Notícias Ibilce - Ed. 171 - Out/2015 - Suplemento especial

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SUPLEMENTO ESPECIAL

JUDITH BUTLER

Teórica fundadora da teoria queer esteve na Unesp Rio Preto e falou sobre gênero e ciúme

DISCUSSÕES SOBRE

GÊNERO


Este suplemento especial aborda as discussões cotidianas sobre questões de gênero existentes na universidade, não apenas pela perspectiva científica. Buscamos aqui revelar um olhar mais profundo e aplicado do universo dos gêneros. E assim nasceram os convites a membros externos à comunidade universitária, motivados pela necessidade de ouvirmos as vozes da sociedade. O irreverente jornalista Paulo Becknetter contribuiu para este especial com um texto surpreendente: sincero, transparente e esclarecedor. O mesmo aconteceu com o artigo do advogado Neimar Leonardo dos Santos, cuja carreira é marcada pela atuação em defesa aos direitos das minorias. O Assessor-chefe da Assessoria de Comunicação e Im-

UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Câmpus de São José do Rio Preto IBILCE — Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas Rua Cristovão Colombo, 2265 Jd. Nazareth | CEP 15054-000 PABX: (17) 3221.2200 | FAX 3221.2500 HOME PAGE: www.ibilce.unesp.br Comentários, dúvidas ou sugestões, entre em contato pelo e-mail: imprensa@ibilce.unesp.br 2 • DISCUSSÕES SOBRE GÊNERO

prensa da Unesp, Oscar D’Ambrósio, nos brindou com texto de rara sensibilidade, tratando de um assunto ainda hoje controverso, pela perspectiva das artes – e da importância que a arte tem na vida das pessoas, atuando, muitas vezes, como uma válvula de escape das duras realidades vividas. As diferenças em relação aos gêneros são, tristemente, ainda hoje, vistas como anomalias. Estudos são realizados com o objetivo de esclarecer a sociedade e, para o Ibilce, poder sediar um congresso com

a presença de tão importante filósofa, foi muito importante. Portanto, fazem parte deste suplemento um enriquecedor texto preparado pela equipe organizadora do I Congresso Internacional de Literatura e Gênero, sob a regência da professora Cláudia Maria Ceneviva Nigro, além da entrevista concedida pela teórica Judith Butler, uma das principais pensadoras sobre a temática ‘gênero’ na atualidade. E assim, com um suplemento especial, comemoramos.

DIRETORA: Maria Tercília Vilela de Azeredo Oliveira

EDIÇÃO: João Paulo Vani e Nayara Dalossi

VICE-DIRETOR: Geraldo Nunes Silva

TEXTOS: Cláudia Maria Cenevivia Nigro e colaboradores, João Paulo Vani, Neimar Leonardo dos Santos, Oscar D’Ambrósio, Paulo Becknetter.

COORDENAÇÃO: ACI — Assessoria de Comunicação e Imprensa JORNALISTA RESPONSÁVEL: João Paulo Vani — MTB: 60.596/SP EDIÇÃO ESPECIAL TIRAGEM: 1.500 exemplares

- SUPLEMENTO ESPECIAL DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

REVISÃO: Manoela Navas DIAGRAMAÇÃO: ACI — Assessoria de Comunicação e Imprensa FOTOS: Nayara Dalossi, exceto páginas 10 e 11.


LITERATURA E GÊNERO: COMO DIZER O NÃO DITO “A essência dos Direitos Humanos é o direito a ter direitos.” Quando Hannah Arendt profere as palavras acima, muitas de nós não nos reconhecemos como parte da humanidade hegemônica, construída por padrões eurocêntricos, como afirma Grosfoguel. O universal estabelece-se em detrimento do pluriversal que somos. Não por nossa ausência de pertencimento e de desejo, mas por discursos performativos que, muitas vezes, mantém os lugares dos sujeitos. O representar simplesmente um discurso “sobre” não traz uma práxis contínua de análise e reflexão. Reivindicamos a voz e somos excluídas novamente quando reconhecidas. Esse esforço para promover outra gramática provém do lugar reivindicado para a vontade do sujeito, para a ação social dos grupos... próprio objeto pelo qual lutamos. Spivak diz que nossas representações deveriam se formar pelo falar por (como na política) e pelas “re-presentações” (na arte ou na filosofia). Falando de arte, que é nossa prática, a literatura emerge assim como problematização de representações do e sobre o mundo. Na literatura muitas questões afloram, questões de gênero afloram... O conceito de gênero nunca foi tão polemizado quanto nas últimas décadas. Até 1950, o termo gênero liga-se a um princípio biológico, bipartido (homem/mulher), sendo que as discussões sobre constituição do sujeito masculino/feminino na época definem-se pelo discurso patriarcal. No entanto, novos contornos irrompem. O termo “gênero” pode ser entendido com

