Francisco Brasileiro 100 anos

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HOMENAGEM

À

Francisco B Brasileiro Por Joana Brasileiro

Em comemoração ao centenário de seu nascimento em 27 Outubro de 1906


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HOMENAGEM

À

Francisco B Brasileiro Por Joana Brasileiro (neta)

Em comemoração ao centenário de seu nascimento em 27 Outubro de 1906

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Dedico este livro à: minha querida vó Maria, minha tia vó Margarida, meu pai João Araguaia, minha querida tia Ana, meu tio Chico, meus irmãos e a minha sobrinha Maricota que terá muitas histórias para contar. Agradecimento especial a minha tia (anja) Ana Cristina, a Manoel Rodrigues, a Vander Cardoso, a minha mãe e a Helô.

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Índice Chicão, meu pai ............................................................ pg 8 Por Ana Maria Brasileiro Meu avô Gepeto .......................................................... pg 12 Vários Personagens em um Homem Só ................... pg14 A obra .......................................................................... pg 20 Na Serra do Roncador ............................................... pg 22 O grande Sertanista-Bandeira Paulista ................... pg36 Por Manoel Rodrigues Ferreira Fome de Aventura ..................................................... pg 40 O poeta ........................................................................pg 44 Viagem ao Araguaia com os Filhos ......................... pg 50 Gugu ............................................................................pg 66 As verdadeiras intenções ......................................... pg 70

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Chicão , meu pai Meu pai, Chicão, gostaria de estar aqui entre nós, festejando o seu centenário, no centro das atenções e do carinho de todos _ e todas _ que o conheceram. Como um pavão de bom pedigree, estaria feliz em exibir seus atributos e talentos. Não ia querer que a data passasse em branco. Felizmente, Joana, sua primeira neta e herdeira da veia artística, assumiu, a bom tempo, a responsabilidade de armar esse documento, um pouco de memória, um pouco de historia e muito de poesia e amor. Nele, a vida aventureira de Chicão, suas andanças pelos confins da pátria amada, entremeia-se e confunde-se com a sua vida artística: o bandeirante, o poeta, o contador de estórias e o encantador de serpentes em um só corpo, grande, musculoso, imponente, feito de traços duros e sorriso. Em casa, o pai foi, durante muito tempo, motivo de estímulo e pavor, o medo do ajuste de contas depois das estripulias. Muito por conta dele, fui estudar inglês bem cedo e encaminhada a uma carreira profissional.

Casamento não era solução de vida para a mulher do século XX, avisava. Como “é tão curto o reinado das mulheres” mulheres”, frase que ouvi mais de uma vez, é melhor que ela esteja preparada para ser independente, ter vida própria. Talvez por isso eu tenha me tornado feminista. Assisti, de perto, ao processo criativo em desenvolvimento e, confesso, muitas vezes quis escapar, com maior ou menor sucesso, de ouvir pela quarta ou quinta vez, a última versão de uma poesia, de um conto ou de um enredo de livro. Ser sociável por excelência, Chicão só sabia escrever, ou desenhar, ou fazer planos para voltar ao sertão e encontrar o ouro da Serra dos Martírios, em plena sala de visitas, rodeado de gente. Tomava bastante espaço na casa pequena em que vivíamos. Mas na hora do jantar, com a família reunida, era agradável e divertido ouvir as mil estórias e fantasias que ele tirava de um saco sem fundo e contava como em um teatro. Meu pai melhorou muito com a idade, ficou mais suave e flexível, mais amigo, e era

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com um prazer genuíno que, quando de visita a São Paulo, eu o acompanhava a algum evento ou à casa de seus amigos. Ele estava sempre no “palco”, mas isto, ao invés de me incomodar como antes, me deixava alegre e cheia de orgulho filial. A cerimônia na Academia Paulista de Letras foi um dos pontos altos, partilhado com a família e amigos. A vida nos aproximou ainda mais com as perdas irreparáveis que sofremos e até o fim fomos confidentes e solidários. Sinto que ele sempre quis despertar em mim o desejo de escrever, nele tão vibrante e

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vital. Aos 10 anos, em 1949, com meu pai, seu amigo Weber, João e Chico, meus irmãos e, os primos Quido e Carlos fiz a minha grande aventura, a viagem no Rio Araguaia. Foram 40 dias nos acotovelando em um barco bem pequeno, dormindo ao relento em praias lindas, vendo o vôo cor-de-rosa dos flamingos e uma infinidade de animais só conhecidos em revistas. Visitamos as aldeias dos Carajás e Javaés e o contato com culturas tão diferentes deixou-nos fascinados e abriu novas perspectivas em nossas vidas. Fui encarregada de ser a cronista da viagem, uma tarefa que comecei com entusiasmo mas que foi sendo abandonada quanto mais excitante eram as aventuras e as atrações naquele maravilhoso panorama de água ladeado por flores amarelas de ipê, contra um céu azul sem nuvens. O famoso diário, com suas observações às vezes não muito ecológicas, sobreviveu até hoje (encontrei-o em seus guardados). Um dia entregou-me um pacote muito bem embrulhado, de pano, costurado com linha grossa. (Ele era muito habilidoso, fazia trabalhos maravilhosos em couro e madeira). Pediu-me para guardar até depois da sua morte. Era um livro por terminar, com seis


ou sete cassetes gravadas e um manuscrito. Queria que eu o terminasse. Com as minhas muitas mudanças o pacote ficou perdido. Depois de muito tempo, papai já havia morrido havia anos, encontrei-o e, sem tempo para trabalhar no livro, passei a incumbência às minhas sobrinhas, Joana e Chica. Foi aí que elas descobriram que o famoso livro já havia sido terminado por ele mesmo e publicado sob o nome “Os Bruxos”. Bem do Chicão. E eu que havia passado tanto tempo com aquela obrigação pendente! Falar da morte quando estamos celebrando a vida parece estranho, mas vida e morte se entrelaçam na vida e obra do Chicão, um aventureiro da selva e da cidade. A morte foi sempre um tema presente em sua história e escritos. “Para deixar de ser homem já passo logo a ser Deus” Deus”. Chicão sempre teve com a morte uma relação interessante, bem adequada para um homem que já havia escolhido o seu epitáfio: “Um homem que viveu sem medo, sem cansaço, sem preguiça”. Foi assim que nos despedimos dele quando a “que sempre vem” levou-o a contragosto, sem considerar seus planos de viver cem anos ou, pelo menos, até a entrada da humanidade no terceiro milênio. Sua agenda para

até o ano 2000 ficou por um tempo atrás da porta do armário. Aos 82 anos era jovial e cheio de planos e, enfermo na cama, nos últimos dias que antecederam a sua morte, encontrava ainda ânimo para uma conversa interessante e mesmo para contar uma piada. Lembro-me de uma, especialmente: um homem, depois de ser sido olhado pela Morte nos olhos, fugiu, apavorado, para se esconder em Islamabad. No dia seguinte alguém perguntou à Morte aonde ela ia com tanta pressa: “A Islamabad. Tenho um encontro lá”. Na vida de meu pai um elemento básico, mais importante que todos os outros, permitiu que ele pudesse levar a vida que levou e realizar seu potencial: a mulher com que ele se casou, minha mãe, sua amiga e companheira de mais de 50 anos. Foi ela o porto seguro em sua vida, mentora, solidária, tolerante e, às vezes, uma esposa enciumada. Muita coisa os separava _eram o sol e a lua _ mas algo muito forte os manteve sempre unidos. Nós, a família, estamos felizes com a oportunidade de celebrar os 100 anos de Chicão, e agradecemos à Joana que encontrou essa forma tão bonita de registrar a data.

Washington, 1 de agosto de 2006 Ana Maria Brasileiro

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Escritos As primeiras

letras da primeira neta guardadas por muitos anos.

Um poema de adeus e de reconhecimento da força que existe mesmo em se desistir.

