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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE LICENCIATURA EM FILOSOFIA

JOÃO FRANCISCO COSSA

O DESESPERO EM KIERKEGAARD

CURITIBA 2009


JOÃO FRANCISCO COSSA

O DESESPERO EM KIERKEGAARD

Monografia apresentada ao Curso de Licenciatura em Filosofia no Centro de Teologia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Paraná como requisito parcial à obtenção do título de Licenciado. Orientador: Vieseiteiner.

CURITIBA 2009

Prof.

Ms.

Jorge

L.


TERMO DE APROVAÇÃO O DESESPERO EM KIERKEGAARD Por JOÃO FRANCISCO COSSA

MONOGRAFIA APRESENTADA COMO REQUISITO PARCIAL PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE LICENCIADO EM FILOSOFIA, CENTRO TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS DA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ, PELA COMISSÃO FORMADA PELOS PROFESSORES.

ORIENTADOR: Prof. Ms. Jorge L. Vieseiteiner

Prof. Dr. Kleber Candiotto

Prof.ª Rosani

CURITIBA, 03 de Novembro de 2009. ii


AGRADECIMENTOS

Agradeço, com todas as minhas forças, a Deus, autor da minha vida, que me deu a capacidade de amar e de a cada dia levantar e poder escolher ser melhor e recomeçar apesar de tudo: sua mão protetora não faltou em nenhum momento.

Meus agradecimentos, com total afeição, aos meus pais, por me ensinarem através de seu exemplo e vida o que é ser uma pessoa honrada, justa e, principalmente, temente a Deus, tanto quanto meus irmãos que oportunizaram agradável convivência no convívio familiar.

Não posso esquecer de agradecer à família palotina, em que nesses anos de coirmandade indicou-me e educou-me na fé como seguidor do carisma palotino.

E, por fim, meus sinceros agradecimentos aos meus amigos, tão próximos de mim, que me auxiliam em meu caminhar e em minha vida, e a todas as pessoas que Deus me concedeu a oportunidade de conhecer e conviver, deixando grandes ensinamentos de como ser mais humano.

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Ah! Quão pobre é a nossa língua, em comparação com tal concerto de ruídos, cheios e vazios de sentido ao mesmo tempo, que é uma batalha ou que é um banquete. Sören Aabye Kierkegaard

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RESUMO Título do trabalho: “O desespero em Kierkegaard” O presente trabalho tem por intento aprofundar a vivência do desespero e como ela pode contribuir ou impossibilitar a conquista de si mesmo que o Indivíduo realiza pelo salto da fé. Por isso, ao decorrer desta apresentação, terá por intenção indicar possíveis compreensões acerca da categoria do desespero na obra de Kierkegaard. Para tanto, parte-se da noção antropológica da qual entende o homem a partir da auto-construção frente ao devir. Este tem por tarefa a conquista da fé, isto é, de ser autêntico mediante as exigências da própria vida, em meio a um viver constituído de paradoxos, contradições e inconformidades. Sendo assim, cabe ao ser existente viver o instante presente decidindo por alcançar o infinito através da finitude de si mesmo. Na tarefa de conquista do próprio eu, o Indivíduo está inserido em esferas existenciais, que, por sua vez, podem levar o sujeito à vivência positiva do desespero, dando ao ser existente a coragem para decidir, ou seja, para projetar-se na própria interioridade e lá encontrar o conforto do finito. Se não bem compreendido esse movimento, o Indivíduo recai no desespero que dilacera o próprio eu, perdendo-se em si mesmo, como tão bem diagnosticado por Kierkegaard. Inversamente, o desespero pode conduzir o ser existente a tocar o pathos próprio da vida: definido aqui como a pura vivência, o desejo-vida, a paixão. A mais pura vivência do eu autêntico dá-se na secreta interioridade de si mesmo, em que o eu entra em contato com as entranhas da vida. Aqui o sujeito é capaz de suspender toda intencionalidade e generalidade para ser Indivíduo, não estando sob prescrições da multidão, mas para além da compreensão racional. No salto qualitativo o sujeito transcende todas as categorias de sistema, vivendo originalmente, agindo de modo único, irrepetível e profundo, onde não resta mais nada a não ser silenciar e vivenciar aquilo que é mais próprio do ser humano. Palavras-chave: Desespero. Fé. Angústia. Decisão. Pathos.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 1 1. CONCEPÇÃO ANTROPOLÓGICA KIERKEGAARDIANA: A EXISTÊNCIA NA SUBJETIVIDADE E NA VIVÊNCIA DO INDIVÍDUO...................................................3 1.1. A CONSTRUÇÃO ESTRATÉGICA KIERKEGAARDIANA ................................8 1.2. CATEGORIA DE EXISTÊNCIA ....................................................................... 12 1.3. CATEGORIA DE SUBJETIVIDADE ................................................................14 1.4. CATEGORIA DE INDIVÍDUO .......................................................................... 17 2. OS ESTÁDIOS DA EXISTÊNCIA HUMANA: UM EXISTIR FRENTE AO DEVIR E ÀS POSSIBILIDADES ..............................................................................................21 2.1. ESTÁDIO ESTÉTICO ......................................................................................25 2.2. ESTÁDIO ÉTICO .............................................................................................29 2.3. ESTÁDIO RELIGIOSO ....................................................................................33 3. DESESPERO: UMA PEDAGOGIA E UMA FORMA LINGUÍSTICA PARA TOCAR O PATHOS PRÓPRIO DA EXISTÊNCIA.................................................................. 39 3.1. A PEDAGOGIA DO DESESPERO .................................................................. 42 3.2. DESESPERO: LINGUAGEM POÉTICA PARA TOCAR O PATHOS DA VIDA .......................................................................................................................53 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................57 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 59

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INTRODUÇÃO A temática desenvolvida e que será apresentada neste trabalho está situada nas áreas dos estudos filosóficos da ética e da antropologia, por se tratar da vivência do homem inserido em um convívio social e individual. Mais especificamente, aborda, sob este crivo, os pensamentos de Sören Aabye Kierkegaard, filósofo contemporâneo (séc. XIX), acerca da temática do desespero. Kierkegaard foi um dos primeiros filósofos a voltar-se para a própria existência humana, a fim de analisá-la enquanto realização existencial a partir da própria individualidade. Preocupando-se de fato com o próprio homem na tarefa de realizarse como ser autêntico. Ele expõe uma filosofia da espontaneidade, em que o que mais importa não é entender (racionalizar), mas viver plenamente: uma filosofia que se volta para o coração, dando-lhe voz e importância na constituição de Indivíduo. Nas obras kierkegaardianas, principalmente, na obra intitulada O Desespero Humano têm-se presente a categoria do desespero. Esta categoria adquire notável importância para a compreensão do ser existencial, pois o ser humano não está livre dela em sua vivência, visto que o desespero se relaciona diretamente com o ser inserido no devir dialético. Adquire, ainda mais, tal importância por ser tão pertinente dentro da filosofia contemporânea ao partir do pressuposto do esfacelamento dos valores assim como no descrédito de se obter todas as respostas para os problemas humanos por meio da razão. Tem, pois, como objetivo apontar uma vivência que leva em conta o eu situado em uma esfera existencial e que no movimento de síntese se encontra em desespero, dentro de uma perspectiva existencial em que o sujeito põe-se em direção para a conquista de ser a si mesmo, quer dizer, do ser Indivíduo. Entendendo que esta categoria advém das inconformidades na estrutura do eu, o sujeito pode, por meio de uma vivência profunda do desespero, emergir com uma nova consciência diante da vida e, dessa maneira, decidir por ser a si mesmo, tocando o pathos próprio da vida. A fim de corroborar tal ideia, este trabalho estruturou-se em três partes. A primeira parte tem por título a Concepção Antropológica Kierkegaardiana: a Existência na Subjetividade e na Vivência do Indivíduo. A segunda, Os Estádios da Existência Humana: um existir frente ao devir e às possibilidades. E por fim,


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Desespero: uma pedagogia e uma forma linguística para tocar o pathos próprio da existência. A parte intitulada a Concepção Antropológica Kierkegaardiana: a Existência na Subjetividade e na Vivência do Indivíduo apresentará, inicialmente, o contexto da filosofia Kierkegaardiana e, da mesma forma, a importância dessa temática desenvolvida por Kierkegaard. Seguidamente, no tópico A construção estratégica kierkegaardiana explicitará a forma que a linguagem kierkegaardiana está estruturada e o modo como ele procede no momento de apresentar suas ideias. Seqüencialmente, serão discorridas as categorias mais elementares na filosofia de Kierkegaard, na pretensão de melhor entender o desespero que, por sua vez, está diretamente relacionado com estas categorias: a categoria de existência, categoria de subjetividade e a categoria de Indivíduo. Em Os Estádios da Existência Humana: um existir frente ao devir e às possibilidades, abordar-se-á, no que tange as esferas da existência humana, esse Indivíduo que frente ao devir decide ou não ser a si mesmo e, do mesmo modo, almeja esclarecer as vivências específicas de cada esfera e elucidar como a presença do desespero se manifesta em cada uma delas. E, por fim, no terceiro capítulo, tendo por título Desespero: uma pedagogia e uma forma linguística para tocar o pathos próprio da existência, tratará da categoria do desespero propriamente dito, apontando possibilidades de uma vivência que ajude o sujeito a tomar consciência da própria responsabilidade frente à tarefa de existir. Indagando-se como é possível viver positivamente esta categoria e como o desespero pode conduzir o Indivíduo a tocar o pathos próprio da vida.


1. CONCEPÇÃO ANTROPOLÓGICA KIERKEGAARDIANA: A EXISTÊNCIA NA SUBJETIVIDADE E NA VIVÊNCIA DO INDIVÍDUO

Sören Aabye Kierkegaard pode ser descrito como uma das figuras mais enigmáticas e contundentes que apareceram na história da filosofia. Define-se a si mesmo como contradição: “Por toda a minha vida me encontrei sempre na contradição, porque minha vida mesma é contradição” (KIERKEGAARD apud ALMEIDA & VALLS, 2007, p. 7). Nasceu na Dinamarca, em Copenhague, em 5 de maio de 1813 e morreu em 11 de novembro de 1855, na cidade natal, com 41 anos de idade. Teve uma educação religiosa severa e foi inscrito na Faculdade de Teologia de Copenhague, terminando somente em 1841. A teologia lecionada em seu curso tinha inspiração hegeliana, modo, então, pelo qual toma contato com este sistema de pensamento. Posteriormente vai à Berlim ouvir as lições de Schelling, que, a princípio, o empolgam, porém mais tarde desilude-se com estas ideias filosóficas e retorna à Dinamarca. Está longe de ser um filósofo sistêmico, considera seus escritos nãocientíficos, mas foi de grande influência para os sistemas filosóficos posteriores e é considerado o pai do existencialismo. Toda sua obra se realiza na formulação de uma vivência de uma existência ético-religiosa, por isso, concentra sua análise no tema da ética e da religião. Seu excepcional pensamento deve-se às peripécias sofridas na vida, que lhe provocaram uma reflexão existencial, entretanto não se pode recair em uma análise reducionista desta profunda abordagem filosófica. Utiliza-se do enigma para criar um labirinto no qual o leitor possa ver-se através dos escritos, igual uma imagem refletida em um espelho. Desse modo, postula uma peculiaridade em seus escritos: jogos, ambigüidades e as contradições são uma estratégia para não ser sistêmico, uma vez que vê no sistema a prisão da concretude e da originalidade da vivência existencial. Ainda que o sistema tivesse a cortesia de apontar-me um quarto de hóspedes debaixo de seu teto, para não me deixar ao relento, preferirei sempre ser um pensador, isto é, como um pássaro nos ramos. Meu mérito será sempre o de ter exposto as categorias decisivas do âmbito existencial com uma agudeza dialética e uma originalidade que não se encontram em nenhuma obra literária, ao que eu saiba, pelo menos. Também não me inspirei em obras alheias (KIERKEGAARD in: REICHMANN, 1972, p. 40-42).


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As obras kierkegaardianas são uma antítese do idealismo romântico. Ao defender a singularidade, a existência, as escolhas inconciliáveis e a possibilidade da liberdade, contrapõe o idealismo. Constituem um todo unido, que é subjetivo, por basear-se na experiência pessoal. Contudo, permanece o traço romântico caracterizado pelo desejo de totalidade, que se dá no particular. O princípio do existencialismo tinha como preocupação reencontrar o sujeito existencial, pois via no idealismo uma despersonalização do homem, que vinculava o sujeito a uma consciência abstrata. Existência esta que era vivenciada pessoalmente e vivida subjetivamente em contato com o transcendente. A autenticidade do ser existencial não se encontra no Espírito Absoluto (uma Ideia racional que concretiza a perfeição humana, rumo à consciência plena da própria vida) e nem nas coisas (objetos fora do próprio eu), mas acha-se neste sujeito definido como subjetividade e transcendência. A resposta para os anseios mais profundos do ser humano é o engajamento do Indivíduo, em primeira pessoa, como sujeito responsável pela construção de todo o gênero, em que motivado pela paixão luta pela transformação. Destarte, é o oporse a poderes dominantes que deterioram a vida humana através de uma postura ética que permeia as escolhas. Kierkegaard visava a transformação concreta da realidade através da autoconsciência, onde o sujeito assume a si mesmo e é capaz de doar-se pelo totalmente outro. Por isso, em sua obra Enter-eller, Kierkegaard combate às conclusões do pensamento hegeliano. Deseja ser um corretivo da sociedade dinamarquesa corrompida pela ordem estabelecida, denunciando instituições que inverteram o sentido da existência e estabeleceram um regime de mediocridade. Nestes tempos tudo é política. A concepção do religioso difere do político com toda a distância do céu (toto coelo), tal como o ponto de partida e o fim diferem nesta matéria com toda a distância do céu (toto coelo), uma vez que o político começa na terra para aí permanecer, ao passo que o religioso, que vem do alto, pretende transfigurar o terrestre para o elevar em seguida ao céu (KIERKEGAARD, 1986, p. 93).

Suas obras fundam-se em uma revolta contra o Espírito Universal de Hegel, que anula o sujeito em sua subjetividade, pois o sistema hegeliano vê o Indivíduo imerso na universalidade, ou seja, na sua relação com o todo, no qual não se é mais


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Indivíduo, e sim uma ideia universal concretizada. Para Hegel a realidade era exprimida em conceitos e no encadeamento dialético destes conceitos. Kierkegaard se encaminha para uma consciência subjetiva, que desenrola o tempo e a história. É o sujeito, em um processo de dialética subjetiva, que é responsável por construir a realidade. A mudança na consciência do Indivíduo se dá no mergulho da própria existência, dada no movimento dialético entre termos contrários. Ademais, contrapõe a ideia hegeliana no referente a leis objetivas que definem a história, a natureza e o pensamento. “Num mundo que se desenvolve seguindo leis próprias, não há lugar para Deus, pensa Kierkegaard” (GARAUDY, 1965, p. 48). Deus não pode atingir diretamente o Indivíduo, pois este está entrelaçado com a sociedade. Então, opõe a este pensamento com a afirmação que a crença objetiva baseada na história e na natureza não pode resistir às conclusões científicas. Defende, portanto, a subjetividade, que está fora do alcance da ciência. Este grandioso pensador vem retomar uma das primeiras preocupações que aparecem na história da filosofia: a preocupação consigo mesmo, na tarefa de se conhecer e se compreender como ser em movimento. Nesse sentido, quer refletir sobre as coisas mais próprias da existência humana, caracterizadas nas contradições, ambigüidades e incertezas, imersas no devir da vida. Não se pode conceber que a vida seja estática, tal ideia incorreria no conforto da estabilidade de já ter-se realizado a si mesmo; e, desse modo, a noção de auto-suficiência. É, portanto, a instabilidade, isto é, a noção de inacabamento, que põe as forças humanas em construção, se compreendida em seu sentido mais profundo. Por assinalar em sua época uma dissolução dos valores, não tem grandes expectativas quanto ao Iluminismo. Contrariamente ao pensamento vigente de sua época, pressente um perigo iminente na humanidade, prestes a uma grande catástrofe. Sentindo-se como um passageiro que está a observar a situação, encarrega-se de ser uma “sirene” a fim de despertar nas pessoas uma consciência frente a um estado de falsa consciência que turva a visão. Porém, sente-se fraco, pois as pessoas não o levam a sério. Possui uma compreensão do desenrolamento da humanidade, outrora, tinha uma sede da verdade para livrar os homens da degradação espiritual.


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O homem não tem mais uma medida absoluta de valor pela qual possa orientar a sua vida e a fé nos valores eternos dissolve-se pela “nivelação dos valores”. Mas sem a fé em alguma coisa de eterno, o homem condenase ao próprio aniquilamento (MALANTSCHK, 1961, p. 10).

Percebe que a tradição afastou-se do que a vivência original de Cristo propunha. O homem se encontra imerso em um período de inautenticidade, em que deseja ser o senhor de sua própria vida, acreditando poder alcançar a verdade por suas próprias forças e por sua própria razão, sem reconhecer os limites de seu conhecimento racional. O ser humano crê possuir a verdade obtida pelo raciocínio lógico através da observação da realidade e funda seus meios para alcançar os fundamentos seguros e sólidos, a fim de obter certezas que lhe assegurem estabilidade. O pensamento lógico esvazia a verdade substancial da vida, seu sentido existencial em relação ao eterno. Deus não pode ser entendido por sentenças que seguem um rigor racional, pois toda sistematização vê-se fadada ao fracasso dos limites do próprio conhecimento. Por isso, Hegel, para Kierkegaard, torna-se um retrocesso para o cristianismo e a destruição do ser em relação ao absoluto – aqui não entendido como o absoluto hegeliano. “Compreendeu que esta concepção era um atentado contra o eterno, ao pretender despojar o homem da sua fé e, com isso, degradá-lo como criatura puramente temporal” (MALANTSCHK, 1961, p. 12). Entendendo-se envolvido nesta situação ameaçadora de uma iminente tempestade,

incumbe-se

da

tarefa

de

ser

um

corretivo

da

sociedade.

