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Copyright © Editora Patuá, 2018. © Telucazu Edições, 2018 Quem disse que não te entendo? © João Paulo Hergesel, 2018. Editores André Kondo (Telucazu Edições) Eduardo Lacerda (Editora Patuá) Capa e ilustrações internas Alessandro Fonseca Projeto gráfico e Diagramação Leonardo Mathias | flickr.com/leonardomathias Assistente Editorial Ricardo Escudeiro Revisão Éder Rodrigues George André Savy Secretaria e administrativo Sara Cristina Trajano
H545q Hergesel, João Paulo. Quem disse que não te entendo? / João Paulo Hergesel; ilustrado por Alessandro Fonseca. – São Paulo: Editora Patuá, 2018 / Telucazu Edições, 2018. 160 p. : il. ; 16cm x 23cm. ISBN 978-85-8297-603-6 1. Literatura infantojuvenil. 2. Romance. I. Fonseca, Alessandro. I. Título. Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior - CRB-8/9949 Índice para catálogo sistemático: 1. Literatura infantojuvenil 028.5 2. Literatura infantojuvenil 82-93 Todos os direitos desta edição reservados à:
Editora Patuá Rua Luís Murat, 40 CEP 05436-050 São Paulo – SP Brasil Tel.: (11) 96548-0190 www.editorapatua.com.br editorapatua@gmail.com
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CDD 028.5 CDU 82-93
“Longínqua estrela, tu me chorarias Ao ver-me assim, morrendo de saudade!”
(Silvia Schmidt)
01. Simplesmente... aconteceu!
O jornalismo sempre foi a verdadeira paixão de minha mãe: quando tinha apenas cinco anos, já brincava de apresentar o telejornal da noite ao lado de seu melhor amigo, o urso de pelúcia. Não se contentava com o faz de conta; insistia para meus avós ficarem sentados no velho, mas macio, sofá de courino, assistindo às reportagens feitas ao vivo e em cores, com uma imagem muito melhor que a da pobre televisão em preto e branco. Cansada de entrevistar somente as bonecas e de ter suas matérias assistidas apenas pelos pais, ela resolveu conversar com sua professora do pré-escolar, a fim de criarem um zine semanal no colégio. A ideia causou risos na mulher: “Onde já se viu uma pequerrucha de cinco anos falar em ser redatora de um boletim informativo?” Ela mal havia aprendido a ler e a escrever... E não adiantou pedir, implorar, choramingar, explicar que ela só faria os desenhos; a tia não levava nada a sério. Muito chateada e aborrecida, voltou para casa e correu para o seu quarto, onde passou a tarde toda trancada. Ninguém sabia, ao certo, o que Amelinha estava fazendo, mas temiam que coisa boa não pudesse ser. Ao pôr do sol, perceberam que estavam equivocados; a garota, com
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uma folha de caderno e um lápis de ponta grossa, escreveu um pequeno relato, em letras de forma e praticamente ilegíveis, desabafando o que sentia pelos professores que não acreditavam na capacidade de seus alunos. Assim que minha avó decifrou os hieróglifos infantis, não pôde acreditar que sua menininha era provida de tamanho talento. No dia seguinte, levou o papel para que a professora lesse e desse a sua opinião sobre o texto. De queixo caído, a educadora admitiu que dessa vez foi ela quem aprendeu uma lição e, para reconhecer o erro, além de criar o Jornalzinho da Criança, fez com que o texto da minha mãe fosse publicado na primeira página do dominical da cidade. A partir dessa sua primeira matéria, não se teve mais dúvidas: a vocação dela era realmente voltada à imprensa. Esforçando-se como aluna e tirando excelentes notas, entrou com facilidade numa universidade quando tinha apenas 15 anos. Apresentando ótimo desempenho durante os semestres, ganhou placas de mérito por três anos consecutivos, o que provocou um grande interesse da gazeta da cidade pela jovem. Foi contratada por seis meses pelo jornal, no entanto, só trabalhou lá por três; o diretor de uma emissora de televisão leu várias de suas matérias e lhe fez uma proposta irrecusável. Disposta a largar a família e os amigos de infância, ela foi à cidade grande para trabalhar como repórter de rua. Logo a promoveram a noticiadora sênior. Começou a viajar o país e o mundo, a fim de levar a informação para dentro da casa daqueles que desejassem estar ligados nas notícias. Em uma dessas viagens, esbarrou com Ricardo, esperto e atraente contador. Conversa vai, conversa vem, e eles já estavam dividindo o mesmo teto, num município vizinho da grande metrópole.
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O romance entre o casal não fez com que minha mãe abandonasse a profissão. Ao invés disso, com o sonho de constituir uma família, ela se empenhou cada vez mais em suas matérias jornalísticas, o que a fez crescer na mídia e explodir em demasiado sucesso. Para compensar o prestígio, recebeu um convite para gravar uma matéria no exterior: uma série especial sobre o Polo Sul – o qual não hesitou em aceitar. E lá foi ela, ao lugar mais gelado do planeta Terra. Para ela, era uma diversão: amava tempo frio. Dentre milhares de focas e icebergs, ela registrou muitas matérias e, inclusive, descobriu um suposto arsenal de armas nucleares mantido pelos Estados Unidos naquela região. A série foi um tremendo sucesso e resultou em altíssimos índices de audiência. Muito tempo se passou depois dessa sua aventura. Três anos atrás, já casada e com um filho pré-adolescente para terminar de criar, tentava conciliar trabalho e família. Naquele ano, completava exatamente quinze que a série Expedição Antártica havia ido ao ar; portanto, mamãe recebeu outro convite da emissora: voltar ao continente de gelo, relatar as mudanças ocorridas e em que o aquecimento global havia contribuído para essas alterações. Titubeou em aceitar, mas ouviu o marido que lhe disse valer a pena. No dia em que partiu, ela deu um beijo demorado em meu pai e um forte abraço em mim, sussurrando em meu ouvido que estaria de volta antes que eu conseguisse pronunciar “eu tagarelaria, tu tagarelarias” sem tropeçar na língua. Do terraço do prédio da emissora, meu pai e eu vimos a minha mãe entrar no helicóptero e, junto do cinegrafista e do piloto, decolar. Ela, com um sorriso de compaixão, derramava uma lágrima. Tanto meu pai como eu também deixamos rolar pelo rosto uma pequena
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gota salgada. Um aperto no coração me incomodava, mas naquele momento eu só pensava em conseguir conjugar o verbo tagarelar, na esperança de que a pessoa que eu mais amava voltasse. Após pararmos numa sorveteria para devorar um sundae, meu pai e eu voltamos para casa. Liguei a televisão rapidamente, pois estava passando meu desenho animado favorito. De folga, meu pai o assistia junto comigo e ria feito uma criança — até mais do que eu — das palhaçadas que o gato e o rato faziam. De repente, aquela musiqueta chata, anunciando a chegada de uma notícia fresquinha, começou a tocar, seguido do anúncio: “Plantão!”. Para mim, plantão era uma planta grande, como um eucalipto ou uma palmeira. Que ilusão! Uma jornalista, amiga de minha mãe — eu a conhecia — estava com os olhos mareados, lacrimejando e segurando um microfone com o enunciado “urgente” abaixo do logotipo da emissora. Com a voz trêmula, anunciava: — Um helicóptero com a equipe de reportagem da emissora sofreu uma pane... O tão equilibrado senhor Ricardo, conhecido por mim apenas como pai, deu um forte grito de desespero e, desabando no choro, começou a bater na parede, como se os tijolos fossem culpados. Embora eu tivesse 11 anos, idade suficiente para entender o que acontecia, não conseguia, ou não queria, compreender o que havia ocorrido. Só fui entender quando meu pai me disse para esquecer o trava-língua.
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Uns me tratam por Eduardo; outros preferem encurtar para Edu. Gosto dos dois, principalmente da forma abreviada, pois era como minha mãe me chamava. Hoje, aos 14 anos de idade e na última série do Ensino Fundamental, não tenho muitos amigos. Meu jeito tímido não me deixou fazer mais do que três amizades verdadeiras. Conheci Isabela no primeiríssimo dia de aula, quando eu tinha quatro, cinco anos. Estava um bocado assustado, grudado em minha mãe, que fez questão de deixar o trabalho um pouco de lado e me acompanhar. Fazia a maior birra para não a soltar. Por mais que ela me dissesse que logo estaria ali para me buscar, nem uma divindade me faria ficar quieto. Apareceu, então, Isabela. Esticando a mão em minha direção, a garotinha parecia me chamar para ser seu mais novo amigo. Enxuguei as lágrimas e olhei para minha mãe. Sorrindo, ela me disse para ir brincar com minha nova coleguinha, pois acharia divertido. Soltei a mão agarrada à calça de minha mãe e saí correndo pelo pátio, atrás de Belinha que tentava fugir de mim no pega-pega. O tempo passou rápido e, em menos que eu pudesse imaginar, já estava indo para o sexto ano. No início, foi bem difícil. Houve uma baita reviravolta na escola com a chegada de novos alunos e as classes se misturaram. Por sorte, Belinha continuava na minha sala, juntamente com vários desconhecidos que eram como extraterrestres que haviam invadido a Terra. Em meio a mais de quarenta estranhos, meus olhos notaram que, sentada à frente da mesa do professor, havia uma etezinha muito bonita. Com os sedosos cabelos louros e o sorriso angelical, ela chamava minha atenção e a de todos os outros meninos da sala. Não pela be-
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leza, mas porque, em sua cabeleira, havia uma enorme barata pronta para atacar. Alguns segundos se passaram e outra aluna deu um grito. A lourinha, assustada, levantou e começou a se debater aos berros. Aquele escândalo superou o meu do primeiro dia de aula. De tanto a menina se sacudir, a barata caiu. A professora, que também era nova, exceto na idade, agachou e pegou a barata... de plástico! Aquilo se tornou alvo de piada na escola. Todos riam da menina que se desesperou por causa de um brinquedo. A garota não podia mais nem passar pelo pátio que começavam a tirar sarro. Acho que a coitada estava pensando até em se mudar de escola, quando Isabela e eu entramos em ação. Sentada no chão, num canto da escada, ela estava de cabeça baixa na hora do intervalo, prestes a chorar. Nós nos aproximamos e perguntamos seu nome. Temendo que fôssemos fazer algum gracejo, ela pediu que a deixássemos em paz. Falei que todos aqueles que estavam rindo dela com certeza já haviam passado, ou ainda passariam, por situações piores. Ela devia fazer comédia de tudo aquilo, entrar no jogo. Não precisava fazer drama de... drama! Adquirindo confiança em nós, a menina se levantou, deu um ligeiro sorriso e disse com a voz suave: — Eu me chamo Letícia, e vocês? Pronto! Estava formado o trio do momento. Era — e ainda é — muito bom quando estamos juntos. Sempre foi maravilhoso ter garotas como melhores amigas. Elas são carinhosas, meigas, amáveis, sem falar que quando estamos tristes
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elas vêm nos consolar — conheci esta teoria na prática quando minha mãe faleceu. O problema era que, depois de um tempo, eu já estava com 12 anos e, nessa idade, há coisas que não podemos falar às meninas, mas que precisamos desabafar com alguém. Para meu pai, nunca contei nada, pois acho que ele ainda não se conformou com a morte da esposa e tem me menosprezado, como se eu fosse o principal responsável pela desgraça. Percebi, então, que precisava de um amigo. Com certeza eu não iria atrás de um, pois não tenho facilidade em fazer amizade; logo, estava perdido. Todavia, sem mais nem menos, Cláudio, um dos meninos da sala, veio falar comigo. Ele era um dos meninos do fundão. Adorava uma bagunça. Por isso achei que ele fosse me zoar por ser um tanto nerd ou algo assim, mas não. Impressionantemente, ele me pediu para ser seu amigo. Segundo ele, estava percebendo que a bagunça não o levaria a nada, então, queria entrar em contato com pessoas mais diplomáticas. Nós nos tornamos grandes amigos desde então e lhe ensinei o significado da palavra diplomático. Quando havia algum trabalho em grupo para ser realizado, fazíamos sempre nós quatro. Formamos uma espécie de Quarteto Fantástico. Se eu desejasse falar de uma boa ação, contaria às duas, que, com certeza, achariam bem fofo. E se eu desejasse falar sobre assuntos mais pessoais, podia contar com Claudinho. Infelizmente, podia — pretérito imperfeito do indicativo.
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A natação se tornou uma alma gêmea quando minha idade ainda cabia nos dedos de uma só mão. Mas a piscina, que aos cinco anos era somente um espaço para diversão, tornou-se a versão molhada do meu espaço particular. No começo, eu ficava meio sem jeito. Morria de vergonha de usar sunga, ainda mais na frente da professora, que era mulher, mas aos poucos fui me soltando e me interessando cada vez mais pelo esporte. Logo na primeira vez que pulei na piscina, senti algo muito intenso. Parecia que a água queria ser minha amiga. Era aconchegante ficar ali, naquela água levemente aquecida. Com o tempo, fui mudando de piscina: passei para a média, para a grande e hoje já estou na olímpica — e dando adeus ao aquecedor térmico. Nunca faltei a uma aula de natação. Mesmo estando com algum resfriado, mergulho e todos os males passam. Todos os males mesmo. Quando perdi minha mãe, foi nas águas da piscina grande que me consolei. Elas levaram minha angústia embora e me deixaram disposto a continuar a vida. Desde que conheci Claudinho, ele vai comigo ao clube. Enquanto eu faço minhas aulas de aperfeiçoamento, ele aproveita para se divertir. Não sei se foi por causa do calor atípico ou porque todo mundo acordou com vontade de nadar, mas teve um dia em que as piscinas estavam completamente lotadas; tinha gente que não conseguia nem se mexer, devido ao aperto. Mas o espaço não tinha tanta importância, já que estavam interessados em se refrescar. Como já comentei de minha timidez, dá para imaginar como sou para trocar a sunga molhada por uma roupa seca: entro no vestiário;
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corro até uma das cabines de chuveiro com quatro paredes em volta; tranco a portinha; fico espiando para ver se não aparece ninguém por cima; enrolo a toalha em volta da minha cintura; tiro a sunga rapidamente; mal me seco; e ponho a roupa. Porém, nesse dia, como o clube parecia um formigueiro humano, o vestiário masculino estava cheio. Das seis cabines que havia, quatro estavam fechadas para manutenção e as outras duas estavam com a fila imensa — a marmanjada queria tirar o cloro do corpo. Entrei na fila, com a esperança de que minha vez chegasse o mais rápido possível. — Sai daí. Toma banho na sua casa — disse Claudinho, tirando-me da fila. — Esqueceu que combinamos de fazer o trabalho de Artes com as meninas daqui a dez minutos? É o tempo de se aprontar e ir para sua casa. O coração disparou e comecei a sentir falta de ar. Olhei para um lado; olhei para o outro. Vi a fila do chuveiro aumentando e, tentando me acalmar, pensei: “Não há o que temer, ninguém vai ficar me olhando.” Então, num ato de coragem, desci a sunga. Durante a adolescência de um menino, e algumas vezes na fase adulta, é mais do que normal ocorrer uma ereção espontânea, afinal, o corpo está se adaptando às mudanças hormonais. O simples movimento de um carro, por exemplo, pode desencadear uma ereção. Assim que tirei a sunga, uma dessas ereções me aconteceu. Todo mundo começou a rir, principalmente quando aquele que se dizia meu amigo falou em tom de brincadeira, mas em voz alta: — Ficou assim só por me ver?! Que é isso, cara?!
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Não sabia onde enfiar a cabeça. Não sabia se ria junto ou se chorava. Não tinha ideia de o que fazer. Sem reação, pude perceber que um gordinho saía de uma das cabines. Inesperadamente, furei a fila de dezenas de pessoas e entrei na cabine, trancando a porta automaticamente. Estava tão fora de mim que nem ouvi os palavrões e xingamentos que recebi.
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Demorou um pouquinho até que eu me recuperasse do choque e tivesse coragem de expor minha cara. Sem olhar para trás, peguei minha mochila e saí correndo daquele vestiário. Assim que cheguei em casa, Belinha, Letícia e ele me aguardavam, sentados na varanda, para fazer o trabalho de Artes. O trabalho consistia em escrever uma biografia sobre Michelangelo, aquele pintor, escultor, poeta e arquiteto renascentista italiano. Uma das esculturas mais famosas desse artista renascentista foi “Davi”, uma estátua de mármore, com pouco mais de cinco metros que retrata um herói bíblico. Michelangelo usou nessa obra, considerada uma das mais importantes do Renascimento, o realismo do corpo nu e o predomínio das linhas curvas. E, como já era de se esperar, Davi não estava com “aquilo” ereto. — Ufa! Até que enfim, você chegou! — exclamou Belinha. — O Claudinho disse que você ia demorar, mas não nos disse o motivo que, a propósito, não nos interessa. Vamos começar logo esse trabalho, pois dependo dessa nota.
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Achei que seria fácil fazer o trabalho e que Claudinho já tinha até esquecido tudo, mas não foi bem assim. Enquanto as meninas liam e comentavam trechos do livro, Claudinho olhava para mim e, para zombar, me mandava beijinhos. Eu tentava me concentrar na leitura, mas os gracejos do garoto me abalavam. Uma hora, já não aguentando mais aquilo, disse que precisava conversar com ele e o arrastei até o meu quarto. Em voz baixa, para que as garotas não ouvissem, falei: — Por que está fazendo isso comigo? Foi só um acidente... Qual é?! Se você não parar com isso, provará que não é meu amigo de verdade. Se for assim, pode sair da minha casa. Acreditei que ele fosse me pedir perdão, mas me equivoquei. — Bem, agradeça por eu não ter contado a ninguém sobre sua fobia do escuro. E, inventando a desculpa de que precisava pegar uma tia na rodoviária, saiu, deixando a nós três a missão de terminar o trabalho s em ele.
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Concentrar-se em Michelangelo não é nada fácil quando você acaba de romper uma amizade. Todavia fiz o melhor possível. Ainda faltavam detalhes para acabar a biografia, mas percebi que as duas já estavam cansadas e que o relógio já marcava quase sete horas. Então, disse que daria os retoques finais mais tarde e que elas poderiam ir embora. Quem disse que não te entendo?
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Assim que viraram as costas, entrei no banho. Tentei utilizar a água quente para colocar os pensamentos em ordem, mas não consegui. Tudo estava um caos dentro da minha cabeça. Fechando os olhos, tentei imaginar minha vida sem essas crises adolescentes. Estava dando certo, até o barulho da porta da sala batendo me trazer de volta para a realidade. Sabia que era meu pai quem chegava. Desliguei o chuveiro e fui direto para meu quarto. Escutei, de lá, meu pai religar o chuveiro e, em menos de cinco minutos, desligá-lo. Saindo, ele foi direto ao seu quarto, sem me dar ao menos um boa-noite, como já era de costume.
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Não passava das oito quando pensei em checar as redes sociais, mas logo desisti. Temi que Claudinho pudesse me ver on-line e continuasse as chacotas. Então, resolvi olhar as estrelas no céu. Decepção! A noite estava repleta de nuvens. Não fora de hora, um vento repentino bateu em minha janela, deixando meu braço arrepiado. A mesma brisa também empurrou as nuvens, lá no alto, fazendo com que a primeira estrela aparecesse no céu aquela noite. Admirei por um tempo aquele pontinho dardejante. Sabia que somente a apreciação não me auxiliaria em nada, por isso, resolvi conversar com ela. Contei a ela quem eu era, quem eram meus amigos, o que aconteceu com meus pais e sobre o ocorrido mais fatal daquele dia. A estrela havia virado minha amiga confidente.
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Lembrando que, segundo superstições, se fizermos um pedido à primeira estrela que surge na noite, o pedido é realizado, fiz um sincero e de todo coração. No entanto, ao terminar o desejo, ri comigo mesmo... Que bobagem! Quem vê pensa que estrela tem vida e é capaz de nos entender. E, retirando-me da janela para a cama, ouvi: — Quem disse que não te entendo? Voltei a olhar para o céu, mas era tarde demais; uma nuvem traiçoeira havia encoberto a estrela, que só voltaria, talvez, na noite seguinte.
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02. Situação chocante
“E se Claudinho contar para todo mundo? Vão me apontar como um vilão pior do que o da novela das nove. Não posso aparecer na escola amanhã! Tenho que esperar no mínimo uma semana até que se esqueçam de tudo...” — fiquei pensando, antes de dormir. Após pegar no sono, embora meu lado consciente estivesse desligado, o subconsciente entrava em ação. Ele já estava acostumado a criar historinhas um pouco absurdas e difíceis de entender, mas naquela noite tive um sonho muito especial: uma espécie de flashback onde pude reviver, por alguns instantes, detalhes da minha vida que acabaram passando despercebidos. E foi com esse sonho que descobri estar apaixonado. Lembrei do dia que Isabela e Letícia decidiram cabular a aula de matemática. Isso não é muito o estilo delas; talvez, por isso, o único esconderijo no qual pensaram foi a biblioteca. Para a monitora, as duas estavam autorizadas, pelo professor, a realizarem uma tarefa escolar. Elas, porém, não contavam com a astúcia do diretor, que apareceu bem no momento em que elas tentavam se camuflar por trás dos livros.