Oratórios O

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avô "Gepeto", que sem ser um homem profundamente religioso, construía oratórios em homenagem ao Espírito Santo


Meu avô Geppeto Esta é a homenagem ao centenário de meu avô, Chicão. Para mim, sua neta mais velha e a primeira de sete, ele sempre será o avô “Gepeto” que fazia lindos oratórios de madeira e que nunca me transformaria num pinóquio. Para mim, ele sempre terá aquela altíssima envergadura, a voz ríspida e grave, e um jeito de me observar de longe. Não esquecerei, das vezes íamos aos domingos de manhã comprar pão de lingüiça no Bexiga, e ele ouvia músicas clássicas no rádio. Nunca poderei esquecer que antevi sua morte em sonho, um pesadelo que sinalizou que eu deveria lhe entregar um poema antes de ele morrer. E foi o destino que me permitiu entrega-lo à tempo. Está sendo, o destino também, a me conferir a responsabilidade de escrever, diagramar e editar as imagens compostas neste livro, em nome de seus netos e de sua filha Ana Maria .

Estamos há 5 anos planejando esta homenagem. Eu fiz tantos planos que ficou impossível até construir um projeto. Na minha insegurança em escrever, busquei amigos e parentes. Mas caiu mesmo sobre meu colo esta responsabilidade que espero cumprir á altura. Caiu em meu colo também um registro das minhas primeiras letras, guardado pelo avô babão. Um sinal, pensei, de que este talento a tanto reprimido em mim, pudesse se sobre sair seguindo os passos dele. Seguindo suas pistas: 15 livros publicados, inúmeras fotos, manuscritos, alguns registros áudio-visuais, matérias de jornal e com alguma pesquisa consegui reunir uma linha narrativa que propõe descrevêlo por suas próprias obras, fotografias e depoimentos. Espero atender a expectativa daqueles que as têm, e espero surpreender os que não conhecem a história daquele ser aventureiro, que me contaram ser meu avô.

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Chicões

Por terra, mar, rio e ar lá estava ele, pleno na existência e em sintonia com as modernidades e as tendências de seu tempo.

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Vários personagens em um homem só Francisco Brasileiro, o Chicão, sertanista, bandeirante, escritor, poeta, teatrólogo, cineasta, pai e avô, marido, amante ... Francisco Brasileiro (1906 – 1989). Nascido em Jaú, interior do Estado de São Paulo, em 27 de Outubro de 1906. Filho de José Antonio Pilagalo e Ana Luiza Rodrigues Pilagalo, oriundos de família italiana radicada em Dois Córregos, São Paulo. Seu nome sempre foi uma estória à parte. Uma delas, era de que teria alterado o sobrenome italiano para casar com Maria do Rego Freitas Brasileiro. Mas a hipótese que vou considerar mais lógica é baseada na sua certidão. Na época foi cunhada como Francisco Brasileiro filho de José Antonio Pilagalo e Ana Luiza Rodrigues Pilagalo, como era o costume. Ele apenas adotou o segundo nome como sendo o sobrenome.

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Fases

De Galã a Nadador nas horas vagas. O Sertanista em duas fases, nas primeiras expedições, diante da Serra do Roncador, e envolto em suas traquitanas em meio a floresta.

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Família

Com Maria e João na Fazenda e 1967 com os dois filhos homens.

Nós os Brasileiros desta linhagem, não somos parentes nem remotos de outros tantos. E Chicão criou a sua família, única, a partir de si, ao se casar com Maria do Rego Freitas Brasileiro. Das histórias de família consta que ele e mais 4 amigos conheceram as 4 irmãs Maria, Margarida, Selma e Alba e se encantaram. Minha Tia Margarida contava que atravessavam São Paulo de charrete para se encontrar. Uma São Paulo hoje inimaginável. Francisco e Maria tiveram 3 filhos, João Araguaia, Ana Maria e Francisco. Maria, minha avó querida, foi procuradora do Estado e trabalhava bastante fora de casa. Chicão, quando não estava de aventuranças ficava com os filhos impondo uma rotina rígida. Contam que era um pai bastante severo, mas presente. Chicão sempre inspirou os filhos e os sobrinhos com suas aventuras e suas histórias. João aos 16 anos, com dois amigos emprendeu uma viagem às escondidas de São Paulo aos sertões do Araguaia. De profissão, se tornou piloto de avião. Ana Maria, sua única herdeira direta viva, trabalhou em vários organizações importantes uma delas a ONU, sempre defendendo as questões ligadas a de-

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Acadêmico

À esquerda, na cerimônia de posse da Academia Paulista de Letras. Medalhas da Ordem dos Bandeirantes.

fesa dos direitos da Mulher, de certa forma “inspirada” pelo machismo arraigado de seu pai. E Francisco, se formou em física, mas seguindo os passos do pai, morreu ao ser atacado por índios em 1968, durante uma viagem ao Xingu. A aventura e a literatura cercaram a vida desta família, pelas mãos de Chicão. Além de ter publicado 15 livros de vários gêneros, peças de teatro e roteiro de película cinematográfica, também recebeu diversos prêmios. Menção Honrosa da Academia Brasileira de Letras com seu primeiro livro, de contos

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O Cartaz

Convidando para a homenagem, detalhe, abaixo da data de nascimento está escrito: "Sobreviveu a 18 ataques de Maleita"


“Terra Sem Dono”. “Monografia Folclórica do Rio das Graças” foi premiada pelo Departamento de Cultura do Estado de São Paulo. “Jurupari” recebeu o prêmio Monteiro Lobato. “Gugu” recebeu menção honrosa pelo Pen Clube de São Paulo. A peça de teatro “Monchão”, recebeu o Prêmio Nacional de Teatro da Fundação Cultural do Distrito Federal. Foi membro titular da Academia Paulista de Letras, Academia Paulistana de História, Instituto Histórico Geográfico de São Paulo e da Ordem Nacional dos Bandeirantes. Além da literatura, poesia, teatro e cinema, era um homem sempre disposto a explorar várias habilidades de esportes náuticos a marcenaria. Era um amante da arte, da aventura e de mulheres. Se por um lado tinha sua mulher Maria e família, por outro tinha esta gana de viver intensamente, gana que o fez penetrar varias vezes pelos sertões do Araguaia, e pelas fronteiras de um Brasil do século passado. Era um homem singular. Estas parcas palavras talvez não sejam o suficiente para exprimir quem era Chicão, mas podem traçar um retrato da sua personalidade. No entanto só conhecendo a sua obra literária e teatral é se pode ter um re-

trato mais fiel do seu pensamento. Prêmio Chicão do alto dos seus 1,95, e ao lon- Nacional de go de uma vida de 82 anos, conquistou um Teatro, pelo universo que não pode e não deve ser es- Departamento de Cultura do quecido, pois além de fazer parte da histó- Distrito Federal, ria desta família faz parte também da his- pela peça " Monchão" tória do Brasil.

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A OBRA Tendo percorrido vários estilos: contos, poesia, romance, narrativas, monografias, Chicão deixa em sua obra, marcas da sua vida, de suas aventuras e de seu jeito peculiar de contá-las

Francisco Brasileiro foi um homem audasioso em vida e que emprendeu diversas aventuras. Das experiências vividas desenvolveu um literatura rica que mistura o real e o imaginário e que tráz o Brasil remoto e inimaginável para o cenários e os personagens de sua obra. A mistura de lendas e descrições precisas de paisagens, de temperamentos e características dos personagens são reflexos poéticos dos lugares por onde passou e das pessoas que encontrou. Esta foi a fórmula de Chicão que não se considerava um erudito: “A minha intelectualidade, a minha erudição é coisa muito pouca, pequena mesmo, se comparada a dos meus colegas acadêmicos. Olha, eu sou mesmo é contador de prosa.”

