Residência artística FAAP - Lutécia | SP

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por Maykson Cardoso

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*Maykson Cardoso é doutorando em História e Crítica da Arte pelo Programa de Artes Visuais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e, eventualmente, tem realizado alguns projetos independentes de curadoria.


Sketch crítica em torno das coisas que aprendi com os trabalhos recentes de Joélson Bugila, ou: de outros modos de falar sobre o trabalho dos outros, ou, ainda, se preferir: “Áreas livres” com espaços para a reinvenção de um “Estado cinza”

por Maykson Cardoso*


Ato I Sobre o “papel� dos jornais


Naqueles dias em que estive em São Paulo marquei um encontro com o Joélson Bugila, em seu estúdio temporário, na Praça do Patriarca. A ideia era que eu pudesse ver alguns de seus trabalhos mais recentes que, em parte, eu já conhecia, e que, portanto, eu já acompanhava, meio de longe, meio de perto, e sobre os quais eu já havia sinalizado o meu desejo de escrever alguma coisa. Já fazia um tempo que eu andava, como ando, ainda, mergulhado em alguns textos do Walter Benjamin para a minha pesquisa de tese, e percebia algumas conexões possíveis entre aqueles trabalhos do Joélson e algumas coisas que o Benjamin havia pensado e que me pareciam pertinentes desdobrar. Em alguns de seus textos, o Benjamin propusera uma leitura sobre a produção de alguns escritores da vanguarda russa que, segundo ele, haviam se apropriado da técnica empreendida na escrita jornalística, e do próprio jornal, enquanto meio, para reinventar a própria “técnica literária”: razão pela qual aqueles escritores, no diagnóstico crítico de Benjamin (que, àquela altura, apostava ainda todas as fichas na União Soviética), pareciam estar lançando por terra o papel do escritor enquanto “autor” na sociedade burguesa, para atuar, mais precisamente, como “produtores”. Quer dizer, contra uma ideia que estava embutida no papel que se atribuía ao escritor como autor, Benjamin via resplandecer um modo de ação daqueles escritores da vanguarda russa que os tornava menos formadores de leitores e mais formadores de outros escritores e, por isto, eles poderiam ser vistos como “produtores”. Explico melhor: estes escritores, produtores, para Benjamin, se imbuíam de uma posição social diferente da do autor na medida em que utilizavam a forma e o conteúdo de um

meio de massa, como o jornal, para produzir boa literatura e mostrar, especialmente para uma massa que não podia comprar livros, mas podia comprar jornais, que escrever literatura nem era, trocando em miúdos, um bicho de sete cabeças: era possível produzir boa literatura sobre temas que não diziam respeito aos valores da vida burguesa, com os meios que se tivesse à mão. Assim, foi a partir da leitura que eu fazia da leitura que o Benjamin fizera daqueles escritores da vanguarda russa que eu comecei a achar muito interessante o que o Joélson estava fazendo em seus trabalhos mais recentes. O modo como ele também vinha — e vem — se apropriando do jornal diário enquanto matéria prima desses trabalhos para experimentar, à exaustão, uma série de possibilidades inventivas, não só me parecia — e me parece — dar a ver as suas próprias estratégias gráficas e discursivas enquanto artista; funciona como um modo de denunciar uma série de estratégias igualmente gráficas e discursivas que estes jornais levam a cabo e que estão relacionadas ao seu papel — permitam o paradoxo na expressão a seguir — incisivamente subterrâneo na vida política. Porque, afinal, a despeito de quaisquer objeções mais ou menos razoáveis daqueles que proclamam a isenção dos jornais e dos jornalistas no tocante às ideologias que oferecem algumas ferramentas para se pensar e agir politicamente, a forma e o conteúdo dos jornais deixa clara esta sua “vocação”, na medida em que mimetizam o modelo de organização geopolítica da vida na cidade, ou seja: na polis. Não há de ser por acaso que, na página policial, vê-se a delegacia; no obituário, o cemitério; na coluna social, o clube decadente e cafona da high society.