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Generoso como sempre, ele tentou pegar leve, mas, como não podia deixar um acontecimento daquele passar em branco, foi obrigado a lhes dar uma advertência. Isso deixou Letícia cabisbaixa e pensativa pela semana toda — era a primeira vez que o diretor a repreendia. Belinha, ao contrário, esqueceu rapidamente a parada e, com seu jeito espontâneo de ser, ainda fez piada de toda aquela situação. Recordei, também, o dia em que a professora de ciências resolveu fazer uma excursão para que pudéssemos entrar em contato com a natureza, ultrapassando a fronteira dos livros. Fomos a um terreno próximo à escola que, segundo ela, em breve seria bosque; mas, para que isso acontecesse, era necessário que plantássemos sementes e mudinhas de árvores frutíferas pelo local. A cada buraco que abria, Belinha se preocupava rigorosamente em tirar todas as minhocas que havia naquela terra para que elas não se machucassem com as raízes pontudas da plantinha. Letícia, em vez disso, torceu o nariz, pois poderia, além de sujar sua roupa, quebrar uma das unhas; por isso, ficou com a difícil missão de regar o plantio. E, para encerrar o sonho, uma última cena trouxe à memória o dia em que as duas andavam distraídas pela calçada da rua de casa quando Letícia, sem perceber o bueiro aberto no chão, acabou caindo dentro. Prontamente, Belinha pediu às pessoas que estavam próximas para chamarem o resgate, enquanto ela própria distraía a amiga, fazendo-a esquecer que junto a ela poderiam estar ratos, baratas e outros bichos de esgoto. Os bombeiros não demoraram, para alívio dela, de Belinha e dos curiosos que aplaudiam o ato heroico. Toda imunda de lama, Letícia pegou uma carona com o caminhão-pipa até sua casa, onde tomou um longo banho e gastou um frasco cheinho de perfume Jequiti.
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O barulho do despertador me acordou e, sem mais neuras, levantei para ir à escola. O grande motivo pelo qual me senti disposto a enfrentar todos os maus pensamentos foi uma pessoa. Para ser mais específico, uma das protagonistas do sonho, a menina mais meiga, carinhosa e fofa da cidade: Letícia. Seu jeito dondoquinha e seu carisma são capazes de conquistar até mesmo o coração dos mais insensíveis — não que eu seja um.
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Assim que cheguei ao colégio, vi a mesma pacatez de sempre: Letícia e Belinha sentadas no banco de madeira, consultando o horóscopo pelo celular e fofocando sobre fulano que saiu com beltrana ou sicrana que gosta do tal fulano. Eu me juntei a elas justamente para ficar um pouco mais perto da garota que havia tomado conta do meu coração. No entanto, mal deu tempo de falar um bom-dia e o sinal, indicando o início da primeira aula, soou. História: se havia uma coisa que eu gostasse menos do que essa matéria, com certeza era a professora. Por sorte, a professora Renata tinha faltado. Um tal de Mário a substituiria. A classe estava mais agitada do que nunca. Dentre alunos correndo e bolinhas de papel voando, notei que Claudinho vinha em minha direção. Puxando uma cadeira, ele se sentou ao meu lado. Depois da briga, não nos falamos mais, portanto não entendia o motivo pelo qual ele se aproximou de mim. Mas a razão era óbvia: ele queria se desculpar.
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Pedindo perdão, disse que não sabia por que havia feito tal brincadeira e ainda tentou me consolar, falando que isso poderia lhe ocorrer a qualquer momento. Não sou de ficar muito tempo brigado com alguém e também já estava sentindo falta do humor sagaz dele, então, não tive escolha senão abrir um sorriso e lhe falar que, na verdade, nunca havíamos deixado de ser amigos. Mas, o que mais me intrigava naquele momento era o pedido que eu havia feito à estrela: uma reconciliação de amizade. Resolvi deixar o pensamento para lá. Nesse momento, sabendo que Claudinho não era nada tímido e se dava muito bem com as garotas — chegava a ficar com duas ou mais ao mesmo tempo —, pensei em pedir um conselho de como poderia fazer Letícia entrar na minha. Contudo, não tive tempo de concluir a ideia, porque ele veio com um novo assunto. — Cara, sei que sou galinha às vezes e posso até não prestar, mas tem uma gatinha que acho que vai mudar esse meu jeito de ser. Não acreditava que Claudinho mudaria de maneira drástica, mas fiquei curioso em saber quem era a tal menina que lhe conquistou o coração. Levei um choque! As ondas eletromagnéticas das palavras de Claudinho colidiram com minhas orelhas receptoras, numa voltagem de 220 volts, sendo que elas foram programadas para não receber mais do que 110. — É a Letícia, cara. A mina é muito gata, irmão — foi a resposta que me causou tal dano. Imobilizado, ainda ouvi Claudinho me perguntar se eu não tinha nenhuma “mina” em vista. Não poderia falar que estava apaixonado
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pela mesma garota, então abaixei a cabeça, tentando pensar numa desculpa rápida e convincente, porém nada me vinha à mente. Por sorte, Belinha, que se senta uma carteira atrás de mim, me cutucou, perguntando se, por acaso, eu não gostaria de fazer parte de seu time para a guerra de borrachas contra o outro lado da sala. Claudinho já começava a picar uma em pedacinhos, enquanto eu hesitava em aceitar o convite.
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Após aquela descarga elétrica, precisava me recuperar. Ainda bem que, depois da escola, como em quase todos os dias, eu tinha aula de natação. Pode parecer meio contraditório misturar água e eletricidade, mas a vida é contraditória. Cheguei meia hora antes para aproveitar a piscina vazia. Claudinho achou melhor não ir comigo, usando como desculpa a tão conhecida dor de garganta. Ainda no vestiário, vi meu rosto refletido no metal do velho mictório. Mesmo não tendo muita certeza de que o mictório era realmente um bom lugar para se usar como espelho, notei que um sonho estava prestes a ir por água abaixo. Analisando o cabelo bagunçado, a cara meio inchada e umas espinhas que se camuflavam por entre as pintas de meu rosto, calculei minha beleza exterior. O resultado é que fiquei devendo. Se Letícia quisesse um namorado, era só estalar os dedos e todos os que estivessem por perto cairiam a seus pés. Sem falar que ela é modelo, então, tem contato com muitos caras que cuidam do cabelo,
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têm o rosto arredondado e não sofrem de acne, pois vão ao dermatologista regularmente. Sendo assim, que chances teria eu com a garota? Se ela quisesse ficar com um amigo, certamente escolheria Claudinho, que é descolado e social. Contudo, de uma coisa não posso reclamar: meu nariz é perfeito!
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Sentada em uma dessas cadeiras de praia, Cris, à beira da piscina, aguardava o término de seu horário de almoço. Decerto, não havia saído para comer. A expressão de tristeza no rosto indicava que não tinha apetite; o chapéu estampado de flores que cobria parte dos olhos confirmava. Sem nem forjar um sorriso, deu um boa-tarde meio soluçado — devia estar chorando, talvez mais por dentro do que por fora. Chegaram os outros alunos, Cris limpou os olhos ainda vermelhos e iniciou a aula com o alongamento. Enquanto esticava o braço o máximo possível, comentei com um de meus colegas: — Nossa, a Cris parece estar tão triste... — Pudera! Ninguém se lembrou do aniversário dela. Preparados contra cãibras, treinamos o nado borboleta. Não é minha modalidade preferida, mas fiz tudo sem reclamar. Quando a aula acabou e ia saindo, ouvi o chamado de Cris, pedindo para eu esperar um pouquinho, pois precisava falar comigo.
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— Edu, acho que você não está sabendo, mas suas mensalidades já estão atrasadas há dois meses. Como você é meu melhor aluno, fiz questão de liquidar suas dívidas, mas este mês iniciarei um tratamento odontológico e meu salário não será suficiente para lhe ajudar. Aquilo me deixou ainda mais chocado. Tanto que acabei esquecendo de desejar um feliz aniversário a ela. Agradecendo pelo que fez, saí.
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Só em casa vi que tinha um “oi” de Belinha no meu celular. Respondi, e ela perguntou se estava tudo bem. Respondi que, na verdade, não e contei as novidades. |Tenho uma ideia!| |Sobre o que fazer com as mensalidades?| |Não, sobre a festa da Cris.| Belinha sugeriu preparar uma festa para a professora, pois assim ela se sentiria menos tristonha e, além disso, seria uma forma de agradecer o que ela fez por mim. A ideia era boa, mas como prepararia uma festa da noite para o dia? Ou melhor, da tarde para a noite. |Deixa comigo! Apenas convide o pessoal.| Mandei mensagem a todos que conhecia, avisando que faria uma comemoração surpresa para a Cris e que a presença deles era indispensável. Em seguida, liguei ao clube e deixei um recado com a secretária. Cris deveria comparecer no endereço citado, na hora men-
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cionada, pois o pai de um aluno precisava conversar com ela. A desculpa não era das melhores, mas não tinha tempo de pensar em algo mais persuasivo. Nem imaginava o que Belinha estaria aprontando. A única coisa que sabia era que na casa dela, às oito da noite, alguma coisa iria acontecer.
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Antes de sair de casa, olhei para o céu. As estrelas começavam a aparecer. Fixei na mesma estrela que realizou meu desejo — não tinha como confundir: era a maior e mais brilhante — e agradeci pelo que havia feito por mim. Fui sair, mas voltei à janela. Tive uma ideia que poderia ser muito maluca, mas era a única maneira de me dar bem com a Letícia. Sabia que a estrela não era cadente e que naquela noite ela não havia sido a primeira a surgir, mas, como ela já atendera meu pedido uma vez, quem sabe não atendesse de novo? — De Letícia quero um beijo cinematográfico. Não sei se aquilo era pedir demais, mas acho que a estrela escutou, pois dardejou ainda mais por um segundo. Com tamanha simpatia, aquela estrela precisava de um nome. Mas que nome? Ela me ouve como se fosse uma pessoa de verdade, uma menina — ou, como diria minha tia argentina, uma niña. Não havia nome melhor: Nina era perfeito. E acho que ela gostou, pois reluziu fortemente mais uma vez.
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Fiquei observando-a por mais alguns segundos, até lembrar que já estava atrasado para a surpresa que faríamos à Cris. E foi dando as costas à janela que ouvi num tom de quem está passando cola a alguém em dia de prova: — Clarice. O que aquilo significava eu não sabia. As únicas duas coisas das quais tinha noção era que “Clarice” me lembrava a Lispector, grande escritora brasileira responsável por diversas obras intimistas de muito sucesso, e que eu tinha uma festa para ir.
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A casa de Belinha estava mais enfeitada que em dia de Natal. Não sabia como ela tinha conseguido preparar tudo sozinha, até ela me contar que seu tio trabalhava como produtor de festas e eventos. Como o convite fora de última hora, não havia muita gente — apenas umas 20 pessoas, sendo a maioria alunos. O que mais me preocupava era se a mulher ia cair ou não no truque. A resposta veio rápido, com o barulho da campainha. — Escondam-se todos! — sussurrou Belinha, apagando as luzes. Dona Ofrásia, a mãe da garota e dona da casa, foi atender a porta. Assim que ela abriu, todo mundo saiu de seus lugares e, numa única voz, gritamos “surpresa”. Ela realmente se surpreendera — via-se pelos seus olhos arregalados. Demorou um tempinho, mas ela entrou no clima.
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A entrega de presentes finalmente começou. Eu estava perto, enquanto Cris abria os embrulhos. Os pais de Belinha não queriam mesmo ficar de fora. Não conheciam a aniversariante, mesmo assim, além de ceder a casa para uma festança, fizeram questão de comprar uma lembrancinha, a qual foi a chave de uma grande descoberta. — Nossa, que maravilha! Um escafandro... Edu, lembra quando sua mãe comprou um desses para mim, logo no primeiro ano que você entrou no curso? — É claro! E ainda lembro das palavras: “Este traje vai proteger você da água congelante, caso resolva nadar nestas férias de inverno.” Uma ficha caiu. O aniversário de Cris era no inverno e ainda estávamos no verão. Com certeza, ela não estava ficando um ano mais velha naquele dia. Arrastando Belinha para um canto, disse finalmente entender o porquê do enorme susto da nadadora ao ver as bexigas espalhadas pela casa e brigadeiros sobre a mesa. Ao passo que falava, via que Cris se sentava no primeiro degrau da escada, longe dos convidados, com seu pratinho de bolo. Limpava algumas lágrimas. A infelicidade havia voltado. Parei de falar e apontei para o que observava. Belinha seguiu a direção de meu dedo e disse para não me preocupar, pois colocaria seu lado Isabela, a séria e consoladora, e descobriria o verdadeiro motivo de tanta melancolia. Conversaram por alguns instantes. Depois, minha amiga veio me contar o que estava abatendo a instrutora. — Um primo dela está preso, seu único irmão não lhe dá notícias se está vivo ou morto, seu pai descobriu recentemente que está com
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câncer, e o namorado terminou com ela porque não queria que ela fosse vista de biquíni por todos. — Ah, então essas lágrimas são por isso... — Na verdade, não. Agora, ela está chorando de alegria. Mesmo não sabendo o que lhe passava, você programou uma festa para alegrá-la. Ela está se sentindo como não se sentia há muito tempo: amada. Juro que senti vontade de chorar.
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03. Sensatez nota zero
No intervalo de vinte minutos que temos entre a terceira e a quarta aula, costumamos ficar em pequenos grupos. Geralmente os grupinhos são formados por pessoas com as mesmas características: os brothers da pelada, as migas do shopping, a galera dos vídeos na internet... Diferentes dessa norma éramos Belinha, Claudinho, Letícia e eu. Nós quatro não somos nada parecidos; somos unidos pelo laço da amizade. Um desses grupos típicos de séries norte-americanas é o das “baladeiras”. São quatro garotas que não podem perder uma balada sequer. Ana, Helena, Penélope e Frida adoram um lugar onde possam dançar até altas horas. Não podem ouvir as palavras festa ou balada que já ficam todas animadinhas. Marcam presença desde em mínimas comemorações de aniversário a grandes bailes de carnaval. No entanto, o que elas mais gostam é das raves. A personalidade delas nota-se só na maneira de se vestir e agir. Tirando Ana, que mantém o cabelo longo e a moda da camiseta e calça jeans, as outras apresentam, com uma espécie de orgulho, seus cabelos verdes, rosas, azuis, piercings por todo o corpo, tatuagem da cabeça aos pés, gírias infames...
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A professora de português entrou na sala já falando da nossa formatura. — Precisamos encontrar uma forma de arrecadar dinheiro, seja com doces, bingo, rifa, fazendo uma festinha... Quando ela falou em festinha, os olhos das baladeiras brilharam. Elas queriam de todo o jeito transformar o pátio da escola num galpão de festa rave. A ideia foi aceita por mais da metade da classe, mas foi recusada pela pessoa principal: a professora. Ela disse que o máximo que a escola poderia fazer era um karaokê beneficente. Sugeriu que fosse cobrado um real de entrada mais um a cada música que cantassem. Todo o dinheiro seria revertido para as despesas da formatura, no final do ano. A sugestão foi bem aceita, inclusive pelas quatro agitadoras. Afinal, como disse uma delas, o importante é ter festa!
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Saindo da escola, fui ao clube, sabendo que seria a última vez que colocaria os pés naquele lugar, pelo menos até que eu arrumasse uma forma de pagar as mensalidades. E, também, a dívida que tinha com Cris.
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— Então, acho que essa será minha última aula — saiu de minha boca, como uma frase de despedida. Cris forçou um sorriso, mas pude perceber algumas gotas de lágrimas brotarem. E não eram do mesmo tipo que vi escorrer no dia da festa-surpresa. Sem segurar as emoções, me abraçou. Toda aquela melancolia estava me deixando com um nó na garganta. Só consegui me conter, pois ela logo me soltou e, limpando as lágrimas, pulou na piscina. A aula do dia era voltada ao mergulho: precisaríamos aperfeiçoá-lo. Cris, saindo por um instante da água, disse que teríamos que mergulhar e tentar ir submersos até o meio da piscina, onde colocaríamos nossa cabeça para fora, trocaríamos o ar e, rapidamente, continuaríamos até chegar ao fim. Ninguém pôde fazer, ou melhor, não teve tempo de fazer nem uma pergunta sequer. Ao contar qual seria a brincadeira, ela pulou e nadou, servindo-nos de exemplo. A cada aluno que tentava imitá-la sem sucesso, ela tinha a pachorra de voltar e refazer o percurso, de amostra, e dar, pela milésima vez, a dica de não bater os dois pés ao mesmo tempo. A cada mergulho que ela dava, eu ficava observando atentamente da margem. Notei uma pequena falha: se ela, em vez de apenas balançar os membros inferiores, movesse o corpo todo, semelhante a uma onda, a velocidade aumentaria, não absurdamente, mas o necessário para chegar ao outro lado da piscina, sem ter que parar no caminho para tomar fôlego. — Edu, você é o próximo — avisou, com uma voz cansada.
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Resolvi pôr minha ideia em prática e aperfeiçoar ainda mais o estilo de Cris. Realmente, estava indo mais rápido. Sentia a força da água, levemente gelada, passando velozmente por minha pele. Já estava ficando sem ar, quando pensei em parar, mas sabia que estava prestes a concluir minha meta. Meus pulmões pediam uma troca de ar, e não havia como adiar esse pedido. Fui obrigado a cessar. Quando pus a cabeça para fora e abri os olhos, vi que estava exatamente a dois metros da margem. Pensei que havia conseguido uma proeza com aquela façanha, mas Cris levou toda minha alegria embora. — Está vendo, Edu. É por isso que é necessária a parada no meio do caminho. Ninguém é capaz de atravessar a piscina, segurando a respiração desde o início. De cabeça baixa, saí da água e decidi, nas próximas cinco repetições, lhe obedecer.
***
— Edu! — Cris interrompia minha ida, após a aula. — Estive pensando... você quer continuar com as aulas, não quer? Fiquei sabendo que o clube está atrás de um professor de natação para uma nova turma infantil que vai abrir. Por que você não vai conversar com a gerente? Ouvir aquilo foi muito bom. E, se aquilo se tornasse realidade, então, seria melhor ainda; estaria fazendo o que gosto para pagar aquilo
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que quero. Seria perfeito! Sem pensar duas vezes, fui com Cris falar com a tal gerente.
*** Detrás de uma mesa cheia de recibos e uma enorme máquina calculadora, levantava-se uma mulher meio estranha: meio loira, meio morena; meio gorda, meio magra; meio alta, meio baixa; de óculos fundo de garrafa; paletó com bermuda; meias coloridas, até o joelho; sandália rasteirinha. É complicado descrevê-la. A propósito, só soube que era mulher porque, assim que entramos, ela se dirigiu até mim, me olhou da cabeça aos pés, ajustou os óculos, e se apresentou. — Acho que ainda não nos conhecemos. Sou Emília, e tu...? Meus olhos não acreditavam no que estavam vendo. Aquela mulher era muito mais exótica do que certas personagens de novelas mexicanas. — E tu? — insistia a mulher, braba. — Sou Eduardo — poderia ter parado por aí, mas quis ser simpático —, mas, se desejar, pode me chamar de Edu. Mal consegui pronunciar o u do Edu, pois ela me cortara. — Eduardo, o que te trazes aqui? Tu, te, trazes: tudo relacionado à segunda pessoa do singular. Comum em Portugal, mas o sotaque era de brasileira! — Sou aluno da Cris... quero dizer, era até hoje. Estou sendo obrigado a parar com o curso... Quem disse que não te entendo?
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— Sinto muito, não podemos te deixar fazer aula de graça. Não parecia disposta a continuar me escutando, pois voltou para sua mesa e sentou-se, calculando recibos em sua máquina jurássica. — Não é isso que quero — disse, já ficando um pouco sem graça. — Vim falar com a senhora porque queria saber se há alguma vaga disponível de professor de natação. Isso me faria poder continuar tendo aulas. Ajustou os óculos mais uma vez, me olhou de alto a baixo e respondeu: — Estamos organizando uma nova turma infantil e, de fato, precisamos de um novo instrutor, mas tu não te encaixas ao cargo: é muito novo. Naquele momento, senti estar vivendo uma espécie de preconceito: o preconceito etário. Ela não analisou minhas qualidades, apenas se fixou na idade. E, como se não bastasse, concluiu grosseiramente: — Aliás, se estás tão preparado assim, por que queres continuar tendo aulas? Queria responder-lhe como deveria, mas não sabia que palavras usar, por isso fiquei quieto. Dispensando-me, disse que tinha muito trabalho e que precisava, ainda naquele dia, encontrar um instrutor que estivesse à altura.
