiais subalternos, quando os havia; as secções por sargentos; e os grupos por 1.ºs cabos. Para satisfazer as necessidades desta reorganização, em pessoal graduado, foi preciso fazer muitas promoções a sargentos milicianos, que se foram buscar aos 1.ºs cabos com melhor aptidão, sendo o quadro destes completado com a “prata da casa”, que nem sempre era da melhor qualidade. Verificavam-se assim, em pouco tempo, grandes transformações na Divisão que esteve concentrada no Polígono Militar de Tancos, de que só ficaria uma recordação, e alguma prática na lida dos seus graduados com soldados incorporados em unidades mobilizadas, vivendo em abarracamentos de campanha um pouco diferentes dos quarteis. De início, a 2.ª Companhia do B.I. 15, perten-


cente à 1.ª Brigada, ficou acantonada na aldeia de Blessy. Passado pouco mais de um mês foi transferida para Mametz. O resto do Batalhão ficou instalado nas aldeias de Crecques, Rebecq, Clarques e Roquetoire onde ficou também o comando do batalhão. Na aldeia de Mametz se fez a preparação intensiva da 2.ª companhia, tendo em vista ocupar um lugar nas trincheiras, ao mesmo tempo que quase todos os oficiais e sargentos iam frequentando as várias especialidades no campo de instrução de Marthes, a uns quatro quilómetros de distância. A mim coubeme a especialidade de esgrima de baioneta e lançamento de granadas. Para isso me deslocava até esse campo de instrução três dias por semana, quer chovesse ou nevasse, o que acontecia frequentemente. Para nos livrarmos da neve e da chuva foramnos distribuídas umas capas muito interessantes, de tecido fino, impermeabilizado com borracha na parte interior, e com um capuz para abrigar a cabeça. Tornámo-nos dependentes dos ingleses em tudo. Foram eles que prepararam os nossos instrutores no campo de Marthes. Deles recebemos o armamento, as munições de guerra e as rações de subsistência. Eles nos forneceram o fardamento e calçado, quando o nosso necessitou de ser substituído. Porém, no que dizia respeito à alimentação, nos primeiros tempos, parecia deficiente, porque não estávamos habituados ao gosto inglês. Mas no seu conjunto era uma alimentação equilibrada, com

43


44

proteínas e calorias necessárias aos combatentes, enriquecida com sobremesa, como queijo, marmelada e outros doces de frutas enlatadas. No entanto, os nossos soldados não ficavam satisfeitos quanto ao volume ingerido. Queixavam-se de que a sopa era aguada e que o estômago lhes ficava vazio. Tornou-se necessário, por esse motivo, engrossar a sopa com batata, adquirida por fora, que felizmente havia em abundância na região. E com esta medida se satisfez o desejo que o estômago reclamava. As rações de campanha eram iguais para toda a gente. Só que um comandante de Batalhão tinha direito a três, indo aumentando gradualmente, segundo a ordem de grandeza da unidade comandada. Isto atribuía-se à necessidade ou direito de representação. Os oficiais e sargentos estavam aboletados em casas particulares, só para alojamento. Para comer organizavam-se “messes”, geralmente por companhias, fornecendo a Administração Militar os géneros correspondentes ao número de pessoas de cada uma. Os sargentos da minha Companhia tinham a sua “messe” no rés-do-chão da casa de madame Scat, uma senhora viúva que morava no centro da aldeia, junto ao cruzamento de duas estradas, e que se prontificou a cozinhar para nós, com uma pequena margem de lucro, pondo ao nosso dispor uma sala de jantar devidamente mobilada. Quando o vinho português faltava, o que por vezes acontecia, bebíamos cerveja da lavra da dona


da casa, armazenada na sua cave. Segundo escreveu o enfermeiro Cabral, nado e criado em Lisboa, “La servante était jeune et jolie et légère comme un papillon”. E a madame uma bondosa senhora, sempre pronta a desculpar os excessos da mocidade. Eu estive aboletado na casa de uns camponeses, proprietários da sua casa e terras adjacentes, de boa fertilidade, cultivada pelas suas mãos com o auxílio de um valente “cheval” que puxava pela charrua e pela carroça e outros utensílios da lavoura. Esta família, além de um filho que andava na guerra, compunha-se de três pessoas: o pai e a mãe de quem já não sou capaz de recordar seus nomes, e a filha Pauline, a passar dos seus 25 anos. Todos me trataram como se fosse pessoa de família, com “embrassements” aos “bonjours” e “bonne nuits”, no bom sentido do cumprimento francês daquele tempo, entre pessoas amigas e familiares. Sempre amáveis, destinaram-me um bom quarto, uma excelente cama com colchão de penas, onde ao deitar me afundava e aquecia naquelas noites frias de Inverno de 1917. Um colchão assim foi o primeiro e último que usei na minha vida. Belas recordações de Mamets e dos seus habitantes! Aos domingos a população aldeã apresentava-se decentemente vestida, na sua maior parte para assistir à missa. As senhoras não pareciam as camponesas da semana. Vestiam-se com elegância e calça-

45


46

vam-se bem. Punham chapéu e enluvavam-se para assistirem aos actos religiosos, com a devida solenidade. Pelas tardes domingueiras, a mocidade divertia-se a glissar pelas valetas geladas que ladeavam a estrada, dentro da aldeia, formando fila indiana, a escorregar com ligeireza, uns atrás dos outros. Os principiantes caíam, por vezes. Não eram velozes e faziam cair os outros. Mas depois de alguma prática, em boa camaradagem com as moças da terra que davam o exemplo e levavam a palma, lá se iam todos adaptando aquele exercício de patinagem no gelo, com sapatos a fazer de patins. Pelo fim do mês de Abril o B.I. 15 foi considerado apto a usar o armamento que lhe fora confiado, depois de três meses de instrução aturada, de intenso labor, de disciplina actuante em todas as subunidades que o compunham. Assim o exigia a nossa situação. Assim o exigia a Pátria Portuguesa representada pelo seu Exército em terra estrangeira, para onde fora enviado, afim de combater o imperialismo germânico, que ameaçava a Europa e o Mundo, como então se dizia. Entretanto chegou ao conhecimento do Comandante do Batalhão, major Ferreira do Amaral, que alguns soldados punidos por faltas disciplinares não estavam contentes com o seu modo duro de repressão, fazendo correr o rumor de que o queriam assassinar. Ao ter conhecimento daquele boato, logo o Comandante reagiu de modo frontal, como era seu


hábito, determinando uma formatura geral da Unidade, na qual falou aos seus subordinados duma maneira simples e directa. Confessou-se surpreendido por haver ali naquela formatura alguém com o desejo de o querer matar, mas era natural que entre tantos soldados obedientes, disciplinados e valorosos, houvesse um cobarde com aquela sinistra ideia. “Esse, porém, ainda nada pôde fazer até agora pelo simples facto de não ter balas em seu poder. Pois vou dar-lhe uma oportunidade, ao mesmo tempo que uma prova de confiança a todos os meus soldados. De aqui para diante todos terão em seu poder as respectivas munições de combate. Vou já mandar distribuí-las.” E assim se fez logo em seguida. Poucos dias depois o Batalhão seguiu para o “Front” a ocupar o sector de Fauquissart, para além de Laventie, a uns 60 quilómetros de distância do lugar onde nos encontrávamos. O deslocamento fez-se a pé, em duas etapas, com as devidas precauções contra a aviação inimiga, que começava a aparecer em sortidas diurnas, perto da frente, e já lançava bombas de 50 quilos, mas nada se passou de anormal. A primeira etapa terminou perto de Merville, junto de um grande bosque que se estendia pela esquerda da estrada por onde viemos. Aí passámos a noite em bivaque. Levantando o bivaque na manhã do outro dia, o Batalhão prosseguiu a marcha, atravessando

47


48

a cidade de Merville, que estava intacta, com um comércio activo, ruas movimentadas e belas casa de habitação. Mais adiante passámos por Estaires, uma bonita vila que a guerra ainda havia poupado. Por último chegámos a Levantie, uma vilória já bastante devastada pelos bombardeamentos, mas onde se encontravam ainda alguns habitantes, uns agarrados às suas casas e terras, e outros dos que costumam agarrar-se a qualquer lado, mesmo arrostando com o perigo das suas vidas junto das tropas em campanha. O Batalhão instalou-se em alojamentos deixados por forças inglesas do sector, entre outras que ainda ficaram para compartilharem connosco na defesa das trincheiras nas primeiras semanas da nossa estreia. Estávamos em plena planície da Flandres, a três quilómetros das primeiras linhas, já com responsabilidade na defesa do sector, embora como reserva na chamada linha de aldeias. Aqui e além levantavam-se os balões cativos, que davam indicações sobre correcções do tiro de artilharia e faziam a exploração do campo inimigo, principalmente para lá da pequena elevação de Aubers, com os seus observadores munidos de bons instrumentos ópticos. Estes balões subiam a mais de 300 metros e comunicavam telefonicamente com os comandos de que dependiam. Os seus observadores desempenhavam missões muito arriscadas. Quantas vezes eram obrigados a descer, tão rapidamente quanto podiam, para se furtarem ao ataque dos


aviões de caça alemães, que tentavam incendiá-los com rajadas de metralhadora. É certo que nem sempre davam resultado estes ataques, principalmente se eram detectados a tempo e a defesa antiaérea entrava logo em acção. Mas por vezes conseguia o seu intento, quando aparecia de surpresa, voando muito baixo, ou saindo das nuvens. Em qualquer caso, a defesa antiaérea entrava rapidamente em acção. Eram as metralhadoras pesadas que despejavam rajadas contínuas de balas na direcção do atacante; era o fogo intenso da artilharia antiaérea, que crivava o ar com explosões de granadas. Era enfim, uma cena excitante para os espectadores que só terminava quando os combatentes saiam ilesos, depois de uma luta em que a morte violenta os espreitava. Quando eram atingidos e incendiados estes balões, mesmo em plena descida, só restava aos observadores que se achavam na barquinha o recurso de se lançarem em paraquedas, correndo o risco de este não se abrir a poucos metros do solo. Mas o reverso da medalha também se mostrava algumas vezes, quando um avião era atingido pelos caças contrários ou pelo fogo antiaéreo, e se despenhava em chamas. Eram muito impressionantes os combates desta natureza. A artilharia inimiga raras vezes bombardeava Laventie ou os seus arredores. Porém, uma vez por outra caíam granadas no campo de futebol, quando os “salsichas” alemães descortinavam o movimento