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Sua produção literária começou em 1935 com os contos Terra Sem Dono, depois veio a narrativa em Na Serra do Roncador que tem um especial destaque nesta homenagem pela riqueza iconográfica que herdamos. Em 1947 fez o romance Morro Grande que aborda as transformações de uma família proprietária de fazenda de café. Monografia Folclórica do Rio das Garças em 1947 retrata em detalhes os costumes culturais da região Centro-Oeste. Jurupari em 1948, é uma narrativa ficcional que fala sobre a civilização índígena. Urutau de 1949, de contos, relacionados aos sertanejos. Os poemas Poranduba, de 1950 e A caminhada de 1957, que me permiti fazer uma breve análise. Viagem a um

País Diferente de 1960, é um romance que se passa na amazônia. Peixinho Quente de 1967, são contos variados que situados no universo urbano. Gugu, de 1968, é um romance ficcional surrealista, que teve um destaque nesta homenagem por ser um dos meus livros preferidos. Poesia de 1970, foi a coletânia de poemas, feita em homenagem aos 70 anos de Chicão, por seus filhos Ana Maria e João Araguaia. Chicão encerrou sua carreira literária com dois romances que marcam definitivamente seu estilo, Os Bruxos de 1984 e Degredados Filhos de Eva de 1985, ambos se passam em cenários remotos dos rincões do Brasil, e são cercados pela mistura da fantasia e realidade traço característico do autor.

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Registro Histórico

Reprodução da folha de rosto da versão original do livro;

Foto da equipe da Bandeira Anhanguera no topo da Serra do Roncador e imagem de Chicão durante a expedição

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1938

Na Serra do Roncador A vanguarda da Bandeira Anhanguera, se revela como um emocionante relato de uma aventura que abriu novas fronteiras para a conquista do oeste brasileiro À frente de uma Bandeira audaciosa, Chicão faz um relato emocionante de cada passo desta aventura, pelo Centro-Oeste Brasileiro. Destino Serra do Roncador, um lugar pouco explorado e terra dos temíveis Xavantes. A Expedição contava com registros cinematográficos, cientistas e pesquisadores. Entre eles seu grande amigo Hermano Ribeiro da Silva, companheiro de outras aventuranças pelo rio Araguaia, que infelizmente teve um destino trágico ao final desta. O livro traz uma narrativa quase ficcional, sobre os sacrifícios e apuros vividos de fato. Descrições bastante detalhadas sobre lugares e personagens da viagem. Algumas fotos da edição original ilustrada, estão neste ensaio, que também tem a compilação de alguns trechos do livro.

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Navegar

Não é tão simples quanto parece, e necessita de trabalho e organização

AO LEITOR Este livro é uma narrativa de viagem. Fui sub-chefe da Bandeira Anhanguéra e fiquei encarregado dos serviços de vanguarda. Essa é a razão do sub-título deste me trabalho. Aqui narro, portanto, os fatos que mais se relacionam comigo durante a caminhada e de acordo com minha maneira de sentir. Não procuro ressaltar individualidades. A bandeira era um conjunto de pessoas dedicadas. Também não afirmo que tudo que se passou esteja aqui relatado. Quem conhece a lida sabe que não é possível dar um peso exato a tais empreendimentos. Temos a satisfação de saber que desvendamos para nossa pátria um rincão ainda virgem do contacto civilizado. Se para presente imediato possam não achar utilidade na nossa empreitada, peço que se lembrem que nasceram cidades nos rastros das Bandeiras. O AUTOR

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Capitulo III, Descendo o Araguaia (...) Carregar uma embarcação não significa amontoar volumes no seu interior. Requer prática e uma arrumação cuidadosa, dividindo-se o peso, abaixando a carga. O serviço está sendo feito pelos próprios companheiros. Neste seu primeiro concurso físico que lhes foi solicitado, nesta pequena prova de fogo, alguns vão se destacando pela diligência, enquanto outros querendo apenas dirigir e dar ordens, mostram que ainda não compreenderam que viajar pelos sertões, mesmo por prazer, é trabalhar continuamente, é se esgotar a cada instante. (...)

Percalços 1

De todos os tipos, da flechada ao encalhamento da Uba, da caça pouca, à visão da imensidão do rio ainda por navegar. Hora ele é largo, hora é um barranco. É preciso se acomodar as condições.

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Presença

No caminho já são encontrados vestígios da presença dos índios. Choças

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Capitulo IV, Porto Anhaguéra

Comer ao léu Pescar, caçar, achar o que for

possível de mastigar, como o tracajá (acima), aves (a dir.), jacaré, raia e cervo (a esq.), ocupa o sertanejo boa parte do dia e da noite, é quase que uma das funções prioritárias da caminhada.

( Não obstante a nossa cozinha com o (...) reforço de carne de vaca que matamos, fica facultado o “serviço” de caçadas, para o qual logo se apresentam aficionados, certos de que concorrerão para a melhoria do nosso cardápio. (...) (...) Vão os caçadores ainda com dia, pois é preciso escolher na mata a árvore em cujos galhos, no alto, armarão suas redes. Uma vez empoleirados, ficarão atentos, empunhando as armas e a lanterna elétrica, cuja luz inesperada cegará momentaneamente a preza, permitindo uma pontaria certeira: é a “espera”. Mas essa maneira de caçar não é sem sacrifícios e tem seus inconvenientes: uma corda da rede mal amarrada, a dificuldade de entrar nela ou de não poder sair, o que é pior. Sobretudo, resistir ao martíro tremendo das “muriçocas” vorazes. (...) (...) Quem conhece o pernilongo, não o pernilongo civilizado da cidade, mas a “muriçoca” do sertão, organizada em legiõe famintas, cujo ferrão atrevido alcança a nossa pele através das próprias roupas e da própria rede, traiçoeira e impiedosa, insistente e teimosa, sabe qual é o sacrifício de tais caçadas. (...)

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Capítulo III, Descendo o Araguaia

* Texto publicado no site do Instituto Socio Ambiental

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(...) Habitantes ribeirinhos, os carajásjavaés são selvícolas de índole pacífica, que aos poucos vão sendo absorvidos pela “nossa” civilização. Nenhuma outra tribo, porém oferece o mesmo interesse e desperta tanta simpatia como essa pelo seu viver tão simples mas tão cheio de encanto. São tipos fortes atléticos de rara e exótica beleza, povoando a margem direita do Araguaia, sua divisa natural com os domínios dos belicosos Chavantes, de quem são inimigos seculares.No período da seca, os Carajás se espalham pelas praias em rústicos arranchamentos, desde Sta. Leopoldina até à ponta norte da Ilha do Bananal. Levantam frágeis ranchos, sumeariamente feitos com as palmeiras babassú e buriti, e no nomadismo de pescadores que são exímios, _mudam-se continuamente, de praia em praia com suas velozes ubás. (...)

Karajá O nome deste povo na própria língua é Iny, ou seja, “nós”. O nome Karajá não é a autodenominação original. É um nome tupi que se aproxima do significado de “macaco grande”.*


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Bandeira

Oschoonor, Chicçao e Angelo (ao lado) Os participantes da bandeira fazem posse clássica e a baixo a legenda original do livro escrita a lápis.

Capitulo I, A Bandeira Anhanguera: “Feliz da pátria que , sem precisar recorrer a um místico fabulário de monstros ou de semi-deuses para explicar a sua grandeza, pode citar apenas nomes de creaturas rudes e humanas. Não é mister colocar, nas penumbras matinais da nacionalidade, uma teogonia que escale as nuvens à cata de potestades celestes, quando, errabundos e suarentos, venciam a tranqueira das matas os heróis do planalto, feitos de ossos e de músculos, por que gerados por ventres humanos.” [trecho] (Palavras de Menotti Del Picchia, proferidas na conferência de Agripino Grieco sobre Martins Fontes, em prol da patriótica idéia do Monumento aos Bandeirantes, em Goiânia).

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Sacrifício amigo

Hermano Ribeiro da Silva (à esq.) vivo, abaixo morto. Mais abaixo imagem de uma ossada encontrada no mato, sem identificação.

