Por uma certa abertura - João Viegas

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João Viegas


Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Colegiado de Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção de título de Bacharel em Artes Visuais.

Habilitação: Artes Gráficas Orientadora: Prof. Fernanda Goulart

João Victor Gomes Cardoso Escola de Belas Artes da UFMG


uma entrada 9 O CORPO, O TEMPO E A CASA Postigo 15 O AFETO, O CORPO, O TEMPO E A CASA Presente quase ausente 31 O CORPO, O TEMPO, a CASA e o outro Eu me convido ao outro 45 Algum desfecho 73 bibliografia 75


uma entrada / O presente trabalho foi um exercício de reflexão sobre o fazer artístico, e ao mesmo tempo um desafio por tentar alcançar algumas questões que minhas poéticas me suscitam. Meus principais interesses são o corpo, o doméstico, o retrato, o sujeito e o afeto. As dimensões do tempo e do espaço me ajudam a localizar e compreender a convergência de tais interesses nas fotografias. Escolhi as Artes Gráficas pelo fato de ser uma habilitação que possibilita experimentação de outras plataformas artísticas como a fotografia e o vídeo. Aliados a uma espécie de escrita do sujeito nos espaços (corpografias), essas linguagens me permitem trabalhar plasticamente apagamentos, sobreposições, repetição e impressão dos corpos nos espaços, recursos caros ao território gráfico. Apesar de algumas incursões no vídeo, meu trabalho corre com mais frequência na fotografia, território que tenho maior familiaridade. Comecei minhas experimentações fotográficas no formato analógico, e com o tempo fui adquirindo alguns equipamentos digitais. Parte da justificativa da escolha do analógico para alguns de meus trabalhos também se deve à época em que realizei a série, quando eu tinha um equipamento analógico que me proporcionava

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mais possibilidades na produção de imagens e mais qualidade

Como a prática artística não demanda a urgência e a velocidade

técnica nas fotografias que o equipamento digital. Possuía

mercadológica, o tempo gasto nos processos analógicos não

também um corpo de câmera digital, mas este com limitações

era um problema para mim, mas uma característica do meio.

óticas. Vale ressaltar que os equipamentos analógicos caíram em desuso graças a chegada do digital ao mercado. Uma vez

Por outro lado, a impossibilidade da prontidão da imagem e

que o digital dispensava o gasto com revelação, eliminava-se o

a limitação das 36 poses dos filmes, condicionam a fotografia

processo de digitalização necessário ao analógico, submetendo

analógica no contexto da prática artística a uma preocupação

a imagem às mídias que foram sendo criadas, como por exemplo

e um olhar mais atento e planejado. Na fotografia analógica,

a internet. O formato digital agiliza o fluxo de imagem, pois

o que se tem é a ideia da imagem que está sendo produzida,

o arquivo ao ser captado já está pronto para qualquer mídia,

porém, a concretização dessa imagem só se dá depois dos

tanto para as digitais quanto a impressa (em jornais e revistas,

processos de revelação do negativo.

por exemplo). Graças a todas as vantagens mercadológicas que o digital oferece, o analógico teve seu valor reduzido e

Em O Ato Fotográfico, Philippe Dubois (1994) afirma

muitos fotógrafos, ao migrarem de um formato para o outro,

que o aparecimento da imagem (sua “revelação”), nunca

venderam ótimos equipamentos a preços baixos, acreditando

poderá satisfazer sua espera, e lança algumas perguntas:

que estes já não apresentavam mais funcionalidade. Assim

“Pois como então saber se o que você está vendo no papel

pude comprar alguns equipamentos que me ampliavam a

fotossensível é exatamente a mesma coisa que você viu?

gama de possibilidades, me ajudavam a obter qualidade nas

Além disso, o que você tinha visto exatamente? (p.90)

imagens, diferentes distâncias focais, e que foram importante

(...) Não houve de minha parte visão imaginária, sonho

para as fotografias dentro dos espaços domésticos.

acordado?” (p.91) O autor então conclui: “A imagem

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latente, sempre imaginária, fantasma de imagem, não deixa de correr todos os riscos.” (DUBOIS, 2008).