49


50

dos militares que ali se costumavam reunir durante a tarde, para darem pontapés na bola, não como desafios organizados entre equipas, mas por gosto e simples passatempo. Se a coisa se complicava com a queda de granadas no campo, este era abandonado e a brincadeira terminava. Pelo fim de Abril de 1917 chegou o dia da nossa entrada nas trincheiras. Primeiramente em conjunto com os ingleses para vermos na prática como aquilo era. Depois ainda mais umas semanas com eles no esquema das armas pesadas da infantaria - morteiros e metralhadoras pesadas - que eram consideradas de certa importância como apoio da infantaria. Por fim sozinhos arcando com toda a responsabilidade de uma defesa activa que abrangia o patrulhamento do terreno de “ninguém”, de noite e em maior escala a execução de “raides” no campo inimigo, com o fim de obter prisioneiros e informações. Devo confessar que quando entrei nas trincheiras pela primeira vez, senti uma certa tensão nervosa que não me deixou dormir durante dois dias seguidos, com receio da morteirada que por vezes caía num sítio ou outro inesperadamente! O exemplo dos camaradas ingleses, que enfrentavam este perigo com a maior calma e naturalidade, cantarolando alegremente, fleumaticamente, predispunha os soldados portugueses a encarar o seu futuro com mais serenidade e confiança. Se rebentava uma granada nas proximidades, quando diariamente se barbeav-


am, continuavam a fazê-lo tranquilamente disparando ditos chistosos na linguagem interaliada do “pas compris”, que a todos faziam sorrir, tais como “boche no bone!” Esta linguagem era uma mistura de poucas palavras francesas, inglesas e até portuguesas que os aliados usavam e compreendiam, juntando o gesto à palavra quando se tornava necessário. A nossa primeira linha não era bombardeada pela artilharia alemã, talvez com receio de atingir a sua que, por vezes, se encontrava a cerca de 200 metros. Deixavam esse encargo aos morteiros, que o desempenhavam com eficiência. As suas granadas de artilharia passavam por cima de nós, assobiando, indo rebentar lá mais para trás desde a 2.ª linha até às posições de artilharia, batendo também as posições dos morteiros e metralhadoras pesadas, quando as descobriam. Ao contrário da artilharia alemã, a artilharia portuguesa não hesitava em bombardear a primeira linha alemã, sempre que lhe era pedido por S.O.S., sem medo de atingir a nossa. No entanto lembro-me de ser atingida por duas vezes, sem consequências lamentáveis, certamente por granadas extraviadas ou defeituosas, que não por erro de cálculo ou de pontaria, tão experimentados já estavam nos sectores onde operavam. Todavia podemos admitir que um erro de 100 a 150 metros se pode cometer, em termos artilheiros. É para corrigir esses possíveis desacertos que a artilharia dispõe de postos de observação e regulação de tiro.

51


52

O nervosismo próprio que se apossava das “tropas frescas”, quando se defrontavam nas trincheiras pela primeira vez, era um fenómeno geral dos combatentes, de um lado e de outro, que se denunciavam por acções precipitadas contra inimigos ou movimentos pouco definidos, quantas vezes imaginados! No nosso caso, o nervosismo e a insónia dos primeiros dias foram vencidos pela adaptação ao meio em que forçosamente tínhamos de viver, no primeiro caso, e pelo esgotamento físico no segundo. Se de noite a necessidade da vigilância e o receio de um assalto de surpresa não nos permitia um sono reparador, já não acontecia o mesmo de dia, em que podíamos dormir a sono solto, mesmo quando os morteiros rebentavam à nossa volta, fazendo estremecer os abrigos onde nos encontrávamos, pois que a vigilância era mais fácil de dia e um ataque diurno, de surpresa, pouco provável. Como se sabe as trincheiras não eram formadas por linhas rectilíneas, no seu conjunto. Eram formadas por pequenos traços, ligados quase sempre em ângulo recto. Também não eram forçosamente cavadas no terreno. Na planície alagadiça da Flandres onde os portugueses operavam, eram feitas em perfil elevado, isto é, acima do solo, feitas com sacos cheios de terra revestidos com grades de madeira na parte interior, e passadeiras e também de madeira no fundo, por onde se transitava sem humedecer ou enlamear os pés. O traçado das


trincheiras em ângulos consecutivos permitia limitar os efeitos dos bombardeamentos, e jogar às escondidas com os morteiros que voassem na nossa direcção. A prática e a observação nos ensinaram a descobrir de onde eram lançados, a direcção que traziam e a melhor forma de nos defendermos quando vinham direitos a nós. Alguns dos trabalhos diários eram a limpeza das trincheiras e a sua reparação nos locais atingidos pelas granadas. O armamento merecia cuidados especiais. As formaturas de “A postos”, ao romper do dia e ao cair da noite eram habituais e obrigatórias como preparatórias para repelir um eventual assalto nas horas consideradas mais perigosas. Faziam-se rondas nocturnas frequentes. O patrulhamento do espaço entre as duas primeiras linhas, chamado “terra de ninguém”, não se fazia diariamente no sector do Batalhão, mas era necessário fazer-se por vezes para manter o espirito de confiança e actividade das nossas tropas. E também para verificar o estado das defesas acessórias do inimigo, destrui-las, se possível, e reforçar as nossas. As saídas e as estradas faziam-se por lugares certos que se abriam e fechavam com “cavalos de frisa”. A 1.ª linha alemã nem sempre estava inteiramente ocupada. E nós sabíamo-lo. Uma das missões mais importantes das patrulhas era saber até que ponto se achava guarnecida e em que estado se achavam as suas defesas acessórias, frequentes vez-

53


54

es marteladas pela nossa artilharia. Durante o tempo que estive nas trincheiras coube-me fazer várias patrulhas, com efectivos pequenos, de quatro a seis homens. Não era necessário nomear os componentes. Todos se ofereciam voluntariamente. O 373, minha dedicada ordenança e amigo fiel, era sempre o primeiro a oferecer-se. Embora um pouco gago, era forte, desembaraçado, sem medo, sabendo esgrimir como poucos com a sua baioneta armada na ponta da sua arma. Era um companheiro de confiança, capaz de arriscar a sua vida para salvar a de um camarada em perigo. O comandante da patrulha ia sempre à frente. Os outros componentes seguiam-no em fila indiana, rastejando quando era preciso. Uma vez rastejava com os meus homens junto do arame farpado da trincheira inimiga, procurando descobrir uma passagem que permitisse entrar capciosamente, em cumprimento da missão de que fora encarregado. Eis senão quando começaram-se a divisar, um pouco à direita, alguns vultos sobre o perfil elevado da trincheira inimiga, descendo um a um para a “terra de ninguém”. Contei uns nove ou dez. Procurei seguir-lhes o movimento e concluí que podiam envolver-nos contra as suas trincheiras, para ali nos dizimarem ou fazerem prisioneiros. Manobrei então a patrulha para o meio da “terra de ninguém”, procurando localizar o inimigo na escuridão da noite, mais pela escuta que pela visão con-


fusa das coisas. Um embate corpo a corpo, naquelas condições, pareceu-me perigoso para a nossa patrulha minoritária. Por isso resolvi regressar à nossa linha para prevenir a guarnição contra uma possível surpresa. Depois lançaram-se uns “very-lights” e fizeram-se umas rajadas de metralhadora ligeira para o local onde a patrulha alemã poderia encontrar-se. E não se passou mais nada. No dia seguinte fiz o costumado relatório, onde narrei tudo o que aconteceu com toda a exactidão. Pois o Comandante do Batalhão, major Ferreira do Amaral, não aprovou o meu procedimento. Mandou-me chamar à sua presença e, entre outras coisas, disse-me que tinha perdido uma boa ocasião de manifestar o valor dos soldados portugueses. Segundo ele entendia, eu devia ter levado a minha patrulha ao combate corpo a corpo, na “terra de ninguém”, contra a patrulha alemã, embora numericamente superior e com a vantagem de estar próximo das suas linhas. E sentenciou: Eu iria repetir o mesmo serviço, com os mesmos homens. E se tivesse a oportunidade de encontrar alemães, deveria atacá-los, de qualquer modo e com os meios de que dispusesse. Posta a questão desta maneira, reuni os meus homens e pu-los ao facto do que o Comandante me tinha dito. Eles compreenderam logo que isso era uma punição que cumpririam de boa vontade juntamente comigo. Por tudo isso fizemos uma nova patrulha, na “terra de ninguém” que durou mais de três

55


horas e passámos uma boa metade numa cova aberta por um morteiro muito próximo das trincheiras inimigas, à espera que os alemães aparecessem para atacá-los de surpresa com granadas na mão e à arma branca, se isso nos fosse possível. Como não apareceram regressámos às nossas trincheiras, já quase ao romper do dia, com a consciência tranquila por havermos cumprido o nosso dever. A respeito de patrulhas e relatórios muito havia que dizer, mas ficamos por aqui. ***