várias acepções, inclusive a de campo cultural, na qual o masculino e o feminino se evidenciam como abstrações. Também, pode ser fabricado por meio de um conjunto de atos constantes – postulados por meio da estilização gendrada do corpo. Deste modo, toma-se como uma “característica interna” do ser humano algo que se antecipa e produz por intermédio de certos atos corporais, em um extremo, num efeito alucinatório de gestos naturalizados. Palco de criações identitárias, na contemporaneidade, a noção de gênero toma os papéis consagrados no binarismo sexista (homem/mulher), ainda presentes, e cria-se um espaço, não precisamente maior, mas mais divulgado para questionar a dualidade. A mulher, por exemplo, já não pode mais ser vista somente como o segundo sexo. Já também não cabe mais ao homem apenas o status anteriormente dado - o de provedor viril e intocável. Às pessoas são exibidas várias vantagens, mas, para alguns, ainda é forjada a necessidade de adequação a uma nova constituição de gênero. Todos dividem a cena com as identidades antes consideradas inexistentes, como, por exemplo, os transexuais, os transgêneros, os dragkings, dentre outras. O leque de opções de gênero desponta como amplo, revisando e revisitando a fronteira tênue dos masculinos e femininos. O conceito de feminilidades e masculinidades é reexaminado. Notam-se mudanças, conforme o esperado. As novas identidades, fragmentadas nesse contexto, flutuam procurando uma forma de se construírem e se firmarem.

Sabe-se que o gênero não está mais ligado ao sexo, mas sim à cultura e ao discurso, utilizando-se do discurso e de atitudes para mostrar que a heterossexualidade compulsória de Adrienne Rich deve perder espaços, cedendo direitos de assumir qualquer identidade de gênero possível. As relações entre os gêneros são relações assimétricas de poder e de desigualdade, e estudar a representação de cada um per se, quando a variável é vista como o único fator diferenciador dos seres humanos, tem sido prática comum. Os estudos de gênero (Gender Studies), incluídos nos Estudos Culturais, apresentam-se cada vez mais como uma das formas possíveis de analisar a condição humana no texto literário, nesse “tecido” de palavras e ideologias, nessa mesma impossibilidade que governa o campo político como uma idealização encantada de um porvir sempre brilhante onde toda classe dita fragilizada terá um lugar ao sol. Quando lidamos com os Estudos de Gênero na literatura, consideramos os discursos e representações culturalmente marcados na construção contínua das identidades de mulheres e homens (além das diversas possibilidades de variação que ultrapassam a dualidade). O ser humano em processo pode experimentar feminilidades e masculinidades, assumindo a instabilidade e a indeterminação do corpo, da sexualidade e do gênero, uma vez que as identidades (sexuadas e generificadas) são construtos performativos sociais e políticos. A biologia não anuncia o destino dos corpos e as práticas sociais ganham espaço determinante na construção das identidades

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e na performatização do gênero. Não há identidade dada ou natural, apenas construída pela linguagem segundo Judith Butler e nem mesmo a existência de uma única identidade centralizadora, mas identidades plurais – às vezes ambíguas e contraditórias – próprias do “sujeito fragmentado”, como propõe Hall. Sexo e gênero não são dados pré-discursivos, como, aliás, nenhuma variação identitária, sendo a reiteração – sequência de atos repetidos que estilizam o corpo, de acordo com normas rígidas – condição para a naturalização e cristalização da identidade, como pontua Butler. A temática dessa literatura, então, deverá abranger todas as performances sexuais descritas: quer o mundo feminino, quer o mundo masculino, sendo que ambos se interpenetram, tornando as vozes presentes nos textos mais autoconscientes, enquanto a abordagem se torna mais eclética. A identidade de gênero, portanto, revela-se na grafia do texto, por meio de narradores e personagens, surgindo como uma tradução de memórias que desponta em termos de contraponto. Ao per-