Esperançosamente vê uma saída que entremeia à turbulência do homem contemporâneo: “um ponto branco no horizonte” (MALANTSCHK, 1961, p. 12). Ele quer encontrar a verdade mais profunda pela qual se possa viver intensamente até as últimas consequências, elevando-as à radicalidade. Esta verdade, a cristã, é a única capaz de libertar o humano da sua condição de desespero e angústia. Suas obras podem ser divididas, o que não é uma divisão rigorosa, em três grandes ciclos. O primeiro, é caracterizados pela figura de Regina Olsen, abordando as figurações da existência estética. O Segundo, caracteriza-se pelo esforço de contrapor o pensamento de Hegel que impregnava a teologia e a filosofia, em uma compreensão sistemática da realidade. E o terceiro, é a descrição da existência ético-religiosa, do estádio religioso, em que se busca a vivência cristã em sua autenticidade.


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A compreensão da vida humana, que parte das propostas dos estádios, é uma forma de esclarecer o modo que o Indivíduo pode retornar a si mesmo. Para tal fim, Kierkegaard exemplifica os modos que a vida pode desenrolar em seu decurso, tomando caracterizações que podem aproximar ou afastar o sujeito do seu aspecto eterno: vai do Don Juan, que é a personificação do Indivíduo estético, ao Cavaleiro da fé, personificação da vivência ética-religiosa. Almeja elucidar o modo como o homem chega a compreensão da própria existência, as suas diversa vivências e a reflexão posterior em suas conexões lógicas. Investiga “todos os aspectos e todas as possibilidades da vida humana [...]” (MALANTSCHK, 1961, p. 12), a fim de estabelecer uma união com a totalidade, um desejo profundo de eternidade. O espírito humano é definido como síntese de uma composição entre termos contrapostos na tarefa de se conformar neste processo dialético, no qual o caráter de eternidade deve sobrepor-se ao temporal. A harmonia desse devir, entre as qualidades diferentes, em sua união coerente, proporcionará a obtenção da verdade existencial, isto é, o ser autêntico. A inconformidade nesse processo decorre de uma inconsciência quanto ao valor supremo do espírito humano. “[...] o homem desde o começo, precisamente por causa dessa diferença qualitativa entre os membros e a síntese, é colocado em sua existência diante da tarefa de uni-los de maneira correta” (MALANTSCHK, 1961, p. 17). Em sua análise constata três perigos na existência humana: um de ordem intelectual, o outro de ordem social, e o último no que tange à esfera religiosa. O primeiro, de ordem intelectual, no qual o Indivíduo se encontra diluído no geral, por ser este sistema a afirmação generalizante do sujeito, não há uma abertura para a compreensão da existência individual. A crítica kierkegaardiana ataca diretamente o idealismo alemão por pretender acabar com a individualidade. A partir da empreitada do idealismo em instituir um sistema, decorre a absorção do que é particular na vivência do homem, pois sua existência não pode ser abstraída conceitualmente, tão somente empobrecida ao ser entendida por todos.

“Toda

verdade que pretenda ser um sistema, segundo Kierkegaard, tem uma estrutura estreita e fechada que engole, dilui e destrói as individualidades” (MUNARO, 2002, p. 66). Na ordem social, reside alto grau de periculosidade, em que o Indivíduo é massificado e reside imerso na sociedade. Agora vive em função de atingir a


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aplicação dos padrões e paradigmas comportamentais exigidos pela vida em sociedade, transformando o Indivíduo em uma caracterização que satisfaça o comum – “aos bons costumes”. Há uma despersonalização do sujeito: já não possui algo que lhe é próprio, particular, mas simplesmente uma encenação de uma personagem moral. A multidão, não esta ou aquela, atual ou de outrora, composta de humildes ou de grandes, de ricos ou de pobres, etc. ..., mas a multidão considerada no conceito, a multidão é a mentira; porque, ou ela provoca uma total ausência de arrependimento ou de responsabilidade, ou, pelo menos, atenua a responsabilidade do Indivíduo, fracionando-a (KIERKEGAARD, 1986, p. 98).

Na esfera religiosa, decorre o risco da vida acomodar-se aos preceitos cristãos, a uma experiência empobrecida pela não vivência intensa da fé. O Indivíduo visando satisfazer-se agarra-se ao compromisso farisaico de não elevar a fé à radicalidade, na intensidade sentida no paradoxo e no escândalo e do confronto com o absurdo, do incompreensível e do irrepetível. Vive-se a generalidade e a vulgar fé de uma cristandade, que em nada corresponde à vida do próprio Cristo, pois a cristandade banalizou o sofrimento do próprio Cristo. Além disso, a comunicação da fé ficou relegada a um discurso racional da qual não diz respeito à profundidade do seguimento (cf. MUNARO, 2002, p. 74). 1.1. A CONSTRUÇÃO ESTRATÉGICA1 KIERKEGAARDIANA

Kierkegaard busca expressar-se de uma maneira própria, muito peculiar à sua forma de pensar a realidade. Guia-se por uma linguagem diferente daquela adotada pelos filósofos de sua época, tanto que propõe uma anti-filosofia. Para este fim, utiliza-se da pseudonímia em vista de representar poeticamente os vários tipos de personalidades que um Indivíduo pode assumir em sua existência. Minha pseudonímia ou polionômia não teve causa fortuita, mas uma razão essencial na própria produção que, no interesse da réplica, da variedade psicológica das diferenças individuais, exigia poeticamente uma indiferença

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Este termo Construção Estratégica diz a respeito de uma linguagem adotada por Kierkegaard para expressar seu pensamento. Mesmo que não queira constituir um método, um sistema, uma doutrina, ele constitui um todo: que é a revolta ao método, ou seja, um método às avessas (cf. ALMEIDA & VALLS, 2007, p. 11).


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quanto ao bem e ao mal, [...], que nenhuma pessoa verdadeiramente real ousaria nem poderia permitir-se nos limites éticos da realidade (KIERKEGAARD in: REICHMANN, 1972, p. 47).

Os pseudônimos funcionam como semióticos em que o Indivíduo se vê mediante uma percepção particular. “Cada uma das minhas obras pseudônimas apresenta

de uma

ou

de

outra

maneira

a questão do

Indivíduo

[...]”

(KIERKEGAARD, 1986, p. 106). Pois a filosofia kierkegaardiana não quer fazer-se compreendida por todos, universalmente, mas tão somente projetar-se como espelhos que servem em um auto-olhar sobre si. Porém, cada olhar é particular, no qual cada Indivíduo possui uma imagem original refletida neste espelho (o sentimento provocado é único - no sentido de exclusividade). Esta estratégia adotada serve para despistar toda forma de sistematização, não havendo uma doutrina, tão menos um método. A compreensão universal cria um conceito universalizante que achata uma determinada realidade ou uma condição, ou ainda, subsume uma subjetividade. É a análise do Indivíduo através de aplicações e conceitos universais, supostamente compreendidos por todos através de uma doutrina, que busca enquadrar a vivência existencial e a sujeita a um juízo da multidão. Por isso, Kierkegaard em sua sutileza busca despistar a universalização, propondo uma linguagem indireta, poética e que não visa a transmissão direta de conteúdo, mas um expressar-se pela linguagem consciente de sua limitação, uma vez que ao definir algo linguisticamente automaticamente aplica-se conceitos e formulações racionais que empobrecem a vivência daquilo que se quer comunicar. Isto é, ao comunicar precisa-se fazer entendido e o fazer-se entendido implica em simplificar em termos comuns aos outros. De certa maneira, a vivência só pode ser sentida individualmente, do contrário não é vivência, mas experiência (entendida aqui como aquele momento posterior do qual se racionaliza e simplifica em conceitos de acesso à multidão). Tal é o caso de Abraão; pode dizer tudo, excepto uma coisa, e quando não pode dizê-la de maneira a fazer-se entender, não fala. A palavra, que permite traduzir-me no geral, é um apaziguamento para mim. Abraão pode dizer as coisas mais formosas a respeito de Isaac de que uma língua é capaz. Mas no seu coração guarda uma coisa muito diferente; esse algo mais profundo, que é a vontade de sacrificar o filho porque é prova (KIERKEGAARD, 1959, p. 200).


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Comprova-se esta estratégia: “pela abrangência dos temas, a variedade de pseudônimos, os jogos, as ambigüidades, e as contradições” que intentam dificultar “a construção de uma classificação objetiva” (ALMEIDA & VALLS, 2007, p. 11). Na realidade, constitui-se um verdadeiro labirinto do qual o Indivíduo por si só tem que achar a saída, caso isso seja possível. Tudo isso indica que as contradições, paradoxos e dilemas da existência humana não são passíveis a uma objetivação, não podendo se ter juízos absolutos, certos e determinantes sobre a existência subjetiva. Sua escrita visa atingir o leitor individual, para que, como a figura de Sócrates, possa ser a ocasião da qual o Indivíduo tenha a possibilidade de encontrar-se a si mesmo. Um modo do qual o leitor ao confronta-se com o arquétipo existencial se veja e ponha suas forças em movimento, um projetar-se para construir-se a fim de atingir a autenticidade do ser. Entretanto, não se constitui uma estratégia metódica e sistemática e sim uma expressão de um pressentimento diante da vida inautêntica dos seres humanos. Esse pressentimento é expresso através da referência que Kierkegaard faz às Migalhas Filosóficas, quando ironicamente escreve: “embora o meu folheto não pareça lembrar de jeito nenhum o soar do tambor, e apesar de o autor ser, com toda certeza, o último homem inclinado a tocar o alarme” (KIERKEGAARD, 1995, p. 22). Está convencido de que alguém precisa alertar sobre o perigo iminente para o qual caminha a humanidade. Consciente da dificuldade do ato de comunicar, Kierkegaard busca meios de se expressar, dizer o que sente sobre a existência e o que deseja para os outros. Além da pseudonímia se utiliza da linguagem poética, pois ela não está preocupada em descrever como as coisas são, mas tão somente expressá-las por meio do que se sente. Carlos Martin Ramirez no prefácio de Diapsalmata define: O poeta é um homem dotado de uma sensibilidade capaz de sentir e dizer a verdade poética das coisas. Conhece o mundo, porém seu conhecimento não se conflui em um sistema complicado de razões, de onde se explica tudo. Sua voz diz as coisas recriando-as – que esta recriação é a verdade poética -, faz que as coisas sejam assim, como ele as disse, que se mostrem como ele as mostra. Não tem interesse em demonstrá-las. Tão somente em que se as veja, em que se as sinta, em que se chegue a elas (KIEKEGAARD, 1964, p. 12).

Kierkegaard se considera um poeta, e é um poeta por sua grande sensibilidade frente aos dilemas existenciais. Contudo, constitui-se um poeta


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religioso, por sua produção estar voltada para aos problemas últimos da existência humana. A respeito do poeta tem-se que é “[...] o gênio da recordação. Nada mais pode fazer do que recordar; nada mais senão admirar o que foi cumprido pelo herói” outrora

“guarda

ciosamente

aquilo

que

lhe

é

entregue

sob

custódia”

(KIERKEGAARD, 1959, p. 36). As palavras do poeta adquirem especial significado ao estar consciente da relação que o Indivíduo possui com pathos próprio da vida, sentindo e vivenciando o momento presente: sofre as angústias da vida na difícil tarefa de existir. É um homem dotado de consciência de si mesmo e do mundo, mas é muito mais profundamente sincero consigo mesmo. Canta a si mesmo, considera seus estados de ânimos e, em sua íntima relação consigo mesmo, atinge demasiada profundidade e amplitude da vivência. O que é um poeta? É um homem desgraçado que oculta os revoltos sofrimentos em seu coração, porém cujos lábios estão feitos de tal maneira que os gemidos e os gritos, ao sair por eles, soam como uma bela música (KIERKEGAARD, 1964, p. 21).

Outro meio utilizado na filosofia kierkegaardiana é a comunicação indireta, como já mencionado acima. Nesse sentido, a figura de Sócrates retrata bem este tipo de comunicação, porque é um personagem que proporciona aos seus discípulos chegarem às conclusões por eles mesmos. Sócrates quer ser ocasião, o instante para os discípulos na construção do conhecimento. A maiêutica confere um processo que parte da multidão e vai em direção ao Indivíduo, para tanto, “[...] é essencial para a fé que ela habite em segredo nas profundezas da alma”. A fé é o momento do contato com os secretos desígnios. “A inviolabilidade do foco silencioso de onde emana a palavra é a sua condição: aquele que, no próprio momento em que a proclama, não preserva o segredo, profana-a” (FARAGO, 2006, p. 218). Desse modo, a comunicação direta da fé fica impossibilitada, só podendo ser indireta, pois a comunicação direta é objetiva e sendo ela objetiva reduz a própria vivência da fé a conceitos racionais. A fé é exclusivamente uma vivência original e particular. E por fim, por mais que a linguagem possua estes dispositivos, há algo sempre recôndito, reservado ao secreto. Algo que não se pode comunicar, pois está na esfera particular. “Abraão cala-se... porque não pode falar; nesta impossibilidade


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residem a tribulação e angústia” (KIERKEGAAD, 1959, p. 199), destarte o ser humano sente a necessidade de se comunicar, porém, neste momento a linguagem é limitada. Por mais que se explique não pode fazer-se entender, e se for entendido o que o ser individual viveu será em partes. Haverá sempre algo que escapa e desliza das mãos. Por um lado, não posso assim tornar pública a minha relação com Deus: tal relação é, efetivamente, nem mais nem menos que a vida interior de cada homem, despida de todo caráter oficial, como se encontra em cada um; seria criminoso passá-la em silêncio e tenho a obrigação de a pôr em evidência, ou poderia invocá-la para dela me valer; por outro lado, não pretenderia (e ninguém o quererá) impor a alguém o que unicamente diz respeito à minha pessoa privada e que,a meus olhos, é contudo de grande importância para explicar a minha personalidade de autor (KIERKEGAARD, 1986, p. 24).

O modo como Kierkegaard escreve é muito consciente quanto à sua pretensão, no entanto, não quer revestir seu discurso de verdade absoluta. Quer, com toda sua habilidade, apontar para a falibilidade da comunicação dada no geral e também do fazer-se compreendido individualmente, pois o que ele vem trazer referese à existência, e a compreensão da existência dá-se estritamente no âmbito particular, do ser individual. As definições nada dizem a respeito da vivência particular do ser existente. A racionalização é a generalização que nada toca o sujeito. Se um Indivíduo ao ler uma de suas obras conseguir ver-se como diante de um espelho, e, mediante as observações, sentir-se tocado para a busca do ser autêntico, o objetivo de proporcionar a ocasião e de alertar quanto ao risco de uma vivência inautêntica é alcançado.

1.2. CATEGORIA DE EXISTÊNCIA

A existência consiste na forte experiência do vivido, ou seja, a existência tem seu caráter na vivência do Indivíduo. E essa existência é estranha à história, pois quanto mais o homem vive eticamente, menos se preocupa com a história, sendo que a noção de história é compreendida na ideia de que tudo é objetivo. É uma vivência que vive o ser livre. A filosofia Kierkegaardiana propõe um voltar-se para si mesmo, dando a importância moral da ação à intenção e não ao resultado desta ação.


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O conceito de existência corresponde a aksistens (dinamarquês) que diz respeito à realidade concreta do homem individual, que vive cotidianamente seus dilemas existenciais. Na concepção clássica designa essência, isto é, a maneira de ser de algo. Mais exatamente, a realidade de ser é específica do homem, pois sua existência é uma construção, uma conquista, feita constantemente. A existência humana, primeiramente, é posta pelo poder criador, contanto deve tender para a relação com esse criador, que possibilita a liberdade de constituir a si mesmo (cf. MUNARO, 2002, p. 75). A vida deve ser vivida integralmente em todos os seus instantes, pondo as forças do ser em movimento, que estão em relação com o absoluto. Contudo, o sentido da existência permanece no enigmático, que só é adquirido quando se percebe a si mesmo diante da presença divina, porém esse enigma não é dissolvido por reflexão nem comunicação: [...], o homem existe porque aceita plenamente a sua responsabilidade de existir e de desenvolver em seu espírito aqueles movimentos ideais que possam ligar aos secretos desígnios da criação (GUIMARÃES in: KIEKEGAARD, 1964, p. VI).

Na introdução de Temor e Tremor, da tradução portuguesa feita por Alberto Ferreira, têm-se a seguinte compreensão: Existindo, o homem, é espírito que se cumpre em obediência ao absoluto: o existir só guarda algum sentido enquanto nela subsiste a presença divina. Tal presença, porém, não se oferece com a claridade de um dia de sol. Os desígnios da providência mantêm-se secretos e a manifestação é ainda um enigma que se não resolve pela reflexão. A existência é pois a relação dramática em que o Indivíduo aceita plena responsabilidade de viver cumprindo secreto destino (KIERKEGAARD, 1959).

Desse modo, a existência decorre da relação estabelecida, não se concebendo um solipsismo do sujeito, isto é, estar preso a si mesmo. Mas positivamente, um eu em relação com o absoluto, que se mostra no recôndito, no secreto, onde só o eu pode vivenciar esta relação como o absurdo, em cumprir a tarefa de guiar a si mesmo. A compreensão desta categoria parte de uma heteronominia, em que o Indivíduo percorre um itinerário exclusivo, por si mesmo. Não é possível conceber um padrão, pois há uma exclusividade na vivência do Indivíduo, que é totalmente única: cada um deve fazer o seu próprio processo, seu movimento.