56

Em noites e dias de vigília aturada, bombardeamentos, patrulhas, reconstrução de trincheiras destruídas pela metralha, e alguns temerosos “raides” se passaram semanas e meses na 1ª e 2ª linha e na reserva alternada da chamada “Linha de Aldeias”. A situação foi-se tornando mais dura, na medida em que os meses se foram passando, até ao fim de Novembro de 1917. O B.I.15 passou então um mês de descanso (Dezembro de 1917), como reserva divisionária, na aldeia de Paradis, onde festejámos um Natal branco e friorento, acamaradando com os soldados ingleses e a população francesa que por ali ainda vivia, um pouco afastada do perigo iminente da guerra. Findo este período de descanso, o B.I. 15 ocupou novamente um lugar na frente de combate, mas agora no Sector de Neuve Chapelle, onde existia o


celebre Bico de Pato, que aproximava as trincheiras inimigas a pouco mais de 100 metros. A partir de Janeiro de 1918, os ataques de morteiros e de artilharia tomaram um novo aspecto, com vista a provocar o abatimento moral e físico dos portugueses. Começavam repentinamente em concentrações macissas sobre zonas determinadas, parando de súbito, para cair novamente em outro lugar, martelando, desgastando, na perspectiva da morte em qualquer momento! Assim nos aguentámos mais três meses. Os alemães, desesperados com o prolongamento de uma guerra devastadora, já tinham feito uma grande ofensiva no Somme, com o objectivo de lhe pôr fim com uma vitória estrondosa. Mas os Aliados, com grande participação americana, conseguiram impedi-la. Já haviam bombardeado Paris com uma peça de longo alcance, situada a 120 quilómetros de distância! Martelavam agora o C.E.P., frequentemente, e as charneiras de ligação com o Exército Inglês, com o fim evidente de abater a sua força moral. Como consequência desses bombardeamentos, os soldados portugueses começavam a comparecer nos Postos de Socorros, alegando fadiga excessiva, na sua maior parte. O B.I. 7, massacrado e abatido, indisciplinou-se, recusando-se a ocupar o seu lugar nas trincheiras. Por outro lado, os graduados que conseguiam licença para gozar em Portugal não volta-

57


58

vam, depois da revolta de Sidónio Pais. E de Lisboa também não vinham mais reforços para substituir as baixas do desmoralizado C.E.P. O Alto Comando sabia o estado depressivo em que algumas unidades se encontravam, causado por uma longa permanência nas primeiras linhas, mas parecia não querer reduzir a frente destinada aos portugueses, como de facto se impunha. Contudo, foi levado a prometer aos batalhões com maior permanência nas trincheiras um grande descanso na retaguarda para recobrar as forças perdidas. Entretanto chegou o 9 de Abril, de triste memória, tão discutido, mas tão mal interpretado, no seu conjunto geral e no aspecto particular das pequenas unidades. Para esclarecer um pouco mais o que se passou connosco a partir daquela data, vamos transcrever os seguintes documentos: a) Uma carta do “frère de guerre” Baltazar de Castro e a minha resposta. Outra minha carta e a resposta dele. b) Uma cópia das declarações que prestámos eu e o Baltazar na Base do C.E.P., em Ambleteuse, perto de Bolonha, sobre a batalha de La Lys (os ingleses chamam-lhe de Armentières), que o major de artilharia Alfredo Guerra, meu conterrâneo e amigo, teve amabilidade de me oferecer. Acrescentaremos que o original deste documento secreto foi encontrado em Lisboa, no arquivo do C.E.P., pelo mesmo oficial, quando investigava outros assuntos.


Sérgio Augusto dos Santos 1917

O “Frére de Guerre” Baltazar de Castro 1917

59


a) Uma carta do “frère de guerre” Baltazar de Castro e a minha resposta. Outra minha carta e a resposta dele.

60


Chaves 1-1-965 Meu Caro Sérgio, Aí vai uma carta que para ti será, certamente, uma surpresa! Uma carta do “Frère de Guerre”, tudo podias supor, menos isso; porque este maroto não deu sinal de vida desde que há 26 anos nos encontrámos em Lisboa, quando praticávamos na metralhadora ligeira “Dryse”. Pois bem. Razões da minha carta: 1ª e principal; porque há tempos na Liga dos Combatentes em Lisboa, falando de ti ao secretário geral, Sr. João Jaime de Faria Afonso, eu disse-lhe que não sabia onde paravas e gostava de sabê-lo para reatar antigas e amistosas relações. Então o secretário geral disse-me que descansasse porque ele ia procurar saber o teu paradeiro e depois mo comunicaria. Com efeito, há dias recebi aqui em Chaves, na Liga dos Combatentes de que sou Presidente, um ofício assinado por um coronel, em que me é dado o teu endereço. Uma outra e também bastante forte razão da minha carta: é dizer-te que quero mandar-te um manuscrito, ou um exemplar dactilografado de um livro que escrevi, aonde espero que tu escrevas qualquer coisa à laia de Prefácio. O livro chama-se – Memórias de um prisioneiro da 1ª Grande Guerra. Escrevi estas Memórias por me revoltar ouvir tanta mentira a respeito da 1ª Grande Guerra e muito espe-

61


62

cialmente sobre Lacouture. Tu és muitas vezes mencionado nestas Memórias, por isso qualquer coisa que tu digas a respeito é um testemunho de valor. O Faria Afonso quer um exemplar manuscrito ou dactilografado para o arquivo da Liga dos Combatentes. Ora eu queria mandar-lhe um exemplar dactilografado, mas também queria que tu, nesse exemplar, escrevesses qualquer coisa, como acima disse, à laia de prefácio. Eu tenho nessa cidade um filho de nome Mário de Castro, que é arquitecto e mora na Rua da Alegria, 404-2º- D. Se te não mandar pelo meu filho o livro em questão, mando-te pelo correio. Por agora desejo de ti, simplesmente duas linhas para ver como te impressionou a minha carta. Com os votos de um Ano Novo muito próspero, muita saúde e felicidade. Abraça-te o teu velho amigo Baltazar de Castro Só uns meses mais tarde recebi o referido livro, entregue pelo filho Mário de Castro. Respondi do seguinte modo:


Porto, Setembro de 1965 Meu Caro Baltazar, Li com muito interesse as tuas Memórias referentes aos setenta dias de cativeiro passados quase na totalidade juntamente comigo, “o frère de guerre” como muito humana e carinhosamente me tratas. Pedes-me para escrever algumas palavras sobre o mesmo assunto, gentileza que atribuo a uma grande amizade, ligada por sólidos laços de sólida camaradagem, pois que outros mais competentes e de maior representação social o poderiam fazer melhor. Preferiste assim. Agradeço a deferência. Como sabes eu não fiz parte da guarnição ocasional do reduto de Lacouture, que tão valentemente se bateu nos dias cruciantes de 9 e 10 de Abril de 1918. É certo que fazíamos parte da mesma companhia, a 2ª do B.I. 15, a mais sacrificada nesses dias memoráveis, mas não do mesmo pelotão. Este foi o principal motivo de seguirmos rumos diferentes até ao dia do nosso encontro em Lille. E com satisfação nos vimos, depois de tanta tristeza, de fome e de miséria! Só quem tiver passado por esses transes tão angustiosos, tão cheios de ansiedade, saberá compreender em toda a sua grandeza o que representa o encontro de camaradas verdadeiramente amigos, que se julgavam perdidos na confusão tremenda do combate!

63


64

Embora sem nos podermos auxiliar, como desejávamos, na situação de prisioneiros de guerra, o certo é que ainda não tínhamos perdido a esperança em melhores dias. O nosso espírito de luta por uma causa que julgávamos justa estava intacto. Foi com esperança e esse espírito que conseguimos evadir-nos do Campo de Illies e atingir as linhas inglesas, cerca de Givenchy. Mas voltemos ao assunto principal, que é o de dar o meu testemunho presencial, e a minha opinião, se isso me é permitido, sobre os factos descritos nas tuas Memórias. Os 70 dias vividos tão intensamente, hora a hora, minuto a minuto, em situação tão difícil de suportar, quase de revolta, davam para escrever um grande livro, cheios de lances impressionantes, verdadeiros, embora alguns parecessem inverosímeis. Tu escreveste o que te pareceu mais importante, descendo algumas vezes ao pormenor, sempre na realidade dos momentos vividos, com aquela probidade que é atributo das pessoas bem formadas, de ideal elevado, como sempre te considerei, incapaz portanto de alterar intencionalmente a essência das coisas que se passaram. Não, meu amigo. Ninguém de boa-fé te poderá considerar como aquele oficial que foi louvado e condecorado por engano, e que à força de repetir a leitura dos hipotéticos feitos, constantes da sua folha de serviço, os contava sempre que se


lhe oferecia ocasião, muito convencido de que, na verdade, os havia praticado! As tuas Memórias não pecam por exagero ou distorção dos factos. São descritas de uma maneira simples e natural, despidas da roupagem enganadora do artifício ou da fantasia, onde os actos, mais que as palavras, falam por si. Mas nem por isso deixam de mostrar decisão, firmeza, combatividade, por vezes com altivez a ilustrar algumas facetas da tua personalidade, integradas no corpo e na alma dum franco e leal transmontano. Acima de tudo sobressai o teu grande amor a Portugal, que sempre procuraste honrar e engrandecer, nas mais variadas situações, com o orgulho bem justificado de te sentires português. Depois destas considerações gerais, eu queria referir, embora sucintamente, a acção da 2ª Companhia, de que ambos fazíamos parte, por ser a mais firme, a mais heróica, aquela que mais contribuiu para a fama e glória do B.I. 15 na Batalha de 9 de Abril de 1918. Dado, porém, o carácter individual que mais ou menos deste ao relato dos acontecimentos, eu receio ir além do que devo, incluindo nas tuas Memórias uma boa parte das minhas. Por isso limitar-me-ei a sublinhar as dificuldades da marcha para os redutos de Lacouture e Richebourg S. Vaast, que tu muito bem descreveste, e a abordar o desenrolar do combate nesta última posição, por de algum modo o jul-