formar identidades no texto, questiona-se o discurso sobre o gênero, sustentado em padrões preestabelecidos, defendidos tanto por homens quanto por mulheres, ou seja, o discurso da tradição, como aquele que sustenta um procedimento de manutenção de poder da sociedade falocêntrica. A literatura é o espaço para esses apontamentos: a ficção quebra os signos e artefatos do considerado essencial e os recompõe com a invenção, a fragmentação. Ao reavaliar os espaços ocupados pelo gênero na obra literária, reavaliam-se os papéis das personagens femininas/masculinas e cria-se o lugar para a ruptura. Há quase 50 anos Clarice Lispector, em entrevista a Pablo Neruda por ocasião de sua vinda ao Brasil, perguntou ao poeta sua opinião em relação à literatura engajada ao que respondeu: toda literatura é engajada. Resposta que nos permite afirmar que todo gesto estético é sempre um ato político no sentido de representar o locus de enunciação onde o artista está alocado, assim, a literatura como os outros constructos artísticos pode trazer à cena social

Cerimônia de abertura do I Congresso Internacional de Gênero, realizado pelo Ibilce/Unesp de São José do Rio Preto, entre os dias x e y de setembro de 2015, que contou com a presença da teórica Judith Butler. A partir da esquerda: Lúcia Granja, docente do Ibilce e vice-coordenadora do Programa de Pós-graduação em Letras; Maria Tercília Vilela de Azeredo Oliveira, diretora do Ibilce/Unesp; Eni Fernandes, Secretária Municipal da Mulher e Cláudia Maria Ceneviva Nigro, docente do Ibilce e organizadora do evento.

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as vozes de determinados sujeitos que foram silenciados ao longo dos tempos. Esses sujeitos também podem ser entendidos aqui como corpos, ou melhor, como corpos dissidentes, que ainda são vítimas de preconceitos perpetrados por padrões ético-morais, fundamentalismos religiosos (deuses vulcânicos e vingativos), ameaças teológicas, trans-homofobias, devaneios nada científicos. Os corpos recebem por intermédio do texto literário um lugar que lhes é devido nos engendramentos sociais. Nesse sentido, o negro, a (trans) mulher, o índio, o judeu, o palestino, o homossexual e um grande etcétera, ganham voz, contam sua história, gritam dores silenciadas, acusam algozes, indicam ao modo derridiano que não há perdão para os atos atrozes que vitimam sujeitos. Santos (1999, p.44), ao falar sobre o local do sujeito na sociedade, afirma “temos o direito de ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes, sempre que a igualdade nos descaracteriza”. Esses sujeitos reivindicadores de lugares ausentes tornam-se o que Butler deno-


mina abjetos. É nessa ausência de moradia que os textos de Butler habitam. A escritora, filósofa, professora de Literatura Comparada na Universidade de Berkerley, aborda em Precarious Life (2004), um assunto polêmico, ao qual voltará a falar em Frames of War (2010) e que desperta especial interesse em nosso Congresso: a invisibilidade de alguns. Essa invisibilidade traduz-se no conceito de Abjeto, sobre o qual Butler fala em Bodies that Matter (2011). O abjeto para Judith Butler, segundo Joana Plaza Pinto, refere-se às zonas não habitáveis da vida social. Representa o excesso considerado como lixo pelo sistema que se pauta pelo poder da norma, da forma padrão dos corpos e dos comportamentos. Isto é, ao mesmo tempo em que não é permitido habitar em territórios normatizados, apresenta-se ali como um corpo estranhado, reivindicador de um lugar inexistente. Para Butler a abjeção se dá nos corpos cujas vidas não são consideradas vidas, cuja materialidade não é importante. (2003, p.281). Que vidas têm, então, o direito de serem reconhecidas? As viti-

“As novas identidades, fragmentadas nesse contexto, flutuam procurando uma forma de se construírem e se firmarem. “ mizadas ou as vitimizadoras? Ainda há dualismo? Como sair dele? Pelo discurso. Segundo Butler e Austin, todo ato de fala é performativo, pois dizer é fazer. Tudo o que se diz e se itera, se constrói e “o ato da fala evidencia a performatividade do corpo ao produzir espaços de articulação”, de significação, de “deslizamento” e “descontinuidade” (Pinto, 2002). Segundo Butler, em entrevista a Cristam Williams, “Formamos a nós mesmos dentro de vocábulos que não escolhemos e, às vezes, temos que rejeitá-los ou desenvolver ativa-