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Existência tem a ver como o ato de ser que faz o modo próprio do existir humano e este é, segundo Kierkegaard, essencialmente relacional, ou seja, o modo de ser do homem é de tal natureza que o homem não pode se por ou se colocar a si mesmo a sua própria existência. Por isso, é um modo de ser essencialmente e radicalmente hetero-relacional, heteronômico (MUNARO, 2002, p. 76).

A tarefa última da existência é a obtenção da verdade. Uma verdade que depende do movimento individual, de uma adesão que parta da abertura individual para uma realidade ulterior, compreendida exclusivamente na realidade existencial. Nesse momento, entra a comunicação indireta, no qual o Indivíduo encontra-a ao voltar-se para si mesmo, através de um elemento mediador: o mestre. Sócrates é o personagem que mais pode exemplificar essa postura de meio, espelho, para que o outro encontre a verdade. Em Migalhas Filosóficas compreende-se, a respeito da comunicação do saber, que decorrida através da condição dada pelo mestre e recebida pela fé, pode servir de ocasião para que o Indivíduo tenha a experiência do discipulado. A figura do mestre, para a descoberta do saber dentro de si mesmo feita pelo discípulo, possui demasiada importância, em que tem, como ocasião, o instante, dado por ele através da consciência e da construção progressiva através da maiêutica. O desejo da síntese existencial é seu caráter eterno. O homem aqui é entendido em sua eternidade, no qual o Indivíduo em sua liberdade tem a responsabilidade de conformar-se ao processo dialético existencial. A existência obriga-o a assumir a tarefa de pôr-se em movimento, escolhendo por conquistar a subjetividade e decidir a partir da resignação infinita da finitude de si mesmo para saltar qualitativamente e realizar o movimento da fé, no lançar-se ao eterno. Existir é a capacidade de destinar-se, de orientar-se a um determinado caminho.

1.3. CATEGORIA DE SUBJETIVIDADE

A subjetividade se coloca aqui em oposição à objetividade, pois esta pensa a existência em moldes e caráter racionais, relegando ao sujeito um ínfimo lugar para o conhecimento. Pensar subjetivamente é o pensamento que não se esquece de si, uma reflexão que parte da interioridade e que não perde, por isso, o seu caráter de particularidade e originalidade. Está comprometido de constantemente construir sua reflexão que é impulsionada pelo próprio existir.


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A reflexão subjetiva faz o percurso interiormente na interioridade, entendida na existência do sujeito como paixão (pathos). A paixão, por sua vez, corresponde à verdade como paradoxo, que é justamente a verdade que se relaciona com o sujeito existente em seu caráter intrínseco paradoxal (cf. KIERKEGAARD in REICHAMNN, 1972, p. 236). Somente pelo paradoxo se alcança o infinito no finito, o impossível no possível, a totalidade e a universalidade no particular e subjetivo. O que se pode chamar de verdade subjetiva está na suspensão da razão, no que não pode ser calculado, naquilo que se toca e, até mesmo, sente-se, mas não é penetrado pela compreensão intelectual. Aqui as categorias racionais têm um valor pífil, pois a única regra do paradoxo é a inexistência de regra. Mas quando me ponho a refletir sobre Abraão, sinto-me como que aniquilado. Caio a cada instante no paradoxo inaudito que é a substância da sua vida; a cada momento me sinto rechaçado, e, apesar do seu apaixonado furor, o pensamento não consegue penetrar este paradoxo nem pela espessura dum cabelo. Para obter uma saída reteso todos os músculos: instantaneamente me sinto paralisado (KIERKEGAARD, 1959, p. 59).

Há uma impossibilidade de provar teoricamente a existência de Deus. Cabe ao homem deixar que Deus se mostre, pois toda a tentativa de demonstração mediata e imediata esbarra-se nas dificuldades do absoluto, que é infinito, incompreensível, desconhecido e diferente, e mesmo que se pudesse conhecê-lo não se poderia exprimi-lo. O cristianismo se orienta ao subjetivismo, em que o Indivíduo é verdadeiramente sujeito. A afirmação do sujeito está na subjetividade, por sua vez, é a reflexão subjetiva acerca da relação do Indivíduo consigo mesmo ou com outra categoria que é realmente capaz de trazer ao sujeito aquilo que é próprio das coisas. O conceito de Deus é mais correspondente, não quando levado em consideração a sua relação com o Indivíduo, mas na clarividência de que Deus é sujeito, e “[...] sendo sujeito, não existe senão interiormente para a subjetividade” (KIERKEGAARD in: REICHMANN, 1972, p. 237). Mas o sujeito existente deverá, anteriormente, compreender que requer muito tempo para encontrá-lo objetivamente. Só pode possuir Deus a partir da paixão (pathos) infinita de interioridade, uma relação da interioridade com o Deus (cf. KIERKEGAARD in: REICHMANN, 1972, p. 237).


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Se, agora, o problema for este: de que um lado há mais verdade [...], no lado daquele que não procura senão objetivamente o verdadeiro Deus e a verdade mais próxima da representação de Deus ou daquele que, conduzido pela paixão infinita de sua necessidade de Deus, preocupa-se ao mais alto ponto em se relacionar verdadeiramente com Deus: a resposta não pode ser duvidosa para quem não se corrompeu inteiramente pelo saber objetivo (KIERKEGAARD in: REICHMANN, 1972, p. 237).

É na subjetividade que se interroga sobre a interioridade em seu desejo de infinito. É através do que é o subjetivo pode se alcançar a conformidade existencial, isto é, a existência que realiza o infinito na interioridade finita. A subjetividade reside na decisão de ser sujeito, um movimento das forças postas no sujeito que o constituem como dialética, caminhando em direção ao infinito. É a tensão entre a incerteza objetiva e o desejo interior de verdade (cf. KIERKEGAARD in: REICHMANN, 1972, p. 237). Nada se pode ter de certo na objetividade, por isso, a busca da verdade se torna um desafio. Mas esta angústia que nasce do incerto na objetividade é reconfortada pela paixão do infinito, pois tudo se arrisca, tudo se abre mão e tudo é decidido em contemplar a certeza naquilo que é mais certo no mundo objetivo: a incerteza. Ao se afirmar ser a base da vivência existencial a subjetividade, implica-se na ideia que o sujeito que conhece é um sujeito existente. Somente uma verdade que possa dizer algo sobre o ser humano poderá ter importância tal de não ser indiferente para o sujeito existente. Se há um processo dialético na verdade, um dos termos precedidos é a interioridade do sujeito. O pensador subjetivo é dialético com respeito à esfera existencial, pois mantém o pensamento apaixonado e interessado em preservar a disjunção qualitativa. Nesse sentido, “o pensador subjetivo não é um homem de ciência: ele é um artista. Existir é uma arte”. O pensador subjetivo é um existente e um pensador. Ele se compromete com a existência e não faz, como certo pensador que proclamava a verdade, a ética e toda sorte de realidade superior, mas que, ao olhar a sua vida privada, reconhecia a contradição entre o pensar e o ser, realidade e idealidade e, na prática de sua existência, contradizia os mais elementares princípios da justiça, do bem e da verdade (ALMEIDA & VALLS, 2007, p. 53-54).

Especificamente, o pensador subjetivo é aquele apaixonado pelo infinito, que busca, pela vivência dos dilemas existenciais, a intensidade e a autenticidade da realização de si mesmo. Pensar a existência objetivamente é fixar o devir do ser, e aprisioná-lo a categorias vazias e insignificantes ao próprio homem. A conformidade


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na realização autêntica da síntese do espírito está na interioridade, significada e entendida, estritamente, pelo ser subjetivo. A decisão de possuir a si mesmo se dá na medida em que o eu está mais próximo do eu-subjetividade. A existência pautada pela objetividade é caracterizada pelo saber, que propõe formas abstratas de ser, e não, realmente, ser. Só se sabe, porém, nada realiza. Vive-se em meros discursos sem que eles tenham validade na própria vida: O sermão do pastor é já em si assaz ridículo, mas é-o infinitamente mais pelo seu efeito, todavia, tão natural. Poder-se-ia ainda mostrar o pecador convertido pelo responso do padre sem levantar verdadeira objeção, e o zeloso sacerdote a regressar jubiloso, na suposição de que, se comove o auditório do alto do púlpito, é sobretudo porque possui um irresistível poder na cura de almas, visto que no domingo agita a assembléia e na segundafeira, [...], apresenta-se perante o insensato disposto a desmentir pelos seus atos o velho provérbio que diz: “nem tudo se sucede na vida de acordo com o sermão do pastor” (KIERKEGAARD, 1959, p. 53).

O mais importante é a vivência da autenticidade. Aquele que pensa possuir a verdade mais se distancia dela, mas aquele que a busca patheticamente em sua subjetividade se aproxima de seu sentido mais exato. Pois a verdade é constituída de uma relação, e só adquire sentido para o eu que se depara com a ocasião. A ocasião é o instante em que tudo importa, do qual se obtém o reconhecimento da verdade pelo estado de não-verdade ao voltar-se para si mesmo. A afirmação que identifica a subjetividade com a verdade tem um primeiro intuito de crítica. Crítica esta proferida contra o objetivismo do sistema hegeliano, em que transformava toda relação com a verdade em um sistema racional (Hegel afirma quais são, precisamente, os passos do homem em direção ao espírito absoluto). Essa ideia relega ao homem uma existência no geral, eliminando toda carga de uma existência subjetiva e, de certa forma, elimina a responsabilidade do sujeito da tarefa de existir.

1.4. CATEGORIA DE INDIVÍDUO

A noção de Indivíduo confere ao eu um caráter único e irrepetível, por isso, implica em uma responsabilidade da conquista do eu autêntico, não podendo se eximir do trabalho de ser a si mesmo. É a capacidade de estar acima do geral, renunciando ao geral para conquistar a si mesmo em sua individualidade. A título de ilustração, Kierkegaard insere dentro


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desta compreensão o cavaleiro da fé em que, através da resignação infinita, dá o salto da fé renunciando ao geral para tornar-se Indivíduo, dado na decisão única, intransferível e irrepetível. O geral aqui é compreendido como o conceito universalizante que enquadra o sujeito em seus parâmetros e seus ditames, é a ideia do generalizante que elimina as particularidades. Com efeito, é a fé esse paradoxo o qual o Indivíduo está acima do geral, mas de tal maneira que, e isso importa, o movimento se repita e, por consequência, o Indivíduo, depois de ter permanecido no geral, se isole logo a seguir, como Indivíduo acima do geral. Se não é este o conteúdo da fé, Abraão está perdido, nunca houve fé no mundo, porque jamais ele passou do geral (KIERKEGAARD, 1959, p. 99).

A fé é entendida como um elemento importante para a conquista do ser Indivíduo, porém não entendida no usual sentido cristão, mas colocada como um meio para que o Indivíduo encontre o seu lugar em sua própria existência. A fé está na compreensão da resignação infinita, no qual o Indivíduo, ao deparar-se na finitude de si mesmo, abre mão de tudo absurdamente para obter tudo: uma relação absoluta com o absoluto, isto é, o encontro na infinitude pela finitude. “[...], o Indivíduo se refere como tal absolutamente com o absoluto” (KIERKEGAARD, 1959, p. 124). Há uma ineficácia da história em seu princípio idealista para a compreensão da existência individual, pois o intelecto não pode compreender tudo e nem chegar por suas próprias forças à compreensão, necessita de outros elementos como a fé, a transcendência e o reconhecimento da existência como possibilidade, paradoxo. O sentido de Indivíduo está diretamente relacionado ao ser subjetivo e isto pode ser melhor compreendido nos termos possíveis em dinamarquês: exemplar, designa um integrante da espécie humana; individ, relaciona-se ao meio social humano; e enkelte , no qual compreende-se o Indivíduo que se assume existencialmente. Pode-se concluir que este termo está no sentido de análise do ser humano em relação ao que é próprio do ser existencial - de cada ser humano -, não podendo concluir-se daí a afirmação de um solipsismo existencial (isolamento), pelo contrário, o ser existencial entende-se dialeticamente (cf. PAULA, 2009, p.140). Uma dialética entre necessário e possível, entre eternidade e temporalidade abarcada na existência.


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Mas o uso que é aplicado na filosofia kierkegaardiana é a noção de enkelte, uma vez que o Indivíduo está comprometido como ser único e exclusivo na tarefa de existir. Não pode abrir mão desse direito – muito mais que um dever é um direito, aí está a beleza – que é conferido pela própria existência e, por sua vez, exige do Indivíduo uma posição frente a possibilidade: voltar-se com todas as suas forças para um ponto específico. A conquista da individualidade é muito difícil, pois comumente subjuga-se a responsabilidade da existência a agentes externos, ou seja, submete-se ao geral, principalmente, na adesão de paradigmas (máscaras, personagens) que atendam expectativas da generalidade. E estes “outros” assumidos na personalidade do Indivíduo pensam e agem em seu lugar, assim, deduz-se que esta espécie de colocação existencial está imensa no medo de assumir-se a si mesmo ou na inconsciência da tarefa de existir. A mentira reside na multidão, no geral. “A multidão é a mentira” (KIERKEGAARD, 1986, p. 97). É na multidão que, por questão de convívio, a vivência transforma-se em algo comum, ou seja, perde sua originalidade em sua condição de verdade alcançada individualmente. Toda existência é transformada em ficção racional, eliminando, dessa maneira, toda categoria de eternidade e divindade existente no homem. Mas há ainda outra; para ela, por toda parte que se encontre a multidão, também lá se encontra a mentira, de tal modo que – para levar, por um instante, a questão ao extremo – se todos os Indivíduos determinassem, cada um separadamente e em silêncio, a verdade, não obstante, se se reunissem em multidão (que assumiria então um significado decisivo qualquer, pelo voto, pela algazarra, pelo falar), imediatamente se teria a mentira (KIERKEGAARD, 1986, p. 97).

A multidão, como esclarece o próprio Kierkegaard, não é esta ou aquela multidão, mas o conceito, pois não existe a noção de arrependimento ou responsabilidade, antes há uma sujeição do Indivíduo ao geral e uma conduta subordinada a meros preceitos estabelecidos coletivamente Há uma convenção social da qual banaliza o ser existente (Indivíduo). Contundentemente, decorre a abstração do Indivíduo e ao se generalizar elimina-se as nuances dos seres particulares (em outras palavras, passa-se uma navalha nas diferenças entre os seres individuais, restando a comunidade, ou seja, aquilo que é comum, igual). Aí é o lugar propício da covardia e da fuga, no qual o


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homem foge da condição de Indivíduo, pois para tornar-se Indivíduo é necessário deparar-se com o absurdo, com o paradoxo, com a angústia e, principalmente, com o desespero na estrutura dialética do ser humano. A verdadeira liberdade se dá no plano da individualidade e não da generalidade. A individualidade é o supremo vértice da liberdade e não o contrário como afirmava Hegel. Só na individualidade se dá o livre arbítrio, a eleição, o compromisso, a verdade e a decisão. A liberdade só estará ao alcance do homem na medida em que for também individual (MUNARO, 2002, p. 96).

Essa ideia indeferível do ser indivíduo está fortemente imbuída da crítica ao hegelianismo, pois no Sistema não há lugar para o Indivíduo. No Sistema a originalidade do ser existencial se torna previsível, normatizada por leis e convenções que enquadram o sujeito. Como retrata o próprio Kierkegaard, o Indivíduo está acima do geral e, por isso, a vivência do Indivíduo não pode ser compreendida pela multidão, é estranha a ela. Dessa maneira, não podendo a vivência ser sistematizada, a razão não pode perscrutar os secretos desígnios da interioridade. “A ninguém é dado saber ou conhecer o pacto secreto que se estabelece entre Deus e o cavaleiro” (KIEKEGAARD, 1986, s/p). A existência autêntica do Indivíduo está na relação com o absoluto, em uma vivência que não trai o finito, o vulgar da existência, no mais simples comportamento mortal (cf. KIEKEGAARD, 1986, s/p). É um mergulho da simplicidade da vida, que não foge da angústia e vive a tranquilidade em meio a tormenta. Um voltar-se para infinito que retorna ao finito. Com efeito, o movimento da fé deve constantemente efetuar-se em virtude do absurdo, mas – e aqui a questão é essencial – de maneira a não perder o mundo finito, antes pelo contrário, a permitir ganhá-lo constantemente. [...]; no entanto realizo outros movimentos – os que respeitam ao infinito – enquanto que a fé permite o contrário: depois de efetuar os movimentos do infinito, cumpre o finito (KIEKEGAARD, 1986, p. 67-68).

A categoria do Indivíduo assinala um despertar do espírito, um despertar da interioridade para o tornar-se a si mesmo, que não interessa ao mundo. Um estado em que o ser existencial toma posse da própria existência em mãos. Em suma, esta categoria possui um uso decisivo na compreensão da filosofia kierkegaardiana em sua reduplicação e no combate feito à desagregação do ser existencial.


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Estas compreensões apresentadas neste capítulo serão fundamentais para a compreensão dos estádios da existência, pois estes estádios dão-se nas categorias de existência, Indivíduo e subjetividade, principalmente, por meio de uma comunicação indireta. As categorias da existência procedem fundamentalmente na existência do ser individual, que busca constituir sua subjetividade ao caminhar rumo a autenticidade do ser e da vivência do pathos próprio da existência.