65


66

gar ligado ao que aconteceu posteriormente. Era comandante da nossa Companhia, como disseste, o tenente Gustavo Pires de Figueiredo. O 1º Pelotão era comandado por mim, então 2º sargento; o 2º pelo alferes Andrade, e 3º pelo malogrado alferes Costa (este morto e os outros dois feridos em combate). Naquela fatídica madrugada do dia 9 de Abril estávamos acantonados em Croix Marmuse, de onde esperávamos sair para um grande descanso, longe das trincheiras, para retemperar os nervos. Acordáramos com o troar de artilharia inimiga, um bombardeamento ininterrupto que se entendia por uma vasta e grande profundidade. As granadas de grosso calibre passavam por cima das nossas cabeças, assobiando, com destino aos objectivos importantes da retaguarda. Tudo fazia prever uma acção de certa envergadura, como de facto era. O Batalhão recebera ordem para ocupar e defender a chamada Linha de Aldeias, na frente constituída pelos redutos de Lacouture, Richebourg S. Vaast, Les Épinettes... atrás das primeiras linhas ocupadas pela infantaria portuguesa, que haviam sido atacadas pela infantaria alemã, depois de intensamente bombardeadas. A 2ª Companhia, com o seu comandante à frente, depois de tomar o café, formou e pôs-se em marcha, com as subunidades devidamente escalonadas, para melhor se precaver contra os efeitos de um súbito bombardeamento, em direcção ao seu objectivo.


Este foi atingido com a quase totalidade do seu efectivo, com esforço inaudito e coragem extraordinária. Do cruzamento de Zelobes para diante, a marcha foi mais difícil, tornando-se cada vez mais perigosa, como muito bem assinalaste. Mas para se fazer uma ideia mais completa das dificuldades que se apresentavam para atravessar aquela barragem, bastará acrescentar que a 1ª e 3ª companhias ao chegarem ali, em presença do espectáculo medonho que se lhes oferecia, julgaram aquela barragem intransponível, e derivaram para a direita até encontrarem os ingleses na extremidade do nosso sector. Os ingleses destinaram-lhes um lugar no prolongamento da sua linha defensiva para a esquerda, que os alemães já não chegaram a atacar, depois dos embates sangrentos nas linhas mais avançadas, de que faziam parte os Redutos de Richebourg S. Vaast e Lacouture. Era realmente temeroso marchar em frente naquelas condições. Mas as 2ª e 4ª companhias, com alguns elementos do Comando do Batalhão conseguiram chegar, em grande parte, a Richebourg S. Vaast e Lacouture, eis o que importa frisar, e aí resistiram até ao fim, como lhes havia sido determinado. No reduto de Richebourg S. Vaast, ocupado pelos 1º e 2º pelotões da nossa Companhia, o combate foi mais curto que o de Lacouture, mas creio que mais violento e brutal. Às 10 horas já estava por nós ocupado, mas o bombardeamento de artilharia ainda continuava, fazendo algumas baixas entre os

67


68

70 ocupantes. Pouco tempo depois o tiro foi alongado, começando a divisar-se ao longe, tanto quanto a neblina o permitia, o movimento de soldados isolados seguidos de uma formação em ordem unida (um pelotão) que identificámos como alemães. A cerca de 200 metros foi aberto fogo simultâneo por toda a guarnição, reforçado com uma metralhadora ligeira. Os efeitos foram terríveis naquela formação, que caiu em terra como que fulminada. Nesta primeira parte obtivemos um êxito total. Porém, os alemães não desistiram do seu intento. Começaram então a montar um verdadeiro ataque, de mais longe, apoiado com metralhadoras pesadas, que rasavam o nosso parapeito. Nós opúnhamo-nos com toda a força ao avanço frontal, mas o cerco já se desenhava pelos flancos, longe do alcance eficaz das nossas armas, ameaçando envolver-nos pela retaguarda. Em certa altura, o comandante da Companhia, julgando indefensável o pequeno reduto, pensou na retirada, chegando a dar ordem nesse sentido. Porém, alguém se opôs a isso. Mas o 2º sargento Políbio Fernandes das Neves ainda saiu pela porta que ficava nas traseiras do reduto, com a sua secção e uma metralhadora ligeira, a única que possuíamos, mas sem possibilidade de oferecer mais resistência, fora do reduto, por falta de munições e da indispensável coesão. Todos os outros, incluindo o próprio comandante, se obstinaram depois numa defesa irredutível até ao fim que se adivinhava, mas não se temia.


O combate foi árduo e sangrento, aumentando de intensidade a cada momento. As metralhadoras inimigas varriam o nosso parapeito. O comandante tenente Pires de Figueiredo expunha-se, para dar o exemplo aos seus subordinados, sendo atingido num ombro por uma rajada de metralhadora. Foi levado imediatamente para a casa do reduto, em ruína, onde outros feridos já se encontravam. Os graduados não só combatiam com as espingardas a escaldar nas mãos, como incitavam os seus soldados a defender-se até ao último cartucho, mas tudo tem um fim. As munições começavam a faltar, o fogo a enfraquecer. Passadas horas difíceis, penetrou no reduto, pela retaguarda, um oficial alemão seguido por muitos soldados. A confusão foi tremenda. Num breve duelo à pistola, como um relâmpago, entre o oficial alemão e o alferes Andrade, este caiu redondamente, atingido numa perna. O resto da guarnição, esgotada pelo esforço contínuo de quatro horas de combate, antecedidas de uma marcha exaustiva, sem mais possibilidades de resistência, cessou de combater, depondo as armas que possuía perante os invasores do pequeno reduto. Se as nossas baixas entre mortos, feridos e prisioneiros foram grandes, as dos alemães foram ainda maiores, como tive ocasião de verificar pessoalmente quando passei junto a uma casa, ao pé da estrada, que servia de posto de socorros, onde se encontravam fileiras de soldados mortos, estendidos

69


70

no chão, que avaliei em mais de 60! Isto sem contar com os feridos já evacuados. Era aquele o preço da conquista do Reduto de Richebourg S. Vaast. Segundo creio aquela resistência pertinaz e devastadora causou uma certa surpresa aos alemães, que não esperariam tanta decisão naquela fase da batalha. Em vista disso, quando a seguir enfrentaram Lacouture, teriam resolvido não se empenhar a fundo para a sua conquista, preferindo envolvê-la e ultrapassá-la até que caísse por si, depois de madura, quando as esperanças de um possível auxílio se tivessem perdido. E não se enganaram. O mesmo teria acontecido a Richebourg S. Vaast, se eles não se tivessem empenhado tanto a fundo na sua conquista. De qualquer modo, porém, o nosso esforço não foi em vão e não teria deixado de ter seus reflexos no desenvolvimento ulterior da batalha. A prova, podemos encontrá-la na frente ocupada no prolongamento da linha de resistência inglesa, pelas duas companhias do B.I. 15 (1ª e 3ª), que já não chegaram a ser atacadas. E por quê? Supomos porque já contassem com uma sangrenta resistência. A finalizar contarei mais dois ou três episódios, que tu não mencionas, por qualquer motivo que desconheço. Eu ainda não consegui esquecê-los – e já lá vão 47 anos – tão grande foi a força emocional de que se revestiram. Vê se te recordas. Estávamos a decair fisicamente, dia a dia, como todos os desgraçados que se encontravam no


Forte de Lille, no meio de tanta miséria. Eu também fui, entre muitos, um dos que caíram sem sentidos, na formatura do rancho, indo acordar depois, em promiscuidade com ingleses, na tarimba de madeira da chamada enfermaria. A fome era negra! Já tínhamos feito aquela combinação para ludibriar os alemães, quando em fila indiana íamos receber um pouco de rancho mal cozinhado até sermos apanhados em flagrante delito! Havia de facto uma tendência geral para obter comida, ou qualquer coisa que servisse para adquiri-la. Foi assim que a minha carteira, com algumas dezenas de francos, foi surripiada junto às grades da prisão, durante um pequeno descuido, ao tentar comprar um bocadinho de pão. Foi neste ambiente de fome e desolação que tu reagiste e tomaste uma atitude de sacrifício, oferecendo-te para o serviço de limpeza e despejo dos baldes onde se faziam as necessidades corporais, como soldado raso, escondendo, para isso o teu posto de sargento! Assim conseguias saber o que se ia passando nas outras camaratas da prisão ocupadas por ingleses e franceses. Quando regressavas à noitinha, moído pelo trabalho, trazias sempre alguma coisa para comer, que conseguias dos alemães, e que sempre repartias comigo, em primeiro lugar. Mencionando este facto, pretendo deixar aqui expresso o meu inesquecível reconhecimento. O outro é o seguinte: Na 1ª noite da nossa fuga, logo à saída do campo, a uns 200 ou 300 met-