Para ele, a imagem latente será sempre uma imagem imaginada, pois entre a captura da imagem e o processo de revelação, muitas coisas podem acontecer, e todas essas possibilidades podem abalar qualquer segurança a respeito dos resultados.

Revelar o negativo traz consigo o encontro da “imagem imaginada” e a imagem latente (as imagens produzidas pelo contato dos haletos de prata, presentes no negativo, com a luz), dando a ver as alterações mínimas que, através dos químicos, são transformados em prata metálica e produzem uma imagem visível. A fotografia digitalizada ou impressa nos suscita questões que vão além dos elementos: sujeito, espaço e tempo e além das motivações conceituais. Gosto de pensar que são características a serem observadas e absorvidas no trabalho.


postigo / pos.ti.go sm (latposticu) 1 Pequena porta. 2 Abertura quadrangular, munida de portinhola, em portas ou janelas, para olhar através delas sem abri-las. 3 Janela pequena, sem vidraças, fechada apenas com uma folha de madeira. 4 Náut,: Tampa de gateiras e vigias nos navios.1

1

fonte: dicionário Michaelis.

o corpo, o tempo e a casa

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o corpo, o tempo e a casa




A escolha do nome para a série se deu, sobretudo, a partir

água fresca: o copo neste instante-já é de grosso cristal facetado

do conhecimento do objeto postigo, cujo conceito descobri

e com milhares de faíscas de instantes. Os objetos são tempo

ao procurar qual o nome do tipo de porta que possui grades

parado?” (LISPECTOR, 1998, p.30) Como no copo, nas fotos o

que não permitem a realização de qualquer passagem,

corpo e a casa criam camadas; o corpo se sedimenta no espaço,

com exceção do ar. As maiores e mais comuns portas que

através de fragmentos de tempo. (Deve-se entender por casa

conheço têm a principal função de arejar o ambiente em que

tudo aquilo que é doméstico, incluindo janelas, portas e objetos,

se encontram instaladas.

mesmo que os limites da fotografia os ocultem, ainda que os revelem através da luz.).

Postigo é um díptico fotográfico cujo processo se guiou através da busca de ambientes que fossem passagens de luz e ar dentro

A passagem de Lispector (p.30) me traz a dimensão da vivência

de minha casa. Antes de traçar um plano sequencial para as fotos,

do espaço doméstico, de se relacionar com aquele espaço; de

experimentei capturas de imagens do corpo que representassem

como a vida cotidiana, a intimidade (de certo modo, aberta) - ao

a respiração. Isso foi feito com a intenção de que a imagem

realizar um trabalho artístico - nos fazem trocar memórias e

formalizasse plasticamente uma necessidade de respirar ligada à

sentidos. Como ressalta Katia Canton em Espaço e Lugar: “No

dificuldade dessa ação. A partir do resultado fotográfico dessa

emaranhado disperso da vida cotidiana, afinal, procuramos o eu

experimentação, foram possíveis observar acontecimentos

através do outro, rastreamos nossas histórias e abrimos nossos

notáveis que ressaltavam o ambiente em que o corpo se inseriu,

diários íntimos na tentativa nos oferecer verdadeiramente para

nivelando corpo e casa a um mesmo plano de importância.

o mundo.” (CANTON, 2009, p. 35).