Capitulo XIV, Subindo o Araguaia (...) Ninguém se priva de um fim predestinado e nem a revolta nos tira a verdadeira insignificância do que somos. Em cada viagem perdi um companheiro! Lembrei das últimas palavras de Marçal: “... definhou e morreu!...” Revivo o quadro. A morte há muito tempo rondava à sua volta. Aquelas pontadas, no fígado, aqueles beliscões no baço, não eram nada mais do que ela lhe cutucar o ventre, como a apalpar a próxima vítima dos seus apetites. E ele tão ingênuo como era, não viu, não percebeu, nem teve a mais leve intuição da sua sorte. E morreu. Morreu a inda acreditando na vida, sonhando com ela, sentindo a até os últimos instantes, num esvaecimento, numa languidez própria dos cançaços das grandes caminhadas. O sol definha e morre no horizonte, no rumo do grande sertão! *** Em cada viagem perdi um companheiro! Mas acredito em você, sertão querido! (...)

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Capítulo XII, A Aldeia e a Serra (...) Ouvíamos distintamente as falas. Estávamos próximos. Mas eis que dois latagões de corpos pintados que ao dar de chofre com a nossa inesperada visita, se precipitaram de volta, em desabalada carreira e aos berros, dando avisos aos seus irmãos. Rompeu a barulhada! (...) (...) Fomos incontinente atacados. Os homens nos flechavam, protegendo a retirada das mulheres e crianças. (...) (...) Era grande a aldeia. Dezenove casas cônicas, espaçosas, alinhadas em semicírculo em um páteo de 200 metros. (...)

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Xavantes

Avessos ao contato com outros povos índios ou não, eles migraram para a região da Serra do Roncador. Hoje existem cerca de 9.000 índios espalhados por esta região até o Mato Grosso. O cacique Juruna foi um dos líderes Xavantes, mais conhecido e lutou pelos direitos dos índios na década de 80.


Aldeia Grande

Chegar nesta aldeia foi o ponto máximo da expedição. Os objetos obtidos nesta empreitada foram entregues ao Instituto Histório e Geográfico de São Paulo.

(...) Era pacífica nossa atitude. Acenávamos-lhes demonstrando oferecimento de objetos. (...) (...) Um deles se adiantou, segurando em uma das mãos um arco e na outra girando em molinete a pesada borduna. Fui ao seu encontro. Ele, porém estancou em determinada distância, fincou o cacete no chão e me dirigiu a palavra com gestos largos e agressivos, batendo os pés, dando com as mãos como a nos mandar embora. Mas foi um instante apenas. Nossos ouvidos não puderam reter o som de suas falas. Uma gritaria infernal e um ataque rápido e envolvente fês com que nos reuníssimos no centro da aldeia, e então, como um recurso inofensivo, soltamos poderosos foguetões que ribombaram assustadoramente pelo sovacão da serra... O efeito foi imediato. Abandonaram o ataque e, aos trancos, aos trambolhões e aos pincejos, fugiram para o cerrado. Ficamos senhores da aldeia. (...)

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Encanto

Chicão era apaixonado pelo Araguaia. Seu primeiro filho ganhou a assinatura deste encanto em seu segundo nome, João Araguaia.

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Capítulo III, Descendo o Araguaia (...) Também eu me sinto emocionado. Emocionado pelo encanto daquelas paragens tão tipicamente araguaianas e tão cheias de vida e pelas recordações que em mim despertam todos os recantos desse rio, que amo com verdadeiro ardor. Cada volta do rio, cada praia que surge são outras tantas lembranças dos momentos tão felizes da minha vida ali passados. Crivam-me de perguntas os companheiros. Como velho “amigo” do Araguaia? A todos respondo a tudo atento. E com prazer eu faço. É interessante notar ainda como aquele ambiente tão simples transforma por completo o indivíduo, fazendo-o como que regredir no tempo, infantilizando-o. (...) O ceticismo desaparece: é tudo cor de rosa.(...)

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O Grande Sertanista - Bandeira Paulista Escrever sobre um amigo nunca é tarefa fácil, mas muito mais difícil é, para mim, falar de Francisco Brasileiro, o “Chicão”ou “Chico Brasileiro” como era tratado por nós, seus íntimos e mesmo por quem simplesmente o conhecia de nome. Venho pois, nesta modesta colaboração, fazer uma singela homenagem ao Chicão, pois fazer-lhe a biografia é tarefa que sua neta, Joana Brasileiro faz com muita competência,carinho e amor, tornando-se assim, mais uma vez, digna do nome que herdou do seu ilustre avô. Mas, o Chicão, com a sua modéstia e humildade nata, que eu saiba nunca relatou um momento importante da sua vida, mas se o fez, fe-lo com poucos detalhes. Por isso, fui aos documentos pouco conhecidos, para traze-lo agora, com a devida vênia da Joana Brasileiro. Em 3 de Junho de 1943, o Ministro João Alberto Lins de Barros, que ocupava alto cargo no Governo Federal, assinou a Porta-

ria n 77, criando a Expedição Roncador-Xingu, pois a 2ª Grande Guerra ainda achava-se distante do fim e tornava-se necessário não só ocupar o Interior do Brasil, mas também através dele, chegar ao Rio Amazonas. A Expedição Roncador Xingu composta de 40 homens, era chefiada pelo Coronel do Exército Flaviano Matos Vanique, pois tinha um objetivo militar e mesmo estava submetida á sua disciplina. Mas, para prestar uma homenagem á São Paulo, Terra do Bandeirantismo, o Ministro João Alberto escolheu o paulista e sertanista Francisco Brasileiro para subchefe da Expedição. Na tarde do dia 7 de Agosto de 1943, a Expedição Roncador-Xingu com grande solenidade pública no Largo de São Bento em São Paulo, recebeu uma Bandeira Brasileira bordada a ouro por senhoras paulistas, na Igreja de São Bento á Missa especialmente oficiada, um Te Deum pelo Abade Prior de São Bento, acompanhado por um coro de

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cem vozes dos Monges Beneditinos. Após, no Largo de São Bento, autoridades imprensa e grande massa popular, ouviu vibrante alocução pelo Dr. Inácio da Silva Teles, finda a qual a Expedição Roncador-Xingu dirigiu-se á Estação da Luz, chegando á estação ferroviária de Uberlândia, em Minas Gerais, e daí, em caminhões e jardineiras seguiu por estrada primitiva através de matas e cerrados, chegou quatro dias após, em 21 de Agosto na margem do Rio Araguaia, onde existia uma corrutela de garimpeiros, denominada Barra do Garças, junto á confluência dos rios Garças e Araguaia. Nesse local foi fundada pela Expedição a cidade de Aragarças, e no dia 11 de Setembro desse ano de 1943, o chefe Coronel Vanique em Ordem do Dia, determinou que o subche-

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fe Francisco Brasileiro partisse nesse mesmo dia com alguns homens, em direção ao Rio das Mortes, para achar um caminho para o grosso da Expedição, assim terminando a referida “Ordem do Dia”. “A Francisco Brasileiro e seus companheiros de caminhada esta Chefia faz votos de boa sorte, para que o objetivo em mira seja coroado de máximo êxito”. Nesse dia, o membro da Expedição o goiano Acary de Passos Oliveira escreveu no “Diário” da Expedição, “a data de hoje deve ser considerada como a mais importante para os expedicionários, visto que, com os componentes da Vanguarda iniciam-se os trabalhos de penetração”. Ao sub-chefe Francisco Brasileiro coube pois, iniciar os trabalhos de penetração da Expedição Roncador-Xingu. Ele foi com os