71


72

ros, parámos para nos orientarmos na direcção a seguir. O céu estava estrelado. A noite um pouco pardacenta permitia ver a certa distância o contorno das coisas. Ao longe, nos confins da grande planície da Flandres, viam-se os “very-lights” da 1ª linha inglesa. Os projectores, aqui e além, esquadrinhavam o espaço, na procura dos aviões que passavam, roncando caracteristicamente. Era um espectáculo lindo, grandioso, mesmo para quem, como nós, o estava observando em liberdade restrita, em terra ocupada pelo inimigo. Foi neste ambiente extraordinário que eu me descobri respeitosamente, para invocar a protecção de Deus. Tu fizeste o mesmo. E eu então, cheio de fé, com verdadeira emoção, pronunciei simplesmente as seguintes palavras: Que Deus nos proteja! Depois seguimos resolutamente na direcção determinada. Fizemos uma boa marcha nessa noite, calculando que tivéssemos vencido oito a dez quilómetros. Na 2ª noite ainda fizemos uma caminhada regular, apesar dos contratempos que tivemos. Permite que recorde mais um que tu não mencionas. Atravessávamos a zona ocupada pela artilharia passando, sem o saber, junto de um abrigo para pessoal semienterrado, quando tropeçámos num bocado de lata ou folha zincada, fazendo barulho. Do abrigo saiu um alemão a barafustar, possivelmente por o termos acordado do seu primeiro sono. Nós continuámos a caminhar, sem alterar o passo, para não


levantar suspeitas. Ele acabou por recolher ao abrigo lembrando-se talvez que seria brincadeira dos seus camaradas. Já de madrugada, depois do episódio da estrada, vem o ataque de gás, perto da 2ª linha alemã, ocupada por soldados que víamos distintamente. Este foi o ponto mais crítico da nossa luta pela liberdade. Estivemos quase a soçobrar, perdidos, sem esperança. Mas a nossa boa estrela apontou-nos a árvore salvadora, para onde corremos, trepando com agilidade para a parte superior, despida de folhas pela metralha. No fim da 4ª noite, depois de muito rastejar e de todas as peripécias narradas penetrámos na 1ª linha inglesa! Que grande alegria premiou a nossa aventura, a nossa persistência, o nosso esforço, a nossa ousadia! De aí para diante os ingleses trataram-nos com a deferência e consideração que o nosso feito lhes merecia. Além do mais, ofereceram-nos toda a roupa de que necessitávamos. Aceitámos mudar de roupa interior, depois de um banho de chuveiro, muito agradecidos, mas quisemos conservar, contudo, a nossa farda velhinha de soldados portugueses, meio esfarrapada de tanto rastejar. Depois da nossa entrega na Missão de Ligação junta do Exército Inglês, seguimos para o Comando do C.E.P., nas proximidades de Bolonha, em um comboio de permissionários ingleses, que nos quiseram levar para Londres! Nós, porém, não alterámos o nosso destino.

73


74

Durante o mês que estivemos na base do C.E.P. em convalescença, prestámos mais uma vez declarações, como já havíamos feito aos ingleses, e obtivemos licença para visitar o nosso Batalhão, que então se achava nas proximidades de Saint Omer. O seu valoroso comandante major Ferreira do Amaral gostou de nos ver e ouvir, resumindo assim a nossa arrojada aventura, em Ordem de Serviço do Batalhão: ”Louvado porque caído nas mãos do inimigo durante a Batalha de Sur-la-Lys de 9 (nove) de Abril, em que a sua Companhia tomou parte, empregou todos os esforços para se libertar das mãos do inimigo em 16 de Junho, correndo os riscos inerentes ao acto que praticou”. Parece-me que fui além do que devia, reforçando as tuas Memórias com uma boa parte das minhas, mas elas andam tão ligadas que me não foi possível falar só de ti. Tu podes, no entanto, fazer o uso que quiseres do que deixei escrito, no todo ou em parte, como entenderes, e do modo que melhor satisfaça ao fim que tiveste em vista. Termino com um abraço do “frère de guerre”, camarada e amigo certo. (a) Sérgio A. Santos


Porto, 21 de Dezembro de 1965 Prezado amigo “frère de guerre” Contando com a tua amizade creio não me levarás a mal que apresente duas observações, muito particularmente relativas às tuas Memórias. A 1ª é sobre o grande canhão que se encontrava nas proximidades de Illies. Diziam ser de calibre 42, um “Grosse Bertha”, verdadeiro monstro que vomitava a sua metralha de meia em meia hora, quando em funcionamento. Pelas informações que pude obter de soldados alsacianos, os nossos guardas mais acessíveis nos trabalhos do campo, este grande canhão bombardeava várias cidades francesas, mais ou menos em semicírculo, entre as quais me recordo de ouvir mencionar as de Arras, S. Pol, S. Quentin e Aire-sur-la-Lys. Até que ponto seriam verdadeiras estas informações não o posso dizer. Mas há um ponto, no entanto, que não oferece dúvidas: o bombardeamento de Paris não foi feito da posição de Illies. Foi feito de um bosque mais para Sudeste, creio que na Região do Somme, a uns 120 quilómetros do seu objectivo, com um “Grosse Bertha”, sem dúvida, possivelmente de menor calibre mas de maior alcance. De resto, este assunto está verdadeiramente esclarecido, pelo

75


76

que se escreveu sobre ele, na devida altura. Parece-me que devia fazer esta correcção como amigo, não como crítico, que o não sou nem quero ser. A 2ª, mais sugestão que observação, vem a ser o seguinte: o que se passou connosco desde 19 de Junho até ao nosso embarque para Portugal, em Brest, em Outubro, ou mesmo até Lisboa, quando os flagelos da guerra e da pneumónica estavam quase a terminar, está em íntima ligação com o que nós fizemos, ou melhor dizendo, foi sua consequência. Parece-me, por isso, que poderias alargar as tuas “Memórias” até essa altura, registando alguns episódios interessantes, que não abordaste, até ao dia do nosso desembarque em Lisboa, onde de facto começámos uma vida nova, diferente, melhor. Desculpa este pequeno reparo e acredita na amizade sincera do “Frère de Guerre”. Sérgio A. Santos


P.S. Junto uma cópia das nossas declarações confidenciais na R. I. do C.E.P., que um camarada amigo (major Alfredo Guerra) conseguiu haver em Lisboa, nos Arquivos do C.E.P., quando investigava outros assuntos, e a fez chegar à minha mão. Talvez esse documento te interesse alguma coisa, pelo menos como simples recordação.

77


Chaves, 31-12-965

78

Meu Caro Sérgio Só hoje recebi a tua carta, um cartão e as Memórias de um Prisioneiro de Guerra, porque o meu filho a quem os entregaste, deixou-os ficar no Porto, por esquecimento, quando veio ao Natal. Regressando ao Porto, mandou-me tudo e, como disse, só hoje recebi e hoje mesmo respondo sem demora. Quanto aos teus reparos e conselhos, estou absolutamente de acordo. Sobre tais assuntos, muito há que dizer, mas hoje como estou com pressa e quero que esta siga daqui a meia hora não terei tempo para dizer grande coisa. No entanto aí vai um apelo à tua memória! Reparaste que terminei abruptamente a nossa “odisseia” quando chegámos aos Q.G. ingleses e mal me referi à bonita recepção que tivemos no B.I. 15. a que não se alheou o Comandante Ferreira do Amaral? Deves lembrar-te da péssima recepção que tivemos em Bolonha e em Ambleteuse e das recepções que tive de que me recordo com dupla vergonha? Foi pois para não relembrar coisas tão desagradáveis, e até vergonhosas, para os nossos companheiros de armas, que eu terminei as Memórias tão abruptamente. Se tu fores capaz de relatar tudo o que se passou e se tiveres apontamentos sobre o que não tiveres de


memória, eu concordo com a ampliação a que aludes e as Memórias passarão a chamar-se “Memórias de dois Prisioneiros de Guerra”. Com os votos um Feliz Ano Novo para ti e todos os teus. E um forte abraço do “Frère de Guerre” Baltazar de Castro. Continuação: Depois do que ficou dito na folha anterior e até de a ter fechado, no respectivo envelope, é que eu vi o que tinhas escrito como complemento às m/Memórias. Falas do que se passou antes de nos encontrarmos em Lille. Óptimo! As “Memórias de dois Prisioneiros de Guerra” têm de ser reformadas e ampliadas, e serão dois os seus autores. Até breve, porque hoje não posso mais. Um forte abraço do Baltazar

79


b)

80

Uma cópia das declarações que prestámos eu e o Baltazar na Base do C.E.P., em Ambleteuse, perto de Bolonha, sobre a batalha de La Lys (os ingleses chamamlhe de Armentières), que o major de artilharia Alfredo Guerra, meu conterrâneo e amigo, teve amabilidade de me oferecer. Acrescentaremos que o original deste documento secreto foi encontrado em Lisboa, no arquivo do C.E.P., pelo mesmo oficial, quando investigava outros assuntos.


SECRETO CÓPIA Q.G.- R.I. C.E.P. 22/6/918 DECLARAÇÃO DE DOIS SARGENTOS DO BATALHÃO DE INFANTARIA 15, APRISIONADOS NO COMBIATE DE 9 DE ABRIL, E QUE SE EVADIRAM. * I- Declarações Individuais a) Sérgio Augusto dos Santos, 2º sargento nº 388 da 2ª Comp. de Infantaria 15, em França desde Fevereiro de 1917. O Batalhão de Inf. 15 estava em repouso desde 7 de Abril, em Croix Marmusse, donde devia marchar às 9 horas do dia 9 para a retaguarda, com as outras unidades da 3ª B.I. Quando começou o bombardeamento, na madrugada de 9 de Abril, o comandante da 2ª Comp., tenente Gustavo Pires de Figueiredo, deu ordem para que se apresentassem a marchar à 1ª voz. A barragem fora estabelecida à frente de Croix Marmusse. Pelas sete horas o tenente Figueiredo mandou formar a companhia, e colocando-se à frente do 1º e 2º pelotões, seguiu com eles para o reduto de Richebourg. O 1º pelotão era comandado pelo sargento Santos, que fez estas declarações, e o 2º pelo