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As braçadas e pernadas foram tantas na aula de natação que, quando cheguei em casa, não quis saber de conversa nem com minha amiga estelar. Tomei um banho, comi um desses macarrões instantâneos e fui dormir antes mesmo das seis da tarde. A canseira era tanta que, minutos antes de pegar no sono, pensei o quão seria difícil acordar no dia seguinte às seis da manhã. E não acordei! Meu próximo dia já estava começando com o sono interrompido: por volta das três e meia da manhã, o telefone tocou. Levantei para atender, sem imaginar quem é que poderia estar ligando àquele horário. Não sabendo se falava Boa noite ou Bom dia, fiquei no Alô! Quem chamava era Graça, a secretária turbinada de meu pai. A moça tem silicone nos seios, no bumbum, nos lábios, nas bochechas, nas panturrilhas e onde mais coube a tal prótese. Enquanto ela pensa em aumentar o resto do corpo, esquece-se de se concentrar no cérebro, que é do tamanho de uma ervilha. — Alô! O seu Ricardo está em casa, por favor? É um assunto urgente — disse a voz de quem deveria ter acabado de colocar botox. Não precisei nem acordar meu pai para avisar que o telefonema era para ele. Ele já estava em pé, querendo saber quem é que nos despertava em plena madrugada. Quando revelei o nome da figura, ele pulou e, num ataque marcial, tirou o telefone de minhas mãos. Conversaram sobre números e logo ele desligou. — A Graça está na Austrália, atendendo cliente. Para ela, não passa das quatro da tarde — informou e voltou ao seu quarto. Como o dia estava quase amanhecendo, preferi não voltar para a cama. Fui ver as estrelas. Nina estava no lugar de sempre, mais
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chamativa do que nunca. Dessa vez, achei melhor apenas me sentar e dialogar com ela; contar-lhe um pouco de minha vida. Comecei falando sobre o karaokê, que, embora não estivesse nem um pouco a fim, seria obrigado a ir, afinal, era minha formatura que estava em jogo. O bom era que naquela festa poderia acontecer de tudo, inclusive alguns desejos serem realizados... Mudei de assunto e comentei sobre a forma como fui tratado pela gerente do clube, que não passava de uma antipática. Se algo pudesse ser feito... Para finalizar, desabafei sobre meu pai, sobre o menosprezo que ele vem tendo comigo há anos. Sinto falta do verdadeiro Ricardo. Narrar a vida a uma estrela faz a hora passar muito rápido. Quando olhei para o relógio ao meu lado, já eram seis e cinco. O sol estava chegando, e Nina, indo embora.
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04. Se há música, há poesia
Antes de agora, lembro de ter me apaixonado uma única vez, há pouco mais de um ano. Tinha acabado de completar 13 na época. Conheci a tal garota no único lugar que frequento além da escola. No início da aula de natação, tudo estava perfeitamente normal, até eu notar que, na piscina ao lado, uma nova turma começaria o curso de principiante, com outro professor, no mesmo horário. Numa das diversas espiadinhas que dei, pude perceber que entre as alunas, havia uma fora de série: usava maquiagem até para mergulhar. Comprovei, com um brilho no olhar, a tão famosa teoria do amor à primeira vista. O problema era que eu não fazia ideia de como me aproximar. Sequer tinha coragem de ir até ela e perguntar seu nome. Passei apenas a observá-la. Chegava minutos mais cedo e saía minutos mais tarde. Certo dia, outra garota entrou no clube e, ao ver aquela que estava mexendo com minha cabeça e com o coração, deu um grito, acenando: — Ei, Luciana, olha eu aqui! Quem disse que não te entendo?
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Luciana era seu nome. Isso era pouco, mas para mim era um grande passo. Graças à Internet, descobri que ela tinha um perfil num site de relacionamentos. Resolvi adicioná-la à minha lista de amigos, mesmo temendo que ela recusasse meu convite. Como recado, deixei apenas um “oi”. Minha desconfiança de que ela clicaria no botão NÃO CONHEÇO estava começando a vigorar, até que, três dias depois, recebo uma mensagem comunicando que ela havia me aceitado e um recado dela, que dizia: | oie... vc eh o garoto q faz natação no msm horário q eu, né? bjos!! | Só o fato de ela ter me respondido já me deixou estupidamente feliz. Quando vi que ela deixou um “bjos”, meu coração até disparou. Não podia deixar de respondê-la. E também, pela primeira vez, depois de digitar tudo o que queria, acrescentei um “beijos” no final. O tempo foi passando, a gente trocou recadinhos e conversou por horas. Mesmo nos conhecendo quase que totalmente de forma virtual, tinha a ilusão de que essa nova amizade pudesse virar um romance. Dúvidas começaram a rondar minha cabeça: quando seria o momento certo de mandar a primeira indireta? Como eu faria isso? Seis meses depois, tomei uma decisão. Enviaria uma frase subjetiva, como aquelas muitas metáforas contidas na maioria das músicas. No entanto, quando entrei em seu perfil para lhe deixar esse recado, me deparei com a novidade: “Em um relacionamento sério”.
***
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O dia do karaokê havia chegado mais rápido do que eu imaginava. Meu objetivo era achar alguma desculpa para não comparecer àquela festa. Belinha, no entanto, insistiu tanto que eu fiquei sem ter o que fazer. Para ter a total certeza de que eu não iria “dar o bolo”, Belinha fez questão de passar em casa, para irmos juntos. Antes de sair, deixei um bilhetinho, mesmo sabendo que meu pai nem iria notá-lo. O colégio estava repleto de gente. Dali a alguns minutos, chegaram Letícia e Claudinho. Juntos. Belinha já quis insinuar algo, mas Letícia deu uma bela explicação. — Não sou garota de andar em ônibus e, como moro muito longe daqui, resolvi pegar carona com o pai do Claudinho. A conversa foi interrompida por um carro de teto solar, fazendo o maior barulho e soltando fumaça escura, sem falar do hardcore no último volume. Chegavam as baladeiras. Desceu Cristina, com seu cabelo verde, curto e espetado, usando um top de couro, exibindo o piercing no umbigo e a borboleta de fogo no braço. Em seguida, desceu Helena, com sua longa cabeleira cor-de-rosa e um novo piercing no nariz, trajando um vestido vermelho megacurto e botas de soldado. Abriu-se, então, a porta do motorista e desceu Frida. O cabelo metade azul e metade amarelo combinava com a caveira colorida tatuada no enorme busto, que estava sendo destacado pelo imenso decote da blusinha preta de uma banda de rock.
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As três subiram as escadas da escola, como se fossem verdadeiras rockstars. — E a Ana? — perguntou Belinha, como se estivesse mesmo preocupada. — Gripe. Não pôde vir. Mas ninguém estava gripada, de fato. O motivo da ausência de Ana é que seus pais, ao conhecerem as “amigas”, não deixaram a filha sair de casa — especialmente porque a motorista tinha apenas 14 anos.
*** Não demorou muito até que ouvíssemos a voz da professora de português chamando os alunos pelo microfone para que se sentassem em frente ao palco e começassem a ouvir... e também a cantar. As primeiras a cantar foram as baladeiras. Escolheram uma música bem “paulera”. Impressionantemente, a voz delas era muito boa. Foram muito aplaudidas, por uns até de pé. Já eu, não via a hora de tudo aquilo acabar. Muitos cantaram, inclusive Belinha e Claudinho, que estava se apresentando no momento em que eu olhava Letícia, linda, sozinha, curtindo as apresentações. Comecei a estralar os dedos e a roer as unhas, torcendo para conseguir coragem para ir até ela e expressar o que sentia. Soltei a mão da boca e, com o coração acelerando, respirei fundo. Com as pernas tremendo mais do que vara verde e vontade de chorar
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de tão nervoso, fui vagarosamente até ela. Assim que me aproximei, sentei ao seu lado. Ela nem percebeu que eu estava ali. Esfregando e espremendo as mãos, a chamei de Lê. Ela olhou para mim. Com os olhos quase lacrimejando e com o coração saltando pela garganta, comecei a falar como me sentia. Desabafei tudo o que estava em meu peito. Falei que me sentia nas nuvens quando via os cabelos louros balançando com o vento, os olhos brilhantes e reluzentes, o sorriso marcante e cativante e, continuei falando, que esse sentimento ficava ainda mais forte quando escutava o gracioso som de sua voz. Não precisei mais enrolar, porque minha boca disse automaticamente as palavras: “quer namorar comigo?” Ainda com as mãos e pernas trêmulas, aguardava uma resposta. Ouvi, então, a voz de Belinha. — Esse suor todo é porque você será o próximo a cantar? Então, caí na realidade; estava sonhando acordado, como vivo fazendo — mesmo sem perceber, meu olhar desvia para o nada e histórias que eu gostaria que acontecessem brotam na mente. Vi, porém, que, se nem dentro da minha imaginação conseguia ouvir um “sim” de Letícia, de que me adiantava pedir no mundo real? Peraí! Ela disse que eu seria o próximo a cantar?! Assim que Claudinho terminou a música e desceu do palco, Belinha me empurrava, dizendo que já até tinha escolhido a música que eu cantaria. Para ajudar, ela optou por um estilo mais calminho: o romântico. A letra falava sobre desilusão.
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Subi no palco. Congelei. Segurava o microfone com tanta força, que parecia que eu ia quebrá-lo. Com os olhos arregalados, observava quase cem pessoas me fitando da cabeça aos pés. Nem respirar eu conseguia. A música começou a tocar. Nem um simples sussurro saía de minha boca. Finalmente, com o apoio dos colegas, consegui pronunciar o primeiro verso. Fui relaxando, até que resolvi ignorar a plateia e soltar a voz. A cada estrofe que cantava, olhava para Letícia. Na primeira estrofe, ela me assistia, sorrindo. Na segunda estrofe, uma surpresa: Claudinho se aproximara dela. Na terceira, ela deixou de me olhar e começou a rir com ele. No refrão, a punhalada: eles se beijaram. Ao ver a cena, uma única lágrima amarga rolou pelo meu rosto. Fui aplaudido de pé por ter posto emoção na música. Tentei acordar, mas dessa vez não era sonho.
***
Cheguei em casa perto da meia-noite. Para minha surpresa, o Seu Ricardo estava, de roupão, sentado na poltrona da sala, aparentemente à minha espera. — Comecei a ler o jornal e acabei perdendo a hora. Vou me deitar que já é tarde! Levantou e foi para o quarto. Também fui para o meu, onde passei o domingo todo trancado.
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Durante as noites desses dois dias, fiquei de cara virada com Nina. Como ela deixou isso acontecer? Mas, por mais que eu a chamasse de tudo quanto é nome, ela apenas ficava lá, como se me observando. Olhava-me como se eu fosse o culpado pelo que ocorreu. E, de fato, eu era. Quando fiz o pedido “de Letícia quero um beijo cinematográfico”, não especifiquei em quem esse beijo deveria ser dado. Ele realmente aconteceu; não comigo, mas aconteceu.
***
Na segunda-feira, logo que o despertador me acordou, levantei disposto para mais um dia de aula. Se havia alguma melancolia dentro de mim, ela foi embora, junto com o final de semana. Troquei de roupa rapidamente, como de costume. Fiz um xixi rapidinho, como de costume. Saí sem tomar café, como de costume. Fui com passos largos até a escola, como de costume. Chegando lá, esperava ver toda a galera na maior euforia, como de costume, mas estavam todos num momento deprê. Fui falar com a Belinha, que também estava cabisbaixa, para saber o que estava acontecendo. — Você não ficou sabendo? Aquela pergunta, muito conhecida, já me preocupou. Foi então que soube das mortes.
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05. Sabe da última?
A morte, embora seja nossa única certeza, é cruel para quem fica. É ainda mais cruel quando ela leva alguém que tinha a vida toda pela frente. — Sábado, após a festa — Belinha começou a contar —, as baladeiras saíram de carro, praticamente todas bêbadas, dizendo que iriam a outra festa. Foi no caminho que aconteceu o acidente. Eu poderia ter até pensado em atropelamento ou em algum outro tipo de acidente que não envolvesse as garotas, mas, devido à embriaguez delas e ao automóvel que soltava a fumaça mais escura que já vi, pude imaginar o fim da história. E o pior: antecipado por um poste.
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Durante a aula, o silêncio pairava pela sala. Só com um acontecimento desses para acalmar os ânimos de toda aquela galera. Nunca havia percebido que a voz da professora de geografia era tão irritante.
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Mas não sei se naquele momento o que mais me doía eram os ouvidos, o coração, por ver Letícia no maior love com Claudinho, ou a alma, por ver Ana solitária num canto da sala. Desde o ano passado, conheço Ana e nunca a tinha visto tão triste como naquele dia. Talvez por suas melhores amigas terem partido, ou talvez porque elas eram suas únicas amigas. Não sabia se era o momento certo, mas virei para trás e, ignorando a cena que me dava até ânsia de vômito — Letícia e Claudinho como dois legítimos apaixonados —, falei com Belinha. Perguntei se não era certo apresentar novos amigos à Ana. Ela logo captou a mensagem. Não demorou para as duas conversarem e um singelo sorriso brotar na face de Ana, forçado pelas histórias absurdas de Belinha. O sinal do intervalo não demorou a soar. Saí, pensando em passar o pouco tempo livre junto com Belinha e Ana, mas não pude, pois ambas ficaram praticamente os vinte minutos dentro do banheiro feminino. Não queria fingir que nada estava acontecendo e ficar de vela entre Letícia e Claudinho. Sendo assim, sentei num dos degraus da escadinha que leva até o hall da escola e permaneci ali, sozinho, esperando o tempo passar.
***
Após a torturante aula, fui para o clube, mas não para fazer aula de natação. Fui para me despedir — dessa vez, despedida final — de 52
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Cris e dos outros alunos. Cris ainda não havia chegado. Esperei um pouco e ela logo surgiu de dentro do vestiário. Dando um último adeus, segui em direção ao portão, mas parei. Dei meia-volta e regressei às piscinas. Fiquei à beira da olímpica para que, mesmo sem entrar, eu pudesse assistir à aula, pois era a coisa que eu mais gostava — e que ainda gosto. Cris notou minha presença, mas fingiu que não me viu. Uma hora depois, ela havia terminado a aula. Eu já havia passado muito tempo lá, ainda mais para quem não tem permissão, por isso resolvi ir para casa, mas, antes que eu pudesse dar três passos, senti uma mão molhada sobre meu ombro. — Edu... Ai, desculpe, molhei você? — Não seria uma aula de natação se não tivesse água, não é mesmo? — brinquei com Cris. Dando uma risadinha, continuou seu pensamento: — Hoje você realmente me mostrou que é apaixonado pela natação. O clube vai promover no próximo mês um campeonato de natação. É só para membros, mas, se você quiser participar, nós damos um jeitinho. A propósito, se ganhar, o prêmio é o suficiente para pagar um ano inteiro de curso. Cris tinha somente ótimas ideias — talvez por isso ela fosse a única pessoa a quem procuro escutar com atenção. Ela pediu para que eu aguardasse, enquanto corria até a secretaria para pegar a ficha de inscrição.
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Sentado sob a sombra de um guarda-sol, próximo à piscina, pude observar um ser de pulôver com saia de renda, salto-agulha com chapéu de palha e luvas de boxe com um cinturão de ouro. Não podia ser outra pessoa senão Emília, a gerente. Tudo estava em plena paz até ela resolver passar do outro lado da piscina. Olhando para mim, conseguiu me reconhecer: — Ei, tu! Não és mais sócio! Não podes ficar aqui! Vou te pegar, miúdo safado! O que eu fiz? Corri em direção contrária. Ela veio pela esquerda, eu fui pela direita. Quando dei por mim, estávamos ela e eu, como gato e rato, correndo pela borda da piscina. Parei quando escutei o tchibum. O salto-agulha fez com que a criatura torcesse o pé, o que resultou numa perda de equilíbrio e, consequentemente, numa queda dentro da água. Debatendo-se, como se não soubesse nadar — definitivamente ela não sabia —, começou a gritar: — ACUUUUUDA! Essas palavras me levaram ao passado.
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Dia 23 de maio de sete anos atrás. Piquenique familiar próximo ao Lago das Pedras, sob a sombra de uma velha macieira.
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Estávamos os três sentados ao redor de uma velha toalha de mesa, na qual havia uma cesta cheia de comida no centro. Sobre nossas cabeças, uma colmeia, pendurada num velho galho da árvore, estava prestes a cair. Paz, tranquilidade, comida... Tudo perfeito! Quer dizer, perfeito até um forte vento soprar. Ele não levou nem a cesta, nem a toalha, mas balançou o galho, que cambaleou e desajeitadamente caiu. Mel voou em nossos rostos, quando a colmeia colidiu com o chão. Meu pai me pegou no colo e saiu correndo para a direita, em direção à saída do parque. Minha mãe, ao contrário, correu para a esquerda, em direção ao lago. Sem pensar duas vezes, ela se atirou na água. As abelhas, medrosas de água, resolveram ir embora. Sinceramente, aquela cena parecia uma de desenho animado. O único problema era que, além de molhada e da chapinha estragada, minha mãe não sabia nadar. A profundidade do lago não era muita. Era, contudo, suficiente para minha mãe quase se afogar. Debatendo-se, começou a gritar: — ACUUUUUDA! Num súbito ataque de heroísmo, meu pai correu, tirou a camiseta e se jogou no lago, pronto para salvar a vida de sua amada. Após nos certificarmos de que tudo estava bem, demos boas risadas. E como disse meu pai: — Se um dia estiver precisando de ajuda, todos saberão que é você. Ninguém mais tem um pedido de socorro tão escandaloso.
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Voltando ao presente, vi que três homens de branco vinham em minha direção. Ou melhor, em direção à Emília. Enquanto tiravam a mulher da piscina, um deles me contava: — Você a conhece? Ela apareceu há três anos no Instituto Psiquiátrico, sem saber o nome nem onde morava. Ficou sem falar por quase um mês. No início, pensávamos que ela pudesse ser muda, mas do nada ela começou a falar um nome, seguido de “meu filho”. Decerto, antes de entrar em estado de choque, queria dizer algo ao filho. Aquela história estava começando a me deixar pensativo. — Aos poucos, ela foi retornando ao estado normal. Quer dizer, não tão normal; você já deve ter percebido pelas atitudes. Então, num dia, ela disse que fugiria do hospital; no outro, já não estava mais lá. Recebemos a denúncia de que talvez ela estivesse por essas redondezas. A história acabou aí, pois um dos outros dois homens pedia a ajuda desse um que conversava comigo, para colocarem a camisa de força na mulher que tentava, de todas as formas, se livrar dos musculosos braços que a detinham. Sem saber mais em que pensar — sem saber nem se eu deveria pensar em alguma coisa — fui a caminho da saída. Esqueci completamente de Cris que, quando voltou com o papel na mão, não encontrou nem Edu, nem Emília.
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Dessa vez, ao chegar em casa e olhar para o céu, não precisei falar nada à estrela. Ela já sabia o que me responder: — Elis. Eu, entretanto, não sabia o que isso significava.
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06. Saindo de cena
A coisa que mais gosto, depois de Letícia e da natação, é ficar em casa. Não há nada melhor do que passar o dia todo deitado na sala com o controle remoto da televisão de quarenta e duas polegadas na mão. Ainda mais quando é dia de folga, devido a uma reunião de professores. — Correio! — ouvi a perturbadora voz no portão. Era uma terça-feira normal. Não havia ninguém em casa a não ser eu mesmo. Meu pai deveria estar em seu escritório, fazendo coisas que um contador deveria fazer. — Correio! — gritou novamente, desta vez tocando a campainha. Baixando o volume do televisor, como se fosse interferir em alguma coisa, e pondo os chinelos que estavam ao lado do sofá, levantei e, em passos lentos fui até a porta, como se estivesse tomando cuidado para não acordar alguém. — Boa tarde, — titubeou um pouco para falar, fitando-me da cabeça aos pés — você conhece Ricardo Fischer? — perguntou, enquanto lia o envelope.
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— Sim, é meu pai — respondi com voz de um garoto que só tem 14 anos e não quer ser incomodado. — Por favor, assine aqui — pedia, enquanto me entregava a prancheta com o recibo. Pegando a prancheta de volta, ele me entregou o envelope amarelo e me pediu um copo de água. Entrei em casa e, deixando a tal carta sobre a mesinha de canto, caminhei preguiçosamente até a cozinha. Regressando à sala, com uma das mãos segurando o copo e a outra na nuca, dei um sorriso amarelo mais falso que nota de três reais e entreguei-lhe o vaso, como diria minha tia argentina. Ele estava lá, mostrando os dentes para a televisão, tentando escutar o que a apresentadora daquele programa de perguntas e respostas falava aos participantes. No entanto, ao notar minha presença, desviou o olhar e mirou fixamente para o copo. Tomando-o de minha mão, o pobre trabalhador levou o copo até a boca e o virou rapidamente, como se não visse nada líquido há dias. Podia-se até escutar o barulho da água descendo e molhando a garganta seca e inflamada. Agradecendo-me pela paciência (ou seria pela água?), ele se dirigia até a porta que, assim como está sempre aberta às visitas para que entrem, está também para que saiam. Deixando o pequeno portão de ferro aberto, saiu. Ignorando o portãozinho, voltei ao sofá, apanhando o controle remoto e aumentando o volume, até deixá-lo num som normal. Ao virar 60
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meu rosto para o lado, vi que, no sofá menor, estava minha calça. Só então, pude perceber que havia estado o tempo todo de cueca.