mente novos vocábulos”. Ela afirma também que “Minha percepção é a de que não precisamos da linguagem do que é inato ou da genética para entender que somos todos eticamente comprometidos a reconhecer a noção declarada ou decretada que alguém tem de sexo e/ou gênero. Não temos que concordar nas “origens” dessa noção de si para concordar que é eticamente obrigatório apoiar e reconhecer modos de ser sexuados e de gênero que são cruciais ao bem-estar de uma pessoa”. Há local na literatura para que, em conluio com essas vozes, nós, pesquisadores, reivindiquemos o destronamento de qualquer tipo de violência em relação ao gênero dos sujeitos, pois todos os corpos nos importam. Cláudia Maria Ceneviva Nigro (UNESP/IBILCE), Edilene Gasparini Fernandes (FATEC/Rio Preto), Fábio Adriano Nantes (UFMS), Juliane Chatagnier (UNESP/IBILCE) e Michelle da Rocha Laranja (UNESP/IBILCE), autores do texto, compõem o time que organizou o congresso.

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TRÊS PERGUNTAS PARA JUDITH BUTLER João Paulo Vani Judith Butler, filósofa pós-estruturalista americana, uma das principais teóricas da questão contemporânea do feminismo, teoria queer, filosofia política e ética, esteve na Unesp de São José do Rio Preto para proferir a conferência de abertura do I Congresso Internacional de Literatura e Gênero, realizado pelo Programa de Pós-graduação em Letras e coordenado pela professora Cláudia Maria Ceneviva Nigro. Docente na cátedra Maxine Elliot do Departamento de Retórica e Literatura Comparada

da University of California, em Berkeley; é também professora visitante da Columbia University, no departamento de Inglês e Literatura. Em 2009, recebeu o Andrew W. Mellon Foundation’s Distinguished Achievement Award por sua contribuição ao legado das Humanidades. Desde 2006 Judith Butler atua como Hannah Arendt Professor de Filosofia no European Graduate School (EGS), Suíça. Doutorou-se em filosofia pela Yale University, em 1984, com a tese Subjects of Desire: Hegelian Reflections in Twentieth-Century France, posteriormente publicada, em 1987,

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pela Columbia University Press. Butler é autora de trabalhos pioneiros como Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity (Routledge, 1990), no qual introduz o conceito de perfomatividade; e Giving an Account of Oneself (Fordham University Press, 2005) no qual discute os limites do autoconhecimento. Ao fim da conferência proferida em São José do Rio Preto, na qual Judith Butler abordou questões como gênero e ciúme, tendo como base a obra ‘Em busca do tempo perdido’, de Marcel Proust, a filósofa concedeu esta entrevista ao “Notícias Ibilce”:


NI: Como o uso da linguagem influencia na percepção do ciúmes? JB: A gramática não ajuda muito no problema de ciúmes. A pessoa pela qual todos supostamente esperamos é “nossa amada” e ela está entediada e irritada com nossas investidas porque evidentemente ela não ama nenhum de nós. Essa louca generalização é seguida por um certa inversão do gênero a qual vale a pena observar e que se tornará importante para a breve sugestão teórica que desejo apresentar, quero dizer, que o ciúme depende da transferibilidade do gênero a um certo ponto e que isso causa euforia e angústia ao mesmo tempo. NI: Na obra de Proust, a percepção do gênero em relação ao menino que espera a mãe no quarto para um beijo de boa noite, pode ser comparada à uma jovem não correspondida. Como isso se dá?

JB: É assim que a analogia funciona: da mesma forma que [a menina] fica lá sentada, esperando, trocando algumas palavras com o porteiro, o menino deixa a empregada voltar para a copa. As flutuações aqui são claramente de gênero e classe, já que o menino reassume sua decepção e seu gênero somente retomando sua classe, embora fique claro que, no momento que estava abalado pela decepção, ele parecia ter perdido o gênero e a classe. Na verdade, o porteiro não é um empregado, e não sabemos quem é mais pobre naquela cena, a menina ou o porteiro. Quando o menino é informado de que a mãe não vem, é uma verdade brutal transmitida de maneira brutal, e é no momento de grande dor que a identificação masculina é, primeiramente, replicada de maneira massiva e, em seguida, desocupada de modo repentino (em um primeiro cenário, em que temos boas notícias e mãe está subindo, Françoise, a empregada que cuidava do menino, é comparada a um intermediário, sendo assim idealizada, mas quando a notícia é ruim, e a mãe não vem, Françoise volta a ser mulher). Mas no último cenário, como vimos, o menino é visto como a “pobre menina” que espera, de fato, um das muitas pobres meninas que esperam, um conjunto de meninas, se não uma infinidade delas. Elas são as inúmeras meninas que recebem a mesma informação pelos porteiros de hotel em todo o lugar a toda hora. Mais um cenário infernal. Isso significa que nosso menino, o filho que anseia, de repente se torna uma jovem que levou um fora – exaurida e destituída de qualquer chance que o homem representava. É essa garota largada no andar de baixo que está agora certa de que a mensagem não foi entregue, de que se tivesse sido entregue, ele teria vindo, que ele teria respondido já que ele a ama, como ele havia dito, e