companheiros de Vanguarda, através de região então dominada pelos temíveis e temidos índios Xavante, tendo percorrido setenta quilômetros. Coube pois, ao sertanista bandeirante paulista Francisco Brasileiro, a gloria de ter iniciado os trabalhos de penetração da Expedição Roncador-Xingu. E a mim, seu grande amigo, coube assinalar esse grande momento histórico sim, histórico pois hoje pode perfeitamente causar surpresa essa afirmativa. É o que veremos em seguida. Naquele dia 11 de Setembro de 1943 a região além do Rio Araguaia era desconhecida alem dos seus poucos quilômetros. Os índios Xavante não tinham contato algum com a nossa civilização. Somente seriam pacificados anos depois pelo sertanista Francisco Meireles, funcionário do S.P.I.(Serviço de Proteção aos Índios, que deu lugar á FUNAI, Fundação Nacional do Índio). Até onde a Vanguarda chefiada pelo Chicão chegou seria bem possível que estivesse sendo observada por esses índios. Somente no ano seguinte a Expedição chegaria ao deserto Rio das Mortes onde fundaria na sua margem direita, o Posto de Xavantina, hoje,

neste ano de 2006, uma grande cidade, Comarca do Estado de Mato Grosso, com grandes hotéis e restaurantes modernos, enfim, um centro econômico, social e cultural da região. E Xavantina está ligada a Aragarças por ótimas estradas de rodagem pavimentadas, seguindo a “picada” que Francisco Brasileiro iniciou em 11 de Setembro. Portanto, dizer hoje que o sertanista sub-chefe da Expedição Roncador-Xingu, Chico Brasileiro começou a abrir caminho para chegar ao Rio das Mortes, não dá a menor idéia do seu significado naquela época. Talvez se esclareça melhor, dizendo simplesmente: “Foi Chico Brasileiro que começou tudo em 11 de Setembro de 1943”. São Paulo, Julho-Agosto de 2006. MANOEL RODRIGUES FERREIRA

Chefe da Bandeira Mackenzie de 1945, agregada por João Alberto Lins de Barros à Expedição Roncador-Xingu, autor do livro “Nos sertões do Lendário Rio das Mortes”, publicado em 1946. Historiador, Engenheiro civil, Jornalista, cineasta autor do Primeiro Filme colorido feito no Brasil, “Aspectos do Alto Xingu”, em 1948, sobre as tribos indígenas dessa região.

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de 1929 a 1980

Fome de aventura Chicão participou de várias expedições oficiais e extra-oficiais, foi até os confins da Amazônia sempre buscando a aventura Aos 17 anos Chicão começou sua trajetória de andanças. Afinado ao seu tempo, sob a veste da aventura, com o talento da escrita e da poesia percorreu os sertões da alma do homem brasileiro. “Durante muito tempo tentei mistificar o motivo pelo qual me aventurava. Era uma espécie de justificação íntima. Hoje sei que o impulso que me leva às coisas é a aventura.” “Embora possa parecer a muitos uma vocação paulista, o Ciclo das Bandeiras é uma instituição nacional. Periodicamente, temos fases de nacionalismo criador, inovador, renovador, em todos os campos. Não voltando muito ao passado, basta dizer que uma dessas principais fases foi no início do século, seguida por um período de estagnação. Mas, em 1922, com a Semana da Arte Moderna, veio um ciclo de renovação. È uma característica do povo brasileiro e eu não fugi dela.” Com pouca idade, já ganhava experiência na lida da viagem tropeira, levando burros para a cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, partindo de Itapetininga. Depois desta viagem abandonou a carreira de corretor de

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seguros e imóveis. Com Domiciano Ucho Fagundes e Hermano Ribeiro da Silva se juntou em idéias e ideais para alcançar o país inexplorado. Em 1930, Chicão com apenas 24 anos, fez uma primeira expedição para o Rio das Garças, que rendeu o livro “Garimpos de Mato Grosso” do Hermano e “Terra sem Dono” (contos) de Chicão, que recebeu menção honrosa da Academia Brasileira de Letras. Em 1932 em meio a revolução, Hermano e Chicão fizeram mais uma viagem para o Rio Araguaia. Que foi a inspiração para a expedição seguinte em 1938, que avançava além

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do rio das Mortes, em direção ao Xingu, para a Serra do Roncador. Esta foi batizada de Bandeira Anhaguera. “O lirismo da época, era fazer Bandeira. Levamos geólogos, médicos, cinegrafi stas e até jornalistas. Não posso dizer que a expedição tenha sido um fracasso, mas erramos num ponto: a bandeira deveria ter sido dividida, uma parte para cuidar da direção e outra, mais prática, para tratar com sertanejos. No entanto, os resultados positivos, os dados colhidos, acabaram sendo entregues ao Instituto Histórico e Geográfico e ao Museu do Ipiranga.” O livro “Na Serra do Roncador” relata os principais acontecimentos da Bandeira Anhaguera, inclusive o mais trágico que foi a morte do companheiro Hermano Ribeiro da Silva no final da viagem. Nesta homenagem, editei foto originais e alguns trechos do livro. Em 1943, como sub-chefe da vanguarda da Expedição Roncador-Xingu, venceu o terreno seu conhecido até a serra do roncador. A expedição fazia parte do plano do Governo Getúlio para ocupar o Centro-Oeste, chamava-se a Fundação Brasil Central. Coordenada pelo então Ministro da Mobiliza-


ção Nacional Sr. General João Alberto Matos Vanique. Chicão entrou em conflito com a coordenação da expedição e retornou a São Paulo. Depois desta fase mais desbravadora Chicão empreendeu outras viagens em profundidade para os confins da Amazônia, algumas com propósito desbravador, mas com interesse em descobrir jazidas de ouro como quando foi com Silvio Schnoor, companheiro da Bandeira Anhaguera, para um afluente do Rio Madeira se deparar com agressividade dos Índios. Ou como quando foi para o Acre, montado em bois, devido a “peste das cadeiras” que atacava cavalos. “A viagem em lombo de boi demora o triplo do tempo pois o animal come de dia e dorme a noite.” E lá estava Chicão fazendo mais uma aventura que depois viria a lhe inspirar, trinta anos depois a escrever o livro Os Bruxos. Voltou mais tarde a Serra do Roncador para auxiliar na implantação de campos de aterrisagem para avião. Aos quase 70 anos, ainda estava nesta lida auxiliando com sua experiência expedicionária e aventureira na expansão de rodovias como a BR 174 que liga Manaus a Caracaraí.

“ A impressão que tenho é de que, por todos os lugares por onde andei, alguém já tinha passado antes”. Toda uma vida dedicada a aventura nada mais foi do que fonte de inspiração para uma outra aventura, conhecer a si mesmo e ao gênero humano: “Gosto de gente, não de coisas. As pessoas são o ponto de partida, a semente principal. O Ser humano é o elemento transmutado em Deus”

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O poeta É difícil desvendar a alma de um homem, principalmente sendo ele seu avô e tendo você memórias e pré-disposições ao entendimento de tantas facetas. A faceta do poeta se manifesta nos seus dois principais poemas: Poranduba de 1950 e A Caminhada de 1957. Mas é possível traçar outros paralelos pela coletânea Poesia, editada por seus filhos Ana Maria e João Araguaia de 1976, em homenagem aos seus 70 anos. Chicão nunca foi preso a nada. Num primeiro sentido, não foi preso a estilos literários ou a regras métricas. Não inventou a roda, mas pôs ela para caminhar de um jeito próprio. E, assim como na sua literatura, a sua poesia é regada por cenário e personagens do sertão. Os poemas A Caminhada e Poranduba, de formas bem distintas, lembram uma toada.