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Os ponteiros do relógio já apontavam duas e quinze da tarde, quando escutei o ronco do motor. Olhei pela janela, através da fresta da persiana, e quase caí para trás. Minha tia Cecília e minha prima Lurdinha, que eu não via, tipo, há sete anos, encostavam em frente de casa. Assim que abri a porta, Tia Ciça desceu do carro mais gorda do que nunca e, rebolando seu corpo graxo, veio em minha direção. — Oh, Edu, quanto tempo. Vem dar um abraço na titia! Dito isso, ela praticamente me obrigou a abraçá-la, espremendo-me entre suas dobrinhas. Lurdinha, mais maloqueira do que antes, com o boné virado para trás, camiseta rasgada, jeans capri cheio de correntes e mascando um chiclete de menta só me cumprimentou com uma única saudação: — Qual é, cara, beleza? — Beleza... er... Lurdinha. Fui corrigido por minha tia. — Lurdinha, não! Chame-a de Lu-nar — e começou a imitar um astronauta pela sala, caminhando vagarosamente, como se sem gravidade. Quem disse que não te entendo?
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O olhar de desentendido que ornamentou minha face a fez falar com um sotaque de caipira que tenta ser socialite: — Essa menina vive no mundo da lua. Ora está assim ora está assada. Falando em assada, tem um franguinho aí? — É b em prov ável que não. Não costumamos i r muito ao supermercado. — É por isso que você está tão magrinho. Mas não se preocupe. Com sua tia aqui, você não passará mais fome! A personalidade dela, com certeza, não havia mudado. Continuava pensando somente em comida. E foi enquanto ela revirava a despensa que falei: — Que milagre ver vocês por aqui. — Como assim milagre? — disse com um olhar dramático, encenando uma peça de teatro. — Seu pai impôs que viéssemos aqui. E eu vim para cuidar desse meu sobrinho fofíssimo... Ela comprimiu minhas bochechas com seus dedos pesados. Minha expressão facial, além de demonstrar uma sensação desagradável devido ao aperto, também expunha um ponto de interrogação. — Oh, você ainda não sabe, né, coitadinho — disse Tia Ciça, ainda dramatizando. — Lurdinha, entregue a carta a ele. Tirando do bolso da calça um pedaço de papel, Lurdinha me disse que meu pai havia me deixado um recado. Desdobrei o papel e li: “Eduardo, Graça precisa de mim. Vou à Austrália! Sua tia Cecília ficará com você”.
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Só o fato de o bilhete ter sido assinado com “Ricardo” e não com “seu pai” ou coisa assim mostrava que realmente era ele quem o havia escrito. Após meus olhos correrem o pedaço de papel, meio que gelei. Não pelo fato de ele estar distante — já estou, de certa forma, acostumado com isso —, mas porque me lembrei do que disse à Nina: que me sentia menosprezado por ele. Agora, ele foi para outro país, ou seja, não há mais como ele me ignorar. Seria coincidência? As palavras “inchadas” de minha tia me fizeram voltar à realidade. Na verdade, foi uma pergunta que ela fez: — Edu, você já foi ao cemitério hoje? Aquela seria uma pergunta um pouco estranha se fosse um dia qualquer, mas foi graças a essa interrogativa que lembrei: fazia, naquele dia, exatamente três anos que minha mãe havia falecido.
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Fuc, fuc, fuc, vrum... O carro reclamava das inúmeras lombadas e buracos pelas ruas da cidade. Se aquele automóvel fosse gente, certamente já era para ele estar enterrado no lugar aonde estávamos indo. Andar de carro, ainda que velho, me faz viajar. A mente, do nada, começa a imaginar coisas que eu não acharia nada ruim se acontecessem. No meio do caminho, comecei a lembrar de Letícia. Quem disse que não te entendo?
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Ainda não conseguia aceitar que a havia perdido para o Claudinho — não que a estivéssemos disputando. — Edu, por que está tão calado? Por acaso está pensando em alguém especial? — questionou minha tia, olhando-me pelo retrovisor, como a maioria das pessoas da minha família paterna costuma fazer. Pai, Filho, Espírito Santo, Amém! Será que eu tinha uma parenta bruxa e não sabia? Ela bem que leu meus pensamentos. Permaneci calado até o final da viagem — não estava muito a fim de puxar papo. Por consequência, assim que chegamos, Lurdinha me disse ao pé do ouvido: — Se você continuar sendo bonzinho assim, ela vai te apelidar de Edu-cado.
***
Enquanto Tia Ciça e eu fazíamos nossas orações próximo ao túmulo da minha mãe, Lurdinha resolveu fazer novas amizades em pleno cemitério. De olhos abertos, eu encarava a pequena fotografia da minha mãe, que se encontrava fixada ao jazigo. Automaticamente, imaginei-a com óculos fundo de garrafa, com um cabelo castanho-alourado e vestindo um paletó com bermuda. Não queria acreditar no que ela havia se transformado.
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Duas alamedas atrás, estava Lurdinha, que gritou, chamando não só minha atenção como a de todos que estavam visitando seus saudosos amigos e familiares. — Edu, venha conhecer o Dudu! “Dudu? Que apelido mais infantil...”, pensei comigo. Mesmo assim, fui ver quem era o tal novo amigo da minha prima. Sobre um túmulo estava um garoto de mais ou menos a mesma idade nossa, com roupas e visual góticos e uma foto do demônio nas mãos. Morri de medo dele. Principalmente porque, ao me ver, ele me olhou intensamente e com voz macabra, disse: — O sangue do diabo corre por suas veias... E o susto foi ainda maior quando Lurdinha suspirou: — Ai, ele é tão romântico!
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E, depois de passarmos no supermercado, voltamos para casa, onde minha tia me fazia comer mais e mais, mesmo me ouvindo dizer que já estava satisfeito. Pouco antes de dormir, ouvi o barulho dos trovões. Nuvens se colidiam sobre nossas cabeças. Aquilo só significava uma coisa: havia chuva a caminho.
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07. Seja bem-vindo de volta
Podia ouvir o barulho das pesadas gotas de água batendo na calha de metal e sentir o cheiro da terra molhada que o vento fazia questão de soprar através das frestas da janela. O frio dava preguiça. Era tão aconchegante ficar sob o edredom quentinho, num colchão macio, com a cabeça num travesseiro viscoelástico. Ter que se levantar sabendo que seria um dia ruim era o pior de tudo. Muito cedo e com sono, fui espreguiçando meu corpo ainda deitado, preparando-me para sair da cama quente e encarar o ar gelado. Enrolei mais um pouco para ver se perdia a hora e entrava na segunda aula, mas não demorou até minha tia aparecer na porta e, com seu jeito amável, me fazer pular da cama. — Levante, garoto! Não é porque seu pai não está aqui que você vai faltar à aula. Como se meu pai fizesse diferença. Bem, de fato fazia: se ele estivesse em casa, com certeza nem lembraria de mim e eu poderia, até mesmo, aparecer uma vez por mês na escola, já que ele não se incomodaria nem um pouco.
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Naquela manhã, a primeira pessoa a sair de sua casa provavelmente foi Belinha que, maluca como só ela consegue ser, pegou sua bicicleta e, vestindo uma capa de chuva, saiu pedalando rapidamente. Ao mesmo tempo em que equilibrava os livros e cadernos, tomava cautela para não ter seu penteado desmanchado. Eu queria sair no horário de sempre, mas, graças à minha tia, que fez questão de me levar até a porta do colégio de carro, tive que esperar, pois, por motivos óbvios, sua lata-velha não quis ligar. Enquanto esperava, sabia que o ônibus de Claudinho e o carro do pai de Letícia provavelmente já estavam chegando à escola. E não adiantava eu dizer à tia Cecília que eu poderia muito bem ir andando, ela estava decidida a me dar uma carona. O motor do “museu”, que queria porque queria pegar mesmo sem sucesso, roncava, e alto. A vizinha esperava seu ônibus no ponto perto de casa. Estava ali havia mais de quinze minutos, sob seu guarda-chuva, aguardando o veículo que a levaria até a empresa onde trabalhava. Ficou em pé, mais um pouco, esperando seu único meio para transporte. No entanto, sua espera foi à toa, visto que o motorista passou correndo a pé. — Senhora, infelizmente o ônibus quebrou. Na garagem de casa, tia Cecília continuava tentando fazer seu carro funcionar, até que um milagre aconteceu: a geringonça finalmente deu sinal de vida. Entrei no carro correndo, pois sabia que já estava em cima da hora. E literalmente estava: debaixo do banco da frente estava um relógio de pulso que minha tia havia perdido há mais de um mês.
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Assim que minha tia engatou a ré, viu, pelo retrovisor, Marta com seu guarda-chuva parada bem no meio do caminho. Minha tia abaixou o vidro para saber o que a vizinha queria, até ouvir dela: — Por acaso, você me oferece uma carona?
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Após deixarmos Marta na porta do local de trabalho, seguimos em direção à escola. Eu, sempre calado, só ouvindo o que minha tia falava. Às vezes, quando fazia uma pergunta recíproca, respondia com “sim” ou “não”, mas nada além disso. Cheguei ao colégio dez minutos atrasado. Consegui convencer a secretária rabugenta a me deixar entrar. Para meu azar, a primeira aula era com a professora Renata. Estava muito nervoso com a reação daquela mulher ao me ver chegando depois da hora. E se ela me mandasse à diretoria? E se ela não me deixasse entrar e eu tivesse que ficar esperando a aula acabar, do lado de fora da sala? Para minha felicidade, ela estava de bom humor. — Ora, senhor Eduardo, chegou cedo para a segunda aula — como eu odiava aquela ironia. — Eu passei uma atividade em dupla e, como você não estava presente, só lhe sobrou o novo aluno para parceiro. Novo aluno? Quem seria o tal alun... Não podia acreditar no que meus olhos estavam vendo: era Dudu — sim, o mesmo. Porém uma simples frase me mostrou que a sorte estava ao meu lado naquele dia.
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— Professora, na verdade eu também estou sem ter com quem fazer o trabalho. Se o Edu quiser, pode fazer comigo. — Ora, senhor Eduardo (estava começando até a gostar do “senhor”), o senhor deu sorte. Poderá escolher entre ele e Letícia. E, que sorte! — Professora, a Letícia e eu já estamos até acostumados a fazer trabalhos juntos, então, farei o trabalho com ela. — Ótimo. Então, esqueci seu nome — ela falava com o outro Eduardo —, o senhor terá que fazer o trabalho sozinho. — Tá bom, dona. — Na verdade, não — interagiu Letícia novamente. — O Cláudio, que não veio hoje, também está sem parceiro. — Excelente. O senhor — virando-se outra vez para Dudu — fará o trabalho com o Cláudio. Ah, e mais uma coisinha: “dona” é a sua avó. Aquela forma com a qual só professora Renata sabia e tinha liberdade de falar começou a me agradar um pouco. — Então, Letícia — resolvi perguntar, sentando-me ao lado dela —, por que não quis fazer o trabalho com o Claudinho? — Você não ficou sabendo? Nós terminamos. Desde o início, sabia que não ia dar certo, mas tive pena dele e resolvi lhe dar uma chance até eu descobrir que ele fazia várias postagens no perfil dele contra modelos. Ai, que garoto mais fingido. Se arrependimento matasse... O que eu mais quero agora é passar uma borracha e fingir que nada aconteceu.
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O que estava acontecendo? A vida estava tão boa comigo. Só podia ser sonho. Mas, não era, pois estava bem acordado quando Renata disse que aquele que não lhe desse ouvidos, além de ficar sem a nota do trabalho, ficaria com um ponto negativo no histórico escolar.
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Os minutos do intervalo foram incríveis: passei junto com Letícia e mais ninguém. Éramos somente nós dois. A alegria era tanta que eu não tinha fome, o estômago não se sentia vazio. Ela, sendo uma modelo em busca do corpo perfeito, também não costumava comer nada na escola — tanto a merenda como os alimentos vendidos na cantina eram calóricos demais. Enquanto ela passava uma espécie de creme nas mãos e no rosto, comentou que, sábado à noite, teria um importante desfile no shopping, no qual ela seria manequim da nova coleção de outono-inverno. Convidou-me para assistir. Não pensei duas vezes e aceitei na hora. Falei que seria uma honra acompanhar minha melhor amiga. E obtive como resposta: — Você é tão carinhoso. É de um namorado assim que eu preciso: inteligente, bonito, amável... Raro nos dias de hoje. Será que aquilo foi um tipo de cantada? O que eu deveria responder? Antes que eu pudesse pensar em alguma coisa, ela disse:
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— Aquele garoto novo... Não acha que deveríamos chamá-lo para se sentar com a gente? Afinal, ele precisa de novos amigos e, se for um Eduardo tão legal como você, vale a pena formar um elo de amizade. Suspirei e respondi: — Nem todos os Eduardos são iguais... Já não está bom ser amiga de um? Ela abriu um sorriso e, dizendo que eu era um bobo por estar com ciúmes, me deu um tapinha no ombro. Sem motivo válido, caímos na risada, que foi interrompida pelo sinal anunciando que já era hora de voltarmos para a sala de aula e aprender um pouco mais sobre textos descritivos. Se eu quisesse descrever aquele momento, com certeza seria como num poema: Ela, eu e o som da chuva, Chuva mágica e cristalina E, nos olhos da linda menina, Via a alegria brotar: Não como uma flor, Mas com um ar de amor, Amor maior que inundava meu coração. Com isso, ficou completamente descartada a hipótese de eu virar poeta. Mas quem pensaria em ser escritor num momento como aquele?
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As três últimas aulas foram as melhores da minha vida. Não porque eu tive que escrever uma redação sobre Marte, nem porque eu tive que debater sobre Nero, e muito menos porque eu tive que resolver uma equação do segundo grau. O que deixou as três as melhores aulas foi o fato de Letícia ter se sentado ao meu lado em todas elas. Como combinamos de fazer o trabalho de História naquela tarde, íamos até minha casa. Pensando que seria constrangedor fazer minha futura namorada andar no carro velho da minha tia e apresentá-la à Lurdinha, que com certeza lhe faria mil e uma perguntas sobre como seria a vida de modelo, insisti para irmos à casa dela, mas a desculpa da distância me fez ficar com todas as preocupações. Seria um milagre se Letícia conseguisse gostar daquela tarde. Milagre maior foi quando, ao sair da escola, vi de frente para o portão o carro preto e blindado do meu pai. É claro que dizer que o carro é blindado é só força de expressão, pois ele, de tão especial, só tinha a película de proteção solar e privacidade nas janelas. Aquilo só significava uma coisa: meu pai havia desistido de ir à Austrália e passou no escritório de contabilidade para pegar seu automóvel e avisar que não trabalharia no período da tarde. Assim que meu pai saiu do banco do motorista, comprovando minha suspeita, pensei ser o momento mais feliz que passei graças a ele. Estava enganado. Assim que eu o avisei que Letícia iria conosco, ele fez um gracejo, dizendo que, então, precisava por mais água no feijão. Abriu a porta de trás e disse que era para eu ir com ela, pois o banco da frente estava ocupado por... sua maleta. Esse foi o momento mais feliz!
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Ele estava muito mudado. No meio do caminho, ele começou a falar, enquanto eu olhava seus olhos pelo retrovisor central: — Filho, você gostava muito das aulas de natação, não é mesmo? Balancei a cabeça, confirmando. — Pois, a partir de amanhã, quer faça chuva quer faça sol, a Cris estará lhe esperando de volta. Com um sorriso de orelha a orelha, balbuciei um obrigado.
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Bastou algumas curvas e estávamos em casa. Tia Cecília e Lurdinha ainda estavam lá, preparando o almoço. Assim que entramos, ela nos chamou para almoçar. A mesa estava farta: arroz à grega, macarrão parafuso, maionese de batata e ovos, virado à paulista, tutu de feijão, feijoada, carne assada, bife frito, filé grelhado, salada de alface, de tomate, até de ovos. Pelo jeito, todo mundo estava inspirado naquele dia, inclusive tia Ciça. Cada um pegou um pouco de cada coisa, e todos nos admiramos com o prato de Letícia, que continha apenas meio filé grelhado e umas folhinhas de alface. — Isso é o seu almoço? — contestou meu pai. — É, não posso comer muitos carboidratos e proteínas. É melhor comer esse tanto que me satisfaz do que ser como uma dessas garotas com bulimia e comer de tudo para depois expelir. Não quero, mesmo, ser assim.
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Por sorte, Letícia não disse que era modelo, senão Lurdinha não a deixaria em paz. Almoçamos. Sobremesa? Para nós uma fatia de bolo; para Letícia, uma maçã. Após a refeição, Tia Cecília disse que já estava indo e, mandando beijos a todos, ligou sua lata-velha e saiu, soltando fumaça.
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Em casa ficamos meu pai, Letícia e eu. E meu pai era o único que não precisava trabalhar. Peguei meu caderno de História para ver as anotações necessárias para fazer o trabalho que, dessa vez, era um pouco mais complicado: tínhamos que fazer uma maquete com sucata, em parceria com a disciplina de Arte. Peguei algum material que tinha em casa, como jornais, miolo de papel higiênico, latas de cerveja, bolinhas de isopor, garrafas pet, etc. Porém, aquilo não fazia sentido. Nada se encaixava e, quando A se dava bem com B, vinha o C e derrubava tudo, fazendo com que o D não tivesse nem mesmo a oportunidade de participar. Sentado na poltrona da sala, meu pai, talvez por ser meu pai, podia perceber que eu estava perdidamente apaixonado por Letícia. Também podia perceber que eu não era capaz nem de pegar na mão da garota. Por isso resolveu interferir, dizendo que ajudaria no trabalho. — O objetivo de vocês é fazer uma obra de arte. A Arte não pode ser aprendida nem feita, ela deve ser sentida. Concentre-se em seus
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sentimentos. Pensem naquilo que vocês amam, que deixam vocês felizes, que lhes agradam, que lhes proporcionam prazer. Então, vocês conseguirão ver algo além de lixo nessa sucata toda; vocês verão Arte. Foi só meu pai concluir o pensamento que o celular de Letícia tocou. Era sua mãe, falando que precisava dela em sua casa, pois não sabia o que fazer com o agente de modelos que havia aparecido por lá sem avisar. Letícia pediu para que terminássemos, ou melhor, começássemos o trabalho outro dia, pois precisava ir embora. Não foi fácil me despedir dela, mas, só pelo fato de saber que eu passaria mais uma tarde inteira junto a ela, fiquei contente.
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Sem ela para fazer o trabalho, tinha ficado sem atividade para fazer naquela tarde chuvosa. Meu pai, então, sugeriu que fosse ler. Segundo ele, tinha em sua cômoda uma coleção completa de livros que minha mãe adorava ler e, se eu quisesse, poderia pegar. A tarde foi em companhia de Clarice Lispector.
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A hora da estrela havia chegado e fui espiar pela janela. Vi que a chuva não deixaria que as estrelas aparecessem no céu. Mesmo assim, fui para a cama feliz. Aquela chuva lavou todos os meus problemas e me trouxe apenas alegrias.
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08. Sorria, você está sendo filmado!
O sábado anunciava a chegada do sol, depois de uma semana chuvosa, e também que muitas coisas boas aconteceriam, como dormir até tarde. Infelizmente, para mim, esta última não servia, visto que seria meu regresso às aulas de natação e não queria me atrasar nem um segundo, afinal, não era sempre que se via Cris indo trabalhar em pleno sábado. Assim que cheguei ao clube, Cris abria a boca, bocejando de sono, mas, ao me ver, tratou de fechá-la e sorrir para mim, como quem dizia seja bem-vindo de volta. Correspondi com outro sorriso, como quem diz obrigado. Após nadarmos por aproximadamente uma hora, Cris anunciava o término da aula. No entanto, antes que eu pudesse ir embora, ela me fez uma pergunta: — Edu, ainda está interessado no campeonato regional de natação? A inscrição é gratuita. Que tal? Foi apenas uma pergunta... Mas, uma pergunta capaz de mudar o presente e fazer brotar um sorriso gigante em meus lábios. Havia me esquecido do campeonato. Muito feliz, fui com ela ao escritório
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da nova gerente e preenchi o formulário de inscrição. Em seguida, eu me despedi dela. Porém, ao virar as costas para Cris, senti que também deveria fazer algo por ela, pois não seria legal deixar uma grande amiga passar o resto do sábado sozinha. — Cris, tem uma amiga minha que vai participar do desfile de lançamento da nova moda outono-inverno de uma marca aí. Não gostaria de assistir? Foi apenas uma pergunta...