ela está chocada e atordoada porque ele não veio e o tempo parece não ter fim. Mas, mesmo assim, ela espera. NI: O ciúme - e a rejeição podem ter impacto na formação da identidade de gênero do indivíduo? JB: Como se sabe, a rejeição da mãe parece transformar o filho em mulher, o que não significa dizer que a rejeição é feminizadora. Ao contrário, ele não tem a proteção que as mulheres só encontram nos homens, e ele descobre isso ao se sentir rejeitado pela mãe. Um menino feminista em formação, gostaríamos de concluir, mas as coisas não são tão simples assim. Na verdade, se nós pensarmos sobre como funciona a triangulação nesse caso, ela parece tomar a seguinte forma. Eu detesto satirizar a cena, afinal de contas, estamos lendo Proust, que está cheio de cenas satirizadas. Lembrem-se de que o menino pede à empregada que chame a mãe e, naquele momento, a empregada é descrita como um intermediário e o filho se torna aquela menina ansiosa no andar térreo. O homem promete que ela virá, incorpora a promessa, e quase toma o lugar da mãe, afinal, o que é mais importante, a promessa de que ela virá ou o fato de ela vir? Não se sabe, uma vez que muito do desejo vivido em Proust ocorre no modo de antecipação. O que se sabe, contudo, é que a triangulação requer a inversão do gênero e a substituibilidade, assim como atribuição de poder para o empregado assalariado que carrega o fardo da rejeição maternal pelo filho. É no momento em que a rejeição parece mais certa que o menino se torna a mulher desesperada que não consegue aceitar a rejeição que até os empregados enxergam claramente, uma humilhação de sexo e classe.

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OPÇÃO SEXUAL? ‘MIRRESPEITA’, POR FAVOR... Quem me conhece – gente que me lê há mais de 10 anos em veículos de comunicação de Rio Preto e agora através de meu blog – sabe de minha opção sexual. Sou gay desde os 19 anos, quando realmente me deparei ‘comigo mesmo’. Antes, vivi todo o drama característico que atormenta adolescentes na tal fatídica fase de descobertas. Mas não sofri ‘horrores’ como muitos amigos e colegas sofreram. Foi doloroso, mas passageiro. Quase que uma hashtag sem valor nas redes sociais... Depois de entender o que rolava comigo (assumir foi outra coisa) e descobrir que não era o único a viver o dilema, fui buscar respostas para a tal da ‘resposta universal’ que muitos dão aos gays quando em situação de dúvidas: “É opção sexual”. Ou “Gênero diferen-

te”, como preferem e postulam acadêmicos e estudiosos. Não, não se trata de opção sexual. Eu não optei em ser gay. Também não desenvolvi nenhuma ‘gayzice’ ao longo da vida. Não olhei para outro homem e senti tesão por sacanagem. Meu corpo deu essas respostas automáticas. Sim, transei mulheres (nada relevante nem substancial)! E foi importante provar da maçã proibida para constatar que era da costela de Adão que eu mais gostava. Daí vem a sociedade em forma de “estudos revelam que” me dizer que ser gay é “opção sexual”. Migos, se realmente fosse caso de opção, tipo múltipla escolha, eu juro que escolheria ser hétero. Não porque os ditos “machos do saco roxo” sofram menos ou mais. Mas porque têm menos chances de serem catalogados

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em estudos sobre gêneros e que tais. Olha a preguiça que dá ter que estudar e discutir comportamentos que deveriam ser encarados com naturalidade, sem essa tensão toda que a sociedade confere às questões relacionadas à sexualidade. Sem falar no preconceito que tudo isso gera, no bafafá na hora do happy hour e, em primeira instância, no famigerado bullying, que na minha época era chamado de “Manhê, o Pedrinho falou que eu sou viado!” Afinal, onde já se viu, rapaz? Sentir interesse por outro homem? E você, menina, o que é isso? Perdeu o juízo ao se envolver com a filha do vizinho? Como explicar isso em casa? Como confiar aos amigos sem esbarrar na insegurança de que eles possam te delatar? Já imaginou se isso vaza