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“Eu sei!... Eu sei!... Eu descobri a estrada É a batida que ganha a encosta e leva à grimpa (cume) Onde a grande porta se abre escancarada!... Para lá me bandearei ponteando um arco-íris!... Eu sei mas nada direi por que as coisas ditas Se diluem, se esgarçam, se evaporam, se esvaem ... Preciso apenas de alguém que não indague nem reflita, Mas cuja percepção o mistério pressinta E mereça ser salvo nas vésperas do dilúvio. Creio ser importante salvar a alguém Do marasmo das águas lamacentas.” (A Caminhada)

“Não era falsa a questão Face ao que me acontecia Nesta posição Todos ficavam eu partia Quando eu parti do meu lado Nas aleluias do dia Tinha o tempo creditado Pra gastar com queria Era rico como um danado Não dou conta o que possuía Tinha a negrura da noite E a claridade do dia Tinha um cavalo castanho Com nome Valentia Um guampo cheio de risos Um emboral de alegria” (Poranduba)

E de maneira diferente, ambos discutem algumas questões, que transcendem o cenário:

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“(...)A mulher é a terra, tem a mesma oscilação do mundo. A mulher é a linfa, tem a mesma agitação do mar. A mulher é o mistério dentro do mistério mais profundo E se o homem é o ser, a mulher é a criatura. Devemos amá-la que ela por si ao amor convida, Atendendo porém ser ela circunstancial em nossa vida E que a vida é muito pouco sem um pouco de loucura.” (A caminhada) “Beber é coisa de homem À mulher bebida dana Amizade é a de homem É amizade que irmana Conversa é feita pra homem Mulher conversa é na cama Equilibrado é o homem A mulher é sempre insana A mulher imita o homem Pois o homem é seu drama A mulher ama o homem Mas o homem a desama A mulher gera o homem Mas o homem gera a fama” (Poranduba)

As questões de gênero são carregadas do “machismo” peculiar à época, mas principalmente peculiar ao Chicão como em outros versos: “(...) mulher tem que ser inconseqüente porque o seu reinado é muito curto.”

“Mas cautela!... Se a mulher é o mistério há um descobrimento E a sabedoria está em deixar na mulher um segredo suspenso Como se fora a presença de um grande bem apenas pressentido. A busca é inútil. A mulher é o paraíso perdido. Da nossa vã procura e cuja rota também está perdida! Pois, na verdade, a mulher é a alma inicial de nossa vida! ... É aí que o mistério reside!...É inútil qualquer perscrutação!... O fim é o começo ignoto. A mulher gera, o homem não!... É por isso que o homem viverá sempre na solidão ...”

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“Três dias amei Maria Tempo do amor primeiro Subia sol, sol descia Pondo noites de entremeio

Eu era dono da vida A vida me pertencia A coisa uma vez servida Perde a sua serventia

Se havia sol, se noite havia Eu não sei, nem saberia

Eu era dono da vida Maria era só Maria” (Poranduba)

Pois no prazo de três dias Sei só que existiu Maria No tempo do amor primeiro Para amar Maria Era na hora em que a via Amei-a na tarde amena Amei-a na noite fria Amei-a a céu aberto Os passarinhos ali perto Cantando sem mostrar medo E se amar for isso apenas Do amor eu tenho o segredo Já vinha chegando a hora Eu tinha que ir embora Então adeus a Maria

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Sendo esta sua declaração de amor mais honesta, para a mulher que viveu toda vida a com ele, mas que de fato nunca o “possuiu”, dado ser isso impossível. Não que seja impossível apenas para o Chicão, mas porque de fato pensando em suas palavras, podemos acreditar que a condição humana vai além destes desígnios:

“ “Mas não titubeio no passo pela natural fraqueza humana, Nem nunca, deixei de ouvir a voz que chama!... É que, apenas, na hora verde-azul que se apresenta, Um sentimento de participação, uma tomada de consciência, Me obriga a não precipitar o fim, a ter paciência. Agora eu sei que o sofrimento ata o homem às coisas E também sei que há um momento certo para a ressureição, Assim como sei que o milagre está no próprio homem. Alguma coisa me diz que, se no princípio era o verbo, Eu jamais terei a palavra que encurta a caminhada. Redeando o meu burrico branco, pela mesma estrada Voltarei. Não é regresso ao princípio do princípio. Pensando bem, todas as coisas têm começo e término E eu nada mais sou do que prisioneiro do infinito. De milhões e milhões de seres eu sou o quociente! ... Voltarei!... e serei só, como um Deus sem crentes! ...” (A caminhada)


Meu olhar pessoal sobre a poesia de Chicão, não consegue separar o homem, o poeta, o avô. Tudo se funde num personagem cheio de histórias, sintonizado ao seu tempo e ao mesmo tempo anos luz a frente: “Vou andar de deu em deu Na terra como no céu Em cima do meu cavalo Debaixo do meu chapéu Quem monta as coisa sou eu Por mais que vida me aperte Qualquer paixão me diverte Da vida não digo adeus E pra deixar de ser homem Já passo logo a ser Deus” (Poranduba)

E como disse ele em outros versos: “ (...)Fiquei certo que nada é real, nem o horizonte nos restringe, nem o infinito nos cerceia, pois, onde se é limitado como ser humano, aí se transcende a si mesmo e se é Deus”

“É difícil abandonar o jogo do tempo e do espaço. O tempo é feito de contas brancas e pretas. O elo é a unidade a nos acorrentar no tempo. O espaço é o todo infinito. A unidade do espaço é a parte desse todo que fica vazia ocupada pelo corpo.” Sei de sua sabedoria instintiva, sei que ele era ligado a vida e a natureza. Sei que sem ser um literato ele soube observar, absorver, digerir e devolver seu conhecimento impírico em forma poética e em outras formas. E sei que herdei dele a necessidade de se ligar ao universo, pelo menos no plano das idéias e das palavras, de maneira a se encrustrar e se fundir à natureza das coisas. “Ah! velho mar, meu pai! Afundarei meus pés em teu sangue líquido e erguerei o tronco ao sol, enfrentando o infinito, e serei rocha. Semi-submerso em teu seio esperarei por uma primavera que dorme nos confins dos séculos. Serei granito e terei a granítica serenidade das pedras. Serei pedra e terei o pétreo silencio das rochas. E esperarei porque sou o dono da minha aventura. Ah! Velho mar, meu pai! Tu me entendes... Chicão morreu em julho de 1989 e suas cinzas foram jogadas na Baía de Ilha Grande em Paraty segundo sua vontade.

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1949

O Araguaia com os filhos

Chicão registrou tudo em foto e pelicula 8 milimetros. Uma viagem inesquecível para todos. Contada na transcrição de parte do Diário de Ana Maria.

imagem do diário

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Em 1949, Chicão resolveu levar os filhos, Francisco, Ana Maria e João, mais o sobrinho Carlos e Quido para o acompanhar para mais uma viagem ao Araguaia. Sua filha Ana Maria, então com 11 anos, ficou incumbida de fazer o diário da viagem. As imagens foram reunídas em um album com cerca de 300 fotos que foram aqui editadas e reunidas para ilustrar a aventura que Chicão compartilhou com os jovens Ana Maria Brasileiro (filha), Carlos Uchôa Fagundes- O gordo (sobrinho), ambos vivos, com João Araguaia Rego Freitas Brasileiro e Francisco Rego Freitas Brasileiro (filhos) e com Euclídes Fagundes Neto - o quido ( sobrinho). E Segue alguns trechos do diário:

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Jo達o

Quido

Ana Maria Carlos (Gordo)

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Chico


“ de julho “1 Viagem ao Araguaia pelo Caminhão. Papai tinha conseguido a pouco um caminhão aberto para nos levar até a Barranca do rio Araguaia. De Goiânia a Goiás velho são 30 léguas de modo que demorou 9 horas...” “ de julho “2 Fomos no mercado de Goiás Velho, por que papai precisava comprar mantimentos. Saímos de Goiás Velho à 1 hora. Pousamos num sitiante chamado Delito. Pela viagem vimos 2 araras, 1 raposa, 1 lebre, 1 veado e um lindo tucano. A cidade de Goiás Velho é bem bonita. Tem uma linda praça e bem no meio um Bar onde nós tomamos sorvete.” “ de julho “4 Viagem pela barca De manhã cedo lavamos os pratos, talheres, panelas, canecas, etc...Depois enquanto papai fazia o almoço nos tomamos um bom banho. Saímos as 15h30 horas de Leopoldina. Pousamos numa ilha Às 17h30 horas onde brincamos de pegador e depois ficamos a conversar com papai das estrelas.”

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Convívio

O rio, seus habitantes, seu modo de viver. Para crianças da cidade, tudo era novidade.