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O clube ficava localizado num lugar estratégico — quase caindo fora da cidade. Ele fazia divisa com outra cidade que preservava muito o meio ambiente, por isso tinha até mesmo uma floresta. E essa tal floresta era o que dividia os dois municípios. Após a aula de natação, ao sair do clube, ouvi um grito de desespero. Não era o grito de uma pessoa, parecia mais de um animal. Era um som meio ardido, como quando se pisa no rabo do gato ou chuta o cachorro. E aquele som só poderia ter vindo de um lugar: a floresta. Cris saía naquele momento e eu a parei. — Eu estou maluco, ou tem alguma coisa gritando? — Hum, desde o início da semana é assim. Toda vez que passo por aqui, ouço uns gritinhos, mas nem imagino do que se trata. Será que alguma fera, como uma onça, apareceu na floresta e está devorando os bichos menores?
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— Acho pouco provável. Isso está mais para obra do ser humano. Ficamos parados por um minuto, de frente para a floresta até o grito cessar. Então, começamos a caminhar, mas, antes do terceiro passo, um berro ainda mais agudo foi dado. — Não posso voltar para casa sem antes saber que barulho é esse. — Bem, Edu, lembre-se a curiosidade matou o gato... Mas, como já disse inúmeras vezes, você é um peixe. Vamos ver o que está acontecendo! Aquela mata era protegida por um cerca de arame farpado. Porém, devido ao clima maluco de chuva e sol, o arame já estava enferrujado e bastava um toque para que ele arrebentasse. Em pouco tempo, havíamos conseguido penetrar por entre as árvores mais exóticas. Aos poucos, fomos andando, tentando não fazer barulho, para não sermos percebidos, mas era impossível: ao andar, acabávamos pisando os galhos, caídos no solo, que quebravam com tamanha facilidade. Mal adentramos o matagal e um emaranhado de cipós impedia nossa passagem. Não tínhamos sequer uma faca para cortar as trepadeiras, por isso tentamos arrancá-las ou simplesmente afastá-las com as mãos, mas Cris não gostou muito do que viu. Ao pegar no primeiro cipó, ela sentiu um negócio gelado passar pelo seu braço. Ao olhar, percebeu que se tratava de uma serpente. Afastando o braço rapidamente, começou a gritar. Olhei, desesperadamente e, ao vê-la gritando por causa da cobra, comecei a gritar também. A víbora já estava preparando o bote quando corremos em disparada.
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— Nunca mais... — suspirava cansada e assustada. — Jamais voltarei a esse lugar! Ainda quero viver por um bom tempo. Concordei. Era melhor, se por acaso resolvêssemos voltar, levar um frasco de soro antiofídico. — Mas, sabe — continuou, recuperando o fôlego —, até que foi maneiro. Concluindo que os animais gritavam por uma picada de cobra, fomos embora, cada um para sua casa, após Cris me dizer que passaria às seis para me pegar.
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Ao chegar em casa, rindo daquele sábado que já começara animado, eu me deparei com meu pai na cozinha, preparando o almoço e cantando junto com o rádio uma música de MPB. Nunca tinha visto meu pai daquele jeito. Desde quando ele cozinhava e gostava de Elis Regina? — Revirando as coisas da sua mãe — explicou —, achei esses CDs e resolvi pô-los para ouvir. E eu nem sabia que ela era fã da Pequena Notável. — Ah, e a Letícia ligou... — informou. — Letícia?! — exclamei surpreso. — E o que ela queria? — Confirmar se você iria mesmo vê-la desfilando. E eu disse que sim, pois você vai! A propósito, comprei um presentinho para ela e já mandei entregar.
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Sem responder nada, fui ao meu quarto. O que meu pai poderia ter comprado? E se ele tivesse comprado alguma coisa deselegante, ou pior, e se tivesse comprado um buquê de flores e escrito um cartão com uma declaração de amor? Estava frito! — Está frito! — disse meu pai, aparecendo na porta. — O quê? — perguntei, assustando-me outra vez. — O peixe. Já está frito. Venha almoçar, antes que a comida esfrie. De tanto que Cris falava que eu era como um peixe, era meio estranho comer cação. Eu me sentia como se estivesse comendo alguém da família... Deixando a besteira de lado, comentei com meu pai que eu havia convidado Cris para assistir ao desfile e que ela passaria em casa às 18h, para ir junto comigo. — Você gosta de futebol? — perguntou ele, distorcendo completamente o assunto. — Pai — respondi —, você me conhece há quatorze anos e sabe que o único esporte que me agrada é a natação. — Foi apenas uma pergunta... O que ele estava querendo dizer com aquilo? Geralmente quando alguém diz isso, é porque está com segundas intenções. E foi com essa neura que acabei me distraindo com a comida e me engasgando com uma espinha.
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Enquanto passei a tarde não vendo a hora de chegar a noite, Letícia aproveitou cada segundo no salão de beleza. Babyliss, muito blush e esmalte groove. Não sei o que tanto ela precisava fazer, pois já era linda por natureza, mas ela estava disposta a ficar ainda mais bela, para ganhar o concurso Miss Rosa dos Ventos, que ocorreria após o desfile. Rosa dos Ventos é a marca da coleção. O motivo para esse nome é que Rosa Alcântara é a estilista e o slogan é “leve como uma brisa”, devido ao tecido de seda. Já Cris, passou a tarde escolhendo o que vestiria para o desfile, afinal, não é todo dia que a convidam para sair, mesmo sendo quem fez o convite um aluno que não tem o mínimo interesse nela. Quando ela finalmente encontrou o que desejava, já se passava das cinco e meia. Então, só teve tempo de passar um perfume e foi até o ponto de táxi. Eu imaginava que ela tivesse um carro, por isso me assustei quando vi o automóvel amarelo parando em frente à minha casa. — Pai, já vou indo... A Cris chegou. Foi o que consegui dizer antes de meu pai levantar correndo do sofá, quase derramando a xícara de chocolate quente, e se esconder no quarto. Afinal, por que ele estaria fugindo da Cris? Ignorando isso também, entrei no táxi. Ao chegarmos ao shopping, perguntei quanto devia, pois dividiria as despesas do táxi com ela, mas a mulher estava tão feliz que pagou tudo sozinha e ainda deu gorjeta ao motorista.
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O alvoroço no shopping era grande. Metade mal podia esperar para ver as belas mulheres em seus passos bem demarcados; a outra metade esperava o momento certo para comentar sobre fulana ou beltrana, elogiando ou criticando caso uma calça ou um sapato não combinassem. Porém eu só estava lá por uma pessoa: a amiga que, um dia, (devaneio!) seria minha namorada. Por isso “dobrei” o segurança e consegui entrar nos bastidores. Quando vi Letícia, os olhos brilharam intensamente, pois não estavam acreditando no que viam. A garota estava ainda mais bonita do que já era. Para justificar o queixo caído, usei a desculpa do casaco. — Nossa, que casaco impressionante! Essa coleção certamente vai arrasar. — Mas este casaco não é da coleção. Foi seu pai que me deu. Não é lindo? Agora, entendi qual era o tal presente. “Tão lindo quanto você” era o que queria responder, mas a timidez fez com que aquelas palavras ficassem só na mente. — Cinco minutos! — gritou um dos organizadores, que passava pelo corredor. Eu me despedi de Letícia e disse que a assistiria no palco. Então me retirei. Do lugar onde Cris e eu ficamos, dava para ver praticamente tudo: a passarela, um bando de histéricas querendo uma peça da Rosa dos Ventos, e um menino levando um tapa na cara. Por coincidência, o menino era Claudinho e a garota da mão pesada era Belinha. Quem
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diria que Claudinho tivesse a cara de pau de querer alguma coisa com Belinha? Bem, por sorte, ela sabia se defender. O desfile começou. As luzes e o som alto, seguidos do locutor, que anunciou “Coleção Rosa dos Ventos Infantil Feminina Outono-Inverno”. Algumas garotinhas de uns cinco ou seis anos entraram, desfilando e sorrindo para as câmeras, como se tivessem mais idade, esbanjando alegria e encantando as pessoas. Em seguida, ouviu-se “Coleção Rosa dos Ventos Infantil Masculina Outono-Inverno”. E os menininhos, entre quatro e oito anos, começaram a entrar na passarela, fazendo cara de machões, o que arrancou boas risadas dos espectadores. Na sequência, “Coleção Rosa dos Ventos Juvenil Feminina Outono-Inverno”. Comecei a aplaudir, pois achei que Letícia estaria entre essas modelos, mas meus aplausos foram entendidos como uma forma de paquera, por uma sardentinha que mandou um beijo na minha direção. Sem saber o que fazer, coloquei o braço sobre o ombro de Cris, abraçando-a. A seguir, “Coleção Rosa dos Ventos Juvenil Masculina Outono-Inverno”. Ao ver a entrada daqueles garotos, comecei a perceber que era praticamente impossível Letícia se interessar por mim, afinal, havia tantos mais bonitos e descolados do que eu. Depois, finalmente, “Coleção Rosa dos Ventos Adulta Feminina Outono-Inverno”. Letícia havia sido escalada para desfilar nessa, devido a todo o seu glamour. Ao ir até o fim da passarela e fazer seu pivot, ela piscou os olhos, delicadamente, em minha direção. “Será que aquele piscar de olhos foi para mim?”, pensei antes de ouvir um menininho atrás de mim exuberar:
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— Vocês viram? Aquela gata tá a fim de mim! Não demorou até o próximo anúncio: “Coleção Rosa dos Ventos Adulta Masculina Outono-Inverno”, atiçando a mulherada, inclusive Cris que começou a gritar feito uma doida. Aquele dia estava sendo muito feliz para ela. — E agora — anunciava o locutor — para finalizar... o concurso Miss Rosa dos Ventos, que elegerá a mais bonita personalidade feminina deste evento. E, com vocês, as modelos. A cada mulher, fosse jovem fosse velha, que entrava, todos aplaudiam, mas foi quando Letícia entrou que a multidão ovacionou com entusiasmo. Com um sorriso de donzela que foi salva do dragão, Letícia sabia que aquele troféu já pertencia a ela. Os jurados se reuniram e houve uma pausa de cinco minutos, tempo necessário para que as pessoas apostassem em quem seria a grande vencedora. A maioria arriscava em Letícia. Um careca alto era exceção. A namorada dele também estava na competição e se exaltou quando um magrelo de óculos disse que, tirando Letícia, todas as outras só ganhariam concurso de teatro no qual estivessem elegendo alguém para o papel de bruxa. — Nossos jurados já chegaram a um veredicto final. A grande vencedora é... — o locutor fez um pequeno suspense, sob luz baixa. Enquanto o povo aguardava, ansiosamente, o resultado, o careca, irado, resolveu revidar o que o magrelo disse de sua namorada e o empurrou com toda a força. Isso fez com que ele empurrasse outro, que acabou empurrando outro, que empurrou outro e assim por diante. O empurra-empurra foi tão grande que chegou até onde Cris e eu estávamos — pertíssimos da passarela.
Quem disse que não te entendo?
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Como não havia mais quem empurrar, para não perder o equilíbrio, Cris foi obrigada a subir na passarela, meio que cambaleando. Por falha técnica, as luzes acabaram acendendo antes da hora, destacando no palco a professora de natação. “Ai, meu Deus!”, pensou Cris, sem saber o que fazer nem onde enfiar sua cara, de vergonha. O público ficou estático, as modelos ficaram com uma expressão de surpresa no rosto e o locutor estava mais perdido que garfo em dia de sopa. De repente, num só coro, todas as pessoas começaram a aplaudir e gritar para Cris. Vendo o contentamento dos que assistiam ao desfile, os jurados chamaram o locutor e anunciaram em seu ouvido uma nova vencedora: a desconhecida de jaqueta e calça jeans. Realmente, aquele dia estava sendo muito feliz para ela.
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Nos bastidores, encontrei Letícia chorando, sem preocupação com a maquiagem borrada. — Muito obrigada, Edu. — Pelo casaco? Imagina... — Não. Obrigada por me ter feito perder. Se você não tivesse tido a genial ideia de trazer sua professorinha para cá, talvez eu tivesse alguma chance de ganhar o concurso. Cris, naquele momento, estava atrás da porta.
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— ... e assim foi o meu dia, Nina, acredite. Se eu ainda tinha alguma chance com Letícia, com certeza não tenho mais. — Então, por que não está triste?
Foi apenas uma pergunta.
Quem disse que não te entendo?
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09. Saltitando em bons ares
Deu crise de faxina no meu velho. Acordou às sete da manhã e, com um espanador numa mão e um pano úmido na outra, limpava todos os móveis da casa. O sofá nunca esteve tão branco, o vidro da estante nunca esteve tão transparente e a mesinha de canto nunca esteve tão organizada. Falando em mesinha... — Eduardo, o que é esse envelope aqui em cima da mesa? Esqueci completamente do envelope que o carteiro havia trazido, muitos dias atrás. Sem saber o que dizer, respondi com a verdade. — Ah... o envelope!? Não sei bem o que é. Só sei que é para você. Por um instante, pensei que o antigo Ricardo voltaria à ação e me chamaria de irresponsável e de todos os outros adjetivos ruins. Ele, no entanto, ignorou minha falta de memória e abriu a misteriosa correspondência.
Quem disse que não te entendo?
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É um prazer comunicar a vocês sobre nosso enlace, e desejamos que compartilhe conosco esse dia. Dolores e Tomás
Minha cara de “e então...” resultou na empolgação do meu pai: — Vamos à Argentina!
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Não deu nem tempo de colocar tudo o que eu queria na mala. Meu pai ficou tão eufórico com o casamento da maninha que queria chegar o mais rápido possível em Buenos Aires. Ao chegarmos ao aeroporto da cidade vizinha, nos deparamos com muitas pessoas à espera de voos atrasados e cancelados. Na verdade, por dentro fiquei um pouco feliz, pois teria mais tempo para me acalmar, visto que aquela seria a primeira vez que eu viajaria em um avião. Não sei se meu pai tem algum amigo, colega ou conhecido no aeroporto, mas enquanto eu estava sentado na sala de espera, lendo uma dessas revistas institucionais que eles disponibilizam aos passageiros, meu pai foi falar com os atendentes, na esperança de conseguir pegar o próximo voo. Levei um baita susto quando meu pai chegou correndo e pegando a bagagem, falando para eu andar depressa, pois o avião estava à nossa espera.
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Depois de passarmos pelo detector de metais e nos dirigirmos à pista de voo, entramos no avião. Mal colocamos nossos pés no gigante de metal e duas das comissárias passavam as informações básicas. Ao ficarmos próximos ao céu, tentei olhar, pela janelinha, o solo, mas o escuro da noite só me deixava ver pontinhos de luzes artificiais. Então, olhei para o céu. Lá estavam as estrelas, pontinhos naturais de luz. Procurei por Nina, mas, no meio de tantas, era praticamente impossível encontrá-la. Mas sabia que ela estava ali. Foi quando estava admirando as estrelas que a voz do piloto anunciava: — Senhores passageiros, por favor, afivelem seus cintos. Teremos uma pequena turbulência. Nesse momento, uma das aeromoças, em vez de acalmar os viajantes, saiu da cabine do piloto em total desespero, gritando: — Nós vamos morrer! O avião vai cair! Nós vamos morrer! Logo outro comissário de bordo tentou acalmá-la. Não sei se eram namorados, mas ele a tratou com tanto carinho que parecia que já eram casados há anos, embora ambos não aparentassem ter mais de 25 cada. Arregalei os olhos com tamanha loucura. E se aquela aeromoça estivesse certa? E se o avião realmente sofresse uma pane e se espatifasse no campo muito abaixo de nós? Vendo a mão trêmula, meu pai tentou me acalmar. — Não se preocupe, Edu. Já viajei de avião milhares de vezes e, acredite, uma turbulência não é nada.
Quem disse que não te entendo?
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O avião, nesse momento, começou a agitar. Agora eu sei como se sente o achocolatado da caixinha, segundos antes de ser consumido. — Esquece o que eu disse — gritou meu pai. — Comece a rezar! A gritaria dos passageiros impedia que escutássemos os conselhos do piloto. Para se ter uma ideia, a única coisa mais alta do que aquela sinfonia de pedidos de socorro era os berros da aeromoça que estava abraçada ao comissário, ambos sentados de frente para nós. Nessa hora, poderia orar para tudo quanto é tipo de santo, mas a única que me veio à mente foi santa Amélia, minha mãe. Então, fiz uma breve oração para ela, dizendo que estaria tudo bem se o destino quisesse que nos reencontrássemos mais cedo. Pedia para que ela me confortasse, pois sabia que, em pouquíssimos minutos, estaria a seu lado. Misteriosamente, o avião parou de sacudir e voltou a sobrevoar normalmente. — Não disse?! Não há por que se preocupar — disse meu pai, ainda abalado com a situação. Mas o que mais me enfezava era saber se realmente fora minha mãe que fizera tal milagre. Se fosse, ela precisava ser beatificada. Mas, foi olhando para o céu que vi, dentre milhares de estrelas, uma brilhar intensamente e não tive dúvidas: havia sido a Nina. Meu agradecimento à estrela ficou para outra hora, pois a comissária aflita se levantou, se pôs em frente a todos e, com um sorriso simpático no rosto e muito mais calma, repetiu as palavras de meu pai: — Não disse?! Não há por que se preocupar.
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Após algumas horas, chegávamos à Argentina. Olhei para o relógio do aeroporto de Buenos Aires, a fim de arrumar o meu com o fuso horário, mas foi tão sem graça saber que o horário de lá é o mesmo da minha cidade, no Brasil. Tia Lola e meu futuro tio Tomás estavam no aeroporto quando chegamos. — Lola?! Como sabia que estávamos para chegar? — perguntou meu pai, surpreso com a presença da irmã. — Ricardo?! Que surpresa! Na verdade, estamos aqui à espera da irmã, do cunhado e da sobrinha do Tomás, que também são brasileiros. Era engraçado o sotaque da tia Lola. Embora ela tivesse morado no Brasil até os 19 anos, quando se mudou e se naturalizou argentina, ela já estava tão habituada a falar espanhol que, quando queria conversar em português, saía uma mistura de dois idiomas: um portunhol. — E esse é o Eduardo? — perguntou colocando a mão na minha cabeça. — Nossa, não acredito! Na última vez que eu o vi, você era um bebê de dois meses. De fato, na última vez que ela me vira eu tinha mesmo dois meses de vida. Mas a maior bola-fora ainda estava por vir. — E sua mulher, Ricardo? A Amélia está vindo de ônibus? Enquanto meu pai explicava que minha mãe havia falecido há três anos, fiquei pensando em como pode uma pessoa ficar tão desinformada sobre a própria família.
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— E você, Tomás? Vê se toma conta direitinho de minha mana, hein? — ¿Cómo? ¡No comprendo! Agora era minha tia quem dava explicações a meu pai. Tomás não falava uma palavra sequer em português. Ele nasceu e cresceu na Argentina. Só tinha parentes no Brasil porque seu irmão mais velho resolveu se aventurar e constituir uma família em solo verde-amarelo. — Bem — começou tia Lola —, então vou levar vocês dois até em casa, enquanto o Tomás espera os parentes dele, tudo bem? — Não, imagina. Não queremos incomodar. Podemos esperar junto com vocês. — Não, Ricardo, eu insisto. Não aguento mais ficar em pé aqui, esperando gente que eu nem conheço. Ele que fique um pouco... Ainda bem que Tomás não entendia uma palavra do português. Tia Lola balbuciou algumas palavras em espanhol e, tomando a chave do carro da mão de Tomás, pediu para que nosotros a acompanhássemos até o carro.
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Depois de nos instalarmos na casa de tia Lola, ficamos pensando: “se ela nos trouxe com o carro, como Tomás fará para trazer a família dele?” A pergunta também passou pela cabeça de tia Lola, que pensou em voz alta:
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— Meu Deus! O que o Tomás vai fazer sem o carro? Tenho que voltar ao aeroporto! Olha, tem comida no fogão e sobremesa na geladeira. Fiquem à vontade! E, pegando sua jaqueta velhinha, saiu, tentando fazer o possível para não deixar o quase esposo na mão. Mas não foi necessário nem passar pelo portão. Um táxi trazia Tomás e a família dele. Da janela, vimos descer do táxi Tomás, seu irmão, sua cunhada e, quase caí do sofá, quando vi a sobrinha dele. Descia, enrolada num lindo e aparentemente caro casaco, para proteger-se do frio, ninguém mais ninguém menos do que Isabela. Ela mesma: Belinha! — Edu?! Quer dizer que agora vamos ser da mesma família? — disse a garota, dando risada.