No livro Água Viva, Clarice Lispector reflete: “Parei para tomar

Em meu trabalho, quando faço fotos em minha casa, com meus

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o corpo, o tempo e a casa


objetos, meus móveis, minhas janelas, utilizo minhas memórias,

preocupa: ou para tentar aproximar-se o mais possível

o tempo das minhas coisas, meus espaços e meu viver para

da representação ideal; ou para questioná-la e redefini-

propiciar uma troca com as memórias do outro. André Rouillé

la. Os artistas, ao contrário, apreciam nas capacidades

(2009) cita Jean-François Lyotard para dizer que os artistas

descritivas da fotografia o meio de tornar mais visível

fotógrafos, ao contrário dos fotógrafos realistas, utilizam a

qualquer coisa que não seja da ordem do visível: “Não

fotografia para “mostrar que há algo que podemos conceber e

‘restituir o visível, mas tornar visível. (Paul Klee)”.

que não é possível ver nem mostrar”. Acredito que seja neste

(ROUILLE, 2009, p. 368)

lugar que se encontra a dimensão afetiva das imagens produzidas por mim, da sedimentação da memória e do tempo nos espaços,

Em Tempo e Memória, Katia Kanton (2009) descreve as

nos objetos e nos sujeitos. Como ressalta Rouille:

camadas das imagens cubistas nas pinturas de Pablo Picasso e George Braque. Ela se refere a um “condensamento do tempo”,

Enquanto a mimese permanece o objetivo principal

em que a imagem se mostra em várias posições, enquanto ocupa

do fotógrafo documental - e preocupação capital

a mesma superfície do quadro. Ou seja, um recurso que explicita

do fotógrafo-artista em suas próprias tentativas

a presença do tempo nas imagens. Apesar dos deslocamentos do

em ultrapassá-la -, para os artistas que trabalham a

corpo nas imagens de Postigo, o cubismo não tem semelhança

fotografia ela, ao contrário não é nem um objetivo

formal com meu trabalho. Em Postigo, o corpo permanece

nem um obstáculo a ser suplantado, mas somente um

praticamente com a mesma face voltada para a câmera, se

dos elementos do processo criador. É pelo fato de os

deslocando no eixo horizontal, enquanto os cubistas trazem

fotógrafos ainda acreditarem na realidade da realidade

várias facetas de uma mesma imagem. Gosto da comparação

que o documento, esse ideal verdadeiro, tanto os

porque sinto que em minhas imagens tempo e espaço se conectam, indissociavelmente.

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o corpo, o tempo e a casa


Pablo Picasso, Girl with a bandolin (1910)

Francesca Woodman, House #3 (1976)


Nas fotos de Postigo, as posições do corpo não são tão variadas.

fotografia minha quando mais novo. Nela, também o tempo

O corpo cria ritmo na transparência ao sedimentar mais em um

se apresenta como corpo-tempo e o mesmo evidenciando

espaço do enquadramento do que em outros, como se sujeito

a passagem do tempo desde o registro da foto contida no

tivesse, por momentos diferentes, ocupado lugares diferentes

porta-retratos, já que o corpo adulto divide espaço com

através de pequenos deslocamentos. A partir deste trabalho

um retrato feito na infância. Isso que cria mais uma camada

surge a ideia da casa e o corpo-tempo, em que os objetos e

da vivência pessoal em cima dessa imagem. E voltando

materialidade do espaço seriam testemunhas e depósitos das

à potente frase de Lispector (1998), pergunto: Se os

vivências, como se fossem camadas de tinta.

objetos são o tempo parado, seriam eles a sedimentação das afetividades do habitar? Seriam a materialidade dos

Na obra de Francesca Woodman, por sua vez, o corpo

inúmeros jeitos que me relaciono com meus espaços,

mistura- se às camadas da parede, aos destroços da casa.

testemunhas do meu estar, passar, e permanecer?