“ de Julho “5 Partimos 7h30 horas da praia do macaco. Esqueci de dizer que levamos como piloto de nosso barco o Benedito Borges e como ajudante o Luis, um Carajá que não é mais Carajá por que foi criado por cristão e está casado com moça branca. Passamos por Cocalinho e passamos pela barreira Anhaguera onde tiramos retratos junto ao mastro que papai plantou em 1937, quando da entrada da bandeira....”

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“6 de julho Tínhamos forquilhas e papai fez o estilingue. O Gordo foi o primeiro a pegar um passarinho, mas depois ficamos com pena e o soltamos. Também achou um ninho de gaivota no qual estavam 3 ovinhos. A tarde chegou o Velho Anjo e como o Velho nos ofereceu carne de boi resolvemos ficar mais um dia a espera da carne. O Velho pousou conosco, ficamos conversando até altas horas da noite.”

Amigos

Angelo e o índio Karajá casado com um moça branca

“7 de julho O espinheu que nós armamos ontem pescou um peixe muito grande Piraraia, que quer dizer peixe arara por que ele é pintado como arara. Pegamos muito peixe na tarrafa. Nadamos a tarde inteira e brincamos com a bola na qual eu venci. De Leopoldina até aqui são 17 léguas, 102 quilômetros.” “ de julho “8 Saímos do acampamento às 11 horas já almoçados. Comemos a merenda na boca do rio do Peixe. Chegamos a tarde a uma praia onde papai matou dois jacarés. A tarrafa pegou uma porção de peixes,

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mas todos pequeninos (...) Ficamos pescando até 22 horas. O Quido foi pescar com o Luis e os peixes rebentaram um linha de corda e duas varas. O Gordo por sua vez foi jogar uma linhada e jogou linha, anzol e tudo. (...) Caminhamos 17 léguas.” ““9 de julho Levantamos bem cedo para ganharmos tempo.(...) Embarcamos novamente e de novo quebrou-se a mesma peça do motor.(...)Partimos as 10h30 e chegamos as 5h30 a Piedade de uma antiga colônia adventista que hoje pertence a um alemão chamado Alfredo Strobel, gente muito simpática.” “ de julho “10 - Saímos de Piedade ao meio dia depois de termos almoçado 11 pombas.(...)Nos encontramos com um velho caçando com uma espingarda de mais de 200 anos. (...) As 18 horas paramos para jantar e dormir numa praia muito bonita. Fomos pescar e embora apenas pegássemos piranha a noite tão linda de lua cheia, por si só era um espetáculo incomparável.”

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O velho

com uma arma de mais de 200 anos. Outros personagens pescando.


No Rio

se faz tudo. Pesca e lavar os pratos

“ de julho “11 (...) Partimos as 7 horas e alcançamos a Lagoa Luis Alves, o lugar de mais recurso deste médio Araguaia.É habitado por um grupo de fazendeiros que criam gado em comum e vivem em perfeita harmonia. Até agora este foi o único lugar onde encontramos fartura.(...) Telmo (Francisco Marques), o Major como ele é chamado resolveu seguir viagem conosco dando oportunidade para conhecermos os Javaes, índios do grupo dos Carajás moradores do braço menor da ilha do Bananal. João e Gordo numa canoa e Chico e Quido em outra foram apanhar um biguá que o Major matou. João e Gordo foram mais ou menos, porém o Quido não houve meios de acertar com as remadas. Tanto o Chico reclamou dos vai e vem do seu companheiro que resolveram mudar de posição. Chico começou a remar muito bem, mas lá pelas tantas, tantos rejeitos fizeram os dois na canoa que esta virou. Nos todos gritávamos da margem, Chico em três braçadas montou outra vez na canoa e o Quido nadou para a barranca com velocidade de campeão. Tudo isso por medo das piranhas. Por falar em piranhas passamos na

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jornada de hoje no lugar chamado Cai Cai onde um rapaz em poucos metros de água foi devorado pelas piranhas. (...)” “ de julho “12 (...) Navegamos ao todo 5 léguas de Leopoldna até aqui, ou seja 330 quilometros. Descarregamos a canoa na ponta da ilha, almoçamos e reduzimos a nossa carga ao necessário para passar estes dias por que pretendemos alcançar a aldeia dos javaes que fica a 23 léguas rio abaixo no braço menor do Araguaia. Paresse que aqui começou nossa aventura. (...) “ de julho “13 (...) Esqueci de dizer que vimos muitos macacos. Paramos para ver se pegávamos algum. O major deu um tiro numa macaca que trazia o filho nas costas. O macaquinho queria fugir mas nós o pegamos e demos o nome de mico.” “ de julho “14 (...) Chegamos na aldeia dos Javaes ao 12 horas. Gostei muito da aldeia. Tinha uma índia chamada Maria muito linda e meiga. Com surpresa verifiquei que tinha

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Desafio

Chico e Carlos são desafiados pelos Karajás, o perdedor lava os pés do vencedor

uma porção de índias chamadas Maria. Só depois papai me explicou que como eu chamava Maria elas adotavam meu nome. A noite formaram a luta. Chico e Gordo foram os que mais lutaram conra dois indinhos. Uma vez o Chico ganhava e outra ele perdia do índio com quem estava brigando. Isso acontecia também com o Gordo.”

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“ de julho “17 (...) Papai ontem a noite pois 2 anzois de espera e conseguiu pegar um jacaré dos grandes, dos rajados, este media 3 metros. Arrastamos ele para o seco e demos um banho nele e pintamos ele esmalte de cores vivas. Alcançamos a boca do braço menor onde se separa do Araguaia para formar a ilha do Bananal. Assim deixamos este maravilhoso rio com seus incontáveis e variados pássaros ribeirinhos e farto de peixes. (...) “18 de julho (...) Como temos 10 dias livres de férias, papai resolveu seguir até a aldeia dos Carajás em Sta. Isabel que fica a 2 léguas.” “ de julho “20 (...) A tarde passamos pela boca do Rio Cristalino. Passamos pela Barreira da Cruz onde os Xavantes mataram 2 mulheres.(...)” “ julho “21 (...) Perdemos a hora, tão grande era a quantidade de muriçocas que mal pudemos jantar a noite. Também ninguém conseguiu dormir. (...) Agora o Rio é muito largo, já não se vê mais botos, nem jacarés nem aves ribeirinhas, esses animais preferem lagos internos que sangram para o rio. (...)

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““22 de julho (...) Passamos a boca do Rio das Mortes onde tomamos um banho e almoçamos numa linda praia do lado de Mato Grosso. Alcançamos São Felix pequena povoação que fica no lado de Mato Grosso uma légua acima de Sta Isabel. (...) Pudemos visitar os índios. (...) Nós estamos com sorte, por que eles estão dançando a festa de Aruanã ou seja a festa característica dos índios Carajás que representam por meio mascaras fantásticas figuras da sua mitologia, habitantes subaquáticos e terrestres que fazem parte do seu mundo. (...) Todos ficamos encantados com o que vimos, parecia que estávamos em outro mundo.”

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Festa de Aruanã Celebra os ciclos da vida e é descrita por Duval

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Rosa Borges, em seu livro Rio Araguaia de Corpo e Alma: “A indumentária vestida no balé do Aruanã é feita de palha figurativa, os bailarinos usando enormes carapuças, ritmando o espetáculo com chocalhos e sapateado e com este material colorido e expressivo atravessam a noite num vai e vem gostoso e embalante entremeado de gestos inesperado e de contorções.” A localização das aldeias Karajá possui uma razão de ser em relação ao rio Araguaia, assim como a disposição das casas de moradia, dos cemitérios, das casas rituais, segundo um simbolismo próprio à cultura karajá. No ritual de iniciação masculina, conhecido como Hetohoky ou Casa Grande, os homens também se dividem em homens de cima, homens de baixo e homens do meio e, na disposição espacial das casas rituais, igualmente tem-se a casa pequena (rio abaixo), a casa grande (rio acima) e casa de Aruanã, que fica sempre no meio destas.