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10. Su casa es mi casa
Faltava um dia para o casamento de tia Lola. Mesmo assim, meu pai já quis lhe entregar o presente de casamento antes mesmo do café da manhã. Na verdade, o presente serviria mais para ela do que para o noivo. — Nossa, Ricardo! Que casaco de pele lindo! Um casaco de pele?! Olhei para meu pai como quem diz: “Que história é essa de dar casacos para todo mundo?”, mas só obtive como resposta um olhar que dizia: “Qual o problema? É sintético!” Sentando-se à mesa junto conosco, meu pai fez uma pergunta a meu futuro tio, a qual foi respondida pela minha tia: — Então, Tomás, não haverá uma despedida de solteiro? — Claro! O Tomás já reservou um salão para os amigos. E você, Ricardo, é presença indispensável. Estava levando a xícara de chocolate quente à boca, quando percebi que minha tia e meu pai me olhavam. Sem entender, perguntei o que havia acontecido.
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— Você vai também, Edu? — perguntou meu pai. Levando em conta que não bebo, não fumo e não gosto de algazarra, não precisei pensar duas vezes para dar a resposta: — Não... Prefiro ficar aqui com a tia Lola. No entanto, Belinha, que estava do outro lado da mesa, comemorou: — Ótimo! Então você vai nos ajudar com o chá de cozinha. Sem vibrar, voltei meu olhar para tia Lola e perguntei: — Que hora será a despedida?
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Na despedida de solteiro, como já esperava, além de não haver ninguém da minha idade, todos não passavam de desconhecidos — exceto meu pai, Tomás e o pai de Belinha. Sem possibilidades de tentar me enturmar, fiquei sentado num canto. Por sorte, achei um livro. Estava tudo escrito em espanhol, mas não era difícil compreender as palavras. Enquanto lia, via o pessoal enchendo a cara de bebida alcoólica e uns jogando aos outros na piscina. Ignorava o que ocorria ao redor de mim e tentava me concentrar na leitura. De repente, assobios e aplausos, sem falar dos elogios de guapísima para cima. Olhei para o salão e entendi o porquê de toda aquela euforia: as modelos portenhas haviam chegado. Antes que viessem me perturbar, fui ao único esconderijo disponível: o banheiro. 100
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Sentado num vaso sanitário, já que não havia nenhum banquinho naquele vestiário, continuei lendo uma versão argentina de A Odisseia. Não demorou muito e escutei passos. Alguém estava entrando. Em silêncio, descobri que se tratava de duas pessoas: meu pai e o pai de Belinha. As garotas os tinham jogado na piscina. — Estou dizendo, Artur — falava meu pai —, o negócio não tem erros. Qual é, você tem uma filha da mesma idade que o meu e sabe como é custoso criar um adolescente. Estão sempre querendo mais e mais... Acredite, só com o trabalho de contador eu não conseguiria pagar nem metade das despesas do Eduardo. — Sei disso... Ainda mais quando se tem uma filha adotada, que, no caso, pode ser tirada de mim em caso de dificuldades financeiras para criá-la. Quase caí dentro da privada de susto. A Belinha era adotada! Será que ela sabia disso? Constatei que não... — Ah, a Isabela é adotada? Não sabia... — Ninguém sabe. Só minha esposa e eu. Então, por favor, não conte nada a ninguém. — Sei muito bem guardar segredos. Ou você acha que alguém sabe desse meu segundo emprego?
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Já era tarde quando a festa acabou, com praticamente todos embriagados. Confesso ter sentido muito medo em viajar num carro
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sendo dirigido por um motorista bêbado. Mas o que eu poderia fazer? O único sóbrio era eu, e eu nunca peguei num volante. Rezando, dividia o banco de trás com meu pai e uma das modelos, que havia pegado carona. E a mulher não parava de reclamar. Primeiro o lugar estava apertado demais, depois ela estava com dor nos pés de tanto dançar, em seguida sentia frio nas pernas... Quase ofereci minha jaqueta para ver se ela calava a boca, mas ela parecia uma daquelas pessoas que se você der a mão, quer logo o braço. Para evitar ter que ser massagista de uma desconhecida, virei o rosto e fiquei observando pela janela a paisagem encoberta pela neve. Não demorou e o carro parou no acostamento. Como temia, não era uma notícia boa. A polícia estava fazendo uma blitz. Pediu ao Tomás seus documentos e os do carro. Ele estava tão bêbado que entregou ao guarda o cartão de crédito da minha tia, que estava dentro do porta-luvas. — Desçam do carro! — ordenou o policial, só que em espanhol. Com o aparelho que mede a quantidade de álcool, fez o teste do bafômetro com meu quase tio. Como já era de se esperar, o aparelho apitou mais que canário à beira da morte. Além de aplicar uma multa e apreender o carro, fomos todos parar na delegacia.
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— Tenéis derecho a una llamada — informou o delegado.
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Se um dos três — Tomás, meu pai ou Artur — tentasse pegar no telefone, seria tempo perdido, pois, de tão bêbados, eram capazes de ligar para uma pizzaria e pedir uma tamanho família, de calabresa, para comer com o chefe de polícia. Conchita, a dançarina, disse que ela faria a ligação, pois precisava urgente ligar a seu agente e informar que ele deveria cobrar hora adicional, pois aquilo não estava incluso no orçamento. Antes que um dos quatro estragasse tudo, usei as poucas palavras que sabia em espanhol para dizer: — Voy a hacer la llamada. Não sei nem se disse certo ou se cumpri com as regras gramaticais do castelhano. Só sei que o telefone foi entregue a mim. Como não sabia o número de telefone da casa da tia Lola, liguei para o celular da Belinha. Com voz de sono, ela atendeu. Pedi para falar com minha tia e ela logo lhe passou o telefone. Após conversar alguns instantes e contar tudo o que havia acontecido, ela afirmou que, dentro de un rato, estaria na delegacia. Enquanto aguardava a chegada da mulher, o delegado decidiu prender os três “bebuns”, afinal, eles só sabiam rir e fazer piadinhas infames sobre a aparência física do delegado. Sob protesto do trio, o carcereiro os levou até uma cela. Já Conchita e eu, aguardávamos na sala de espera. Ela tentava livrar sua barra, exibindo as pernocas e o grande decote aos policiais. Mas não conseguiu sair de lá antes de nós.
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Quase uma hora depois, minha tia chegou. O delegado, muito simpático, pediu para que fossem abrir a cela, enquanto lhe explicava o motivo da detenção. Assim que todos estavam prontos para serem liberados, minha tia pediu mil desculpas ao delegado, que consentiu, e foi abrir o carro. No banco de trás, ela foi pondo um a um: primeiro Tomás, quase dormindo, depois Artur, que quase caiu ao descer a calçada, e, em seguida, meu pai, que começou a se declarar para a própria irmã. Após fechar a porta de trás do carro, percebeu que havia mais uma pessoa em pé, esperando para entrar. — Quem é essa? — perguntou, fitando Conchita da cabeça aos pés. — Guapísima! — respondeu Tomás de dentro do carro. Para que aquilo não causasse uma separação antes mesmo do casamento, tomei a palavra e, inventando uma desculpa, disse: — Estávamos voltando para casa, quando a encontramos pedindo carona. Olhei para Conchita e vi que ela havia assumido o papel de caroneira. Com o polegar direito indicado para uma direção e um sorriso de orelha a orelha, representava. — Bueno. ¡Entre en el coche! — ¡No! - gritou o delegado. Após o berro, disse que o limite máximo de passageiros num carro é de 5 pessoas, logo, a moça teria que ficar. Como a moça sorriu, tia Lola e eu entramos no carro e saímos.
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Conchita provavelmente pegou carona na garupa do delegado.
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Ao chegarmos à casa de tia Lola, a mãe de Belinha estava aflita, pois não tinha notícias. — E então, onde eles estão? — Dormindo. No banco de trás do carro. — E como faremos para pô-los na cama? — O dia já está amanhecendo. Daqui alguns minutos já serão seis da manhã, então, vamos deixá-los lá, que já sei o que farei. Ela me disse para ir dormir, mas estava curioso demais para saber o que la señorita Dolores estava tramando. Não demorou muito e, com a chave do carro na mão perguntou, próxima à porta: — Quem me acompanha? Como só eu estava na sala, levantei a mão. No maior silêncio para não acordar os outros passageiros, ela dirigiu devagar até um posto de gasolina. Chegando lá, eu ainda não entendia o que se passava, mas ela me pediu para descer do carro e, apertando o botão do vidro elétrico, abriu os dois de trás. Jogando a chave nas mãos de um frentista, pediu para que o carro fosse à lavagem completa.
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O funcionário obedeceu às ordens e levou o automóvel até a máquina de lavar a jato. Só ouvi os gritos de três homens acordando com um jato de água fria no rosto. — A melhor parte ainda está por vir... A máquina jogou sabão, tanto fora como dentro do veículo, deixando-os brancos da cabeça aos pés. Em seguida, mais água. Mais um pouco e o carro saiu da máquina com a lataria brilhante. Não se podia dizer o mesmo dos que estavam dentro dele.
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Voltando para casa, os três batiam queixo, praticamente congelando de frio, disputando para saber quem seria o primeiro a entrar debaixo de uma ducha quente. No maior corre-corre, os três acabaram entrando no banheiro juntos. Sabe-se lá o que aconteceu lá dentro. Enquanto isso, dona Ofrásia preparava as torradas para o café da manhã e tia Lola, tomando sua xícara de café bem quente, ria e dizia que aquilo era para eles aprenderem a não passar dos limites. — Bem, pelo menos isso foi bom para mostrar que o chá de cozinha não foi um verdadeiro desastre — disse Belinha, que acordara pouco tempo atrás, com as risadas da tia Lola. Tanto sua mãe como minha tia levaram o dedo à boca, como se pedissem para ela não contar nada do que acontecera naquela casa um dia atrás.
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— Não tem problema falar para o Edu, não... Ele não vai espalhar! E me contou que tudo ia muito bem, até tia Lola começar a abrir os presentes. O primeiro... um galheteiro! “Oh, que maravilha! Era justamente o que eu precisava.”
Em seguida... um guardanapo! “Oh, muito bom! Serve para limpar o óleo derramado do galheteiro.”
O próximo... um galheteiro! “Excelente! Posso colocar vinagre neste.”
E o seguinte... outro galheteiro! “Bom... neste eu posso colocar o azeite.”
Abriu outro... mais um galheteiro! “Bem, no caso de um dos outros três quebrar, eu tenho um reserva.”
Desembrulhou outro... outro galheteiro! “Qual é? Os galheteiros estavam na promoção?”
Quem disse que não te entendo?
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Já exaltada, abriu mais um... que beleza! “Um galheteiro... como estava fazendo falta.”
— No final, Edu, acredite, totalizavam, sobre a mesa, quatorze galheteiros, um guardanapo, um cartão de felicitações pelo casamento e uma mulher brava, atirando dois dos galheteiros para expulsar a mulherada. — Então, agora ela tem doze galheteiros? — perguntei ingênuo. — Na verdade, treze. Minha mãe esperou todo mundo sair para lhe entregar seu presente.
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— Bem, já vou saindo... Tenho que levar o carro para secar o interior e, em seguida, ir ao salão de beleza, fazer as unhas, o cabelo, a maquiagem... Ai, como é duro se casar! A porta bateu. Tia Lola deixava a casa. Outra porta bateu. Tomás saía do banheiro. — ¿Dónde está Lola? — E-lla sa-li-ó. Fue al sa-lón de be-lle-za — respondeu Ofrásia, sílaba por sílaba, como uma verdadeira não falante de espanhol. — Pues, para mí, todo lo se acabó.
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Nem ligamos para a última frase. Não que não tenhamos entendido, mas porque sabíamos que, depois de alguns segundos em silêncio, ele falaria outra. — ¡Vale! Voy a perdonarla. Pero sólo porque que insistís tanto.
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Tomás sentou-se à mesa. Eu me retirei, afinal, o grito do meu pai me obrigou: — Eduardo, venha cá! No quarto, encontrei-o enrolado em uma toalha. — Você arrumou as malas, não é mesmo? Onde estão minhas roupas? O que responder num momento como aquele? Optei pela verdade. — Bem, quando você me pediu para arrumar as malas, pensei que estava falando unicamente da minha mala, por isso nem me preocupei com suas roupas. — Não me diga que se eu quiser me vestir, tenho que ir... — ... ao Brasil! — conclui, mordendo o lábio inferior.
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Quem disse que não te entendo?
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Já estava quase na hora do almoço quando nos dirigimos até a igreja. Quer dizer, quase todos: meu pai havia ficado na casa de tia Lola, pois, segundo ele, era a única forma de conseguir encontrar uma maneira de se vestir — não entendi o que ele quis dizer com isso. Havia poucas pessoas na igreja — decerto o casamento era restrito à família e aos amigos mais próximos. A maioria era convidada de Tomás, visto que para os conhecidos de tia Lola ficaria um pouco difícil o comparecimento, uma vez que para isso seria necessário transitar entre um país e outro. Aguardando próximo à porta estavam os padrinhos, um verdadeiro cordão de puxa-sacos. Com seus trajes garbosos se sentiam os maiorais por serem as testemunhas de um enlace matrimonial. No primeiro banco, bem de frente para o altar, se concentrava uma meia dúzia de beatas, com seus tercinhos espremidos entre as mãos, ajoelhadas, como se orando e pedindo bênçãos para o futuro casal. Dentre os convidados, espalhados pelos diversos lugares disponíveis na igreja, era possível visualizar os penetras, se debulhando em salgadas lágrimas, como se fossem amigos de infância dos noivos que nem conheciam. A cerimônia estava prestes a começar quando o último convidado chegou. Meu pai, com olhar de galã portenho, entrou vestindo uma camiseta de couro de cobra, calças de couro de vaca e sapatos de couro de jacaré. Uma verdadeira Mata Atlântica cobria seu corpo. — Pai, onde você encontrou essas roupas? — sussurrei. — Eu tenho meus contatos.
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Casamento faz uma pessoa apaixonada viajar pelo mundo da imaginação. “Como seria o meu casamento?” era a pergunta que me veio à mente, quando, ao toque de uma melodia romântica, Tomás passava pelo tapete vermelho, de braços dados à sua mãe. Mas com o agudo da marcha nupcial, voltei à realidade. Num espanhol com sotaque argentino, o padre fez a pergunta de sempre: “Vocês, Tomás e Dolores, aceitam um ao outro, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, todos os dias de suas vidas?”. Tomás aceitou no ato. Tia Lola pensou um pouco e logo soltou um grito simpático e hilariante: — Ay, sí, sí, sí... Se ela dissesse não, não teria tanta graça. Fui enxugando a pequena lágrima no canto do olho esquerdo até sairmos todos da igrejola e, de carro, fomos seguindo os noivos até o local da festa.
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Descrever uma festa de casamento é sempre complicado. Por mais que tentemos diferenciá-la, há sempre algo que deixa todas iguais. Em resumo, a comemoração do casamento da tia Lola não foi diferente: bufê, música ao vivo e vídeo exibindo as cenas mais marcantes e humilhantes do passado.
Quem disse que não te entendo?
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Mas não é por isso que a “reunião familiar” poderia ser considerada sem graça e monótona. Ao contrário, coisas muito interessantes aconteceram. Para começar, como não havia espaço suficiente para todos os convidados, Belinha e eu fomos chutados do recinto. Fomos colocados numa pequena mesa com duas cadeiras do lado de fora do restaurante. Não ficamos, porém, o tempo todo sozinhos; mais hora, menos hora, aparecia alguém... para fumar ou simplesmente porque errou o caminho do banheiro. Os garçons também não esqueciam da gente. Sempre passava algum com uma bandeja de miniempanadas ou de bebidas não alcoólicas por perto de nós. Foi com uma pequena taça de menta com chocolate que Belinha e eu iniciamos a noite. A porta do tal estabelecimento era de vidro. Podíamos, portanto, assistir a tudo o que acontecia do lado de dentro. E garanto que não foram coisas insignificantes. Se não fosse a transparência, perderíamos a tão normal guerra de comida que houve na hora de cortar o bolo. Tudo começou com Tomás que queria cortar o bolo na lateral, de baixo para cima, com a mão direita, pois isso, segundo ele, traz muita felicidade na nova vida conjugal. Tia Lola foi contra e disse que tudo não passava de uma bobagem; eles seriam tradicionais, normais como todos os recém-casados. Quando deram por si, não havia mais bolo na forma; em compensação, seus rostos estavam repletos de chantili. Logo em seguida, mais uma cena que pode ser julgada humilhante. Do nada, o nariz de Ofrásia começou a sangrar. Perguntei à Belinha se havia alguma explicação para isso, mas só obtive como resposta um:
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— Isso é normal! Já vem saindo sangue do nariz dela há umas duas semanas. Quando questionei se ela havia procurado um médico, o que ouvi foi: — Médico?! Já falamos para ela procurar um, mas sabe como dona de casa é: muito ocupada, sem tempo para consultas, ainda mais quando é para algo tão bobo quanto sangue no nariz.
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Ninguém havia me informado. Após a quinta ou sexta taça da bebida refrescante, descobri que, embora não contivesse álcool, o mentol pode tirar algumas pessoas do sério. Esse foi meu caso. Já não sabia mais o que estava vendo ou ouvindo. Pelo visto, Belinha estava no mesmo barco. Comprovei isso não quando ela começou a gargalhar só porque uma pomba havia cansado de voar e resolveu pousar para descansar as pobres asas. Tive a certeza de que não estava dentro de mim quando vi uma das garçonetes. Embora usasse uniforme, seu jeito desengonçado, óculos fundo de garrafa, cabelo sem lavar e um enorme buço acima da boca deixavam óbvio que aquela mulher era uma velha conhecida. Para ser mais exato, era certo que aquela estranha pessoa era Emília, a misteriosa ex-gerente do clube.
Quem disse que não te entendo?
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O que eu fiz? Não corri atrás dela, não gritei seu nome, não contei para ninguém. Apenas olhei para o lado e, ao ver a maçaneta da porta brilhando, por causa do lustre, comecei a rir sem parar.
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Desorientados e sem assunto. Assim estávamos Belinha e eu. E foi assim que começamos a relembrar o passado. Ela começou... — Lembra de quando eu resolvi jogar futebol com as meninas e... rá, rá, rá... quando chutei a bola... rá, rá, rá... ela entrou no gol? Foi muito hilário! — Ainda mais porque o gol... rá, rá, rá... foi contra! E essa foi a besteira considerada mais interessante. Depois disso, comentamos o dia que eu fiquei preso no portão da escola — na verdade, de alguma forma, minha camiseta ficou grudada a uma parte pontuda do portão de ferro, não me deixando entrar nem sair — e o dia que Claudinho resolveu entrar no clube de teatro, porém desistiu logo na primeira semana — seu primeiro papel foi como uma mariposa. Pela primeira vez em dias, havia conseguido parar de pensar em Letícia por alguns minutos — geralmente ela está presente até em sonhos. No entanto, em meio à festa de casamento, meu celular, que assustadoramente tinha área, tocou e vibrou. Tentando ignorar a música alta, falando ainda mais alto, conversei rapidamente com a pessoa do outro lado da linha. Desligando o telefone, permaneci pasmo.
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— Credo, Edu! Parece que viu um fantasma... ou melhor, ouviu um. O que houve? Quem era? O que queria? Nem as milhares de perguntas de Belinha foram suficientes para me tirar do abalo. Podia estar desnorteado e tudo mais, mas o que ouvi naquele telefonema fez os neurônios voltarem ao normal. Estava 100% certo do que havia escutado. Com a voz trêmula e meio que gaguejando, informei: — A Le... a Letícia cortou os pulsos. E, encostando a cabeça na mesa, comecei a tremer, supostamente por causa da febre repentina causada pelo nervosismo. Belinha apenas congelou e emudeceu.
Quem disse que não te entendo?
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11. S. O. S.
Passaram-se apenas quinze minutos desde o sangramento nasal. Ofrásia, no entanto, estava pronta para agitar. E foi nessa alegria toda que ela resolveu ir dançando sozinha ao redor do restaurante. — E aí, galera! Tudo bem? — nos cumprimentava jovialmente, enquanto bailava próximo à nossa abandonada mesa. — Não!! — respondemos em coro. A cara de susto que Ofrásia fez poderia ter sido extremamente engraçada. Não foi, porém, o suficiente para nos animar diante da situação que estávamos vivendo. — Mãe, lembra da Letícia? — e Belinha lhe contou tudo. Outra cara de susto. Dessa vez, com a voz séria e com expressão de mulher decidida, falou: — A mãe da Letícia é uma grande amiga minha. Ela deve estar precisando de amparo. Vou para o Brasil agora mesmo. Quem vem comigo?
Quem disse que não te entendo?
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Ficar em outro país num momento como esse não era a melhor opção. Levantamos e fomos com Ofrásia arrumar as malas para o que seria uma longa viagem. No meio do caminho em direção à casa da tia Lola, Belinha resolveu perguntar ingenuamente: — Mãe, desde quando você é amiga da mãe da Letícia? Nunca vi vocês se falando. — Ora, como não? Na reunião de pais da sexta série, ela me disse um bom-dia quando chegou. Isso não nos torna amicíssimas?