Corpo que, as vezes, é vulto na imagem. As fotografias P&B de contraste alto, muitas vezes de luz dramática, registram

O interesse pelo doméstico é também interesse pelo ordinário,

a artista em diversos ambientes de uma casa já em ruína. Seu

o corriqueiro. A vivência da casa é cara ao ser humano. Pensar

trabalho também lida com o tempo: a degradação explícita

que o surgimento do habitar como a necessidade de abrigo

da casa que ela escolhe retratar a si e a outras mulheres, os

talvez seja o ponto de partida dessa vivência, o ponto em que a

borrões de corpos. Nas imagens, diferentemente de Postigo,

vivência do doméstico passe a existir. Gaston Bachelard, citado

o espaço permanece estático.

por Maurício Puls1 (2006), explicita tal relação:

Em uma das fotos, há um porta-retratos contendo um

A casa é uma das maiores forças de integração para os

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o corpo, o tempo e a casa


pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio de ligação é o devaneio. (...) Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser “jogado no mundo” (...), o homem é colocado no berço da casa (BACHELARD apud PULS, 2006, p. 554) 2

Postigo foi um dos meus primeiros trabalhos a serem expostos, quando pela primeira vez me preocupei com a proporção dos corpos nas imagens, para que tivessem as dimensões aproximadas de um corpo real. e que inaugura questões sobre o corpo como materialização do Eu, do doméstico como objeto afetivo que consegue trazer dimensões do tempo ligadas a vivência.

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PULS, Maurício. Arquitetura e Filosofia, 2006


presente quase ausente / Presença e ausência, forma e contra-forma anuladas. A casa é marcada pelo corpo que está, e logo não está mais.

Nas fotografias: o desenho que o corpo imprime sobreposto aos objetos. No vídeo: dois corpos que transitam, no limiar do estar e não estar. Uma dança no jardim.

o afeto, o corpo, o tempo e a casa

Presença é o estar de cada coisa. Ela não é necessariamente definitiva, mas é o sentir, sentir o estar. O que se faz presente, e que, invariavelmente, transmite a ideia de um tempo. Já o quase é o momento de transição entre o estar e o não estar. A casa está tão impregnada de mim, que mesmo não estando nela, seria como se estivesse? A minha ausência que, a princípio, nega a presença e anula a possibilidade de, com ela, coexistir, teria ela conquistado uma plenitude? E ao me ausentar, a casa logo se ausentaria de mim? Ou estamos tão intimamente, e cotidianamente, acostumados um ao outro que nos impregnamos?

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o afeto, o corpo, o tempo e a casa


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Presente quase ausente é um trabalho que lida com corpografias no espaço doméstico. Foi realizado junto à artista e amiga Laura Berbert. A prática se conduziu através das interseções de nossas poéticas. Ambos com poéticas que se voltam para o doméstico, a intimidade, o afeto e o corpo. A dinâmica da produção se deu na alternância em que ora eu visitava sua casa, ora ela visitava minha casa, e assim íamos experimentando os espaços através da fotografia e do vídeo.

Tal escolha reafirma meu interesse pela imagem fotográfica, também

em

movimento.

A

transparência

do

corpo

vista em Postigo aparece novamente. Agora não mais com deslocamentos, o corpo segue preservando certa integridade, mas esta se mescla com os objetos e lugares da casa. Não são mais várias camadas de um corpo que se move, ainda que discretamente, mas sim um corpo que se comporta como um bloco, translúcido, sobrepondo-se aos objetos e aos ambientes. Ele não se propõe a figurar completamente, porque não esteve ali parado durante todo o tempo de exposição na fotografia. Há a alternância do meu


corpo sobrepondo os objetos de minha casa, e o corpo da Laura, sobrepondo-se aos objetos da casa dela.

Já no vídeo, os dois corpos caminham juntos em um quintal. A cena é vista de cima. E no quintal vão se depositando em espaços. A dinâmica é parecida com a das fotos. O corpo em camada repousa por instantes em espaços, e vai ao longo do vídeo mudando de posição no espaço.

Imagino que seja mais fácil colocar o corpo como a camada que sobrepõe, pelo caráter estático do espaço doméstico.

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o afeto, o corpo, o tempo e a casa


soma, de forma e contra forma. Acho interessante apontar questões como: o corpo e a casa que se permitem dividir a mesma experiência, a ser sujeito rígido e alvenaria orgânica.