nas redes sociais? Néan? Vai ser um drama misturado a mais surras e ranger de dentes. Afinal, ser gay, trans, bi, quiabo ou abobrinha é “opção sexual”. Se é “opção” você que trate de optar por outra coisa, mas não me apareça em casa vestido de Rihanna. Aliás, Rihanna também é um “gênero”. Gênero de “diva” muito copiada pelos gays around the world. Perceba. E o que tem de gente que também não aceita e rotula de “bixinha quá quá” os homossexuais que se identificam com as “divas”... Hmmm, daria um outro compêndio. Mas como me propus a ser o menos acadêmico possível, volto agora ao momento em que me descobri gay, sem saber ainda que eu era um “gênero”. Como disse lá em cima, sofri pouco, mas devo certamente trazer no Espírito alguns traumas dessa fase. Ouvi de uma psicóloga, certa vez, que todos os nossos traumas estariam linkados à sexualidade. Ou algo similar, não me lembro muito bem. Daí, toda vez que rebobino a fita da minha vida sexual, vol-

to exatamente ao momento do meu primeiro beijo gay. Sim, não pense que fui logo ralando a peteca no lustre porque sempre fui moço para casar. Teve beijo antes, cafuné e longas semanas me achando uma aberração. “Jesus, eu beijei outro homem. E gostei. E fiquei de pau duro. Sou um herege, adeus Paraíso”. Olha o drama... Mas lembrando: foi passageiro. Não dei muita chance ao sofrimento. Tinha que ralar a coxa na vida também. Não havia muito tempo para questões metafísicas e subliminares. Também não havia Snapchat nem Whatsapp, graças a Deus! Talvez por essa razão, a de eu ter driblado – ou jogado para debaixo do tapete da vida corrida – as questões sexuais que mais tarde voltariam a pipocar na panela da minha mente, hoje trato com praticidade todos os assuntos relacionados a gêneros e afins. Entendo também que muita gente não tem essa capacidade de driblar o sofrimento ou desviar das asperezas que o assunto acarreta. E por isso mesmo, às vezes, me sinto egoísta quando encerro con-

versas com outros gays dizendo: “Miga, relaxa, amanhã você pode acordar sapatão também!” E que bom que gays e afins têm essa veia de humor pulsante, néan? Nesse contexto, aliás, existem psicólogos que dizem que esse “humor” nada mais é do que um filtro que a gente usa para deixar a “dor” mais bonita. Tipo os que a gente usa para dar um ‘tapa’ em nossas fotos no Instagram. Mas na vida real o filtro nem sempre se encaixa à imagem que queremos passar. Daí todas as dúvidas, problemas e sofrimentos generalizados que escoam pelo ralo de nossa insônia. Miga, me empresta um Rivotril? Paulo Becknetter, o Beck, é jornalista. Nos últimos oito anos atuou como colunista nos jornais BOM DIA Rio Preto e Diário da Região. Agora oficialmente na web, escreve e edita a Coluna do Beck, blog que mistura atualidades, comportamento, política e... questões de gênero, claro. Se desejar, siga o autor em suas redes sociais: Facebook: Paulo Becknetter Snapchat: colunadobeck Instagram: colunadobeck Twitter: colunadobeck

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ASPECTOS JURÍDICOS RELACIONADOS AOS GÊNEROS

A

s leis são concebidas para regular e tornar possível a vida em sociedade. Contudo, a sociedade se movimenta em uma velocidade que o Poder Legislativo não consegue acompanhar, ou seja, atos, atitudes, costumes, o aceitável ou inaceitável socialmente, nem sempre estão regulados por lei específica. É neste momento que o Poder Judiciário se torna indispensável para que as leis existentes, mesmo que não específicas, possam ser aplicadas a fim de evitar qualquer conflito pessoal ou social, e garantir direito ou reconhecer obrigação. E uma das questões da qual tal situação se evidencia é aquela relacionada ao gênero, uma vez que a discussão, o entendimento, a aceitação social, o reconhecimento dos direito e obrigações quanto aos gêneros, sejam por motivos científicos, sejam por sociais, estão sempre se alterando. Desta feita, as questões jurídicas relacionas aos gêneros podem ser analisadas, basi-

camente, sob dois aspectos: o biológico e o social. Podemos, então, afirmar que o gênero biológico é o que a pessoa é; enquanto o gênero social é como essa pessoa se reconhece e se apresenta socialmente. A Constituição Federal estabelece que que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Já o Código Civil ao tratar da personalidade determina que deverão ser registrados em registro público, dentre outros, os nascimentos, casamentos e óbitos. Também garante a todos o direito ao nome. A Lei dos Registros Públicos (Lei n. 6.015/73) é a que regulamenta a forma e dados que devem constar desse registro de nascimento; e no seu artigo 54, estabelece que deve constar do assento de nascimento, dentre diversas outras informações, o nome e o sexo do registrando. Importante mencionar também que os registros públicos são, em regra, imutáveis, e sua alteração só ocorre, excepcio-