81


82

alferes Andrade. Do 1º pelotão somente dois grupos (Secções) conseguiram passar a barragem e chegar ao reduto, que foi ocupado pelas 10 horas. Não receberam comunicação alguma da frente. Durante o trajecto encontraram alguns homens desarmados, que vinham fugidos da frente. O reduto foi muito bombardeado durante cerca de uma hora, havendo alguma baixas. Tendo a artilharia inimiga alongado então o tiro, convenceram-se que se tratava de uma acção importante, e o comandante da companhia organizou a defesa do reduto, distribuindo os postos. Pouco depois avistaram, através do nevoeiro, alguns grupos de homens, que a princípio lhes pareceram portugueses, mas que logo a seguir reconheceram serem alemães. À retaguarda das patrulhas inimigas avançava um pelotão em forma densa. Aproveitando a vulnerabilidade do inimigo, que ainda não os presenciara, os defensores romperam então fogo de espingarda, que foi muito eficaz, produzindo fortes baixas ao adversário. Este então, procurando abrigar-se começou a progredir, já em ordem extensa, avançando pelos flancos. Numa casa arruinada, que havia na frente do reduto, os alemães instalaram uma metralhadora pesada com que varriam os parapeitos, produzindo bastantes baixas. Foi nessa ocasião ferido o comandante da companhia. Envolvido o reduto, a certa altura, pela retaguarda deste entraram dois alemães, um dos quais feriu


com um tiro de pistola o alferes Andrade. Os nossos homens atiravam granadas de mão aos alemães que entravam no reduto, mas grande parte destas granadas não rebentavam por não estarem espoletadas. No começo do ataque, o tenente Figueiredo enviara algumas ordenanças e o sargento Frazão a Lacouture, para comunicar a situação e pedir reforços ao Batalhão, mas nenhum desses homens voltou. Um pouco antes dos alemães penetrarem no reduto, o comandante da companhia mandou retirar um grupo sob o comando do sargento Políbio Fernandes das Neves, esperando, talvez, poder retirar com as restantes forças. Estabeleceu-se grande confusão com a entrada dos alemães no reduto. A guarnição, já muito reduzida, teve de render-se. Os homens não feridos foram mandados formar e enviados para as nossas trincheiras, já ocupadas pelo inimigo. No trajecto tiveram ocasião de verificar os bons efeitos dos fogos da defesa, pois viram por terra muitos alemães mortos e feridos (mais de 60 em frente do reduto). Nas linhas foram aproveitados no transporte de feridos e na reparação de caminhos para passagem de artilharia e viaturas. Ao anoitecer foram enviados em grupos para um campo de concentração em Salomé. Aí foram marcados com números nas costas, e preencheram cartões com os seus nomes, números e filiação. Só no dia 10, pelas 17 horas, receberam alimen-

83


84

tação que por insuficiente, não foi distribuída a todos. Em seguida, marcharam para Carvin onde estiveram até ao dia 19. Aí viram muitos civis franceses que procuravam por todas as formas serem agradáveis aos prisioneiros, chegando a arriscar-se, pois as proibições eram rígidas, para lhes darem alimentação, cigarros, etc. Muitas vezes mandavam crianças que mais facilmente se podiam aproximar do arame da gaiola que atiravam aos prisioneiros vários mimos. No dia 19 partiram para Lille. No dia seguinte, ao atravessarem a cidade no trajecto para o Forte, uma rapariga francesa foi presa por ter correspondido ao “bonjour” dado por um dos nossos soldados. Foi nesse dia que o sargento Santos encontrou o seu companheiro de evasão, sargento Castro. b) Baltazar de Castro, 2º sargento nº 564 da 2ª Companhia de Infantaria 15, em França desde Fevereiro de 1917. No dia 9 encontrava-se em Croix Marmusse, comandando uma secção do 3ª pelotão. Recebendo este pelotão ordem para marchar para Lacouture, teve grandes dificuldades para cumprir esta ordem, em virtude da violência do bombardeamento feito pelo inimigo e que desorganizou a coluna causando-lhe algumas baixas. Conseguindo juntar elementos dispersos, e bem assim alguns homens que no percurso encontraram desarmados fugidos das trincheiras, atingiram o reduto onde já estavam praças de Inf. 13, e dois oficiais e alguns soldados ingleses.


Mais tarde chegaram os majores dos Batalhões 15 e 13, com os oficiais dos respectivos comandos, e o comandante e alguns soldados de Inf. 15. O sargento Castro recorda-se de ter visto no reduto, além de outros oficiais cujo nome não sabe, os seguintes: major Peres, de Inf. 15; capitão Roma, de Inf. 13; capitão Zaide da Fonseca e Almeida; capitão Brito, comandante da 4ª companhia de Inf. 15, o qual não morreu ao contrário do que se julgou; alferes Conceição, observador do Batalhão; alferes Donato; alferes Antunes, oficial de gaz; alferes Florido, que parece ter morrido nesse dia. No reduto, o 3º pelotão organizou-se e saiu para ocupar umas trincheiras próximas. Foi nessa ocasião que morreu o alferes de Inf. 15, Alberto Pereira da Costa, comandante do 3º pelotão da 2ª companhia de Inf. 15, tendo a cabeça atravessada por uma bala de metralhadora. Resistiram nas trincheiras até às 11 horas, recuando então para o reduto, numa casa seteirada junto à Igreja de Lacouture. Resistiram todo o dia nessa casa, e durante a noite estabeleceram o devido serviço de segurança. Não receberam comunicação alguma. Durante a noite os ingleses fizeram vários sinais com lanternas, mas não obtiveram resposta. Havia poucas munições. No dia 10 infligiram muitas baixas aos alemães, com fogo de espingarda através das seteiras. Às 11 horas, um maqueiro português, que na véspera tinha sido aprisionado pelos alemães, foi

85


86

encarregado por estes de lhes transmitir intimação para que se rendessem, pois de contrário arrasariam a casa. Recusando a entregar-se, receberam ainda mais duas intimações saindo então o major Peres a parlamentar com o inimigo. Passados momentos voltava, dizendo que deviam depor as armas, porque nada mais podiam fazer. Assim fazendo, saíram primeiro os ingleses, mas logo de seguida voltaram a entrar, juntamente com os alemães que atiraram sobre os nossos, já nessa altura desarmados. Houve bastantes baixas. Saindo em seguida todos, os alemães mandaram formar os praças e fizeram-nos seguir por S. Vaast para a 1ª linha, onde o sargento Castro, com alguns homens, foi separado dos restantes praças. Durante o dia 10 o sargento Castro não recebeu alimentação alguma, e trabalhou até à noite, com outros homens, na reparação de caminhos. À noite foi mandado para Salomé, onde, com outros prisioneiros portugueses dormiu num prado, sem agasalho algum. Em Salomé foi marcado com o nº 1473, que mais tarde foi mudado para B-304. Serviu de intérprete, falando francês com o sargento alsaciano, do regimento de Inf. nº 56. Este sargento tratou-o bem, parecendo ter sentimentos pouco germanófilos. Passados três dias seguiu para Carvin e daí para Lille.


II- A evasão Os dois sargentos estiveram encarcerados 35 dias no Forte de Lille, onde chegou a haver 5 a 6 mil homens, portugueses, franceses e ingleses, sendo estes últimos os mais numerosos. Contam estes praças a respeito do Forte de Lille, os mesmos horrores a que se referiram os seis que se evadiram anteriormente. Acrescentam que devido ao calor e à praga de piolhos, andavam nus nas casernas, e que os alemães se riam dos seus sofrimentos, chegando a mostrar-lhes pão e outros comestíveis e que em seguida lhos recusavam. No dia 26 de Maio foram mandados para Aubers, onde estiveram até 11 de Junho, fazendo parte da 2ª companhia de prisioneiros juntamente com praças inglesas. Em 10 do corrente os ingleses foram mandados para Carvin, e em 11 os portugueses seguiram para Illies, de onde tentaram evadir-se no dia 16, os dois sargentos e mais três cujos destinos se ignora. Em Illies, premeditando a evasão, pediram para irem trabalhar com os soldados portugueses, porque assim mais facilmente poderiam negociar com as praças alemãs a troca de alguns objectos por pão. Conseguiram efectivamente, obter algum pão por esse meio, e na noite de 16 evadiram-se da fábrica de açúcar, onde estavam alojados, aproveitando uma

87


88

pequena abertura que havia na parede do fundo, e que fora produzida por uma granada. Na retaguarda não havia sentinelas e por isso foi-lhes fácil atingir os campos. Como os outros sargentos demorassem, julgaram que, em virtude de serem mais corpulentos, não pudessem atravessar a pequena abertura por onde se tinham evadido; e receando serem presos perto da casa, resolveram prosseguir na evasão. Guiando-se pelos clarões dos “very-lights” e da artilharia, atingiram ao amanhecer a zona das baterias, ocultando-se num valado, onde permaneceram durante o dia 17. De noite continuaram a marcha, atingindo a 2ª linha alemã. Nesta altura houve um ataque de gases feito pelos ingleses. Como não tinham aparelhos antigás, subiram a uma árvore alta, conseguindo escapar à acção dos gases. Passado o perigo, desceram da árvore e ocultaram-se num maciço de sabugueiros, ficando aí todo o dia 18. De noite continuaram a marcha para a 1ª linha, mas a certa altura desorientaram-se, voltando um pouco para a retaguarda. De manhã esconderam-se numa cratera de granada onde estiveram todo o dia 19. Orientando-se melhor, prosseguiram à noite a sua marcha. Próximo da 1ª linha foram pressentidos e alvejados com oito granadas de mão. Conseguiram passar a 1ª linha entre dois postos. Na terra de ninguém tiveram de parar e abrigar-se durante algumas horas, para es-


caparem aos efeitos de um bombardeamento efectuado pela artilharia inglesa. Às 4 horas atingiram as linhas inglesas no sector de Givenchy. Entraram entre dois postos e esperaram que passasse a ronda, a quem se entregaram. Foram muito bem recebidos pelos ingleses.

89


O chefe da R.I.