Uma integração formal, que diferente de Presente quase ausente, em Ação 3 a integração corpo-casa se dá na materialidade da ação. Se em Presente quase ausente, corpo e casa tentam ocupar o mesmo espaço na fotografia, e se formalizam em transparências, em Ação 3, corpo e casa abrem negociação em seus desenhos, Diferentemente do ambiente, o sujeito é dotado de vida, de

fazendo com que os limites de cada um continuem aparentes.

movimento, de respiração. Mas se a presença é o estar de cada coisa, a casa, estática, compartilha sua presença com o corpo

Assim como no escrito de Clarice Lispector, absorvo o ambiente

que a habita, ainda que temporariamente.

doméstico como depósito de memórias e relações afetivas. Penso que o corpo também se reveste dessas vivências domésticas. Ele

Yuri Firmeza, assim como eu, faz relações entre corpo e espaço

também sedimenta o tempo das coisas, assim como os objetos

em alguns de seus trabalhos, e especificamente em Ação 3.

acumulam o tempo do sujeito. Talvez não seja possível separar

Nesse trabalho, o artista desenha na parede de um casarão,

em dois tempos, mas em o tempo dos dois. Segundo Bachelard

a silhueta de seu corpo em posição fetal, e abre essa forma

(2008): “É graças à casa que as lembranças estão guardadas.

na parede, preenchendo o espaço com seu corpo e restos de

(...) É pelo espaço,é no espaço que encontramos os belos fósseis

parede. A intransponibilidade matérica é subvertida por uma

de duração concretizados por longas permanências”.

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o afeto, o corpo, o tempo e a casa


yuri firmeza, ação #3 (2005)


eu me convido ao outro / Eu me convido ao outro é uma série fotográfica que consiste em 12 retratos de tamanhos variados, realizada entre os anos de 2011 e 2012. Esta surgiu de convites que fiz a algumas pessoas para adentrar suas casas e consequentemente sua intimidade.

As imagens são P&B e coloridas, resultando também em variações de cor e de contraste em relação aos diferentes tipos de filme que utilizei na série. Como gosto de fotografia

o corpo, o tempo, a casa e o outro

analógica, tenho em meu acervo uma pequena variedade de filmes 35mm, além de um grande interesse em experimentar as diferentes imagens produzidas por cada tipo de película. Os pretos e brancos, por sua vez, produzem variações de contraste, tamanho dos grãos e escalas de cinza diferentes, que importam em igual medida ao trabalho.

Munido destes equipamentos e do desejo de realizar visitas e fotografá-las, comecei a visitar alguns amigos e conhecidos, todos do sexo masculino, para conhecer seus lares e retratá-los nestes espaços. O

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o corpo, o tempo, a casa e o outro


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interesse era conhecer seus espaços de intimidade.

O

pretensão de fazer um registro do real, também não havia

resultado dessas visitas foram imagens que ora são o

o interesse em forjar realidades através de manipulação

retrato de um dos garotos à mesa de café da manhã, mesa da

dos espaços. O ordinário não precisa de muito para ser

copa, ou mesa da cozinha e ora quintais, quartos e outros

fotografado, ele é corriqueiro, espontâneo.

ambientes da casa. Em nenhuma das fotografias os corpos estão isolados. Eles aparecem junto a plantas, em cima

A questão do registro da identidade através da fotografia

de uma cama, acompanhados da textura de uma colcha,

vai além da captura da essência do retratado.

ao lado de mapas recortados pelo limite da fotografia, um

trabalho lidar com o corriqueiro nas imagens domésticas, ele

varal ao fundo, um computador, vários objetos, todos eles

também é sobre retratos; e as fotografias apresentam a dialética

domésticos, comuns.

da identidade e da não identidade, que contrapõe a dialética

Apesar de o

da aparência e da personalidade própria. Há a clareza de que a Nas fotos do quintal e terraço encontrei objetos que,

imagem não consegue apreender a identidade do sujeito. Para

como era de se esperar, também remetem à ideia de casa.