2. OS ESTÁDIOS2 DA EXISTÊNCIA HUMANA: UM EXISTIR FRENTE AO DEVIR E ÀS POSSIBILIDADES

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“O termo estádio lembra um percurso, trecho, etapa (não são estágios)” (ALMEIDA & VALLS, 2007, p. 19).


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Os estádios da existência humana são entendidos em Kierkegaard como a demonstração de vários âmbitos ou esferas da existência de cada Indivíduo. Entretanto, não se entende na explanação dos estádios da existência a tentativa de concatenar passos definidos e lógicos rumo à libertação para uma vivência autêntica, pois corroborar esta ideia é aceitar a formulação de um método, ponto do qual Kierkegaard é definitivamente contrário. A compreensão do que seja os estádios da vida humana é sumamente importante para aprofundar a vivência do desespero, que é uma categoria que perpassa o ser existente onde este se encontrar, isto é, em qual esfera da existência estiver. Não há uma intenção de apontar um caminho ou, mesmo, um itinerário de como se deve proceder, nem mesmo indicações de ações a serem tomadas para alcançar o estádio religioso (ético-religioso). Não existem receitas, preceitos, axiomas ou qualquer formulação diretiva. Cada um deve escolher e tomar o seu próprio caminho. A filosofia de Kierkegaard, no que tange as esferas da existência, deseja provocar uma inquietação do sujeito sobre sua própria existência. Diferentemente de Hegel que aponta um caminho certo, racional e objetivo para a conquista do Absoluto, isto é, a conquista do ser em si e para si, Kierkegaard não afirma uma escala sistemática de um estádio ao outro, também não faz indicações de como fazer esta transição. As figuras pseudonímicas e a linguagem indireta (poética) buscam justamente driblar qualquer sistematização e também renunciar a toda vontade de sistema, o que torna difícil e arriscado discorrer objetivamente sobre este aspecto. Destarte, quer: mostrar as alegorias que o homem de seu tempo, bem como o do nosso, tornou-se um “cadáver ambulante”, uma máscara, um fardo pesado, e que existir é demasiado, preferindo ser um “simples espectador” da existência (ALMEIDA & VALLS, 2007, p. 34).

Contudo, em meio a este labirinto, encontram-se algumas pistas que motivam o sujeito a fazer seu próprio movimento da fé ou salto qualitativo, mas que não é necessário tão pouco uma regra de vida. Torna-se, então, uma decisão livre e estritamente subjetiva, ligada não a uma vivência única e exclusiva de um estádio. Podendo ser este ou aquele ou este e aquele sem uma ordem de fatores ordenados. Em suma, a vivência dos estádios não é estável e definitiva, mas é vivida a cada


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fração de segundo, no qual o Indivíduo escolhe no instante presente ser ou não a si mesmo, podendo-se elevá-la à categoria de decisão ou não. Ao mesmo tempo, a ideia de despretensão de sistematização não é a afirmação de uma ingenuidade das ideias kierkegaardianas ou uma incapacidade de qualquer compreensão. Opostamente, existe uma inteligência que quer fugir da objetivação racional em relação aos aspectos da existência humana, pois estes só podem ser compreendidos subjetivamente a partir do próprio Indivíduo e que só interessam a ele. Kierkagaard possui claro que racionalizar significa empobrecer, pois o que é vivido pertence ao que se vive e o que se racionaliza não. Não se pode tornar o que está no âmbito do ideal em vivência, seria desoriginalizar a vivência que é única e exclusiva do instante presente, onde se revela o pathos próprio da vida. Sua forma de compreender a existência humana lhe dá um caráter original e é essa originalidade que não quer perder em seus escritos. Retrata aquilo de mais íntimo da sua interioridade e por isso não deseja que seus escritos sejam compreendidos pelo geral, isto é, em termos compreensíveis por todos, traduzidos em uma linguagem clara e simples, pois significaria rebaixá-los à categoria de comum. Meu mérito em relação à literatura será sempre o de ter expressado as categorias decisivas de todo o campo existencial e isso de um modo dialético tão agudo e tão primitivo como, pelo que sei, não se fez em nenhuma outra literatura. Assim não tive nenhuma obra para me aconselhar (KIERKEGAARD apud MALANTSCHK, 1961, p. 15).

Dessa maneira, Kierkegaard apresenta os estádios da existência humana como base para refletir sobre o homem. Esta estratégia não constitui uma preocupação em estruturar, tão pouco sistematizar, mas apresentar em sua peculiaridade os dilemas existenciais do sujeito, as diversas vivências que o homem pode encontrar-se. Aqui reside a compreensão primordial da concepção antropológica kierkegaardiana: o homem é um ser em devir, que possui a tarefa de constituir-se como sujeito livre e autêntico, porém, para isso, precisa tomar a própria existência em mãos e viver aquilo que é mais próprio de si mesmo, da sua interioridade. A vida é compreendida em seu devir. Sua característica fundamental está especificamente em estar constantemente em movimento, é uma dialética dos termos contrapostos das categorias pertencentes ao ser humano. E é neste devir


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que o sujeito se torna ou não si mesmo, isto é, alcança ou não o ser autêntico. Perpassando a vivência do desespero, inseparável da vida existencial, e vivenciando os estádios, toma ou não em mãos a tarefa de existir. A vida vai criando-se e desenrolando por meio de rupturas e de contradições. Afirma-se a ideia que o desespero é uma categoria vivida em todos os estádios e em todos eles pode ser pedagógico e sintomático (sintomático no sentido de trazer ao ser humano uma indicação – sintoma – de uma inconformidade no movimento dialético da própria existência), ponto a ser discorrido posteriormente. Em todos os estádios, o desespero se torna presente em diferentes graus e intensidades, pois é indissociável do ser humano, ou seja, faz parte de sua constituição como ser existente. Desse modo o Indivíduo pode proceder de três modos diferentes frente à tarefa de existir, quer dizer, pode encontrar-se em três estádios: o estádio estético, o ético e o religioso (ético-religioso).

2.1. ESTÁDIO ESTÉTICO

O estádio estético é a formulação de uma existência individual constituída de uma vivência do imperativo do gozar a vida em seus prazeres mais próprios e intensos. Esse imperativo é elevado a um princípio que rege a toda a vida existencial. Ademais, tem o desejo como seu fundamento, como é mostrado pelo exemplo do Don Juan em Diário de um sedutor na figura de um homem que está à mercê dos desejos e das paixões. O tom poético era o excedente fornecido por ele próprio. Esse excedente era a poesia cujo gozo ele ia colher na situação poética da realidade, e que tomava sob a forma de reflexão poética. Era este o seu segundo prazer e o prazer constituía a finalidade de sua vida. Primeiro gozava pessoalmente a estética, após o que gozava esteticamente a sua personalidade. Gozava pois egoisticamente, ele próprio, o que a realidade lhe oferecia, bem como aquilo com que fecundava essa realidade; no segundo caso, a sua personalidade deixava de agir, e gozava a situação, e ela própria na situação (KIERKEGAARD, 1974, p. 147).

Como percebido, o esteta não mede esforços para obter o prazer máximo que a vida pode lhe oferecer, mesmo que este prazer seja a custa de uma vivência fútil e vazia de sentido. Foge do compromisso sério por significar um limite à liberdade


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decorrida da união conjugal, outrossim, sua vivência reside no prazer ilimitado, a todo o momento, fruto do arbitrário desejo de satisfação. O Indivíduo imerso no estádio estético não é capaz de decidir, pois sua vontade está dividida em todos os prazeres possíveis, está diluída na imensidão das situações, por isso, não pode voltar-se especificamente a um ponto, isto é, voltar suas forças decididamente e radicalmente a um único ponto. Dessa maneira, perdese em si mesmo, nas próprias incertezas: vive o puro desespero do transitório e na voluptuosidade instantânea. “O Indivíduo singular deixa-se guiar pelos momentos aleatórios que se apresentam, é incapaz de um projeto [...]” (ALMEIDA & VALLS, 2007, p. 34), tudo se torna momentâneo e efêmero. A vivência estética torna-se melhor compreendida pela proposta feita pelo romantismo alemão, a qual propunha a união com a totalidade através da via estética, da vida pelos sentidos captada no instante presente. Porém, o estado que somente pode se encontrar o esteta é o desespero, por não se ter um eu, o eu, na realidade, está fora dele mesmo, pois toda a sua tarefa de existir volta-se para um elemento externo ao próprio Indivíduo. Sua existência está sob a égide do desespero, um desespero de não se poder prolongar aquilo que tanto se procura: o gozo. Este passa vorazmente esvaziando a existência do sujeito. Quase sempre, quando alguém se julga e se envaide-se com sê-lo, ao passo que a luz da verdade é um infeliz, está a cem léguas de desejar que o tirem de seu erro. Pelo contrário, zanga-se, considera como seu pior inimigo àquele que o tenta, e como um atentado e quase um crime esse modo de proceder e, como costuma dizer-se, de destruir a sua felicidade. Porque? Mas porque é presa da sensualidade de alma plenamente corporal; porque sua vida só conhece as categorias dos sentidos, o agradável e o desagradável, e manda passear o espírito, a verdade, etc. ... É porque é demasiado sensual para ter ousadia, a paciência de ser espírito (KIERKEGAARD, 1979, p. 82).

Esta existência está pautada pela infelicidade, pois está presa aos instintos e a animalidade desmedida, ignora, por sua vez, o espírito, isto é, aquilo que lhe é próprio de si mesmo e permanece: o eu. Nesse sentido, vive a mais plena inconsciência de si, julgando-se feliz se incomoda frente a qualquer obstáculo que destrua sua felicidade. Destarte, não possui nada de autêntico e ignora a própria realidade. Salvaguarde-se o aspecto que Kierkegaard não despreza os prazeres da carne, mas sim o valor dado a eles, tanto quanto, a compreensão do desespero está atribuída à maneira de desesperar-se.


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A grande aflição da vivência estética pode ser traduzida neste aforismo: “Como se sabe, existem insetos que morrem no momento da fecundação. Tal ocorre com o prazer: o momento mais exuberante e intenso do gozo que a vida nos oferece vem acompanhado da morte” (KIERKEGAARD, 1964, p. 23). O prazer vivido no instante em que se goza é ínfimo e demasiado passageiro, desse modo, o esteta vive como um caçador atrás de uma presa, em que cria estratégias para aprisionar a caça, arma-se de um instrumental que o auxilie e enfim executa o plano: vive pela necessidade de sobreviver. Kierkegaard admira o esteta pela capacidade poética de gozar a vida, este tem como objetivo um prazer refinado e, por isso, desenvolve etapas de sedução, artimanhas racionais para alcançar o objetivo, aliás, este tem uma sensibilidade muito aguçada, contudo, vive como o caçador: preso à necessidade. Eu sou um esteta, um erótico, que aprendeu a natureza do amor, a sua essência, que crê no amor e o conhece a fundo, e apenas me reservo à opinião muito pessoal de uma aventura galante só dura, quando muito, seis meses, e que tudo chegou ao fim quando se alcançam os últimos favores. Sei tudo isto, mas sei também que o supremo prazer imaginável é ser amado, ser amado acima de tudo. Introduzir-se como um sonho na imaginação de uma jovem é uma arte, sair dela, uma obra-prima (KIERKEGAARD, 1974, p. 193).

O amor, aqui neste nível, constitui-se uma arte que deve ser apreciada em pequenos goles, deliciando o sabor em sua mais alta profundidade. Contudo, não é bem amor, por que não sabe amar a si mesmo, além disso, quer elevar à categoria de eternidade o perecível. Deseja fugir da sua própria sombra, sem consegui-lo frustradamente. Por isso, está condenado ao desespero, aprisionado em um beco sem saída. O sujeito existencial vive as aparências e o vazio de si mesmo, negando e fugindo a todo momento do próprio eu: sua fuga é o prazer imediato (cf. FARAGO, 2006, p. 120-122). Em relação à vida de aparência, a mais importante qualidade para arte de seduzir é falsidade, pois a boa caracterização da personagem que se assume deve ser bastante convincente: sua real arte está em encenar. É por isso que todas as minhas aventuras de amor têm sempre uma realidade para mim próprio, constituem um elemento de vida, um período de formação que estou bem seguro, e muitas vezes a ele se liga um talento especial adquirido: aprendi a dançar por causa da primeira jovem que amei, aprendi a falar francês por causa de uma bailarina (KIERKEGAARD, 1974, p. 177-178).


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O sentido dado ao prazer é de grande relevância para a compreensão do estádio estético, visto que aqui o prazer é o telos da ação do ser existente. Por sua vez, sua satisfação está na representação que faz de tal situação, ou seja, a satisfação está no delineamento de suas vontades, naquilo que ele valora e significa para si mesmo como sendo para seu deleite. Há uma primazia da vontade, que não se volta para o próprio Indivíduo, mas perde-se nas possibilidades das situações contingentes e no qual o sujeito se exime da responsabilidade da tarefa para consigo próprio. Está submetido às vontades e apetites advindos dos desejos da sensibilidade. O verdadeiro prazer não está no que se goza, mas na representação. Se eu tivesse em minha criada um espírito obediente que, quando lhe pedisse um copo de água, me trouxesse os vinhos mais caros do mundo bem misturados em uma taça, eu a despediria até que soubesse que o prazer não está em que eu goze, mas sim em cumprir minha vontade (KIERKEGAARD, 1964, p. 43).

Vale ressaltar que Kierkegaard não faz uma análise propriamente moral e sim uma análise fenomenológica (no sentido de descrição), constatativa e diagnóstica. Em que não quer apresentar diretamente uma resposta a este respeito. Existe algo que está no domínio do enigmático, dada a ambigüidade das palavras, suas variações de significados, sua beleza e força e , igualmente, suas combinações possíveis. Outrora deixa sobressaltar a respeito da vivência estética: Se eu tivesse de soçobrar, teria sido uma reflexão à segunda potência, num quase transporte de possesso, quando refletia sobre até que ponto o engano triunfava; este pensamento trazia um incrível alívio à cólera interior que alimentava desde à minha infância: com efeito, muito tempo antes de ter experimentado, tinha aprendido que a mentira, a baixeza e a injustiça governam o mundo; e isto levava-me muitas vezes a pensar nestas palavras de A Alternativa: “Se soubésseis de que vos rides”; se soubésseis com quem estais metidos, e quem é este vadio! (KIERKEGAARD, 1986, p. 56-57).

Esta realidade está submersa no engano e na ilusão, portanto, o desespero é a única saída. O desespero elevado a si mesmo, extremado até às últimas consequências e experimentado até a última gota como uma bebida amarga, é a única solução para o esteta. “A melhor prova da miséria da existência é a que dá a


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contemplação de sua glória” (KIERKEGAARD, 1964, p. 39). Na desesperação da própria personalidade, do que é próprio de si, da sua própria existência, o Indivíduo opta a si mesmo.

2.2. ESTÁDIO ÉTICO

Esta dimensão da existência está fortemente marcada pela vivência das normas morais e pelos preceitos sociais, no qual o Indivíduo vive coerentemente, consegue se relacionar conjugalmente e é capaz de assumir compromissos perante um outro e perante a sociedade. É a confluência entre o particular e o geral, mas que permanece no temporal, identificada pelo esforço racional e reflexivo do intelecto humano em estabelecer condutas aprováveis pela multidão, isto é, pela sociedade. O ético está apto a viver uma sólida e séria responsabilidade social. É orientado pela ideia de que a dignidade da vida humana se encontra no cumprimento do dever e da capacidade em assumir as responsabilidades perante a sociedade, além disso, a felicidade desta vida, segundo a concepção ética, está na aceitação livre da profissão e do casamento (cf. KIERKEGAARD in: REICHMANN, 1955, p. 31). Adequa-se às leis e aos valores universais e é fiel cumpridor do dever, sendo boa pessoa e um exemplo de honestidade e justiça. A respeito do aspecto sublime do casamento Kierkegaard escreve na Estética do Matrimônio: Porque, para mim, Deus não é um ser supramundano a ponto de desinteressar-se do pacto que ele próprio instituiu entre o homem e a mulher, nem eu sou a tal ponto espiritual que desdenhe o aspecto terreno da vida. E toda a beleza do erotismo pagão conserva o seu valor no cristianismo, na medida em que é compatível ao matrimônio (KIERKEGAARD, s/d, p. 15). 

A moralidade salvaguarda o caráter de eternidade da sensualidade e a enobrece, por que a pura sensualidade, isto é, a atração sexual está presa ao aspecto efêmero. Por sua vez, a sensualidade está presa à satisfação imediata, contudo, pelo amor o gozo adquire um aspecto de eternidade, salvando o prazer da dimensão puramente sensível (cf. KIERKEGAARD, s/d, p. 31-32). Observa-se que, para Kierkegaard, o matrimônio possui um elemento ético e religioso contido na


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resignação e não contido no amor, pois o matrimônio é um estado mais elevado, o que não significa negar o amor: o matrimônio passa pelo amor. Na vivência ética o Indivíduo é hábil em seus afazeres, crê ser possível realizar a exigência do eterno no temporal, sendo que este mostra-se ao homem. O homem em seu caráter ético está no centro, consciente de sua dimensão eterna (cf. MALANTSCHK, 1961, p. 12). Esse homem está predominado pelo espírito de seriedade, harmonizando com uma vida equilibrada e regulado pela lei moral, ademais, busca estar em conformidade com o que se espera dele: sua vida é regida pela norma. Nessa dimensão, para que possa ser o instante, o Indivíduo não pode deixar de escolher-se a si mesmo, optando por ser a si próprio, entretanto, é uma opção feita a cada momento patheticamente. De certo modo, aponta-se pela via ética a insuficiência do sujeito frente a própria existência, tangida pela sombras da própria personalidade, isto é, a contradição, o paradoxo, a possibilidade. O universal, compreendido pelo ético, não pode entender o que é mais próprio do sujeito, há uma barreira intransponível. A grande convergência, nesse caso, reside em que o universal não pode se adequar ao individual, logo, é o individual que se adéqua ao universal, e, dessa maneira, a vivência ética que não se liberta da rigidez que a permeia paralisa o sujeito em sua própria vivência subjetiva. Do ponto de vista moral, a situação de Abraão para com Isaac simplifica-se, dizendo que o pai deve amar o seu filho mais que a si próprio. No entanto, a moralidade comporta dentro da sua esfera diversos graus; trata-se de saber se encontramos nesta história uma expressão superior da moralidade capaz de explicar a conduta de Abraão e de o autorizar moralmente a suspender o seu dever moral para com o filho sem, no entanto, sair da teleologia deste domínio (KIERKEGAARD, 1959, p. 102).