90

Os documentos que acabámos de transcrever podem dar-nos uma visão do tenaz e perigoso esforço que foi preciso despender para atravessar o território ocupado pelos alemães, desde o campo de prisioneiros de Illies até às trincheiras inglesas em Givenchy, a cerca de 20 quilómetros de distância. Não serão, contudo, suficientes para se fazer uma ideia clara e precisa de tudo o que aconteceu, nem mesmo ajuntando o que escreveu sobre este assunto o comparticipante camarada Baltazar de Castro. Daremos, portanto, ainda mais uma achega, escrevendo algumas breves palavras, de forma muito geral, sem pretendermos entrar no campo tão vasto e tão rico das emoções sofridas, da fé, e da própria força interior que nos animava, sem atender aos perigos que tivemos de enfrentar. O campo de prisioneiros de Illies era um recinto cercado de arame farpado, junto de uma velha fábrica de açúcar, que servia de alojamento. Estavam ali 300 portugueses, guardados por sentinelas de baioneta armada, dia e noite. Algumas turmas saíam durante o dia para reparação de estradas, acompanhados por graduados portugueses e os respectivos guardas alemães. O facto de descobrirmos um pequeno buraco na raiz da parede exterior daquela arruinada fábrica, voltada para a frente de combate, e algumas informações que colhemos nas saídas para os trabalhos,


fizeram-nos pensar a sério na possibilidade de fuga. Para isso reunimos alguns alimentos, designadamente pão e conservas enlatadas, fornecidas pelo sargento Cacheira, o encarregado do depósito de géneros, da confiança dos alemães, a quem impusemos rigoroso silêncio. Planeámos a evasão. Alargámos o buraco, o suficiente para se poder passar e tapámo-lo convenientemente para não ser descoberto pelos alemães. Toda a gente do campo sabia o que se estava preparando. Ninguém nos denunciou. Todos se admiravam daquele arrojado projecto. Na noite da partida havia cinco sargentos dispostos a tentar a fuga. Esta foi marcada para a uma hora de madrugada do dia 16 para 17 de Junho. Eu fui o 1º a sair pelo estreito buraco, afastando-me logo, rastejando no escuro da noite, até cerca de 20 metros. Seguiu-se o Baltazar, como havíamos combinado, mas demorou mais do que se previa. Então eu voltei ao buraco onde o encontrei ainda a sair. Os dois afastámo-nos imediatamente daquele ponto perigoso, sem esperar pelos outros, por razões de segurança. Queria ainda referir-me novamente à cena passada a uns duzentos metros do campo, onde parámos e nos descobrimos, respeitosamente, a meu pedido, para invocar a protecção de Deus, naquele difícil empreendimento. Para mim, esse momento impressionante e grandioso, foi o maior acto de fé que gravei na memória para toda a vida. Depois seguimos resolutamente, através dos

91


92

campos, desviando-nos das casas, onde por vezes se viam pequenas luzes bruxuleantes, enquanto noutras se ouvia o ladrar dos cães, denunciando a presença de pessoas que queríamos evitar. De manhã, antes de esclarecer o dia, escondemo-nos num valado coberto de verdura. Assim passámos o dia 17. Chegada a 2ª noite, continuámos a marcha através dos campos, com vários incidentes desagradáveis, por atravessarmos uma zona ocupada pela artilharia, felizmente sem consequências graves: foi o tropeçar numa folha de zinco, junto de um abrigo meio enterrado, de onde saiu um alemão a barafustar; foi aquele facto de pretendermos passar uma estrada camuflada do lado da frente, para esconder o movimento durante o dia, quando dois alemães apareceram a caminhar em sentido contrário, sem nos podermos desviar a tempo. Parece que não nos descobriram, ou então não desconfiaram de nós, pois a cerca de 20 metros pararam, olharam para atrás, e depois continuaram o seu caminho. Cabe aqui dizer que o nosso fardamento era parecido, na cor, com o dos alemães. O bonet era de feitio diferente, mas nós voltámos a pala para trás, assim nos confundindo com eles. Porém, no escuro pardacento, estou convencido que não fomos notados. Depois foi aquele bombardeamento com granadas de gás, ao romper do dia, à vista da 2ª linha alemã, onde víamos os soldados em movimento com máscaras antigás. E por último foi a nossa subida


para aquela árvore salvadora, despida de folhas pela metralha, onde nos mantivemos pela manhã já clara do dia, até que descemos e nos ocultámos entre arbustos ramalhudos de sabugueiros, durante todo o santo dia de 18 de Junho. Assim passámos a 2ª noite extraordinariamente perigosa, mas cheia de sorte, e um dia inquietante, em que a esperança da libertação ainda não se havia perdido. Na 3ª noite não nos foi difícil atravessar a 2ª linha alemã, cujos postos e movimento já havíamos observado durante o dia. Sempre rastejando chegámos próximo da 1ª linha alemã, mas fomos pressentidos e alvejados com granadas de mão, sem sermos atingidos, sendo obrigados, pela força das circunstâncias, a ficar imóveis durante aproximadamente uma longa hora, para despiste e observação. Depois retrocedemos um pouco para tentar passar em outro lugar. Nestas andanças rastejantes encontrámos um charco, onde matámos a sede, visto já se nos ter acabado a água. Mais adiante vimos um cadáver em decomposição. Entretanto, sem nos podermos orientar convenientemente, surgiu o 3º dia de mortificação (19 de Junho), que passámos abrigados entre a 1ª e 2ª linhas alemãs, dentro de uma cova, aberta por morteiro, espreitando e observando o que se passava à nossa volta. Quando chegou a 4ª noite, já melhor orientados, rastejámos resolutamente na direcção da 1ª linha alemã, que conseguimos atravessar entre dois postos, sem sermos pressentidos, tão rapidamente

93


94

como nos foi possível. Afastámo-nos depressa desse ponto perigoso e internámo-nos na chamada “terra de ninguém”, entre as duas primeiras linhas inimigas. Parámos no meio delas, em lugar seguro, não só para descansar um pouco, mas também para nos livrarmos de um duplo bombardeamento, entre os dois lados, que então começara. Depois de passar o bombardeamento, já madrugada, continuámos a marcha na direcção da 1ª linha inglesa, que tivemos a sorte de atingir, sem sermos notados, entre as 4 e 5 horas da manhã do dia 20 de Junho de 1918, com a alegria que se pode imaginar. Só faltava entregarmo-nos aos ingleses, sem mais complicações. Pouco tempo de espera tivemos. Brevemente surgiu um cabo inglês de espingarda a tiracolo. Nós estávamos preparados para nos entregar aos nossos aliados. Pusemos as mãos no ar, com o Baltazar à frente a dizer no seu rudimentar inglês: Somos dois portugueses escapados dos “boches”. Ele muito atrapalhado com a surpresa conseguiu pôrse em guarda com a baioneta apontada para nós. Se fossemos inimigos podíamos tê-lo desarmado, antes que ele se pusesse em guarda. Mas eramos amigos. Continuámos a obedecer-lhe, com as mãos levantadas, até que ele se convenceu de que éramos portugueses. Então ordenou que baixássemos as mãos e seguíssemos na sua frente. Pelo caminho, ao passar por diversos pontos, ia esclarecendo: Two portuguese scaped from the “boche”, recebendo como res-


posta: Good. Passed. Assim chegámos ao abrigo do capitão comandante daquela companhia, que nos recebeu muito bem e quis saber algumas coisas sobre os alemães, ao mesmo tempo que nos mimou com um chá com leite e torradas com manteiga, e que nós retribuímos com um pedaço de pão integral, que ainda nos restava. Ao terminar a breve conversa perguntou-nos, em mau francês, talvez para nos experimentar, se queríamos tomar parte num “raide” às trincheiras alemãs, que acabávamos de atravessar. Respondemos sem hesitação que tínhamos muito gosto nisso, se armassem e nos equipassem convenientemente. Depois ordenou que o cabo a quem nos entregámos nos acompanhasse até ao Comando do Batalhão, já na outra margem do Canal de La Bassée. No Batalhão fomos apresentados ao seu Comandante, onde se encontrava já um oficial que falava espanhol. Este oficial ouviu-nos e acompanhou-nos até ao Comando da Brigada (igual a um regimento com 4 batalhões), depois de tomarmos o pequeno almoço. Na Brigada tivemos pequena demora. Aqui se repetiram as mesmas provas de consideração e amabilidade, até seguirmos para o Quartel General da Divisão, onde tivemos uma demora maior. Tomámos um banho de chuveiro e mudámos de roupa interior, mas quisemos conservar a nossa farda portuguesa, velha e relha de tanto rastejar. Fomos perguntados e ouvidos na Repartição de Informações. Denunciá-

95


96

mos a presença de um grande canhão nas proximidades de Illies, e um parque de viaturas que iam ser imediatamente bombardeadas, segundo nos informaram. Depois deram-nos o jantar e mandaram-nos passar pelo Q.G. do II exército, salvo o erro, comandado pelo General Hasting, de onde seguimos para a Missão de Ligação Portuguesa junto do Exército Inglês. Aí passámos a noite de 20 de Junho. No dia seguinte fomos mandados seguir para o Q.G. do C.E.P. num comboio de permissionários ingleses que iam passar a sua licença na Inglaterra. Alguns deles, ao saberem que nos tínhamos evadido de um campo de prisioneiros dos alemães, quiseram levar-nos para Londres, mas nós desembarcamos do comboio em Bolonha, e fomos apresentar-nos no Q.G. do C.E.P. em Ambleteuse, no próprio dia 21. No dia 22 fizemos as declarações já referidas. Começámos então a sentir uma certa falta de consideração da parte dos chamados “cachapins”, como eram designados aqueles que se achavam entrincheirados nos Quarteis Generais da retaguarda, sem saberem avaliar os sacrifícios que os verdadeiros combatentes faziam. Ali nos concederam, por muito favor, um mês de convalescença, talvez devido ao nosso estado de fraqueza, que não aguentaria um trabalho aturado. Entretanto tivemos notícias do nosso B.I. 15. Sentimos saudades e pedimos licença para ir visitá-lo, algures perto de Saint Omer, onde se achava em reorganização.