Rouille, o retrato do sujeito é ao mesmo tempo este sujeito,

Nos quintais; terra, carrinho de mão, rastelo, pedras,

e outro, ao desempenhar um papel frente a câmera. Em Eu

plantas, em um deles varal e janela, no terraço um saco

me convido ao outro, não penso ser diferente. O outro na

de boxe e um manequim. Cenas completamente caseiras e

fotografia vai ser sempre uma tentativa falida de representação

cenários em nada manipulados reforçam meu interesse pelo

da integralidade do indivíduo e consequentemente de expressão

ordinário. Nas fotos os objetos se encontram exatamente

da vivência de cada encontro.

da maneira que estavam dispostos pelos cômodos, nas mesas, estantes e etc. Ao mesmo tempo que não havia

Rouille (2009) analisa o trabalho de Jeff Wall, Young Workers

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o corpo, o tempo, a casa e o outro


(1983), e descreve-o como sendo uma grande caixa iluminada, composta de oito rostos de jovens trabalhadores fotografados em close-up, em que Jeff Wall busca o instante onde o indivíduo é, ao mesmo tempo, ele mesmo e um outro, onde a identidade encontra a não identidade, ao contrário da lógica habitual da fotografia, que tende a conferir uma identidade às coisas. É assim que cada um dos modelos não posa por ele mesmo, mas desempenha o papel de um outro qualquer, o de um personagem que, como no teatro ou no cinema, pode ser muito diferente dele. A dialética “na superfície” (da identidade e da não identidade) substitui aqui a dialética “em profundidade” (da aparência e da personalidade própria) do retrato tradicional.

Retomando a questão da imagem latente e a “imagem imaginada” (imagem ambicionada no ato fotográfico); na foto do nu masculino, ao lado de um manequim de formas femininas, e que convivem com outros dois eixos verticais, um prédio e um saco de boxe, todos eles criam um equilíbrio composicional-formal. Se tais aspectos compositivos não foram levados em conta na jeff wall, young workers (1983)

hora da visita e do ato fotográfico, logo, na “imagem imaginada”,

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o corpo, o tempo, a casa e o outro


não havia espaço para as questões que os elementos poderiam apontar. No entanto, o resultado do registro visível daquele instante consegue suscitar várias reflexões e jogos conceituais. São exemplos a existência da figura feminina representada por um manequim em uma das fotos, o saco de pancadas e um prédio ao fundo, elementos que me remetem a possíveis dialéticas como o masculino e o feminino, o corpo e a casa, a energia masculina (representada pelo saco de boxe) e a leveza da toalha no chão, a rigidez da arquitetura e a organicidade do corpo. Juntos, equilibram formal e tematicamente a composição da imagem em suas duas nudezes: a do manequim e a do rapaz e de outros dois eixos; prédio e saco de boxe. Já as questões suprassensíveis, que os objetos trazem não necessariamente se equilibram, mas propõem um jogo conceitual, desafiam a análise. E é também sobre esses jogos conceituais que falo quando declaro o interesse pelo acaso, pelo ordinário e no poder que as imagens poéticas tem de captar o inapreensível.

Nas outras imagens, mesmo as composições de corpos junto a objetos domésticos, o sujeito junto a copos, xícaras, papéis,

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ao lado da “bagunça” da escrivaninha, apoiado aos móveis, todos estes, e os outros não citados, com suas potencialidades e seus significados podem trazer muitas outras dimensões da imagem a quem quer que se proponha a analisar os detalhes de cada cena doméstica e suas composições e se permita elaborar relações intimas, de troca, ou apenas análises formais com a imagem. Esse tipo de exercício seria o responsável por trazer potência à imagem latente.