O ético pode fazer sucumbir o Indivíduo, subjugando-o a uma personificação da conduta prescrita pela sociedade, isto é, uma vivência condicionada pelo fardo em ser entendido e aceito pela multidão. Contudo, é por meio deste que ele pode alcançar uma vida autêntica, sendo que o estádio religioso não suprime o ético. Kierkegaard não desejou colocar em contraposição o estádio ético ao religioso, antes, empregou uma compreensão mais profunda da relação entre ambos: “De qualquer modo não se segue daí que a moral deve ser abolida, mas recebe uma expressão diferente, a do paradoxo [...]” (KIERKEGAARD, 1959, p. 125).


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Visto que é na esfera ética que se impõe a força da própria racionalidade do Indivíduo sobre si mesmo, decorre daí vivências que apontam para uma inconformidade da tarefa de existir, sendo síntese em meio ao devir, o que é denominado por Kierkegaard como desespero-desafio ou desespero-força. O desespeor-força constitui-se na afirmação da força do próprio eu na sua existência, em que o eu quer, desesperado, ser a si próprio, porém, esquece-se a consciência do eu infinito, ou seja, do eu como possibilidade. Na realidade, quer eliminar a possibilidade de sua existência para não ter que se incomodar com o vir a ser, este eu quer ser de modo seguro e certo. O eu que deseja ser a si próprio quer ter o poder total em mãos para eliminar o movimento que desloca o Indivíduo para o incerto que há na existência. Vive simplesmente o concreto de si próprio, o que significa paralisar-se, ou seja, eliminar a capacidade de construir-se. O homem desesperado não faz portanto mais do que construir castelos no ar e bater-se sempre contra moinhos de vento. [...]. O eu, no seu desespero, quer esgotar o prazer de se criar, de se desenvolver, de existir por si próprio, reclamando as honras do poema, de trama a tal magistral, em suma, a glória de tão bem se ter sabido compreender. Mas o que isso significa para ele continua a ser um enigma; no próprio instante em que crê terminar o edifício, tudo pode, arbitrariamente, desvanecer-se no nada (KIERKEGAARD, 1979, p. 121-122).

O sujeito existencial pode proceder de modo diferente frente a própria existência e, em certo ponto, contraposto ao explicitado anteriormente (o desesperodesafio), agora é nomeado como desespero-fraqueza. Este desespero diz a respeito àquilo ao que é eterno, porém, desespera-se diante de sua fraqueza por ser temporal. Outrora, não é capaz de se abrir, fecha-se em si mesmo, remoendo suas próprias debilidades, buscando matar o eterno que existe no próprio eu. Este eu, inconsciente de sua eternidade, acovarda-se ao deparar-se com o risco de assumir a própria condição, a própria fragilidade, por isso, está muito distante de ser a si mesmo. Não é capaz de ousar, de se arriscar, pois está preso ao que não pode ser. Isso se dá com uma força tão grande que o Indivíduo prefere incorporar e personificar arquétipos (modelos de personalidade) sociais para não encarar o fato de assumir o próprio eu, dado que, primeiramente, deve confrontar-se com esse eu que tanto nega. No fundo é um orgulhoso, que busca incessantemente evitar os inconvenientes de se pôr em movimento, de se conformar com um ser em síntese. “E o nosso desesperado tem o suficiente hermetismo para conservar os importunos,


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isto é, a distância dos segredos do seu eu, sem perder os aspectos de ‘um vivo’” (KIERKEGAARD, 1979, p. 113). O pano de fundo desta crítica kierkegaardiana acerca da tarefa de existir é a vivência que se pauta pela multidão. Como já visto, o estádio ético é orientado pela multidão, no qual a moral é o que é aplicável a todas as pessoas sem distinção, no mesmo sentido, aquilo que não pode fazer concessões ou possuir exceções. É um movimento que parte da individualidade para a generalidade. Aqui o Indivíduo não pode reivindicar a sua individualidade, visto que abriu mão e abandonou-a para apaziguar o conflito entre o geral e o Indivíduo. A moralidade, em si, está no geral, e a este título é aplicável a todos. [...]. Tomado como ser imediato, sensível e psíquico, o Indivíduo é o Indivíduo que tem o seu TELOS no geral; a sua tarefa moral consiste em exprimir-se constantemente, em despojar-se do seu caráter individual para alcançar a generalidade. Peca o Indivíduo que reivindica a sua individualidade frente o geral, e não pode reconciliar-se com ele senão reconhecendo-o (KIERKEGAARD, 1959, p. 97).

Essa ideia de reconciliação com o geral e do cumprimento do dever moral até as últimas consequências é personificado pelo herói trágico, porém, pelo mandato exterior que parte de um rigorismo moral. O herói trágico cumpre o seu dever que, em uma concepção mitológica, está destinado a cumpri-la, contudo, sua motivação está no geral. Visa satisfazer a multidão e sua motivação é moral, por isso, sua ação não é autêntica. A diferença que separa o herói trágico de Abraão salta aos olhos. O primeiro continua na esfera moral. Para ele toda a expressão da moralidade tem o seu TELOS numa expressão superior da moral; limita-se na relação entre pai e filho, ou filha e pai a um sentimento cuja dialética se refere à ideia de moralidade. Por conseguinte não se trata aqui de uma suspensão teleológica da moralidade em si própria (KIERKEGAARD, 1959, p. 105).

Por fim, a grande crítica de Kierkegaard a respeito do estádio ético reside no fato de que a ação não parte de um princípio subjetivo, ou seja, de uma liberdade interior, mas de um domínio exterior ao próprio Indivíduo. As preocupações de como melhor proceder não se encaminham para uma vida autêntica, contrariamente, orientam-se para uma aceitação social. Além disso, essa esfera está preponderada pela razão e pela racionalização da própria vivência. De fato, aqui não se vive, aqui


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não se sente os paradoxos da tarefa de existir, mas, aqui se agrada o geral, para que o geral não venha acusá-lo de insolente.

2.3. ESTÁDIO RELIGIOSO

Nessa esfera da existência, a religiosa, o sujeito encontra-se em uma difícil conquista da singularidade. Mesmo havendo um lugar privilegiado para o estádio religioso na reflexão kierkegaardiana, não se afirma uma racionalização desse movimento. Esse processo não é guiado pela intencionalidade. Antes, é um processo essencialmente pathético, isto é, movido pela paixão, não podendo se instrumentalizar pela razão. É estritamente vivenciado na subjetividade e na interioridade do próprio eu: “a ninguém é dado saber ou conhecer o pacto secreto entre Deus e o cavaleiro” (KIERKEGAARD, 1959, s/p). Na obra temor e tremor (1843) introduz a concepção do plano religioso. Todo drama vivenciado por Abraão no caminho para o Monte Morija, como também o sacrifício de seu filho Isaac revelam como é difícil tornar-se a si mesmo na própria existência, ou seja, como é difícil ser autêntico. Kierkegaard coloca no cerne de sua filosofia o coração humano essencialmente guiado pela vontade, uma vontade pathética. Isso é melhor compreendido no desejo paradoxal em que Abraão possui de matar o filho porque o ama. Mas a fé de Abraão era para esta vida; acreditava que iria envelhecer na sua terra, honrado e benquisto do seu povo, inolvidado pela geração de Isaac, o seu mais caro amor nesta vida, a quem abraçava com afeto tal que é insuficiente dizer que cumpria fielmente o dever de pai segundo o espírito do texto: ‘o filho a quem amas’ (KIERKEGAARD, 1959, p. 43).

A suprema realização da conquista da fé feita por Abraão só obteve resultado porque ele acreditou absurdamente de modo absoluto. Uma crença em que o Indivíduo não se trai a si próprio, ou seja, permanece fiel à terra, pois é a partir do finito que se alcança o infinito, e ele possui consciência disso. A fé é o reconhecimento da vida divina residida no espírito humano, saboreando a puerilidade e o mais simples ato humano como o instante decisivo para vivenciar intensamente e autenticamente a própria existência. É no estádio religioso que o Indivíduo se conquista a si mesmo. Essa conquista é dada através do mergulho no nada em que, sentindo a vertigem do


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imediato, imerge com um novo sentimento diante da própria existência (cf. KIERKEGAARD, 1967, p. 20). É mediante ao absurdo, no qual busca o finito constantemente e vivenciando-o particularmente, que se encontra o infinito. Nessa esfera existe uma tranquilidade que repousa na angústia, por isso, existe aí o caráter enigmático embasado na ousadia e na audácia frente à tarefa de existir. O sujeito existente não se furta de sentir a melancolia e a dor da resignação e da renúncia do que mais ama; sente o prazer de ter obtido um conhecimento elevado do próprio eu, que nenhum livro ou sistema é capaz lhe trazer. Os cavaleiros do infinito são bailarinos a quem não falta elevação. Saltam no ar e logo voltam a cair, o que não deixa de constituir um passatempo divertido e nada desagradável à vista. Mas de cada vez que recaem não podem, logo no primeiro momento, guardar completo equilíbrio. Por instantes vacilam indecisos, o que logo mostra que são estranhos ao mundo. Tal indecisão é mais ou menos sensível conforme a sua maestria, mas nem o mais hábil a consegue todo dissimular. Inútil vê-los no ar. Basta observa-los no momento em que tocam e se firmam no solo, é então que se reconhecem (KIERKEGAARD, 1959, p. 73).

Essa ideia acima expressa claramente a capacidade de viver o sublime naquilo que é terreno, em transformar o comum em único, em outras palavras, “[...] transformar em andamento normal o salto, [...]” (KIERKEGAARD, 1959, p. 73). Só o cavaleiro da fé, símbolo daquele que fez o movimento da fé, ou seja, realizou o estádio religioso, é capaz de obter tudo, pois renunciou a tudo, abriu mão de tudo absurdamente: o cavaleiro da fé acreditou acima da sua própria compreensão, pois se compreendesse não acreditaria. A fé é paixão (pathos). Paixão tal como resultado de um movimento: o da resignação infinita. A resignação infinita é o deparar-se com a finitude de si mesmo, isto é, é o confrontamento daquilo que é mais humano, reconciliando-se com a própria vida. “A resignação infinita implica o repouso, a paz e a consolação no seio da dor, sempre com a condição de que o movimento seja efetuado normalmente” (KIRKEGAARD, 1959, p. 81). No qual atravessa de tal modo a existência que leva a razão à seu limite, bem como indica os limites da própria comunicação (linguagem). É a vida pura se realizando em plenitude. A fé é conquista. Fruto do movimento da fé que é procedido por meio da resignação infinita., tendo por fim o eterno: “o eterno não é uma coisa que indiferentemente se obtenha de uma maneira ou de outra; ela não é propriamente uma coisa, mas sim o modo como se obtém” (KIERKEGAARD, 1959, s/p). A fé é


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uma nova compreensão perante a existência, dada não pela intencionalidade, tão menos pela racionalidade, mas pela vivência em si. Ela reside no modo de se proceder, isto é, na decisão em ser a si mesmo na tarefa de existir. O cavaleiro, portanto, recordar-se-á de tudo, mas essa recordação será precisamente a fonte da sua dor; no entanto, graças à sua infinita resignação, encontra-se reconciliado com a vida. O seu amor pela princesa tornou-se, para ele, a expressão de um amor eterno, e tomou caráter religioso; transformou-se num amor cujo objeto é o seu eterno, o qual, sem dúvida, recusou o cavaleiro a favorecê-lo, mas, pelo menos, tranqüilizou-o dando-lhe a consciência eterna da legitimidade do seu amor, sob uma nova forma de eternidade que realidade alguma poderá lhe arrebatar (KIERKEGAARD, 1959, p. 77-78).

No estádio religioso o Indivíduo está acima da moralidade, não há a supremacia da moral em um plano de fé e confiança, é o apelo à subjetividade profunda, a devoção recôndita no silêncio reverente à Deus, dando o caráter íntimo da dinâmica dialética existencial. Em Abraão é visto plenamente a suspensão da moralidade e nessas condições ele supera a compreensão moral, que é incapaz de entender a atitude do pai da fé (Abraão). É um colocar-se ante a lei, ou seja, estar anterior ao universal, conferindo um status de superioridade. A decisão de Abraão supera a lei moral, pois para a moral esta decisão é incabível, louca e absurda (cf. MUNARO, 2002, p. 98). Portanto, para a moralidade, plano do estádio ético, conclui-se na afirmação: Abraão não passa de um assassino insano, além disso, é incoerente em querer sacrificar o próprio filho. A limitação do juízo ético reside em estar situada na noção do dever, em julgar uma ação a partir de um princípio exterior, isto é, uma ação que tem sua fundamentação em um princípio exterior ao Indivíduo (vem de fora para dentro). “Na concepção moral da vida, trata-se, deste modo, para o Indivíduo, de o despojar da sua interioridade, para exprimir em algo exterior” (KIERKEGAARD, 1959, p. 128). Abraão exprime uma interioridade que jamais poderá se exteriorizar, não poderá definitivamente ser mediada por uma comunicação. Aqui se encontra o segredo, ou seja, a vivência particular, situada anteriormente a qualquer universalidade ou qualquer generalidade. Por sua própria natureza o vivido foge a natureza do universal. Abraão recusa essa mediação; entre outros termos: não pode falar. Logo que falo, exprimo o geral, e se me calo, ninguém me pode compreender. Quando Abraão se exprime no geral, é-lhe necessário dizer que tal situação


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é a da dúvida religiosa, porque não dispões de expressão mais alta, vinda do geral, que esteja acima do geral que ele ultrapassou (KIERKEGAARD, 1959, p. 107).

Dessa realidade, vê-se o sofrimento do não poder ser compreendido, pois a natureza não suporta dar-se entender. E é nesse processo do sofrer em solidão por obediência à fé, ao incompreensível, que o sujeito conquista ser Indivíduo. Destarte, o processo da conquista de si mesmo é sofrido e laborioso, porque somente se é a si mesmo diante da liberdade, isto é, diante do sentimento de angústia advindo das possibilidades, pois toda decisão comporta o risco perante o nada de certo, daquela confiança que parte do absurdo em voltar toda sua vontade em um ponto específico e saltar, sem saber ao certo o que disso resulta, mas que já sabe, paradoxalmente, pela fé. Para ele a angústia é gerada pela possibilidade, que é constitutivo do homem e está relacionada com o pecado, ou seja, com a atitude de voltar-se à um dos elementos que compõem a dialética existencial e isolá-lo. Portanto, há uma paralisia do ser frente a possibilidade, pois a vida não se resume a um objetivo preciso, por isso, decidir se torna tão complexo e angustiante. Vive-se na indeterminação permanente, contudo, a descoberta da identidade está em saber que não há um centro do eu, mas um vir a ser. Só a ideia de tomar consciência do fardo do tempo, assumindo a responsabilidade de perscrutar incansavelmente todo secreto pensar, só por ela, se não se realiza a todo instante em virtude do que de mais nobre e sagrado há no homem, pode descobrir-se com horrível angústia, e se não de outra maneira ao menos pela angústia, pode suscitar-se o obscuro impulso que se oculta em toda a vida humana (KIERKEGAARD, 1959, p. 178).

A angústia, mais estritamente, é um nada de preciso, um puro sentimento de possibilidade que se refere ao mundo na interioridade do eu. E isto gera o desespero que é próprio da personalidade humana, onde é sentido na relação do eu com a possibilidade. O sentimento de angústia, sendo a determinação de um espírito sonhador, imerso em uma realidade apresentada como forma possível, é a realidade da liberdade como possibilidade antes mesmo da apresentação da possibilidade, ou seja, uma indeterminação diante do nada que é o objeto no qual a angústia se relaciona. O espírito possuindo a angústia, frente a uma existência dialética, não


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pode livrar-se de si mesmo, ademais, a angústia não pode ser subtraída, pois o espírito a produz. Além disso, há uma relação estrita entre o pecado e o angustiar-se, porque o pecado traz consigo a angústia, que é definida como angústia subjetiva. O Indivíduo, que se torna culpado por si mesmo, angustia-se por ter a consciência de seu pecado e por desejar sair deste estado, mas saber que por si só não pode libertar-se. Esse sentimento adquire o sentido de uma vertigem da liberdade, diante do abismo da possibilidade na existência. Pode se comparar a angústia com a vertigem. Cujos olhos são induzidos a olhar com uma profundidade que abre suas faces, sente vertigem. [...]. Assim, a angústia é vertigem da liberdade. Surge quando, ao querer o espírito pôr-se em síntese, a liberdade fixa a vista no abismo de sua própria possibilidade e lança mão à finitude para sustentar-se [...]. No mesmo momento muda tudo, e quando a liberdade se levanta de novo, vê que é culpada. (KIERKEGAARD, 1972, p.61-62).