Ato II Lição da polis


Então, foi a partir desta compreensão que me permitia relacionar algo que estava aprendendo com o Benjamin, que eu me dispus a observar e a aprender com o trabalho do Joélson. E por isso eu estava em São Paulo, a caminho da Praça do Patriarca, mais atento à cidade: porque eu sabia que o Joélson estava trabalhando, na ocasião dessa residência, sobretudo com a Folha de São Paulo e, como eu tenho vivido no Rio de Janeiro, eu estava ciente de que, mesmo que ambas as cidades venham compartilhando um cenário de mazelas políticas que assolam todo o país, havia coisas sobre esta megalópole, que é São Paulo, que, por mais bem informado que eu estivesse, não poderia entender muito bem. Então, como ia dizendo, a caminho do estúdio do Joélson, eu estava inteiro olhos e ouvidos e, passando pela prefeitura, por exemplo, eu percebi um grupo de manifestantes que estava ali protestando contra a reforma da previdência municipal proposta pelo prefeito João Dória. Aprendi, com a mulher que gritava, a plenos pulmões, no megafone, que os funcionários municipais de São Paulo pagam 11% de seus salários para o fundo previdenciário, um valor que o prefeito não achava suficiente e queria aumentar, se não me falha a memória, para 18%, mesmo que outros trabalhadores do país paguem 7%. Enfim. Portanto (é preciso dar ênfase nisto), havia algo no trabalho do Joélson que eu sabia que estava dizendo sobre uma possibilidade de leitura da cidade através do desenho gráfico, das palavras dos editoriais e demais textos de jornalistas e colunistas

da Folha de São Paulo. E foi exatamente isto que vi, nos trabalhos que pude ver, na ocasião do nosso encontro, quando compreendi algo de sua metodologia que me ajudou a pensar sobre algumas questões que gostaria de compartilhar aqui. É claro que, à primeira vista, eu me detive em um aspecto gráfico dos trabalhos e na engenhosidade de seus displays. O Joélson é desses artistas cada vez mais raros que conseguem vincular muito bem uma preocupação formal sem prejudicar o conteúdo de seu trabalho. E, sem sombra de dúvidas, um espectador inadvertido pode se sentir tão atraído por essa camada superficial de seu trabalho que não poderá depreender o que de crítico e propositivo lhe subjaz e sustenta. Assim, é a partir destes dois eixos, da forma e do conteúdo, e de seus gestos, que gostaria de tentar demonstrar, nisto que chamo de uma tomada de partido do artista em relação a este meio, que é o jornal, neste momento chave de sua transformação... e digo “transformação” porque, segundo McLuhan, como li, outro dia, na entrevista de um poeta: “os meios não desaparecem, mas se transformam”.


Ato III O corte


“Eu não recorto, mas corto, porque não uso a tesoura, mas o bisturi”, me disse o Joélson, em algum momento de nossa conversa, ciente da potência que ele coloca em ato através de um gesto cirúrgico. A lâmina do estilete é, de certo, o que lhe confere o estilo preciso de seu vocabulário e sintaxe, visuais e linguísticos, que ele explora ao trabalhar com as pilhas de jornais e uma bibliografia considerável que mantém sobre a sua “mesa de corte”. Para os jornais, ele estabelece dois critérios como ponto de partida para o trabalho: 1. retirar cada verbo que aparece nas manchetes, em letras garrafais e que, até onde pude perceber, com meu olhar de professor de português, são verbos de ação, transitivos diretos ou indiretos; 2. cortar as áreas livres, como ele chama os espaços em branco (o que não quer dizer sem cores, mas sem palavras) que se encontram entre os textos de cada umas das páginas, mantendo apenas a capa do jornal intacta para uma intervenção posterior que ele realizará ali. Com os verbos que retira das manchetes, ele vai recompondo outros textos na medida em que os coloca um em seguida do outro ou os dispõe, como poemas. Tanto em um caso, como no outro, não se poderia dizer que estas composições não tenham um sentido claro, mesmo que não esteja evidente o sujeito da ação, propositalmente obliterado, ou que se tratem de verbos transitivos que careçam, como nos ensina a gramática, de complementos que possam lhes completar o sentido. Deve-se notar, porque salta aos olhos, que nestes exercícios de composição não são raras as vezes