Em outra imagem, que consiste em um quintal, com pedras e utensílios de jardinagem, gosto da maneira como o corpo se coloca, de como a mão encosta no rastelo, da textura da parede e de como esses objetos, assim como na imagem que descrevi anteriormente, trazem jogos que dizem respeito ao significado de cada objeto e o modo como interagem entre si. O que o sujeito traz para essas imagens domésticas? A casa e o doméstico só o são graças a coexistência do habitar. Creio que os sujeitos juntos às fotografias só reafirmam a relação subjetiva do habitar. Cada indivíduo constrói o seu habitar.

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Quando, na experimentação, cheguei às fotografias de nu, quis, talvez por ingenuidade, esvaziar o corpo masculino de sensualidade. O corpo nu é erótico, uma constatação. No entanto, como a ideia eram visitas ao espaço íntimo do outro, não queria que a dinâmica causada pelos retratos vestidos fosse quebrada por uma nudez pornográfica. Eu esperava das imagens mais do que isso; que se mostrassem para além do nu, quase como um despir-se ao outro um permitir, mais interessado na metáfora do despir-se como permitir ao outro acessar camadas de intimidade do que pelo simples fato de erotizar. E essa delimitação também tinha como intuito de que os nus não deslocassem o trabalho e que não dessem a ideia de um convite sexual a quem quer que fosse. Se o interesse pelo corpo masculino e seu universo não podem ser desvinculados de minha experiência pessoal, decidi que ali queria ir além do interesse sexual, colocar sujeito e casa, afetivo e íntimo em diálogo.

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o corpo, o tempo, a casa e o outro







algum desfecho / Em meu fazer artístico, a dimensão afetiva se encontra conectada à dimensão temporal. Tempos e espaços que são fundamentais para as vivências que promovo, concretizo, fotografo. O espaço da casa é por si só um espaço de afeto. As imagens de cada um dos lares que vivi ou visitei, fizeram-me despertar para memórias, sensações e relações passadas e presentes, e suas possibilidades de figuração. O estar no mundo tem abrigo, e o envolvimento sujeito-casa é pautado pela memória, mas também por uma espécie de “rememória”, onde, talvez, habitem minhas imagens.

Ainda que com uma pergunta, convido Bachelard a concluir, ainda que haja tanto a dizer, refletir, viver e construir, afetiva e artisticamente:

A casa nos fornecerá simultaneamente imagens dispersas e um corpo de imagens. Em ambos os casos, provaremos que a imaginação aumenta os valores da realidade. Uma espécie de atração de

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imagens concentra as imagens em torno da casa.

bibliografia/

Através das lembranças de todas as casas que sonhamos habitar, é possível isolar uma essência íntima e concreta que seja uma justificação do valor singular de todas as nossas imagens de intimidade protegida? (BACHELARD, 2008, p. 23)

/ BACHELARD, Gaston. A Poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008

Dessa forma, acredito que não é mais possível olhar para

/ CANTON, Katia. Corpo, Identidade e Erotismo. São

esses espaços e para o espaço do outro sem de alguma

Paulo: Martins Fontes, 2009

maneira me identificar, ou relacionar com esses, como

/ CANTON, Katia. Espaço e Lugar. São Paulo: Martins

habitante. Sigo fotografando espaços e pessoas, agora mais

Fontes, 2009

como fotógrafo comercial do que artista. Embora tímido,

/ CANTON, Katia. Tempo e Memória. São Paulo:

meu pensamento artístico segue alimentando a produção de

Martins Fontes, 2009

retratos na noite, em eventos sociais e catálogos de moda.

/ DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios.

E com certeza voltarão como eixos poéticos quando o fazer

Campinas, SP: Papirus Editora, 1994

artístico retomar seu fôlego e cobrar seu tempo, seu espaço.

/ LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco. 1998 / PULS, Maurício. Arquitetura E Filosofia. São Paulo: Annablume, 2006 / ROUILLÉ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. São Paulo: Ed. Senac, 2009

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joão viegas escola de belas artes da ufmg / 2014



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