No momento em que se comete o pecado, o Indivíduo se abstrai da eternidade e, por isso, vive só o momento, que é pecaminoso. A angústia aparece em uma relação dialética como a própria culpa, isto é, o temor em que a situação de pecado se repita, principalmente, pelas consequências possíveis do pecado anterior. Entretanto, não é reconhecimento da culpa que a liberdade teme, mas o fato de realmente sê-lo, que retorna como arrependimento e estabelece uma relação de possibilidade. Agora bem; quando a liberdade se persegue a si mesma com um desejo apaixonado e quer manter longe de si a culpa, de tal sorte que nem sequer aparentemente pode encontrar-se com ela, não pode menos ainda perseguir a culpa com a ambígua insistência da angústia; pois dentro da possibilidade se expressa que o evitar é um desejar (KIERKEGAARD, 1972, p.108).

O homem se torna um gênio quando é capaz de se descobrir no pecado, e se colocar em relação absoluta com o absoluto, mesmo que esta relação seja enganosa. Aqui o angustiar-se é uma vantagem, um aprendizado, por sua vez, é de forma devida, e sendo educado pela angústia também é educado para a possibilidade, conseqüentemente, prepara-se para o confrontamento com a finitude de si mesmo, ou seja, adquire o elemento da fé que. Desse modo, o ser existencial alcança a possibilidade de extirpar a angústia por meio da finitude que o habita, isto


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é, é dado sentir a leveza de realizar o eterno na temporalidade. É um emergir do fundo do abismo. Por excelência, tudo isso é vivido no silêncio, no qual o Indivíduo toma consciência de sua relação com a divindade. E no estádio religioso o processo da conquista de si mesmo perpassa o que é mais próprio do ser humano: sua finitude. Contudo, que não ser cansa de pedir para ser Indivíduo. Um Indivíduo que possa pautar suas ações por uma vivência profunda do momento presente, ultrapassando o peso do agir conforme o dever e conquistando a fé. A fé justamente aquele paradoxo segundo o qual o Indivíduo se encontra como tal acima do geral, sobre ele debruçado (não em situação inferior, pelo contrário, sendo-lhe superior) e sempre de tal maneira que, note-se, é o Indivíduo quem depois de ter estado como tal subordinado ao geral, alcança ser agora, graças ao geral, o Indivíduo, e como tal superior a este; de maneira que o Indivíduo como tal encontra-se numa relação absoluta com o absoluto (KIERKEGAARD, 1959, p. 100).

Na esfera religiosa o Indivíduo realiza aquilo que é autenticamente, por isso, toda medida racional se torna limitada para compreendê-lo. A decisão do ser existente não é pautada pela objetividade e sim pela subjetividade, porém, uma subjetividade que se compreende dialética e em meio ao devir, efetuando aquilo que é eterno na temporalidade. Esse é um movimento paradoxal e, por muito, permanece no enigmático, somente sendo compreendido se vivido originalmente e particularmente na vida do sujeito existencial. Não há nada que seja enigmático somente para os demais; há que ser também para mim mesmo. Eu me estudo a mim mesmo: quando me canso, acendo um cigarro e me ponho pensar – bem sabe Deus – que o Senhor me propôs a respeito do que quer tirar de mim (KIERKEGAARD, 1964, p. 34).

O processo de conquista da fé se depara com o enigmático, entretanto um enigmático que propõe ao sujeito superar os próprios limites da racionalidade e confiar. Saltar significa se arriscar, um arriscar-se por algo que só pode ser obtido se o Indivíduo fizer esta travessia, do contrário, permanecerá na mediocridade de pensar que é a si mesmo sem sê-lo. Constitui-se um enigma diante da limitação do entendimento perante uma realidade absurda. Só pode renunciar ao amor quem primeiro amou. Não se renuncia a algo que nunca se concretizou. Abraão só pode conquistar a fé por muito amar o filho e ter


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como exigência, para provar esse amor, a renuncia desse amor - um ato incondicional. E aí está o grande elogio a Abraão, pois soube viver a suprema angústia de decidir inteiramente pela fé, concretizada aqui, para se obter a serenidade de ter tudo por ter aberto mão de tudo, elevando o temporal vivido no presente na mais plena realização de si mesmo, em seu aspecto de eternidade. Por fim, o ser existente encontra-se neste devir dialético que perpassa as esferas existenciais. Em cada esfera o desespero é vivido de uma forma específica, dessa maneira, a compreensão dos estádios da existência humana na tarefa de vir a ser torna-se fulcral para uma análise mais profunda a respeito do que seja a vivência do desespero. A noção de desespero se encaminha para um elemento próprio do ser humano na tarefa de existir, em que o acompanha por onde ele estiver e se locomover, ou seja, o desespero é próprio do ser como síntese dialética.

3. DESESPERO: UMA PEDAGOGIA3 E UMA FORMA LINGUÍSTICA PARA TOCAR O PATHOS PRÓPRIO DA EXISTÊNCIA

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O termo Pedagogia está empregado no sentido de ser uma possibilidade de educar o sujeito existencial para a tarefa de construir a si mesmo, na auto-conquista do próprio eu, para poder tocar o


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Em todos os estádios da existência humana é sentida a presença do desespero, em que se torna elemento indissociável do próprio Indivíduo na tarefa de conquista ou não do próprio eu. Um desespero que é vivido no íntimo do humano, em sua interioridade. Torna-se complexo até mesmo falar em conceito de desespero. De certo o que se tem não é o conceito, mas um pré-conceito (anterior ao conceito), ou seja, aborda-se a própria vivência, o que é sentido no mais profundo do coração humano, não podendo ser definido objetivamente – tarefa primordial do conceito. Kierkegaard em sua descrição a respeito deste elemento constitutivo existencial segue o viés de uma linguagem indireta, como já descrito anteriormente. Busca por meio de uma visão poética aprofundar-se nas entranhas da vida de maneira a permear aquilo que objetivamente não é possível, querendo tocar a vivência em sua particularidade e originalidade, ou seja, no momento em que se realiza. O homem carrega a pesada carga de dever ser frente ao devir, de estar em conformidade nessa dialética entre termos contrários que residem em uma mesma realidade, ou seja, a pressão de ser síntese (cf. FARAGO, 2006, p. 95). A existência é uma contradição por nela habitar o paradoxo, dessa maneira, todo movimento existencial torna-se decisivo para o próprio eu. É a responsabilidade que foi dada ao humano de construir-se, de conquistar-se a cada instante, de ser diante do absurdo que é a existência. “Se cada homem é o artífice de seu destino é a partir de suas escolhas que se torna o que estava potencialmente destinado a ser.” (ALMEIDA, 2007, p.8). O que fazer se a fonte dos problemas da existência é o próprio eu? Pode-se eliminar a si mesmo? Todas as formas de eliminação do eu são falsas saídas, pois não se pode eliminar o eu, este é indissociável da vida humana. Cai-se facilmente na tentação de resolver os dilemas pelas vias mais fáceis, porém, a solução que aparentemente perece ser a mais fácil indica a incapacidade e o acovardamento que o eu possui frente à própria existência. Inversamente, o sujeito existente deve correr o risco de deparar-se com o próprio eu e fazer a travessia do deserto - lugar árido do

pathos própria da vida, ou seja, o viver autêntico de si mesmo sob a força da fé que é paixão pelo eterno residida no finito (cf. KIERKEGAARD, 1967, p. 17)


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qual não se tem um horizonte claro -, contudo, tem-se a consciência que é preciso caminhar, pôr-se em movimento para existir. A obra O Desespero Humano (traduzida também por Doença para a Morte) traz grande contribuição para uma profícua investigação a respeito dessa vivência. Nessa obra se apresenta nada mais que um diagnóstico, uma constatação a partir de uma observação que o autor realiza através das pessoas de sua sociedade e de si mesmo. Isto significa que Kierkegaard faz uma fenomenologia, no sentido de apresentação, isto é, não está fazendo uma teoria, um tratado, ou uma sistematização metódica, e sim uma constatação (amostragem) daquilo que é vivenciado na existência do Indivíduo. Qualquer universalização incorreria na rigidez conceitual. O desespero é uma categoria desviante que, intrinsecamente, foge da instrumentalização teórica e, portanto, permite tornar as nuances perceptíveis: o desespero é vivido em cada existência, situação e instante únicos. Kierkegaard, ao sentir essa realidade que o toca, percorre a noção que aponta para a percepção de uma interioridade que necessita ser respeitada, isto é, aquilo que é próprio do sujeito e que ninguém pode vivenciar em seu lugar nem mesmo ensiná-lo como fazer isso: a vida não possui uma receita como se tem para fazer um bolo. Kierkegaard é, sem dúvida, um poeta por sua sensibilidade. Porém é, antes de tudo, um homem intensamente preocupado com os problemas últimos, na existência concreta do ser humano e sua relação transcendental. A paixão que esta preocupação anima em sua obra e a forte e profunda originalidade de seu intelecto, não só hão assegurado a Kierkegaard o reconhecimento como grande pensador sem que hão aberto ademais uma via nova e fecunda na filosofia (RAMIREZ in: KIERKEGAARD, 1964, p. 11).

Por tudo isso, a filosofia kierkegaardiana visa resguardar o caráter de originalidade, ou seja, não quer ser rebaixada a um manual de como se bem viver. Cabe a cada sujeito existencial realizar o seu próprio movimento de se construir. “[...] ter um si mesmo, ser um si mesmo é a suprema, a infinita concessão da eternidade feita ao homem, mas ao mesmo tempo a sua exigência” (KIERKEGAARD in: REICHMANN, 1972, p.282). Disso tem-se clareza: a vida cobra do ser existente uma posição frente a ele mesmo, quer dizer, cobra a responsabilidade de assumir a própria existência em mãos. Se o ser existente não pode fugir de si mesmo, cabe a ele abrir-se a um novo olhar perante a existência, que incessantemente reclama o fato de ser posta de lado como se fosse elemento secundário.


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3.1. A PEDAGOGIA DO DESESPERO

O desespero, sendo a possibilidade na estrutura do eu, gera, no processo dialético do ser existencial, certas tensões que são vivenciadas na interioridade recôndita do Indivíduo. Por isso, o desespero adquire importância, pois a vivência individual marcada por este sentimento pode abrir o sujeito à consciência do ser autêntico, que é afirmado na máxima kierkegaardiana. Na realidade, existe o que se pode afirmar como uma pedagogia do desespero, melhor dizendo, o desespero se bem vivido educa a existência para tocar algo mais profundo. “Mantê-las-ei de pé graças ao poder da dialética e, brandindo sobre elas a disciplina do desespero, perservá-las-ei da imobilidade, descobrir isto e aquilo” (KIERKEGAARD, 1959, p. 156). A categoria do desespero possui a força de colocar o Indivíduo em movimento, visto que a inquietação interior se torna constante e que aponta para uma inconformidade diante de si mesmo. O desespero como próprio do ser humano é possibilidade, é, então, responsabilidade do sujeito viver o desespero de modo tal a se direcionar para uma vivência em que o eu decida por ser si mesmo. Pois, “tudo depende da maneira de desesperar-se” (KIRKEGAARD, 1967, p. 17), isto é, o olhar do qual é lançado sobre essa realidade. No estádio estético, o desespero do qual se perece reside na noção do desesperar-se que permanece preso ao temporal, em que busca o prazer e permanece preso ao finito, assim, desespera-se por não elevá-lo à categoria de infinito, cuja finalidade é realizar como ser em síntese. No entanto, pode ser diferente: Para o estádio estético há sempre aberta, como havia para Kierkegaard, uma porta de grandeza e salvação: o desespero em sua forma mais intensa e desgarrada, como um ato de fé em que o homem se contempla ante sua consciência, sabendo-se seguidor de um caminho eterno em que o Indivíduo alcança, dramaticamente, sua vitória sobre o mundo e sobre o tempo (KIERKEGAARD, 1967, p. 17).

No desesperar não reside plenamente a negatividade, outrora, pode conter a virtude. Se o Indivíduo desespera-se de um modo puramente finito e não alcança uma ruptura para saltar além dos próprios limites, está condenado a permanecer na


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desesperação. Mas, contrariamente, se o Indivíduo desespera-se elevando o desespero até as profundezas de modo absoluto, reunindo todas as forças da alma, então, desperta no sujeito a consciência de um valor eterno presente no finito, rompendo com uma visão limitada da própria existência (cf. KIERKEGAARD, 1967, p. 18). Do mesmo, decorre a própria compreensão do estádio ético, em que o eu pode romper com o desespero-fraqueza e o desespero-desafio assim como as outras formas de desesperação do qual o Indivíduo imerso na esfera ética pode vivenciar. Aquele que desespera por uma razão particular, corre o risco de que seu desespero não seja nem verdadeiro nem profundo, que seja uma decepção, um pesar devido a essa razão particular. Não é assim que deves desesperar, pois não te tiraram nada de particular, ainda possuis tudo. Se o desesperado se equivoca, se acredita que sua desgraça depende de múltiplas causas, estranhas a ele mesmo, seu desespero não é verdadeiro e o levará a odiar o mundo ao invés de amá-lo. Se é certo que o mundo te importuna porque parece que quer ser para ti diferente do quer ser, também é verdade que, quando alcançares o desespero, amá-lo-ás por ser o que é. [...]. Desespera, pois, com toda a tua alma, com todo o teu espírito (KIERKEGAARD in: REICHMANN, 1972, p. 127).

Diante dessa compreensão, Kierkegaard expõe a situação do homem em estado de desespero, em que perante a incompreensão desta vivência existencial o Indivíduo imerge-se no estado de desespero, caracterizado como doença até a morte. Este sentimento é fruto da debilidade humana em que o homem por si só, simplesmente, não pode libertar-se. O homem, muitas vezes, em sua existência se ilude por viver modelos definidos da sociedade e pensa ser uma pessoa livre do desespero, ou, então, vendo-se desesperada e querendo livrar-se, percebe-se pressionada pela existência humana a permanecer em seu estado de desespero. No homem voltado para si mesmo, pura e simplesmente, constitui-se a opção pela permanência no estado de desespero. O desespero, contudo, é, pois, um recurso e um ato em que o homem se dispõe a si mesmo, cuja capacidade de ultrapassar o mediato e o instantâneo eleva-o à categoria de instante, ou seja, aquilo que realmente importa. Não se constitui com um consolo espiritual ou qualquer coisa parecida, mas a conquista de ser a si mesmo, o ser Indivíduo perante o geral. A existência está imersa na noção de um sujeito existencial consciente que pode escolher e agir sobre sua vida. Esta ideia traz para o Indivíduo a responsabilidade por sua existência. Além do mais, Kierkegaard concebe o


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desespero como sendo comum na existência humana e um estado inexorável a esta existência: No desespero, o morrer continuamente se transforma em viver. Quem desespera não pode morrer; ‘assim como um punhal não serve para matar pensamento’, assim também o desespero, verme imortal, fogo inextinguível, não devora a eternidade o eu, que é seu próprio sustentáculo (KIEKEGAARD, 1979, p. 44).

O desespero se apresenta como o possível na estrutura do eu. Está ligado à natureza do eu e presente na possibilidade de assumir ou não o eu mesmo. De um lado, o desejo de desfazer-se de si, assumindo a inverdade, e de outro, arriscar-se a assumir um eu que não é verdadeiro, por ser auto-suficiente e completo. O desespero nasce da deficiência da liberdade e da necessidade, pois o eu não pode desfazer-se da sua relação consigo mesmo, esta relação dialética que toma a forma de síntese. Também nasce do não poder ser, ou seja, da impotência de assumir-se a si próprio (cf. FARAGO, 2006, p. 97). Para Kierkegaard, o desespero primeiramente é a doença e não o remédio. “[...]: quero acentuar por uma vez qual a acepção que tem a palavra ‘desespero’ em todas as páginas que se seguem; como tudo indica, ela é doença e não remédio” (KIERKEGAARD, 1979, p. 23). Contudo, só se percebe necessitado de cura quando se vê doente, ou seja, somente através da inquietação que o eu se porá a buscar o que edifica. Essa categoria somente adquire um aspecto edificante quando levada a sério, assim para o cristão o desespero é a pior morte, pois a morte física conduz a vida eterna (é saída), isto é, o cristão é capaz de viver realmente o desespero. Se ignorada, não produz a intensidade que se espera. A categoria do desespero, por sua vez, pode ser tomada em três acepções. Primeiramente, entendido peculiarmente como doença na qual a saída é a morte, para a morte, que nos acompanha até o fim da existência humana e a morte é a última saída. Em outro sentido, é entendido como doença mortal, uma desesperança frente ao desespero, “[...], estar doente de morte é não poder morrer, mas aqui a vida não deixa esperança e o desespero é a ausência da última esperança, a ausência da morte” (KIERKEGAARD in: REICHMANN, 1972, p. 280). Em uma última acepção, estabelece-se a compreensão de doença mortal, momento em que tudo terminou um eternamente morrer sem poder morrer, isto é, “[...] morrer a morte significa viver a própria morte e vivê-la um só instante é vivê-la eternamente”


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(KIERKEGAARD in: REICHMANN, 1972, p. 280), aqui o fim do desespero seria o desejo do fim da própria existência, o que é impossível. O homem entendido como uma síntese de um movimento dialético existencial entre o real e o virtual (virtual entendido como não real), entre corpo e alma, é orientado para uma relação consigo mesmo, com a própria interioridade, no qual “[...] o eu não é relação em si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria, o conhecimento que ela tem de si própria depois de estabelecida” (KIERKEGAARD, 1979, p. 33). E também na relação consigo próprio se relacione com outrem, mas isto gera o desespero, pois o homem não pode alcançar a seu próprio ser por suas próprias forças. Nessa dialética entre o real e o virtual há uma discordância e, por isso, o Indivíduo encontra-se em uma das extremidades. De um lado, situado na superioridade o eu desespera-se, pois o virtual não é a realidade, mas somente possibilidade; e do outro, situado na limitação, no que é, o eu desespera-se, pois não suporta defrontar-se com a possibilidade do real, que reside no próprio real. O desespero é a discordância interna duma síntese cuja relação diz respeito a si própria. Mas a síntese não é a discordância, é apenas a sua possibilidade, ou então, implica-a. [...]. O desespero está portanto em nós; mas se não fôssemos uma síntese não poderíamos desesperar, e tãopouco o poderíamos se esta síntese não tivesse recebido de Deus, ao nascer, a sua firmeza (KIERKEGAARD, 1979, p. 38-39).