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— Alguém poderia me dizer por que é que vocês três saíram da festa sem ao menos se despedir? — perguntou meu pai que chegava enquanto terminávamos de fechar as bagagens. — É uma longa história, Ricardo. Conto quando encontrar com você no Brasil. A propósito, seu filho está vindo comigo. Assim que abrimos a porta da casa para nos retirarmos e seguirmos rumo ao aeroporto, um pedaço de lata barulhento encostou ao portão: — E então, terá ou não casamento? — perguntou tia Cecília, que havia decidido fazer a viagem de carro e, em consequência, só havia chegado ao fim da comemoração.
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Viajar de madrugada já estava se tornando rotina para mim. Se bem que não pude aproveitar nada dessa volta, pois meu pensamento não estava dentro daquele avião, mas ao lado de Letícia. Não conseguia parar de pensar em como ela estaria. Com a mente em desordem, você nem vê o tempo passar. Ele voa! Tudo foi tão rápido que só tive tempo de ficar enjoado quando o piloto anunciou a aterrissagem. Do aeroporto, pegamos um táxi diretamente até o hospital. A primeira coisa que Ofrásia fez ao entrar foi correr em direção à sala de espera, onde estava a mãe de Letícia, de braços abertos e gritando: — Marleninha... Vem dar um abraço. Pode desabafar tudo o que estiver entalado em sua garganta. Enquanto era esmagada pelos fortes braços da mãe de Belinha, dona Marlene fazia a cara de: “Quem é essa doida?”. Belinha movimentava os lábios, como se respondesse: “Minha mãe”. Após conseguir se safar da “amiga”, Marlene contou o que aconteceu, desde o início: “Depois de não ter conseguido ganhar o concurso de beleza no dia do desfile, Letícia começou a agir de maneira estranha: vivia cabisbaixa, não falava com ninguém e, se lhe fizessem alguma pergunta, respondia de forma grosseira. Não era a Letícia que criei. Com o passar dos dias, notei que ela se olhava com maior frequência ao espelho, como se procurasse alguma imperfeição no rosto, ou no corpo, ou estivesse preocupada com alguma. Jamais pensei que isso pudesse significar alguma coisa. Quem disse que não te entendo?
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Os cremes de beleza e demais cosméticos começaram a ser usados a todo vapor por ela, como se estivesse tentando corrigir algo que estava errado. Certo dia, ela chegou em casa e, sem dizer uma única palavra, fechou-se no quarto. Algo me dizia que eu deveria fiscalizá-la. E, como coração de mãe nunca se engana, ao abrir a porta, eu me deparei com ela deitada em sua cama com o estilete em uma das mãos e na outra... Corremos para cá e, por sorte, encontramos um médico de plantão. Ele atou seu pulso, a internou e, minutos depois, deu seu diagnóstico: dismorfofobia.” — Dismorfo... quem? — perguntou Ofrásia, não fazendo ideia de o que seria aquilo. — Também desconhecia, mas o doutor disse que a dismorfofobia é um transtorno mental no qual a pessoa tem uma preocupação excessiva por alguma imperfeição corporal ou defeito imaginário. E, devido a isso, a pessoa se isola, fica esquisita e, em alguns casos, pode levar ao suicídio. Não precisou que ela dissesse. Concluí que, quando Cris ganhou de Letícia no infeliz concurso, ela pôs na cabeça que havia alguma coisa errada com seu exterior. E isso a levou a cometer essa loucura. — Minha mãe e eu — dizia Marlene — estamos aflitas. Acho que não conseguiremos dormir essa noite sem saber notícia da minha filhinha. Enquanto isso, a avó de Letícia praticamente babava e roncava, cochilando na cadeira de espera, como se nada estivesse acontecendo. 120
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— Não conheço muito bem os amigos da Letícia, mas, como pensei que talvez se interessassem em saber, resolvi ligar para qualquer número de sua agenda telefônica. E então, você atendeu — me disse. — Desculpe pelo incômodo. — Não incomodou... Queria esticar a frase, mas um “fiquei feliz por ter ligado” não soaria bem naquele momento.
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Hospitais têm regras rígidas: nada de visitas fora de hora ou acompanhantes em dormitórios. Mesmo conhecendo todas essas normas, eu não podia ficar sem ver Letícia pessoalmente e saber se ela estava bem ou não. Fui lamentar ao guarda. Não, não e não! O homem de uniforme e cara de brabo não estava disposto a deixar ninguém subir. Voltei à sala de espera. Parecia incrível: todos aparentavam estar tranquilos. Dona Marlene folheava uma revista, Ofrásia lixava as unhas, Isabela assistia ao filme que passava na televisão e a avó de Letícia dormia. Eu era o único ansioso naquela sala. Olhava para o relógio, balançava a perna, olhava para o relógio mais uma vez... Não aguentando tanta tortura, voltei a falar com o guarda. — Qual é, moleque? Você por acaso veio de outro país só para vê-la?
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Disse a verdade e consegui fazê-lo abrir uma exceção.
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Assim que abri a porta do quarto de Letícia, eu a encontrei deitada, dormindo, com o braço esquerdo enfaixado. Um sentimento parecido com tristeza invadiu meu coração. Sem nada para fazer até amanhecer o dia, eu me sentei à beirada da cama e permaneci lá, fazendo-lhe companhia. Sem querer, adormeci.
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— Edu... Edu... — ouvia a voz de Letícia — Você passou a noite toda aqui? — Que horas são? Não acredito que peguei no sono... Não passavam das sete e meia, mas antes que Letícia pudesse responder alguma coisa, seu médico entrou no quarto, carregando consigo uma caixa de plástico. — Bom dia, Letícia! Bom dia... Quem é você? Um novo paciente? — Er... — antes que eu inventasse alguma desculpa de por que estava ali e acabasse me complicando ainda mais, o médico apenas disse que estava tudo bem e pediu para que eu chamasse dona Marlene.
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Logo apareceu a mulher, trotando, querendo de uma vez por todas saber mais detalhadamente o que acontecia com sua filha. O médico foi dizendo: — Letícia, a dismorfofobia não é brincadeira. Ela tem que ser tratada. Você nos deu um susto muito grande. Sei que é difícil e um pouco chato falar com alguém sobre o que você está passando. É por isso que eu adotei um método diferente para sua recuperação... E abrindo a caixa, tirou um gato de dentro. — Esse é o Tobby, seu novo bichinho de estimação. A partir de agora, tudo o que você estiver sentindo e quiser desabafar, poderá contar a ele. O melhor é que nada do que você disser será revelado, afinal, ainda não surgiu algum especialista que fale a língua dos gatos. Dito isso, entregou o gato a ela, concluindo: — Talvez isso lhe pareça um pouco infantil, mas, acredite, as estatísticas revelam que mais da metade da população adulta mundial conversa com seu animal de estimação. E quase 100% dessas pessoas vivem extremamente felizes. Sendo assim, espero que você tenha uma boa experiência com o Tobby. Assim que terminou, ouviu-se o espirro de Marlene. — A senhora está gripada? Um balanço de cabeça para os lados indicou sua forte alergia a pelo de gatos. ***
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Agora, com gente no pé de Letícia o dia todo, não havia motivos para eu ficar plantado lá feito um estorvo. Sendo assim, fui para casa com Tobby nos braços. Letícia me pediu para cuidar dele, enquanto encontrava alguma forma de mantê-lo com sua mãe na mesma casa. Usei a cópia da chave de casa que tenho para entrar. Soltei o felino e, ao ver o telefone sobre a mesinha, tive uma ideia. — Alô, Cris! — Edu? Que surpresa... Aconteceu alguma coisa? — Bem, na verdade, sim. Lembra quando você, por engano, ganhou o concurso de Miss Rosa dos Ventos? — Se eu lembro? Aquele foi o dia mais feliz da minha vida. O troféu é como um filho para mim. Limpo, faço polimento e dou brilho nele quase todos os dias. Sei que parece bobo, mas ele está meio que sendo a razão do sorriso nos meus lábios ultimamente. Eu me sinto tão mais poderosa com ele! Depois disso, qualquer coisa que tinha em mente foi por água abaixo. — A propósito, e aquela sua amiga, está bem? — Vai ficar! Dando adeus e até amanhã, desliguei o telefone. Peguei o dinheiro em cima da geladeira e saí. *** 124
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Mercado de cidade pequena está longe de ser super. Quem dirá hiper. Não entendo, portanto, por que é que o mercadinho mais fuleiro do meu bairro recebe o nome de Megamercado do Chicão. Minha intenção era a de não pegar muitas coisas. Na verdade, meu objetivo era levar para Letícia algumas coisas que ela gostasse, tais como frutas cítricas que, além de conterem muitas vitaminas, também são alguns dos tipos de alimentos aceitos no hospital. Laranja, tangerina, maçã... Que outra fruta ela poderia gostar? É claro: uva! Quando olhei na bancada de uvas, eu me deparei apenas com um único cacho. E era um cacho perfeito. Assim que levei minha mão para pegá-lo, uma mão menor e mais macia tocou nele antes. Quando vi quem era a dona daquela mão, eu me surpreendi. — Oi, Edu. Quanto tempo... Mercado de cidade pequena está longe de ser super, mas numa coisa tenho que concordar: é um ótimo ponto de ressurreição de pessoas já julgadas mortas. — Luciana... Tudo bem? — Se “à procura de um namorado” significar bem, sim, estou bem... Não sei nem por que estou contando isso para você, mas estou meio que carente... Parece bobo, mas se nesse exato instante um velho amigo, ou até mesmo um simples conhecido, me convidasse para sair, aceitaria de imediato.
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Ouvindo aquelas palavras e mirando seu apaixonante rosto, eu me perdi em seu olhar. Aí ela me perguntou: — E então, quem fica com a uva? — Pode levar: eu já tenho quem adoce minha vida.
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Mal cruzei a porta do hospital com minha sacolinha de frutas e dona Marlene veio em minha direção. Séria e convicta, ela me disse que Letícia estava querendo falar algo muito importante para mim e, com um olhar típico de sogra, informou que sua filha havia percebido algo que estava bem diante de seus olhos há bastante tempo, mas que só agora ficou estritamente claro; em consequência disso, queria me ver urgentemente. A propósito, eu iria gostar muito da surpresa. Piscando o olho direito, Marlene voltou para a sala de espera, sentando-se na cadeira que a acomodava desde a noite anterior. E eu, mais uma vez por não ser horário de visita, despistei os seguranças e fui rumo ao quarto onde Letícia estava internada. Antes que eu pudesse chegar até o dormitório, resolvi entrar no banheiro localizado bem no meio do corredor. Roía as unhas, jogava água no rosto, estralava os dedos. Frente ao espelho, analisava alguma imperfeição que tivesse possível reparo, ajeitava o cabelo e verificava o hálito. Estava mais do que óbvio o que Letícia queria comigo: finalmente ela havia notado meu verdadeiro sentimento por ela. 126
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Desde algumas semanas atrás, estou tentando conquistar a garota, logo, já deveria estar preparado para esta situação. Mas o coração comunicou que não estava — o danado pulava mais que peão em dia de rodeio. Talvez isso fosse até bom, pois aceleração cardíaca é sinal de um sonho que está prestes a ser realizado. Tomando consciência de que aquela noite pudesse ser a melhor de minha vida, tirei o braço de perto da minha boca, respirei fundo e, adquirindo coragem para não pensar no suor das mãos, saí do lavabo, disposto a beijar de verdade. Como uma barata tonta, comecei a dar voltas no corredor, próximo ao quarto. Não sabia se ria, se chorava, se ficava sério... Toda a tensão e ansiedade mostravam quão inexperiente eu era no assunto. Inspirando e expirando pela última vez, entrei no cômodo que cheirava a éter — se bem que o único cheiro que sentia era o de paixão pairando no ar. Assim que meus olhos viram o delicado rosto de Letícia, milagrosamente consegui me acalmar. Percebendo minha presença, falou pacificamente: — Oi, Edu. Não sei se era coisa da minha cabeça, mas aquele oi foi diferente do que qualquer outro oi que eu já tinha recebido em minha vida. Havia algo parecido com uma mistura homogênea de ternura com alegria. — Sua mãe disse que você estava querendo falar comigo. — Quero...
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A partir dessa fala, o verbo querer passou a ser o meu preferido. Também foram se tornando favoritos os vocábulos e classes gramaticais que vieram em seguida, com o pedido: — Chegue mais perto... O romantismo realmente estava em alta em Letícia. Aparentemente, ela queria resumir tudo num único beijo. Aproximei dela. Ela pôs uma de suas mãos sobre as minhas, suavemente. Senti a aconchegante maciez de sua pele. Vagarosamente, ela fez sinal com o dedo para que meu rosto ficasse mais perto do dela. Um quarto de hospital não era bem o cenário que eu imaginava para o primeiro beijo, mas aquela seria uma forma de eu transformar um lugar não muito agradável no mais especial. Só eu e ela. Mais ninguém. Tudo estava perfeito. Devagarzinho, ia conduzindo minha cabeça, inclinando-a levemente para a direita, para junto da garota. Os olhos foram se fechando, enquanto os lábios se aproximavam. Parecia que eu estava numa viagem à Lua. — Edu, o médico disse que vai me dar alta amanhã de manhã. Não é o máximo? — falava próximo ao meu ouvido. O foguete em que estava se explodiu em mil pedacinhos, quebrando-se junto com o clima que estava rolando e me deixando completamente sem graça. — Era isso que você queria me dizer?
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— Sim... Eu percebi que estava sendo uma idiota me preocupando tanto com a beleza exterior, contei isso ao médico e ele disse que, por conta desse pensamento, me dará alta. Por quê? Pensou que poderia ser alguma outra coisa? — Não... Eu só não sabia que ia ser tão... especial.
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Antes de eu sair do hospital, Letícia me fez um último pedido: para que eu cuidasse bem de seu novo gatinho, pois em algumas horas queria segurá-lo nos braços e lhe dar muito carinho. Isso não seria problema se não fosse o fato de eu chegar em casa e revirar todos os cômodos de cabeça para baixo à procura do bichano. Não conseguia encontrar o danado em lugar algum. Meu pai já havia voltado da Argentina. Ao mostrar meu desespero, ele, calmo como se nada tivesse acontecido, apenas me falou: — Gatos são assim... somem de repente.
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12. Sumiço do gato
Precisava de um tempo para pensar, pôr todas as ideias no lugar. E nada melhor do que Nina para me ajudar com essa tarefa. Ainda não tinha anoitecido totalmente; podia-se, porém, ver as estrelas brotando vagarosamente no céu. Nina, como sempre, fora uma das primeiras a aparecer e iluminar o que seria uma noite melancólica. Debruçado sobre o parapeito, olhava para ela, quase implorando que me dissesse algo, que me orientasse naquela tão embaraçada situação. Acho que de tanto ouvir meus lamentos, ela finalmente resolveu abrir sua boca de estrela. — Titanic. Titanic? Um turbilhão de dúvidas assombra minha mente e tudo o que a infeliz da estrela me diz é Titanic? Que raios Titanic quer dizer? Será que é uma forma de enfatizar que minha vida está indo por água abaixo? Provavelmente... Não posso, porém, destacar que “Titanic” não fez nenhum sentido, afinal, estaria mentindo. Esse substantivo (próprio) lembrou-me água; água lembrou-me natação; e natação me lembrou que no dia seguinte eu estaria num campeonato.
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Caramba! Realmente o tempo passa muito rápido.
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Café da manhã. O que comer? É complicado adivinhar o que o estômago gostaria de degustar em plena seis da matina; ele não está acostumado a deglutir nada a esse horário — geralmente vou em jejum para a escola. Nesse dia, porém, não poderia sair de casa de estômago vazio. Deveria consumir ao menos uma quantia mínima de carboidratos, suficientes para manter minha energia durante o tempo dentro da água. Tomei um suco de laranja como acompanhamento de um pão com margarina e dei umas três voltas pelo meu quarto, na mais estranha sensação de estar esquecendo algo. Meu pai me apressava, pois, se enrolasse mais um pouco, me atrasaria para a competição. Quando entrei no carro e pus o cinto, finalmente o cérebro acordou: não poderia participar de uma prova aquática sem minha sunga. Desci do automóvel e fui buscar a tão importante peça de roupa.
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O carro ficou estacionado próximo à entrada do clube, que naquele dia poderia ser considerado sede de uma competição regional. Antes de entrarmos, meu pai disse que precisava ficar uns minutinhos
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a mais do lado de fora, pois tinha assuntos importantes a serem resolvidos, pelo celular. Visto que eu já estava em cima da hora, deixei-o e fui em direção às piscinas. A correria era grande, muita gente zanzando para lá e para cá. Competidores e torcida nervosos, aflitos para o início da prova. — Edu, onde é que você estava? — perguntava Cris superpreocupada — Já deveria estar pronto há dez minutos. Ande, garoto! Fui rumo ao vestiário. Notei, no entanto, uma pessoa vindo em minha direção: Claudinho. Confesso que já nem me considerava mais o melhor amigo dele, uma vez que a gente nem estava mais se falando direito. Ele, no entanto, mostrou o contrário. — Edu, que bom que você chegou, cara. Tem uma coisa que eu descobri e preciso contar. Usando uma famosa frase do saudoso Cazuza, respondi: — Conte no vestiário. “O tempo não para!” Enquanto me trocava a toda velocidade, ouvi atentamente cada palavra que saiu da boca de Claudinho. — Primeiro quero que você saiba que não há mais nada entre Letícia e eu, a não ser amizade... — A-hã... — E também que quando você não foi à escola, devido à viagem para a Argentina (que eu já fiquei sabendo), escutei uma conversa de Letícia ao celular com Belinha (que provavelmente também estivesse rumo a Buenos Aires) ...
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— A-hã... — O fato é que eu ouvi Letícia falar sobre roupas fashion, sobre cantores pop... Essas coisas de menina... — E? — E entre essas coisas, Letícia disse que podia perceber a chama da paixão se acendendo novamente em seu coração. Ela disse estar apaixonada. — Tá bom, Claudinho. Isso não me interessa agora... — fui interrompido por uma bomba. — Ela tá gostando de você! Fiquei estatelado. Será que eu realmente tinha ouvido o que pensei que tinha? Ou melhor, será que Claudinho havia escutado corretamente a conversa? As perguntas ficaram sem resolução, pois Cris, inesperadamente, entrou no vestiário e, me empurrando para fora, falou: — Sei que não devia estar aqui, mas pelo visto, se eu não entrasse, você não sairia. Agora, vamos!
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Enquanto o árbitro aguardava autorização para indicar o início da disputa, dei uma breve olhada em meus desafiantes. Não conseguia acreditar que entre eles estava um não muito querido conhecido. 134
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Finalmente consegui entender por qual motivo o traste do Dudu havia surgido na cidade: ele estava inscrito no campeonato de natação. Esbanjando autoconfiança, Dudu se sentia meio que um maioral, exibindo as axilas já lotadas de pelos — talvez essa fosse a única coisa madura que ele tivesse. Antes que eu me irritasse ainda mais com o playboyzinho, o “tiro de largada” foi dado, fazendo com que todos nós, ali reunidos, nos jogássemos dentro da água e déssemos o melhor de nós para chegarmos primeiro de volta à margem. Aos poucos, os competidores foram se cansando e diminuindo velocidade. A rixa maior era entre a raia cinco e a raia oito — Dudu versus Edu. Mesmo estando submerso, era possível ouvir os gritos do “técnico” de Dudu se misturando com os de Cris, que só faltava pular na piscina e me ajudar a ficar mais veloz. Não estava sendo nada fácil manter o ritmo do início, mas sabia que faltava pouco para acabar. Dei o máximo de mim, disposto a ficar esgotado, assim que chegasse à borda. O que eu não percebi era que estava a poucos metros da margem. Bati com a cabeça. De uma forma meio estranha, cheguei à frente. Notei isso quando levantei a cabeça para tomar fôlego e Cris veio me ajudar a sair da piscina, comemorando. Na raia cinco, o velho rabugento era rígido com Dudu, que perdeu por alguns milésimos de segundo. A folia dos que torciam por mim — havia pessoas que eu nem conhecia na minha torcida — não foi o suficiente para eu não notar a ausência do meu pai. Se bem que já era de se esperar que ele não estivesse presente. Quem disse que não te entendo?
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— Nossa, duas notícias maravilhosas e o dia nem começou — falava Cris, feliz da vida. — Duas? — perguntei curioso. — Sim! A primeira foi você ter ganhado e a segunda foi terem prendido um delinquente em frente ao clube. Na verdade, ouvi um boato de que ele saía da mata fechada, aquela em que entramos outro dia, no momento que a viatura de polícia chegava. O mais engraçado era que o cara, ainda estando no mato, usava terno. Só havia uma pessoa capaz de usar paletó e gravata em qualquer que fosse a situação. — Cris, não tenho certeza, mas acho que esse homem... é meu pai.