“ de julho “23 (...) Uatau veio nos avisar que provavelmente a festa não continuaria por que o rapaz chamado Telibré foi atacado de loucura e andou fazendo desatino, querendo por fogo na aldeia. (...) Pelas 10 horas da manhã o rapaz foi novamente tomado de fúria e conseguiu seu intento pondo fogo numa das casas. Como o vento era muito forte e as chamas ameaçassem as outras palhoças uma ligada a outra, houve um verdadeiro pânico na aldeia. (...) Ricardo e o Papai pegaram uma corda e foram amarrar o louco. (...) Depois de muita luta conseguiram prender o rapaz e também apagaram o fogo. Papai deu forte dose de calmante para o moço que horas depois dormiu feito uma pedra. Por isso a festa não foi interrompida. (...) O que porem é digno de ser contado é a indiferença com que os índios aceitam esses atropelos. Não ficam zangados nem tentam evitar o desastre. Aceitam tudo embora dentro de uma estranha fatalidade. (...)

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““25 de julho (...) Quando seguimos viagem papai matou um mutum. Foi um bonito tiro de longa distância por isso nos todos aplaudimos. (...)” “ de julho “29 Saímos já almoçados. Nosso mantimento estava chegando ao fim. Pouco caminhamos e motor quebrou novamente. Resolvemos seguir a zinga. Estávamos longe da ponta da ilha 8 léguas. (...) Não conseguimos matar uma só caça.” “ de agosto “5 Estamos apenas há uma légua de Sta. Leopoldina que pretendemos alcançar hoje por volta do meio dia. A nossa saída foi muito boa porem pouco depois o motor quebrou. (...) Encontramos a cidade toda enfeitada em festa. Foi oferecida a música Maria Bonita em nossa homenagem.” “7 de julho Finalmente tomamos o avião e viemos ter a São Paulo onde minha mãe e minhas tias nos esperavam.”

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Festa do Divino Espírito Santo

Comemorada originalmente cinquenta dias depois da Páscoa para celebrar o dia de Pentecostes, quando o Espírito Santo se manifestou aos Apóstolos. Tem o significado de trazer a esperança na chegada de uma nova era para o mundo dos homens, com igualdade, prosperidade e abundância para todos. A tradição veio ao Brasil trazida pelos Portugueses, e a festa acontece em várias regiões do país com alguma variação. Toda a comunidade se envolve durante mêses na produção da festa que tradicinalmente oferece muita fartura de comida e bebida para todos.

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1961

Gugu

Uma viagem apaixonante a terra da loucura sem medo

O incognito o personagem principal é o símbolo

Chicão, já na 4 ª folha expressa sua idéia tão incomum: ““A loucura dá coerência ao absurdo”, e um símbolo (ver imagem). Com absurdo” essa introdução, Chicão nos leva a um mundo encantado e surreal, guiado por um homem incógnito (o símbolo) e toda a história de sua paixão por Gugu, uma jovem púbere e espivetada. Seus amigos: Beth, Soma, Imane, apóiam e se envolvem nesta paixão, que talvez seja loucura. Acho que este é dos livros do Chicão, o que pode dar mais margem à interpretação. Portanto, acredito que só é possível registrar a minha história particular com o livro. Quando li pela primeira vez Gugu, não estava, num estado normal de consciência. Havia acabado de me separar e estava numa grande luta pessoal em continuar acreditando em algum tipo de amor. Fora isso meu encontro pessoal com a loucura, cara a cara,

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mal havia começado. Naquele momento “A loucura dava coerência ao absurdo sim!”, principalmente no caos afetivo em que eu me encontrava. Qual não foi minha surpresa ao me deparar com o livro, e começar obstinadamente a encontrar algo de mágico naquelas palavras, algo por traz das palavras, dos nomes dos personagens, do significado dos seus símbolos. Cheguei a pesquisar os Hermetismos, Alquimias e afins... Buscas em vão ... Podia até ter algum sentido ... Mas deixei pra lá... Anos depois com a cabeça mais no lugar, se é que isso existe, reli e fiquei me perguntando: Puxa, você queria ver um subtexto por tráz da palavra loucura, para não encarar a sua própria? Está tudo tão claro, existe até um personagem Lura “A loucura”. Não há magia ou misticismo que substitua, ou atribua um significado, a palavra que lá está escrita. De fato tive que dar esta volta na vida, para me reencontrar com a coisa em si, enxergá-la com distância, e usufruir de uma bela história de amor sem final feliz, só uma prece que segue:

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A magia

O realismo fantástico dá margem a muitas interpretações. O que é mágico também pode ser delírio. No caso de Gugu é apenas poética.

“Que passos sôbre passos dos meus próprios passos, eu continue o errante a andar ao redor de mim mesmo; que jungido a polêmica sem fim que a razão vem ser têrmo, eu seja o que sou ante o resultado de alegria e tristeza; que acreditando em mim como projetado na eternidade, eu não entregue ao imponderável a solução do meu problema; que aceitando em minha vida fracasso e êxito como padrão, eu não os tenha como fiel a para insegurança e incerteza; que sem ficar pasmo diante da visível coerência do absurdo, eu não tome todas as dúvidas que surgirem por dilema; que acima do juízo, acima do Bem assim como do Mal, eu fique aquém e além do que é norma convencional; que no passado, presente, futuro, no tempo em outra dimensão, eu tenha vencedor e vencido, consciência da minha rebelião; que em crer, duvidar, aceitar, recusar, vencer, ganhar, perder, eu sub-exista identificado tal como sou sem deixar de ser; que mesmo derreada a ceviz à canga do sofrimento, eu não baixe os olhos e fite o triste pó do chão; que na felicidade e na desgraça, na euforia e no tormento, eu viva no mundo a minha experiência como ser humano; que leal a mim mesmo, procedente com a minha condição, eu permaneça indiferente a ressonância do desengano; que em essência em relação ao que sou e ao que me vem, eu viva a vida, conte o tempo, goze o bem, sofra o mal. Assim seja tudo, em cada vez, pelo que sou sem impostura! Assim seja tudo, nesta vida única, de plena consciência! Por que, se aqui estou, a tudo irei à última conseqüência, para ser o dono, o senhor da minha própria aventura.”

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Bico de pena

Desenho em bico de Pena, do Chicão, provavelmente feito para uma edição ilustrada de seu livro Jurupari

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As verdadeiras intenções Este livro é o que foi possível fazer com os recursos que tivemos. Esta é uma edição limitada de 500 exemplares, totalmente custeada pela família para celebrar a data. Ela cabe para este momento, já que tem o tamanho do nosso bolso e do nosso tempo. Meu avô, este personagem, carrega consigo aspectos que são singulares e emblemáticos de sua época. Acreditava nisso quando comecei, e passei a acreditar mais ainda conforme fui pesquisando, e abrindo caixas empoeiradas, e achando fotos, textos inéditos, entrevistas e artigos de jornal. Eu não queria ser deus, mas queria ter tempo/dinheiro para me aprofundar nesta pesquisa e produzir um material substancioso sobre este personagem. Podia até não ser eu, mas que fosse feito, não apenas para os

500 amigos, mas para outros interessados. Me pergunto sempre se isso é uma vaidade, só por que o cara é meu avô. Pode até ser, mas não dá pra dizer que esta é uma história comum, nem a história dele, nas as que ele escreveu. Como temos preciosidades tais como o olhar do Chicão sobre o garimpo, com um roteiro de 200 páginas com 436 cenas de uma película cinemafotográfica, os filmes de 8 milímetros que ele produziu na viagem que fez ao Araguaia com os filhos, peças de teatro inéditas, manuscritos sobre os índios, entrevistas gravadas e algumas obras que gostaríamos de re-editar, ainda estamos no começo da caminhada. Podemos até parar por aqui e daqui a cem anos teremos apenas este livro para contar esta história.

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