Mas o desespero nasce da relação que a síntese estabelece consigo própria. Entendendo que o homem é definido em um relacionamento consigo próprio, a duração da discordância nesta relação não depende do desespero, mas sim da remontagem do relacionamento consigo próprio. O desespero é consequência da relação orientada sobre si própria, que se dá na mesma relação do eu. A doença mortal - o desespero – é uma doença pela qual se morre, um mal que termina ao morrer, porém, não se pode morrer, pois a própria existência do eu nutre esta doença, ademais, o desespero advém da possibilidade que por sua vez é a caracterização da existência do eu. Desse modo, há uma impotência do eu em destruir este sentimento, por sua vez, o homem que se desespera desespera-se de si e quer libertar-se, no entanto, para sua frustração, isto é impossível, “[...], esta gangrena dolorosa, cujo movimento volta-se constantemente para o interior, numa auto-destruição

sempre

mais

profunda

e

impotente”

(KIERKEGAARD

in:


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REICHMANN, 1972, p. 281), esbarra-se no fracasso do auto-aniquilamento. O desesperado quer ser ele mesmo sem o outro, o autor do seu eu: aí encontra-se a intrínseca discordância existencial. O desespero possui o elemento da universalidade, pois Kierkegaard compreende que não há um só homem que nunca experimentou ou que esteja isento do desespero, raro mesmo é não sê-lo. Esta fundamentação adquire eloqüência na compreensão em que o homem está destinado a ser um espírito, e no espírito, que é fruto de uma síntese, reside a angústia da possibilidade ou diante de si mesmo, desta maneira, não há ser humano “[...] cujo interior não habite uma inquietação, uma desarmonia, uma angústia diante de algo desconhecido ou de algo que não se atreve a conhecer, [...]” (KIERKEGAARD in: REICHMANN, 1972, p. 282). Na verdade, a maioria não está consciente do desespero. A inconsciência é a demonstração de uma das formas de desespero: inconsciência quanto ao seu destino espiritual. E quando aparece revela o caráter de pré-existência, em que tendo ele o caráter dialético, “seu aparecimento mostra sua pré-existência” (KIERKEGAARD in: REICHMANN, 1972, p. 284). Existe uma dialética dos sintomas com o próprio desespero, sendo este categoria do espírito suspensa na eternidade, uma dialética entre o temporal e o eterno. Mas só se perde aquele ao qual enganam tanto as alegrias ou as penas de vida, de maneira que nunca chega como um ganho decisivo para a eternidade, à consciência de ser um espírito, um si mesmo, ou dito de outra maneira, nunca chegará a observar ou a experimentar a fundo a existência de um Deus nem que “ele”, seu si mesmo, existe para este Deus. Porém, esta consciência, esta aquisição de eternidade, não se obtém senão além do desespero (KIERKEGAARD in: REICHMANN, 1972, p. 285-286).

Além do estágio de inconsciência, a filosofia kierkegaardiana aponta as formas de desespero, mais especificamente, personificações de desespero. O eu que depara-se com a liberdade, o eu que é liberdade, está inserido em uma dialética do possível e do necessário, e, nesse sentido, o eu só é mais quanto mais consciente for. Então, o desespero, nesse movimento dialético de síntese do eu, é considerado sob dois ângulos. Primeiramente, nas categorias de síntese entre finito e infinito, e, por conseguinte, o desespero visto sobre as categorias da possibilidade e da necessidade. Nas categorias sob a síntese de finito e infinito, o Indivíduo não pode fazê-la sem contar com a visão da responsabilidade dada a ele de assumir a própria


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existência em mãos. De um lado, vemos a vida humana que se julga infinita, em que quer ser ilimitada, na pretensão de ser ilimitada afasta-se do eu consciente de si próprio, isto é, quer ser infinito sem ser a si próprio, porém, defronta-se com a limitação do finito, o desespero como o infinito informe, “[...], neste caso, quando o eu for devorado pelo imaginário, apenas conduz o homem a uma embriaguez no vácuo” (KIERKEGAARD, 1979, p. 65). E do outro, o apego às diferenças, prendendo-se ao finito, pois o Indivíduo não se arrisca na possibilidade de se perder, mas, tão somente, vive reproduzindo a vontade da sociedade, uma imitação servil da vontade alheia ao próprio sujeito. Assim é o desespero do infinito. Um homem pode, com ele, levar perfeitamente uma vida temporal, humana em aparência, tendo os louvores de outros, as honras, a estima e todos os bens terrestres. Porque o século, como é costume dizer, não se compõe afinal de pessoas desta espécie, [...]. Não, porque espiritualmente não tiveram um eu, um eu pelo qual tudo arriscarem, porque estão absolutamente sem eu perante Deus... por muito egoístas que de resto sejam (KIERKEGAARD, 1979, p.69).

Nas categorias no prisma da necessidade e possibilidade, o desespero é visto sobre as categorias da possibilidade e da necessidade. No desespero do possível ou a carência de necessidade, esquecemos da necessidade. A necessidade age no possível a fim de retê-la, sendo assim, o Indivíduo se vê imobilizado, pois não passa do possível ao real, vive somente nas possibilidades e perde o rumo da realidade. “Se o possível repele a necessidade o eu se precipita e perde no possível, [...]” (KIERKEGAARD, 1979, p. 70). A realidade é unida ao possível e não se dá conta da determinação do eu dado na necessidade. No desespero da necessidade, perde-se o Deus-possibilidade e não se vê mais o horizonte do possível, por isso, tudo se torna limitado pelo provável recaindo na fatalidade e no determinismo. “Carecer do impossível significa que tudo em nós se tornou necessidade e banalidade” (KIERKEGAARD, 1979, p. 76). O desespero se torna mortal na medida em que o sujeito se vê angustiado por não poder ser a si próprio perante a própria existência e, igualmente, em não poder morrer, ou seja, não poder fugir desta condição e condenado a existir no sofrimento. O desesperado, de um lado, não quer ser a si mesmo por perceber sua limitação e, por isso, não ousa arriscar-se - isso exige comprometimento. De outro lado, o desesperado quer ser ele próprio, entretanto, esbarra-se na impossibilidade de ser a si próprio, visto que não atingiu a compreensão de alcançar o infinito pelo finito.


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Contrariamente, Kierkegaard aponta para um outro horizonte frente a essas limitações e afirma: A solução depende apenas duma coisa: o combatente quer obter o possível: quer ele crer? Entretanto, falando só humanamente, ele bem sabe que a sua perda aqui é certa. E é esse o movimento dialético da fé. [...]. O crente vê e apercebe-se da sua perda (no que sofreu e no que ousou) como homem, mas crê. É o que o livra de perecer (KIERKEGAARD, 1979, p. 75).

Na forma inconsciente de ter um eu, que é o verdadeiro desespero, o sujeito não percebe que o eu é o resultado da relação do corpo com a alma (interioridadeexterioridade), de eternidade e necessidade. Contundentemente, o eu ignora o eterno e quer viver intensamente o instante, dessa forma, vive um vazio espiritual e quando todas as ilusões são suspensas surge o desespero. Na realidade, o desespero

sempre

esteve

presente,

mas

agora

emerge

na

consciência.

Compreendendo o desespero como aquilo que se ignora ou a ignorância desesperada por se ter um eu eterno, o eu afasta-se da verdade e da salvação, por conseguinte, ao não tomar consciência do eu como espírito ou a consciência de si próprio em Deus desespera-se. “[...], porque a ignorância da sua própria presença é o caráter específico do desespero” (KIERKEGAARD, 1979, p. 86). A respeito da consciência há uma consideração muito importante, em que não parte de uma intencionalidade nem racionalidade, mas em um saber viver, captado na própria vivência. A ignorância não passa da noção do estar indiferente quanto à própria condição de sujeito, quanto à própria realidade existencial e em relação à própria compreensão do eu enquanto síntese em meio ao devir. Em Kierkegaard o desespero possui uma relação íntima com o pecado, entendido aqui no desespero elevado a si próprio, isto é, diante da consciência do desespero o sujeito desesperase covardemente por pensar na impossibilidade do enfrentamento da própria condição. A compreensão da vivência da categoria do desespero brota da própria interioridade de Kierkegaard e é vista no aforismo que sucede. Ei-lo aqui: “A vida se transformou para mim em uma bebida amarga. Sem embargo, tenho que bebê-la gota a gota, lentamente, cantando” (KIERKEGAARD, 1964, p. 33). Assim como, vêse outras compreensões em relação à existência e à angústia. Minha visão da vida carece totalmente de sentido. Suponho que um espírito mal me pôs no nariz um par de óculos, cuja uma das lentes amplia as


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imagens em uma grande escala, ao passo que a outra as diminui na mesma escala (KIERKEGAARD, 1964, p. 30-31). Maravilhoso! Como o equívoco angustia, para perder e conservar, o homem se agarra a esta vida! As vezes se foi pensado dar um passo decisivo, em cuja comparação dos passos anteriores só fossem uma puerilidade: iniciar a viajem do grande descobrimento. Como uma nave que ao sair sobrevoando é cumprimentada com um canhonaço, assim me saúda eu a mim mesmo. Sem embargo, me falta valor? Se caísse uma pedra e me matasse, seria uma solução (KIERKEGAARD, 1964, p. 54).

Essas noções aplicadas acima descrevem a dificuldade de existir em meio a uma existência constituída paradoxal, que brota dos termos contrapostos em uma mesma realidade e convidam o sujeito à dialética. É possível perceber que o homem só pode conquistar-se a si próprio se iniciar a tarefa de saltar e, da mesma maneira, deve pôr-se em movimento e descobrir quão maravilhoso e, inversamente, quão arriscado se torna esta viagem: a viagem de si próprio. O Indivíduo peca quando perante Deus não quer assumir a si próprio. O pecar é um afastamento do ser. Deus é caracterizado pela ideia do eterno no sujeito: elemento imprescindível na auto-compreensão. A vida caracterizada como pecado, o sonhar em vez de ser, é a potencialização do desespero, pois a consciência se encontra perante Deus. Tão logo, o eu quer ser a si próprio perante Deus, no entanto, não suporta o sofrimento desse processo, advindo da incompreensão do sentido profundo da fé e, consequentemente, não consegue livrar-se do nada espiritual. Essa ideia evoca o desespero elevado, isto é, é o desespero que desespera do seu próprio desespero. O eu perante Deus toma uma nova qualificação: em face de Deus, humano à medida de Deus. O pecado diante de Deus é elevado em potência, não um Deus externo a nós, mas a própria consciência frente ao transcendente: “aqui o pecado é o consentimento dado pelo espírito a esse desregramento, uma consciência de estar perante Deus” (KIERKEGAARD, 1849, p.35). O desespero é condensado infinitamente na consciência do eu, este eu infinito diante da consciência do que se é eterno, que quer ou não quer ser a si próprio. A definição de pecado implica a noção de escândalo, pois frente ao eterno o sujeito não acredita na remissão, acha absurdo, paradoxal. Por sua vez, o Indivíduo não quer crer e por falta de humildade escandaliza-se. É uma admiração invejosa que volta contra o próprio eu e não consegue aceitar a oportunidade que a existência lhe dá: quer chegar por si próprio livrar-se do pecado, ou seja, possui um orgulho demasiado forte.


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Quem quer não ousa crer, por falta de humilde coragem, escandaliza-se. Mas se se escandaliza, é porque a coisa é demasiada elevada para ele, porque não lhe pode entrar na cabeça, porque não pode neste caso falar com toda a franqueza, e eis porque lhe é necessário pô-la de parte, considerá-la nada, uma loucura, uma ingenuidade, de tal modo que ele se sente sufocado (KIERKEGAARD, 1979, p. 147).

Segundo Kierkegaard, o pecado possui uma relação com uma noção socrática, onde Sócrates acerta na definição de pecar é ignorar, ignorância de si próprio, contudo Sócrates esquece que esta definição baseia-se na razão e elimina a vontade. Deve-se, portanto, passar do conhecimento para a vontade e não ficar só na compreensão, pois a fé cristã está no âmbito da vontade. O pecado não é uma negação, mas uma posição. A ideia de pecado deve ser entendida como uma posição, sendo um ato no qual o Indivíduo tem a responsabilidade. A definição de pecado como posição trás para o sujeito a responsabilidade e abre à possibilidade do paradoxo, da contradição e do escândalo na doutrina da redenção. A maior parte das pessoas está distante do bem e da fé. Sendo considerado o pecado uma forma de desespero, o pecado não existe para quem é a-espiritual. Desenvolvendo a ideia de pecado, o pecar novamente, o permanecer no pecado é pecar, e abre a porta para outros pecados. Isso retrata que se o Indivíduo permanecer no desespero ele tende a ficar aí até definhar todas as suas forças de criação. “Desesperar do seu pecado expressa que o pecador se encerrou em sua própria consequência ou quer manter-se nela” (KIERKEGAARD in: REICHMANN, 1972, p. 291). O pecado ganha força na consciência e provoca uma continuidade interior do mal, no qual o Indivíduo por estar passivo aos outros pecados acrescenta um novo pecado: o de permanecer neste estado. O pecado é uma ordem da realidade que se organiza por si própria; o fato de permanecer no pecado é um pecado, em que cria estruturas na consciência a fim de justificar e permitir, colocando o eu novamente a pecar. É necessário que se tenha consciência do espírito e creia. Permanecer no pecado é pior que cada pecado isolado, é o pecado por excelência. E é neste sentido, com efeito, que permanecer no pecado é continuar o pecado. [...] o pecado se engendra a si próprio como consequência, e que ainda mais força nesta continuidade interior do mal. Mas jamais se pode chegar a esta conclusão considerando apenas os pecados isolados (KIERKEGAARD, 1979, p. 182).


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Ao desesperar do pecado o Indivíduo expressa a fixação em sua própria consciência e, conseqüentemente, quer escutar somente sua voz. Prende-se a um dos extremos dos termos que o constitui, permanecendo no puramente finito e limitado. Está, por conseguinte, condenado a cair sempre, e, quando não resta mais nada, fecha-se em si mesmo e nega-se à graça: perde-se a si mesmo. É, por seu espírito, incontrito, não consegue se perdoar, quer ser melhor do que é por suas forças, porém quando cai entristece-se orgulhosamente. É desespero constituído como egoísmo, em que o eu volta-se contra si mesmo e não oportuniza o instante – momento que importa. O que tange esta categoria baseia-se em uma descrença da existência humana, do próprio eu que possui uma existência vaga, ou seja, o homem como ser de grandes mentiras, falsidades e, por isso, um sujeito que mediante a vivência do desespero busca subterfúgios. O homem pode até enganar-se e mentir para si próprio, porém haverá um momento em que sua consciência se verá em desespero, que brota de um sentimento inexplicável. O homem na tarefa de ser humano, que é concordância da síntese entre termos opostos em seu próprio ser, possui uma grande tarefa, lhe confiada indeferivelmente, em se construir, em se edificar, através de seus atos deferidos pelas escolhas, em um constante projetar-se. “O homem se cura do desespero quando seu eu, que se relaciona consigo mesmo, quer ser ele mesmo e se funda na potência que o pôs” (FARAGO, 2006, p. 98). A perfeição humana constitui-se, enfaticamente, no homem ser a si próprio, isto é, em viver suas imperfeições, porém, o homem só pode ser ele próprio quando é capaz de sair da sua mediocridade e se arriscar de modo absurdo. Isto significa que a libertação do desespero humano se dá pelo mergulho de si mesmo. Um mergulho que abre mão de si mesmo absolutamente para recuperá-lo infinitamente na finitude de si mesmo. É a capacidade de encontrar no ato mais humano a presença do elemento do absoluto. O ser existencial deve abrir mão de si, daquilo que acha que lhe torna sujeito, e lançar-se no incompreensível. Pois, o que se tem na realidade não é o ser a si mesmo, mas ideias de um eu que, por sua vez, vem de fora. “O cavaleiro da fé já não encontra outro apoio senão em si próprio; sofre por não fazer-se compreender, [...]” (KIERKEGAARD, 1959, p. 141).


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Na existência o eu pode vivenciar várias possibilidades de desespero: consciente ou inconsciente, temporal ou eterno, fraqueza ou desafio - todos modos de manifestação do desespero. Imprecatoriamente, a existência humana em relação às coisas ou consigo mesma caminha com a presença do desespero. O desespero, sendo para Kierkegaard o primeiro elemento da fé, abre para a possibilidade da fé, que é a conquista de si mesmo. Conquanto, depois que se conquista a fé o desespero não pode subsistir concomitantemente: o desespero dá lugar a fé. A fé é o elemento que dissipa as inconformidades na dialética existencial, fazendo o Indivíduo lançar-se incondicionalmente no absurdo. E, portanto, só há um modo de libertar-se: [...], formulou-se o estado de um si mesmo no qual o desespero está inteiramente ausente: em sua relação consigo mesmo, querendo ser ele mesmo, o si mesmo submerge através de sua própria transparência no poder que o criou. Por sua vez, esta fórmula, como tantas vezes se lembrou, é a definição da fé (KIERKEGAARD, 1979, p. 224).