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Sem cabeça para pensar em qualquer tipo de comemoração por minha vitória, eu me despedi do pessoal, dizendo que nos encontraríamos outra hora, pois eu precisava, naquele momento, ir à delegacia e confirmar se minha suspeita era real. — Espere, Edu! Eu te levo no meu carro novo! — gritou Cris, como se estivesse ansiosa para que todos vissem o veículo que comprara. Realmente o carro era lindo: embora compacto, zero quilômetro, vermelho cintilante, “trocentos” cavalos e completo, com todos os apetrechos necessários e desnecessários para uma máquina perfeita.
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A caminho da delegacia de polícia, pude ouvir no rádio (com entrada USB e Bluetooth) a notícia do dia: — Após três anos da suposta morte de Amélia Fischer, conhecida primeiramente como Amélia Cavalcante, repórter e jornalista da mais poderosa emissora de tevê brasileira, foram encontrados vestígios de que ela poderia estar viva e habitando as redondezas da metrópole paulista. Vale lembrar que nada foi confirmado. Por sorte, estava sentado. Minha mãe viva! Ao mesmo tempo que seria ótimo, seria absurdamente absurdo.
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Na delegacia, tomei nota da verdade: realmente o bandido era meu pai. Pude ler um fragmento do boletim de ocorrência que informava: “Ricardo Fischer, 36 anos, viúvo, detido por tráfico e comércio ilegal de pele de animais [...]”. Logo mais abaixo, citava o nome de Graça como cúmplice. Resumindo, passei a tarde na delegacia, entrando em contato com o tal advogado que meu pai pediu.
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Assim que coloquei os pés em casa, vi que havia um recado na secretária eletrônica.
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— Oi, Edu. É Letícia. Como vai o Tobby? Já estou com saudades... Amanhã mesmo peço para minha mãe me levar aí, para eu dar uma olhadinha nele. Até mais! Antes que eu pudesse apagar o recado, alguém batia à porta. A última coisa que esperava era uma visita, depois de um dia tão agitado como esse. Assim que abri, Belinha me abraçou e começou a chorar em meu ombro. De fato, sou um péssimo consolador. Não sei o que falar ou o que fazer para confortar alguém que está precisando. Sendo assim, eu a deixei chorar por mais algum tempo, até ela enxugar os olhos e, ameaçando uma risada, falar: — Minha mãe, Edu, finalmente foi ao médico... Está com leucemia! Já sem derramar mais nenhuma lágrima, sorriu e, confiante, disse: — Por sorte eu, como filha, tenho grandes chances de ser uma doadora de medula óssea. Então, vai dar tudo certo. Pensamento positivo! Só conseguia me lembrar do que havia ouvido na despedida de solteiro.
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13. Simplesmente... chegou ao fim!
Realmente sou péssimo em consolar as pessoas. Pior ainda para dar más notícias. — Belinha, não sei nem como dizer, mas acho que você não vai poder ajudar sua mãe dessa vez... — Do que está falando, Edu? — Você é adotada! Disse de uma vez. Não adiantaria ficar esticando conversa. A expressão de surpresa, susto ou algo do gênero, no rosto de Belinha, era considerada assustadora. — Desculpe... Não podia prever o que ela faria. Talvez chorasse, talvez entrasse em depressão, talvez desse as costas e fosse embora. — Mesmo? Uau... Bem, então acho que terei que aprender a viver com essa verdade. E como uma excelente atriz de Hollywood, agiu de uma forma nada esperada: não fez cena. Incorporou um personagem alegre e de
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bem com a vida. Sorrindo, agradeceu pela informação. Em seguida, foi embora tranquila. Eu, no entanto, fiquei preocupado.
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O julgamento do meu pai foi bastante agitado. De um lado, um escrivão, anotando tudo o que era anunciado naquele tribunal; do outro, o júri, disposto a ouvir atentamente cada palavra que fosse dita, tanto por parte da defesa como da acusação; do outro, meu pai com seu advogado, sem muitos argumentos para sua proteção. Nada de juiz ou juíza. A mesa estava vazia. Todos ao aguardo da autoridade. Enfim, cruzou a porta. Dirigindo-se à sua mesa, a criatura malvestida e esquisita, fazia uma grande revelação: — Muitos podem me conhecer atualmente como Emília, mas meu verdadeiro nome é Amélia Cavalcante Fischer. É, Ricardo, parece que sua esposa está realmente viva. A plateia fez-se de estátua; o júri estava desorientado; meu pai estava confuso; o escrivão, contudo, apenas anotava. Sonhar com algo assim não é bem um sonho. Está mais para pesadelo. Dos mais assustadores. E foi acordando que verifiquei a hora no celular: 23h30. Vi que aquela seria uma noite longa.
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Diante do espelho, lavava o rosto. Diante do espelho, escovava os dentes. Diante do espelho, fazia o que era possível para tirar a rebeldia do cabelo. Diante do espelho, percebi que aquele dia que mal começara seria um dia difícil. E já começou com a campainha tocando. Ainda com a cara inchada de sono, abri a porta: era Letícia. Era seu último dia com atestado médico e queria iniciá-lo bem cedo. Eu, entretanto, não estava preparado para isso. — Então, Edu, onde está o Tobby? Como dizer à pessoa pela qual se está apaixonado que perdeu seu gato? Tentei desviar o assunto: — Você ficou sabendo da mãe de Belinha? Os assuntos foram chegando ao fim e eu ainda não tinha pensado numa maneira de dizer que seu querido animalzinho de estimação havia fugido. Vendo que não teria escapatória resolvi encarar os fatos. — Letícia... O Tobby... “Miau”, ouviu-se da cozinha. Olhei para o lado e vi o danado passeando pela casa. — ... está bem aqui!
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A justiça geralmente não é tão rápida. Por algum motivo que desconheço, nesse caso do meu pai ela se tornou superagilizada. Logo um Quem disse que não te entendo?
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dia após sua detenção, meu pai já receberia o veredicto, que poderia acusá-lo ou livrá-lo da prisão. No julgamento real, havia poucas pessoas assistindo — na verdade, eu estava entre a meia dúzia —, o escrivão era canhoto, o júri reclamava demais e o juiz não era uma versão louca da minha mãe. Isso sim parecia coisa séria. O advogado que meu pai contratara para defendê-lo poderia ser considerado o melhor da região, porquanto não houvesse perdido um só caso. Era excelente para apresentar argumentos e deixar a promotora sem graça. Era óbvio que com um defensor tão bom quanto aquele jovem doutorzinho, meu pai seria inocentado. Após um recesso de quinze minutos... — O júri chegou a uma decisão. E após uma pausa, soltaram a língua: — Ricardo Fischer é culpado por tráfico de animais. E o juiz concluiu: — Sentencio este senhor a seis meses em regime fechado e multa de dois mil em moeda corrente. Graça teve a mesma pena.
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O único lugar que me faz sentir bem em momentos difíceis é o clube. Foi pensando nisso que marquei presença em mais uma aula 144
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de natação. Uma aula que seria bastante diferente — e era impossível presumir isso. — Bom dia, pessoal, vocês já devem me conhecer: sou o presidente do clube e quero comunicar que, por alguns dias, uma semana talvez, teremos que suspender as aulas de natação, até que encontremos um novo instrutor. E se virando, o elegante homem saiu, sem uma clara explicação sobre o que estava acontecendo. Como assim, novo instrutor? O que havia acontecido com Cris? E foi nessa indignação que resolvi segui-lo até sua sala. — Desculpe, senhor, mas e a Cris? O que houve com ela? — Qual é o seu nome, rapaz? — Eduardo. — Ah, então você é o tão famoso Edu? Você é bem popular aqui, sabia? Bem, mas você perguntou da Cris, não é mesmo? Seja sincero, você confia nela? Era uma pergunta muito doida, sem sentido, pelo menos para mim. — Confio. Por que não confiaria? — Há uma semana, houve um arrombamento no cofre, onde fica guardado todo o dinheiro das vendas de títulos. Então, do nada, a Cris aparece por aqui de carro novo, como se estivesse divulgando sua nova fortuna. — Ela não poderia ter comprado o carro com o próprio dinheiro? Muitas vezes, pessoas trabalhadoras fazem isso.
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— Pagar à vista um carro zero com todos aqueles acessórios modernos, recebendo o salário que ela recebia? Acho pouco provável. Então, o conselho do clube entrou em comum acordo e encerramos sua conta. Cris extorquindo dinheiro? Era realmente uma ideia absurda. Ela jamais seria capaz de cometer tal crime. E, também, como eles puderam demiti-la sem provas? E por que ela não levou o caso à justiça? Infelizmente, para essa última questão, só havia uma única resposta: decerto ela tinha alguma coisa a ver com o ocorrido. — A propósito, Edu... Posso te chamar assim, certo? Balancei a cabeça para cima e para baixo. — Fiquei sabendo que algum tempo atrás estava interessado em dar aulas aqui. Aí está uma ótima oportunidade. Não temos ninguém em vista. Se desejar, entre em contato comigo em até quarenta e oito horas e você fica sendo o instrutor das turmas novas.
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Assim que cheguei em casa, não pude acreditar: tia Cecília e Lurdinha haviam voltado. — Ah, esse meu sobrinho predileto deve estar precisando de tanto carinho. Vem chorar suas lágrimas com sua titia querida, vem... Não sabia o que tinha feito para merecer aquilo.
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A quarta-feira chegava. Depois de tanto tempo faltando às aulas — cada dia por um motivo diferente —, pensei que tudo pudesse estar de pernas para o ar na minha volta. Isso meio que foi um pensamento bobo, afinal, com ou sem minha presença, aquele colégio vive de pernas para o ar. Assim que cruzei o portão, pude ver Letícia conversando com Tobby — sim, ela havia levado o gato à escola, já que não poderia deixá-lo com sua mãe. Sorrateiramente, fui sentar-me ao lado deles. Conforme fui chegando perto, pude ouvir, ligeiramente, o que ela falava. Quando notou minha presença, ela silenciou e, em seguida, me cumprimentou. Todavia, eu já havia escutado o mais importante: — Tobby, sei que parece estranho, mas, de uma forma que eu não sei como explicar, acho que estou gostando do Eduardo. Ele é demais!
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História sempre foi um martírio para mim. Acho que nem mesmo os destemidos imperadores, se tivessem que aprender sobre suas vidas e a forma como governavam, iriam gostar. Talvez fosse por achar que seus alunos pensassem assim que a endiabrada professora Renata inventou de passar um trabalho de casa um
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pouco diferente: pesquisar sobre os gostos e interesses da mãe, do pai ou de algum outro conhecido. De início, todo mundo estranhou. O que o prato de comida predileto do meu tio, por exemplo, tem a ver com História? Logo veio a explicação de que História não é só um emaranhado de datas e fatos, mas também o que se vive no cotidiano. Pela primeira vez, a matéria se tornou interessante para mim. Ao meu lado, Letícia segurava Tobby no colo — ainda não entendi como deixaram o gato entrar na sala de aula —, mas foi Belinha que chamou minha atenção. Ela estava completamente sorridente. Quem a visse naquele momento, com certeza diria que ela era a garota mais feliz do mundo. Eu, como amigo há muito tempo, pude perceber que não era bem assim. Embora seu exterior mostrasse felicidade, seu olhar demonstrava uma profunda tristeza, uma melancolia que estava sendo reprimida. — Belinha, você está um pouco diferente hoje... — Diferente? Eu? Não, Edu... Sou a mesma! Inclusive, aprendi ótimas piadas novas... A professora, exigindo silêncio, não deixou que Isabela compartilhasse seu humor, que, não entendo como, era bom.
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Após a aula, fui fazer uma visita a meu pai. Quando entrei no gélido corredor da penitenciária, até senti um arrepio, uma sensação ruim.
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Ao notar quem era a faxineira, a ruindade duplicou. A tal da Emília estava em todo lugar. Não sei como ela consegue... É impossível! — Pai, você, por acaso, conhece essa faxineira? — perguntei. Abaixando a voz, meu pai me contou aos sussurros: — Essa mulher é uma doida. Há uns dezesseis anos, mais ou menos, ela era apaixonada por mim. Quando eu a ignorei e tomei a decisão de ficar com sua mãe, ela começou a imitá-la em tudo. Inclusive trocou de nome. Depois de um tempo, ela simplesmente sumiu da minha vida. Fiquei sabendo que estava num hospital psiquiátrico. De uns dias para cá, no entanto, notei que ela está de volta. A única coisa que posso fazer é fingir que não a conheço. Aquilo me deixou aliviado, pois acabou de vez com a dúvida de que ela talvez pudesse ser minha mãe, que sobrevivera ao acidente. — Ontem, enquanto estava vindo para cá, ouvi no rádio uma notícia de que talvez a mamãe estivesse viva. — Eles querem especular a vida de todo mundo... É correto afirmar que o túmulo no cemitério é apenas simbólico e que até hoje não encontraram o helicóptero em que ela estava. Ele deve estar lá pelo fundo do mar, como o Titanic, mas não teria forma de... Impossível. Sinto muito. Não sei por que, mas “Titanic” me lembrou uma coisa... — Peraí, Edu! Você disse que veio ouvindo rádio? Como isso? — Ah, a Cris me ofereceu uma carona para cá, em seu carro novo. — Que mulher mais hipócrita!
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Um ponto de interrogação havia se formado em minha cabeça. Não havia motivos aparentes para ele chamar Cris de falsa. Foi aí que ele revelou. — Aposto que ela fez cara de santinha, de quem não sabia de nada, não é verdade? Ela era minha maior cliente! Sempre comprando casacos novos e sempre adiando o pagamento. Semana passada, finalmente ela me deu um cheque para liquidar a dívida caríssima. Após um tempo, a polícia estava à minha espera. Com certeza, foi ela quem acionou as viaturas. — Quer dizer que ela sabia o tempo todo... — Na verdade, ela não sabia que eu era seu pai. Por isso, eu tentava não estar por perto, quando ela estava próxima de você. Talvez quando ela descobriu, possa ter se arrependido ou... — Acho pouco provável — interrompi, vendo que havia posto a mão no fogo pela pessoa errada.
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O advogado de meu pai chegou bem naquela hora. Com muito entusiasmo disse que tiraria meu pai dali num passe de mágica. Era só o juiz autorizar um habeas corpus e ele cumpriria a pena em domicílio.
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Mudando de assunto, comentei o verdadeiro motivo pelo qual estava lá: o trabalho de História. Eu o havia escolhido para minha “entrevista”. — Cantor preferido? — Hum... essa é difícil... — Escritor? — Não sou muito de ler... — Filme? — Quer saber, por que você não faz um trabalho baseado na sua mãe? Ela, sim, tinha personalidade, sabia do que gostava. E todos também sabiam, afinal, ela só sabia falar de seus ídolos. — Tudo bem... Qual era o cantor preferido dela, por exemplo? — Cantora! Ela considerava demais as mulheres. Elis Regina era sua favorita. Ouvia suas músicas desde quando acordava até a hora de dormir. — Escritor? Ou melhor... Escritora? — Com certeza, Clarice Lispector. Você sabe que ela tinha uma coleção completa dos romances e coletâneas de contos. Fica lá na estante da sala! Foi aí que percebi que não tinha apenas as respostas para meu trabalho. Tinha a resposta para tudo o que Nina estava querendo me dizer. Só para encerrar, perguntei: — Filme?
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— Cidade dos Anjos. É... Titanic era mesmo uma comparação ao acidente de helicóptero.
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Juntar pistas e encontrar uma solução não é tão fácil quanto resolver um problema de matemática. Precisava descobrir o que Nina queria dizer em relação à minha mãe. E foi não encontrando resposta alguma e decidindo desistir, que a nuvem negra realmente se desmantelou. — Mãe? — perguntei, olhando para o céu. — Demorou, mas, enfim descobriu... — Você é a Nina? A Nina é você? — Não é bem assim... As estrelas são como lares para os espíritos. Eu habito nesta! — Então, por que não me disse antes? — Não tinha autorização para contar. Você tinha que descobrir por si próprio. — Isso quer dizer que todo esse tempo era você que realizava meus desejos e ouvia minhas histórias? — Quanto às histórias, sim, era eu. Já os desejos, isso é coisa da estrela.
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Estava encantado. Aquela era uma revelação e tanto. Eu teria que contar a alguém. Lurdinha, então, entrou no quarto, informando que a janta estava pronta. — Lurdinha, sei que pode parecer muito estranho, mas... E contei tudo, desde o início: como havia conhecido Nina, dos desejos que ela realizou, das frases que ouvia... Como resposta, obtive: — Ah, Edu. Não somos mais crianças. Chega de inventar histórias... — Lurdinha? Como você está bonita! — Ah, obrigado, estrela... Estrela? — E agora — disse me gabando um pouco —, você acredita em mim? — Que maluco! Temos que chamar os repórteres, os jornalistas, a imprensa em geral. Ficaremos ricos com essa descoberta! — Lurdinha, não! Não vê que isso é uma coisa mágica, que não pode ser revelada? Que tal se isso ficasse em segredo, se só nós dois soubéssemos? — Edu, por que não aproveita e conta seus outros segredos? Juro que senti vontade de “matar” minha mãe... Mas não tinha como! — E, então, Edu, o que mais quer me contar? O jantar pode esperar. Odeio comida quente...
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Falei toda a verdade sobre Letícia — agora além de Nina e minha mãe, Lurdinha também sabia. E ouvi de minha prima: — Você não está apaixonado por ela. — Como? — Você deixou de se divertir na Argentina por ela; você sonha com ela todas as noites; você passou a madrugada toda ao lado dela no hospital e sei que passaria ainda mais tempo se precisasse; você ignorou uma garota que lhe deu a maior bola; você não ficou triste quando ela se irritou com você, pois você jamais ficará com raiva dela por pior que seja o que ela faça. O que você está sentindo por ela é mais do que paixão... É claro que nesse momento, a voz de tia Cecília — que, da cozinha, gritava com a boca cheia “A comida está uma delícia!” — interrompeu nossa conversa. Mas, Lurdinha logo prosseguiu: — Parabéns, Eduardo, você descobriu o amor! — E o que você supõe que eu faça? — Conte a ela. Pelo visto, ela também deve estar gostando de você. Ou melhor... — disse pegando um caderno e uma caneta — escreva! Uma carta sempre foi e sempre vai ser a demonstração de amor mais romântica. E levantando-se, foi à janela. — E só para reforçar... Nina, eu desejo que Letícia e Eduardo fiquem juntos por um bom tempo...
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Desabafar tudo o que se sente numa simples carta não é tão fácil quanto parece. A gente muitas vezes não encontra a palavra certa, por mais que tente. Muitos rascunhos são jogados fora, muitas frases são riscadas depois de escritas. Demorei cerca de cinco horas para escrever a tal carta. Pode parecer absurdo, mas de uma coisa eu tenho certeza: aquela era a carta mais perfeita que eu já havia escrito, e talvez a que eu escreveria, em toda minha vida. Então a guardei na mochila, antes que eu acabasse esquecendo-a sobre a mesinha do computador.
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Contei os segundos para o final da aula no dia seguinte. Não precisaria me declarar oralmente, mesmo assim, estava muito nervoso. As mãos suavam intensamente, o coração parecia que ia saltar pela boca. E tudo porque era uma simples carta. Assim que o sinal soou, indicando o término de mais uma semana letiva e pedindo para que nos divertíssemos no feriado prolongado que começava na sexta-feira, corri em direção a Letícia. — Letícia, espere um pouco. Preciso falar uma coisa... Com a mão esquerda, abri vagarosamente o zíper da mochila e coloquei a mão na carta, segurando-a, enquanto a doida da Ana, que agora estava mais enturmada do que nunca, chegou com o celular de Letícia na mão.
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— Lê, amiga, é o Dudu... Tomando o telefone das mãos da amiga, falou com o aparelho colado ao ouvido: — Oi, amor... Ai, que fofo... Não, eu que te amo... Um beijo para você também. E desligando o celular, virou-se para mim: — E então, Edu, o que você queria me dizer? Com a voz trêmula e taciturna, respondi: — Que é ótimo ter você como amiga. E, abrindo as mãos para soltar a carta, segui sem rumo. Não sabia se visitaria meu pai na penitenciária; se faria uma visita à dona Ofrásia no hospital; se ofereceria meu ombro para Belinha desafogar seus sentimentos reprimidos; se aceitaria ocupar o lugar daquela que foi uma falsa amiga; ou se voltaria à minha casa, onde com certeza passaria o resto do dia abraçado ao travesseiro. Optei pela última.
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Esta obra foi composta em Minion Pro em agosto de 2018 para a Editora PatuĂĄ.
Em 2018, JoĂŁo Paulo Hergesel foi o vencedor do PrĂŞmio Barco a Vapor, um dos mais importantes para a literatura infantojuvenil, como um amuleto.
Tiragem de 500 exemplares