O seu comandante, major Ferreira do Amaral, recebeu-nos com cordialidade e consideração. Pediu-nos para lhe entregar um pequeno relatório sobre o 9 de Abril, e mandou publicar na Ordem do Batalhão o seguinte louvor: “Louvado porque tendo caído nas mãos do inimigo durante a Batalha de Sur-la-Lys de 9 de Abril, em que a sua companhia tomou parte, empregou todos os esforços para se libertar em 16 de Junho, correndo os riscos inerentes ao acto que praticou”. Passados três dias regressámos à Base do C.E.P. em Ambleteuse, onde passámos o resto do mês de convalescença. Depois, sem atenderem ao que estabelece a Convenção da Cruz Vermelha Internacional sobre ex-prisioneiros de guerra, que não devem voltar a combater na frente de batalha, mandaram-nos seguir para o novo B.I. 15, já reorganizado, que se achava em Les Cisaux, para além da cidade de Aire-sur-la-Lys, acompanhando o Exército Inglês na última ofensiva geral dos aliados. O novo B.I. 15 só tinha duas companhias do Batalhão anterior ao 9 de Abril (1ª e 3ª), que não foram empenhadas na batalha, porque os seus oficiais não julgaram prudente atravessar a barragem de artilharia alemã entre Zelobes e Lacouture. Deste modo não ocuparam as posições que lhe haviam sido destinadas, marchando para a direita, ao encontro dos ingleses. Estes indicar-lhes-iam um lugar no prolongamento da sua linha defensiva para a esquerda. Aqui se conservaram três dias, à espera do ataque

97


98

alemão, até serem substituídos pelos ingleses, sem que o ataque se tivesse efectuado nesta frente. A 2ª e 4ª companhias, porém, conseguiram passar a perigosa barragem, na sua grande parte, ocupando os redutos que lhes foram destinados. Ali resistiram heroicamente ao assalto. O seu valoroso comportamento teria concorrido fortemente, segundo a nossa opinião, para que os alemães não insistissem em fazer novos ataques nesta frente, devido às baixas sangrentas que tiveram nos combates de Richesbourg S. Vaast e Lacouture. Deste modo concorreram ainda para que o R.I. 15 fosse condecorado com as medalhas da Torre Espada e de Ouro de Valor Militar. Porém, o comportamento extraordinário da 2ª e 4ª Companhias foi ignorado no C.E.P., cremos que por falta de relatórios dos seus graduados prisioneiros, ao contrário do que aconteceu com os graduados da 1ª e 3ª companhias, que foram louvados e condecorados, e alguns promovidos ao posto imediato, sem sequer terem visto um alemão no dia 9 de Abril, e nos dias que se lhe seguiram, conforme fomos informados. Por esses motivos compreende-se a situação de inferioridade que nos foi criada, logo que fomos novamente aumentados ao efectivo do B.I. 15. Tínhamos que obedecer no serviço àqueles que eram nossos inferiores, antes do 9 de Abril, no mesmo Batalhão, alguns mesmo dentro da nossa Companhia, sob o nosso comando, e que não foram capazes de nos acompanhar na transposição da barragem. Em face de tudo isto, e


de mais alguma coisa do que aconteceu, pedimos ao Comandante do Batalhão para expor superiormente a nossa situação. Ele concordou connosco e dispensou-nos do serviço até que o caso fosse resolvido, interessando-se pessoalmente pela nossa causa. Entretanto, nomeou-nos para fazer algumas palestras nas diferentes companhias sobre a forma como os prisioneiros são tratados pelos alemães. Por outro lado aconselhou-nos a visitar um Batalhão inglês, que se achava estacionado um pouco mais adiante de Les Cisaux, onde fomos recebidos triunfalmente, e conduzidos aos ombros dos camaradas ingleses, entre vivas ao 15 e a Portugal. Enfim, foi uma recepção amiga em que Portugal foi vitorioso, e nos impressionou profundamente. * Passado algum tempo, como o nosso caso demorasse e resolver, o Comandante Ferreira do Amaral perguntou-nos se queríamos regressar a Portugal, visto não devermos voltar a combater em face do que dispõe a Convenção da Cruz Vermelha Internacional, e o Batalhão ter de acompanhar os aliados na ofensiva final. Respondemos afirmativamente. Então passou-nos uma guia da marcha para nos apresentarmos no Q.G. do C.E.P., em Ambleteuse, a fim de seguirmos para Portugal, logo que se oferecesse ocasião.

99


imagem 100


Como o major Ferreira do Amaral também fazia parte do Tribunal Militar, como defensor oficioso com sede no Comando do C.E.P. ali se dirigiu em princípio de Outubro de 1918. E ficou muito surpreendido de nos encontrar ainda sem nada ter sido resolvido a nosso respeito. E chamou-nos então para o acompanhar até junto do general Garcia Rosado, a fim de lhe expor, em nossa frente, a situação em que nos encontrávamos. O General Comandante do C.E.P. respondeu que a culpa não era dele, pois ninguém lhe apresentara ainda qualquer proposta. Então o Comandante Ferreira do Amaral quis saber se ele poderia fazer a proposta que faltava, tendo recebido um sim como resposta. Nesse mesmo dia nos deu conhecimento do que ele propunha. E nesse mesmo dia o Comandante do C.E.P. despachou favoravelmente essa proposta, publicando o seu despacho na O.C. nº 273 de 5 de Outubro de 1918. O Comandante do Batalhão quis ainda honrar-nos nesse dia colocando em nosso peito a Cruz de Guerra com que havíamos sido condecorados. Vejamos o extracto dessa Ordem, na parte que me diz respeito: Artigo 5º a): “Que louva o 2º sargento do Batalhão de Infantaria nº 15 Sérgio Augusto dos Santos pela bravura, isenção e coragem de que deu provas no combate de 9 de Abril último, incutindo valor e ânimo às praças da 2ª companhia que no posto de Richebourg

101


102

S. Vaast se bateram durante quatro horas sucessivas, só se rendendo quando, tendo os seus oficiais gravemente feridos, faltando-lhe munições e achando-se em grande inferioridade numérica, se lhe tornou impossível resistir ao inimigo que o cercava.” Artigo 6º: “ Que usando da faculdade que me confere o Decreto nº 4403 de 4 de Junho findo, publicado na O.E. nº7 (1ª série), de 15 do mesmo mês, condecoro com a 2ª Classe da Cruz de Guerra o 2º sargento de Infantaria nº 15 Sérgio Augusto dos Santos, pelos actos de valor referidos na alínea a) do artigo anterior.” Artigo 7º: “Que seja promovido por distinção aos posto de 1º sargento, o 2º sargento Sérgio Augusto dos Santos, pelo seu valoroso procedimento nos combates de Abril último, pelo que foi louvado em O.S. do C.E.P. de hoje; procedimento pelo qual confirmou mais uma vez as suas qualidades militares já demonstradas durante a sua anterior permanência do Batalhão, na linha de defesa.” Ainda no mês de Outubro chegou a hora de seguirmos para Brest, com destino a Portugal. Mas em vez de seguirmos directamente, tomámos um comboio para Paris, pois nos custava deixar a França sem visitar a sua maravilhosa capital. Nesse tempo, os soldados eram muito acarinhados, estrangeiros que fossem, especialmente se ostentassem em seu peito a Cruz de Guerra. O seu trânsito era facilitado. Bastava-lhe mostrar o seu passaporte de licença ou a guia de marcha. Nas principais estações havia canti-


nas onde os soldados em trânsito comiam sem pagar nada. Não nos foi difícil, portanto, ir a Paris, onde estivemos três dias, mesmo com pouco dinheiro. Apresentámo-nos no Consulado de Portugal, onde encontrámos o sargento Craveiro, do R.I. 15, que conseguiu arranjar-nos onde comer e dormir, e algum dinheiro para despesas extraordinárias. O Cônsul, porém, não permitiu que estivéssemos em Paris mais que três dias. Durante esse tempo visitámos o Trocadero, a Torre Eiffel, a Praça da República, Notre Dame de Paris, o Arco do Triunfo, o Bosque de Bolonha, e um Museu onde se achava um avião que havia sido tripulado por Guynemer, o mais célebre aviador francês da 1ª Grande Guerra, etc. Chegámos a Brest, agora a principal base americana de desembarque no fim do período da chamada “pneumónica”, mas que ainda fazia dezenas de mortes por dia, o que impedia os militares de saírem dos aquartelamentos, como medida de precaução. Nós, no entanto, conseguimos sair algumas vezes dos aposentos que nos haviam sido destinados, para frequentar um modesto café das vizinhanças, onde uma gentil rapariga servia, e nos fez companhia agradável até à partida para Portugal, quando já nos tratávamos por primos. No fim de poucos dias chegou o Czarita, um barco inglês de passageiros que nos conduziu a Lisboa, confortavelmente, em 2ª classe. Em Lisboa fui

103


104

levar uma carta à esposa do Comandante Ferreira do Amaral, que me apresentou a um oficial. Este oficial preparou uma entrevista com um repórter, no café Martinho, que não chegou a ser publicada devido ao estado de guerra e de censura então existente. De Lisboa seguimos para Tomar, sede do nosso Regimento, onde logo nos concederam 90 dias de licença, como estava regulamentado. O Baltazar seguiu para Valpaços, sua terra natal. Eu para Poiares, onde era esperado pela família com a alegria que se pode imaginar. A guerra para mim tinha acabado. E o dia do Armistício, 11 de Novembro de 1918, estava quase a chegar. Quando chegou, depois de 4 anos de luta fratricida, a Europa e o Mundo respiraram fundo, com esfusiante alegria, esperançados em um tratado de paz que banisse para sempre os tormentos das guerras.


105


106


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.