A faculdade de desesperar-se proporciona ao homem o livramento, que não prescinde da fé, desse modo, o desespero pode levar à fé através de sua vivência na mais profunda intensidade, em que aponta para a inconsciência do sujeito em relação a si mesmo. O auto-conhecimento é limitado pelo desconhecido, pois o paradoxo não pode ser compreendido racionalmente, somente vivido, por isso, o elemento da fé. O elemento da fé desenvolve a certeza na incerteza, o infinito no finito, o eterno no temporal – conquistado pela liberdade do ser humano. A compreensão do que é próprio da existência se dá através no instante - que é paradoxo -, constituído em um processo dialético e dinâmico, mas que resguarda o caráter de eternidade. Este instante decisivo do voltar-se do espaço interior rumo à transcendência inaugura a possibilidade de relacionar-se ao mesmo tempo absolutamente com o absoluto e relativamente com os fins relativos (FARAGO, 2006, p. 101).

O sentimento de Kierkegaard em relação a esta vivência leva-o a se preocupar em apontar para um horizonte em meio ao desfacelamento da compreensão do ser enquanto Indivíduo, contrapondo a uma existência que se prende falsamente em si mesmo e dilui-se no geral. Abraão foi capaz de vivenciar o desespero e de decidir acima de tudo e ser Indivíduo, isto é, colocar-se acima do


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geral, mesmo que sofresse por não ser compreendido, todavia, aí reside a relação absoluta com o absoluto. O Indivíduo deve estar para além daquilo que se espera dele, deve fazer o movimento de subjetividade que passa pelo paradoxo de ser a si mesmo. Kierkegaard deseja proporcionar um processo de libertação da total inconsciência do eu diante de si mesmo para imergir uma nova compreensão frente ao próprio eu: “A existência quando se tem consciência dela é o existir com paixão, um entusiasta por seu pensamento” (KIERKEGAARD in: REICHMANN, 1972, p.226).

3.2. DESESPERO: LINGUAGEM POÉTICA PARA TOCAR O PATHOS DA VIDA

O que se tem aqui é o simples limite da compreensão humana. Será que o homem em sua racionalidade pode compreender tudo? Seria engano responder afirmativamente essa indagação, visto que o mundo mais próximo dele – o seu mundo (interioridade) – permanece na presença do desconhecido, até mesmo, pode-se dizer que aquilo que o sujeito toca constantemente muitas vezes é indiferente a ele. Mas, então, como é possível falar deste mistério se ele adquire o caráter do indizível? Não resta outra estratégia: uma linguagem indireta que adquira o aspecto de poética, mediante a compreensão da limitação da linguagem frente a vivência em sua mais profunda originalidade e da destreza em não deixar-se apreender na totalidade. Não é inocentemente que Kierkegaard conclui seus estudos na universidade com um estudo aprofundado sobre a ironia, tema tão caro a ele, pois a ironia tem a capacidade de conduzir indiretamente no diálogo o outro a perceber as incoerências de seu próprio discurso, como bem sabia Sócrates. A linguagem do desespero é similar a este recurso, é dada por uma linguagem poética em que busca questionar o sujeito existencial a fim de analisar sua própria vivência e de modo perspicaz tocar o pathos próprio da vida. Contudo, a construção kierkegaardiana pretende estar na originalidade, não perdendo a riqueza da vivência do Indivíduo: cabe a cada um, impreterivelmente, vivenciar de modo único, por isso, o uso da linguagem poética. A linguagem poética tem a capacidade, paradoxalmente, de dizer tudo e não dizer nada ao mesmo tempo. É uma linguagem que contorna os discursos sistematizantes e objetivos - estes discursos tendem a generalizar e simplificar a


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abrangência da categoria. O desespero como categoria, mais que uma ideia, é uma vivência: só pode ser compreendida quando vivida plenamente, na realidade, é uma compreensão que não parte da razão, mas por sua suspensão. Não deve haver aqui intencionalidade, tão somente a existência que se faz ali: no momento em que vive o desespero. O desespero em seu âmago é convite a contemplar aquilo que é próprio da vida, no viver a humanidade em sua completude, sem medo de sentir aquilo que a existência lhe traz até seu coração, em outras palavras, é estar diante de um espelho e voltar-se para a própria imagem audaciosamente. Vive em despreocupação folgazã. No entanto paga os favores do tempo, cada instante de sua vida pelo preço mais elevado – porque a mínima coisa é realizada em função do absurdo. E era caso para se enfurecer, pelo menos de ciúme, porque este homem efetuou e completou, a todo o momento, o movimento do infinito. Converte em resignação infinita a profunda melancolia da vida; conhece a felicidade do infinito; experimentou a dor da total renúncia àquilo que mais ama no mundo – e, no entanto, saboreia o finito com tão pleno prazer como se nada tivesse conhecido de melhor, [...] (KIERKEGAARD, 1959, p. 72).

O desespero é um indicativo que pode suscitar o encorajamento do Indivíduo frente à própria vida. Porém, a categoria do desespero, enquanto apresentada por Kierkegaard, pretende tocar sorrateiramente na consciência do Indivíduo a fim de despertá-lo, não como uma obrigação, mas como um meio de usar as vivências próprias do sujeito em vista de conquistar a si mesmo. Por isso, essa linguagem resguarda a opção de tomar consciência ou não, por sua vez, não depende do outro, mas do próprio eu para tocar o pathos da vida. Ao Indivíduo deparar-se com os problemas existenciais, nesse movimento dialético, conclui-se que algo lhe escapa por mais que queira adentrar. A existência em seu caráter paradoxal torna toda definição falha, limitada. A compreensão foge, estando para além dos limites do intelecto humano, isso conduz à percepção de que nesta esfera não há o que racionalizar, não há o que falar. Nesse sentido, fica elucidado o aspecto dos limites da razão e dos limites da linguagem. Todavia, nada impede da arduosa empreitada de tentar expressar essa realidade, pelo menos para que este problema não fique invisível: sabe-se que ele existe. O problema está aí, como resolvê-lo se a razão e a linguagem são limitadas? Pode-se até tentar, mas é ineficaz, nem Kierkegaard quis. Cabe ao sujeito encontrar essa resposta por meio de sua interioridade, fazendo um percurso original e próprio,


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sem modelos nem pistas. Dessa maneira, a reflexão é um modo limitado para compreender a realidade por ser mediato, contudo, não é um meio proibido. “Não conheci a imediatividade, portanto segundo um ponto de vista estritamente humano não vivi [...] sou reflexão do começo ao fim” (KIERKEGAARD, 1959, s/p). A reflexão não é capaz de tocar o coração da verdade, pois passa pelo crivo da razão, todavia visa compreender o paradoxo da existência em cumprir o movimento do absoluto sem compreender (cf. KIERKEGAARD, 1959, s/p). O viver religioso, ponto indicado pela vivência do desespero, assim com toda vivência humana, passa pela dificuldade da transmissão. Ninguém sabe o que se passa no coração de Abraão além dele: Se afronta a responsabilidade de se calar, pode-se neste caso, agir nobremente, mas acrescentará então à dor existente um ligeiro matiz de ansiedade, porque o geral atormentá-lo-á constantemente e dir-lhe-á: ‘deverias ter falado; onde encontras a certeza de que a tua resolução não foi inspirada por oculto orgulho?’ (KIERKEGAARD, 1959, p. 196).

Há algo que foge à transmissão. Por mais que se diga e explique não pode ser plenamente entendido, é demasiado acima do próprio ato de comunicar. Também, aplica-se essa compreensão à categoria do desespero: não pode ser tocado senão na própria vivência. A descrição resume-se e apresentar os sintomas, isto é, aquilo que é visível e palpável: a menor parte. Parece que não resta nada mais do que o silêncio. Ademais, a existência renega sua transmissão, recusa qualquer forma de objetivação, por ser propriamente singularidade, ter a natureza qualitativamente singular. A compreensão por terceiros restringe-se a ser possibilidade, uma comunicação que só pode ser alcançada com mais verossimilhança se o leitor a tiver vivido, no entanto, a exclusividade da vivência do sujeito permanece incomunicável (cf. FARAGO, 2006, p. 58). Os pseudônimos utilizados por Kierkegaard visam manter nitidamente a individualização. As obras kierkegaardianas estão sob a égide do segredo, na intenção de lançar os questionamentos deixando-os em aberto, por não querer esgotá-los. Procurou, portanto, difundir essa luminosidade capaz de iluminar a existência sem cegar sua profundidade, revelar sua lógica secreta sem desnudá-la, sabendo por instinto que a salvaguarda do lar da intimidade constitui para alma uma reserva inesgotável, e do padecer que sua obra reabilita. Seu gênio consistiu em servir-se dos ‘miseráveis segredos’


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fundadores de sua tribo como trampolim de uma ontologia do segredo, desta face oculta do ser que condena o homem ao claro-escuro que se denomina a fé (FARAGO, 2006, p. 59).

O objetivo, pelo que se pretende ser, é oferecer a conquista de si mesmo como ser autêntico. E este ser autêntico é convidado a viver em sua interioridade o secreto amor ao infinito. Um amor que não se sabe de onde vem, mas que convida a vida secreta no intimo do próprio eu. “Existe um lugar, no mais profundo do homem de onde se irradia a vida do amor, pois ‘é do coração do homem que provém a vida’” (KIERKEGAARD in: REICHMANN, 1972, p. 314). O amor brota desta interioridade que emana para toda sua vivência, em que reside no mais íntimo do próprio eu e esconde-se nesse mistério que é a própria vida. O amor convida o Indivíduo permanecer no mistério: sua origem encontra-se no recôndito, na vida oculta de seu próprio interior. A vida que desenrola na intimidade do Indivíduo, sendo ela secreta, é insondável. A tentativa de sondá-la significa destruí-la, o sujeito deve alegrar-se no deparar-se com o amor em si, vivido na existência – nada mais. A propriedade do amor proíbe que o ser existencial o penetre em toda sua profundidade: não há compreensão humana que possa abrangê-la. O amor está inserido no devir, por mais que pareça estático, isto é, mesmo que aparentemente seja compreensível é uma categoria desviante. O amor é pathos. Assim a vida do amor é oculta, mas sua vida oculta em si mesma é movimento e encerra a eternidade. Assim como o lago imóvel, por mais tranqüilo que seja, por certo é água corrente que sobe da fonte borbulhante escondida em suas entranhas, assim o amor, ainda que imóvel em refúgio, é eterno movimento (KIERKEGAARD in: REICHMANN, 1972, p. 315).

As expressões de linguagem que retratam o amor são equivocadas, são tão estéreis que nada dizem a respeito do que isso significa realmente. Não se pode deter pelas palavras a plenitude dessa vivência, tão menos modos de construções lingüísticas. “O sinal último, o sinal mais embriagador, o sinal incontestavelmente convincente do amor é, pois, o próprio amor, tal como é conhecido e reconhecido pelo amor a um outro” (KIERKEGAARD in: REICHMANN, 1972, p. 319) A vivência existencial, de modo geral, é revestida do secreto, não porque quer esconder as maravilhas do ser a si mesmo, mas por desejar provocar a curiosidade do espectador para ser mais que espectador: ser sujeito de si mesmo. O eu frente a


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este segredo, do qual paira a existência, deve sair a procurar, não para desvendá-lo, e sim para ouvidá-lo no sussurro da interioridade. Outrora, a própria natureza da existência não quer fazer-se compreendida, tão somente sentida, vivenciada e palpada em todas as suas categorias e possibilidades, a fim de decidir ser a si mesmo absolutamente. O pacto entre o cavaleiro da fé acontece no segredo da intimidade. Ninguém pode saber o que essa mensagem significa totalmente. Pasma-se o ser frente a grandiosa complexidade e incompreensibilidade dada no paradoxo. A vivência plena entre o eu e Deus é indizível: perante isso o eu silencia. Durante todo o tempo que considerei meu dever religioso observar o mais estrito silêncio, esforcei-me por guardá-lo por todos os meios. Não hesitei em contrariar o meu esforço no sentido finito, numa atitude conforme o silêncio, à mistificação e a duplicidade. A minha conduta não foi, a este respeito, compreendida; classificaram-na de orgulho, arrogância. Deus sabe de que mais. Vendo no silêncio o meu dever religioso, não fiz a menor tentativa de desfazer este mal-entendido. E vi no silêncio o meu dever porque a minha obra não estava no ponto de acabamento em que sua compreensão pode ser outra coisa diversa de uma falta de compreensão (KIERKEGAARD, 1986, p. 21-22).

Enfim, Kierkegaard bem compreendeu a proposta que plasmou, tanto, que muito mais que tentar compreendê-la se dedicou a vivê-la. Os exemplos que ele utiliza para demonstrar que essas vivências são cheias de encantamento e admiração – vistos claramente no elogio a Abraão. Consciente de todas as limitações da linguagem e da razão, propôs-se a abrir esta problemática de modo peculiar, nunca feito antes. E destemidamente concluiu que sua tarefa era abrir os questionamentos a respeito da existência humana, entretanto, as respostas permanecerão no patamar do enigmático, do qual só se pode silenciar, boquiaberto fechar os olhos diante de tão forte luminosidade e estender a mão para tocar aquilo que somente pode ser sentido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essa investigação pode conjecturar, frente a argumentação, que o desespero pode, sim, educar o sujeito existencial para, através de uma nova consciência,


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decidir de maneira absurda a fim de tocar o pathos próprio da vida, isto é, para que o Indivíduo faça o movimento da fé, alcançando o infinito por meio da finitude de si mesmo. Possa vivenciar com tranquilidade e ousadia aquilo que é próprio do ser humano, da sua humanidade, em contato absoluto com o absoluto, e mergulhando na própria interioridade para conquistar o ser autêntico. Toda a construção deu-se por investigar, nas vivências humanas, a manifestação do desespero a fim de que, com as devidas compreensões das categorias kierkegaardianas, pudesse se chegar na afirmação de uma vivência construtiva do desespero. Primeiramente, foi postulado uma vivência do desespero situada em um sujeito existencial que possui a tarefa de construí-la, cabendo ao próprio ser a conquista do ser Indivíduo. Para isso, o eu precisa dessa consciência: a existência não é estática; está em movimento, dessa maneira, cabe a ele tomar a própria vida em mãos e ser a si mesmo. Deve-se, portanto, negar as formas rígidas – sistemas – e a racionalização da própria existência, entrando em contato com a própria vivência, isto é, com a própria vida (existência) que se faz no momento presente, em que não parte de uma instrumentalização, mas na suspensão das categorias racionalizantes. Também, adentrou-se as esferas da existência – estádios da existência – a fim de encontrar a vivência aplicada do desespero, percebendo nessas vivências quais as formas em que o desesperar dilacera o sujeito existencial, afundando-o em seu próprio desespero e aprisionando-o em uma vivência inautêntica, e, inversamente, as formas que proporcionam ao Indivíduo a conquista de si mesmo tão como a capacidade de decidir, por meio do salto absurdo da fé, assumindo-se na própria tarefa de existir, estando acima de toda multidão, isto é, todas as categorias generalizantes, e suspendendo os juízos rígidos que deixam o eu empedernido frente à possibilidade do devir existencial. E, por fim, concatenou-se o que, propriamente, é a vivência autêntica do desespero, definida como um viver mais profundo, em que eleva-o até os limites da razão, visando emergir com uma nova consciência diante da vida humana. Afirmando a possibilidade de o desespero proporcionar a coragem, mediante as suas inconformidade no movimento dialético existencial, para o sujeito decidir absurdamente, suspendendo toda intencionalidade e racionalidade, ser sujeito autêntico, conquistando-se a si mesmo através do salto da fé, que é o encontro absoluto com o absoluto, e por meio da descoberta do infinito na finitude de si


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mesmo. Da mesma maneira, apontou-se o intuito desse movimento: tocar o pathos próprio da vida na própria interioridade, em que todas as categorias racionais e lingüísticas cessam para dar lugar àquilo que é indizível. A presente pesquisa buscou contribuir para a compreensão mais estrita das relações do desespero na conquista do ser autêntico, assim como sua ligação com a vivência das esferas existenciais, no intiuito de compreender mais a fundo o que propriamente defini-se por vivência do desespero e o que essa vivência pode proporcionar ao sujeito existencial na tarefa de construir a própria existência. Propôs-se, afinco, apontar para a dimensão não-sistêmica, na qual a racionalidade e a linguagem são limitadas, estabelecendo a compreensão de uma interioridade vivida simplesmente, deparada com a vida pura, ou seja, com as entranhas da vida. Contudo, essa pesquisa delimitou-se a investigar a vivência do desespero sem aprofundar as questões acerca da fé, da decisão, da possibilidade e outros elementos utilizados como acessórios para a argumentação, por isso, dá-se um leque de possibilidades para aprofundamentos de novas pesquisas. Enfim, abre-se uma nova problemática, não esgotada por esta pesquisa: quem sabe se essa linguagem do desespero ou pathos da linguagem do desespero não seja propriamente o silêncio?

REFERÊNCIAS ALMEIDA, Jorge Miranda de. Ética e política no pensamento de Kierkegaard. Disponível em: <http://tecitura.juvencioterra.edu.br/viewarticle.php%3Fid% 3D60> Acesso em: 19 ago. 2008,


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introdução

à

PAULA, Marcio Gimenez de. Indivíduo e comunidade na filosofia de Kierkegaard. São Paulo: Paulus, 2009. REICHMANN, Ernani. Kierkegaard. Curitiba: JR, 1972. ________. No Centenário de Kierkegaard; A desumanização de Kierkegaard. Curitiba: UFPR, 1955.


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