Leland Bobbe, fotógrafo nova-iorquino, reuniu uma incrível série de fotografias com as quais se propôs a examinar o conceito de fluidez de gênero, mostrando drag queens de Nova York. A série, chamada de “Half-drag... A Different Kind of Beauty” (Metade-drag... um tipo diferente de beleza, em tradução livre), ganhou vários prêmios e exposições e está atualmente exposta, com quatro imagens, na POP Galeria Internacional, galeria instalada no SoHo, badalado bairro de Manhattan, em Nova York.

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nalmente, em casos de exposição vexatória da pessoa em ralação ao seu nome ou gênero. Percebe-se, então, que legalmente deve ser, em regra, observado o aspecto biológico na definição no gênero quando do registro de nascimento. Todavia, o registro pode ser modificado por uma questão meramente social ou por uma somatória das questões sociais e biológicas. Quanto ao primeiro, atualmente nosso sistema jurídico admite a adequação do nome ao gênero que a pessoa socialmente se reconhece e se apresenta, é o que ocorre com travestis e transexuais que não foram submetidos à cirurgia de adequação sexual. Imaginemos uma criança que nasceu do sexo masculino e foi registrado com nome de Marcelo, mas que por sua orientação sexual, se reconhece como uma pessoa do sexo feminino, e passa a se trajar como mulher e adota o nome de Marcela, passando a ser reconhecida por este nome, e


como pessoa do gênero feminino. Biologicamente é um indivíduo do gênero masculino, mas socialmente é uma pessoa reconhecida como do gênero feminino. Esta divergência coloca a pessoa em diversas ocasiões em situação vexatória, como por exemplo, quando vai a um órgão púbico e é anunciada ou chamada pelo nome de registro masculino, quando se apresenta como uma mulher. O atendente chama: Marcelo! E na sequencia levanta uma loira, de vestido longo, maquiada e cabelo bem arrumado. Apesar de haver atualmente uma aceitação social maior do que há anos, ainda causa estranheza um acontecimento deste. Nesse caso, o Poder Judiciário atualmente autoriza a alteração do nome para adequação deste ao gênero pela qual a pessoa socialmente se apresenta e se reconhece. Contudo, existem casos que se mostram necessárias as retificações do nome e do sexo da pessoa. É o caso de transexuais que foram submetidos(as) à cirurgia de transgenitalização, também chamada de cirurgia de adequação sexual; bem como de hermafroditas que, quando recém-nascidos, foram registrados com nome e sexo diver-

so daquele ao qual biologicamente pertencem. Em casos como esses, o Poder Judiciário autoriza a alteração tanto do nome quanto do gênero (sexo) da pessoa. Imperioso mencionar que, em qualquer dos casos, a autorização para alteração seja apenas do nome, seja do nome e gênero, precede de minuciosa análise da vida pregressa do indivíduo, não sendo autorizadas as alterações de quem tenha pendências judiciais, fiscais ou financeiras. Importante esclarecer também que, não obstante o interesse e caráter social que as questões sobre o gênero despertam, os direitos dela inerentes somente podem ser exercidos pela própria pessoa, já que se trata de um direito personalíssimo. O leitor mais atento poderia, então, perguntar: qual a relevância jurídica na definição dos gêneros se homens e mulheres são iguais perante a lei, e as questões de nome e sexo são personalíssima? A pergunta seria relevante. E a resposta é que, apesar do caráter personalíssimo do exercício do direito à adequação do nome e gênero da pessoa e da igualdade legal entre os gêneros, existem diversas leis que garantem direitos diferentes para homens e mulheres, em respeito ao Princípio da Igual-

dade, que dispões que deve-se tratar desigualmente os desiguais a fim de iguala-los. Não é outro, senão este o motivo de existirem quotas obrigatórias para candidaturas de mulher a cargos públicos eletivos; de existirem programas específicos de saúde voltados tanto à saúde da mulher, como p. ex., o do câncer de mama, os neonatais etc.; quanto à saúde do homem, como p. exe., o do câncer de próstata. É, por conseguinte, de relevância não apenas social, mas também jurídica a questão do gênero humano. Por fim, no que tange à este tema, o que devemos sempre almejar, enquanto sociedade, é alcança tanto este fundamento constitucional: a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CF/88); quanto este objetivo fundamental da Constituição: promover o bem de todos, sem preconceitos sem preconceitos e discriminação de qualquer forma. E só existe uma forma de se alcançar estes objetivos, através do respeito ao ser humano, independente de sexo ou orientação sexual, cor, religião ou idade. Acima de qualquer princípio legal, norma ou lei está o respeito! Neimar Leonardo dos Santos é advogado, assessor jurídico do Grupo de Amparo ao Doente de Aids. É ex-aluno do Ibilce.

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SEXO NA ARTE DO GÊNERO Oscar D’Ambrósio

DIVULGAÇÃO

Ao se preencher um questionário, no campo sexo, é comum encontrar duas opções: masculino ou feminino. Esse pensamento está ligado a uma lógica binária: macho x fêmea, e homem x mulher. Sexo é entendido, portanto, biologicamente como algo ligado à genitália, a cromossomos sexuais e a hormônios com os quais se nasce. No entanto, o sexo não determina a identidade de gênero. A orientação sexual, por exemplo, diz respeito à atração por outros indivíduos e envolve questões sentimentais. Dessa maneira, evidencia-se que sexo está relacionado com aspectos bio-fisiológicos que dizem questão as diferenças corporais entre homens e mulheres. Animais são machos ou fêmeas, mas não homens nem mulheres, ou seja, têm sexo, mas não são classificados em termos de gênero, conceito ligado a ideias e valores sobre o que significa ser feminino ou masculino. Portanto, a questão de gênero está ligada à forma como a sociedade cria os dife-

rentes papeis e comportamentos relacionados aos homens e às mulheres, questão ligada à forma como estão organizadas na sociedade valores, desejos e sexualidade. A filósofa estadunidense Judith Butler, que publicou o livro ‘Problemas de Gênero em 1990, lançado no Brasil pela Civilização Brasileira, em 2010, cunhou a noção de gênero como performatividade. Para ela, que esteve na Unesp de São José do Rio Preto em setembro último, o gênero é uma produção social, um ato construído ao longo dos anos pela pessoa e pela sociedade que a cerca num movimento constante em que nada pode ou deve ser considerado fixo dentro do padrão estático da reprodução da espécie. Cada um ficar livre para escolher o gênero é a situação ideal. Uma questão complexa na arte é entender até que ponto o sexo ou o gênero são determinantes na produção criativa de uma pessoa. Escritoras como Clarice Lispector (192077), Cora Coralina (1889-1985) e Rachel de Queiroz (1910-2003) seriam o que são e presentas-

Carmen Miranda tornou-se um dos ícones gays mais celebrados no século XX. 12 • DISCUSSÕES SOBRE GÊNERO - SUPLEMENTO ESPECIAL

sem se tivessem nascido de outro sexo e se tivessem feito uma outra opção sexual daquela que conhecemos. A pergunta parece ingênua ou inútil, mas pode ser levada adiante com outros nomes: Chiquinha Gonzaga (18471935), Anita Malfatti (18891964), Tarsila do Amaral (18861973), Lina Bo Bardi (1914-1992), Márcia Haydée (1937), Ana Botafogo (1957), Bidu Sayão (19061999), Fernanda Montenegro (1930), Cacilda Becker (19211969) e Carmen Miranda (19091955). Não estamos propondo aqui imaginar se suas obras seriam distintas com outras identidades, que refletem diferentes representações de gênero (como os transexuais e transgêneros) e que não se encaixam nas categorias padrões, mas sim um exercício mental de como suas trajetórias estão ou não ligadas a questões de sexo e de gênero. Fenômeno social, e não biológico, o gênero está ligado a identificações e autodeterminações. A falta de compreensão da diversidade traz preconceito, exclusão, culpa, medo e vergonha, além de dificuldades no mercado de trabalho, crimes de intolerância e violência. Discutir questões de gênero significa, nesta perspectiva, valorizar a liberdade e a cidadania rumo a pessoas e sociedades mais plurais e justas em termos políticos, sociais, econômicos e de respeito aos direitos humanos. Assim, o sexo respondido num questionário é apenas uma parte do debate sobre a construção da arte do gênero em cada um de nós. Oscar D’Ambrosio é doutor em Educação, Arte e História da Cultura e mestre em Artes Visuais pela Unesp, onde atua como assessor-chefe de Comunicação e Imprensa.


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