em que aparecem alguns verbos que expressam ações violentas e que, talvez exatamente por isso, ofuscam os demais, como os verbos “matar”, “assassinar” ou, estes outros, da ordem do dia, “mandar”, “ordenar”, e suas declinações: “matou”, “assassinaram”; “manda”, “ordena”. É como se, na medida em que Joélson incide, sobre o papel do jornal, o seu corte, estes verbos ganhassem um “valor de choque” e, muitas vezes, um tom que poderia soar, na língua coloquial, como imperativo: Nega, força, valida, prioriza, quer Mantém, coloca, recebe, tem Mostram, têm, criam, ataca, abrem Levam, enfoca, bate, espera, mata, leva Não obstante, não é só à materialidade textual que Joélson se atenta nos jornais e que, aqui, compreendo como o conteúdo... Nas áreas livres que compreendem as zonas intersticiais entre um texto e outro (os espaços em branco que, como dizia, não querem dizer sem cores, mas sem palavras), seus olhos perscrutam uma série de formas desformes (porque não conformes) que ele vai cuidadosamente cortando e colecionando, a cada edição do jornal que lhe chega todas as manhãs. Com elas, ou a partir delas, ele vai também criando um alfabeto enigmático que me mostra, em um de seus cadernos, onde as cataloga... É como se, para ele, cada forma fosse uma espécie de letra que, embora seja visível, é impronunciável, como signo vacilante, como um hieróglifo impenetrável. E é com estas letras misteriosas que ele vai estruturando um texto visual ao colá-las como


um quebra-cabeças na primeira página do jornal que lhe serve como suporte. Embora estas formas que extrai do que chama de áreas livres também seja um enigma para Joélson, ele sabe, ou ao menos desconfia, de que elas estão, também, cheias de possibilidades de sentido. E é isto o que parece lhe importar mais. Nas paisagens gráficas — ou, como falava, nos textos visuais — que ele vai compondo, ele oferece mais uma camada de conteúdo que parece comunicar algo que, em um golpe de vista, nossos olhares desatentos não podem apreender, como uma paleta predominante das cores destas áreas livres que parecem dizer algo, mas não se sabe exatamente o quê. “Na Folha de São Paulo predomina os tons de azul”, diz ele... Em tempos, como esses, em que uma das maiores autoridades em estudos de semiótica do país, Lucia Santaella, ousou acusar o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, de pintar as ciclovias da cidade de vermelho por pertencer ao Partido dos Trabalhadores, não estaríamos desguarnecidos da licença de uma autoridade para atribuir algum sentido a este azul predominante no jornal da família Frias, dona do Grupo Folha. Mas, por ora (apenas por ora) não seremos tão ridículos!



Áreas Livres: Folha de S. Paulo - Áreas livres da Folha de S. Paulo coladas sobre capa de jornal, plástico PVC cristal, costura e madeira | 1m x 1,73m | São Paulo 2018





Ação do PResente - verbos de manchetes de jornal coladas sobre página dupla de jornal | 31cm x 37c | São Paulo 2018



Áreas Livres II - Áreas livres da Folha de S. Paulo coladas sobre 4 páginas de jornal, madeira e grampo de metal| 1,25m x 1,12m | São Paulo 2018



Catálagação de Áreas Livres. Vol I, 80 páginas - Áreas livres de diversas mídias impressas colado sobre página de livro | 30cm x 38cm | Berlin 2017









Ato IV “áreas livres” como espaços para a reconstrução de um “estado cinza”


Enfim, a partir da visita que fiz ao seu estúdio temporário, comecei a pensar nestes dois eixos metodológicos que Joélson escolhe como ponto de partida. E embora não queira que meu ponto de vista feche as outras possibilidades de leitura de seu trabalho, espero que ele possa dizer algo da espessura do que vejo, nestes gestos que não se reduzem a cortar e colar: no gesto de escolher os verbos e reconfigurar um texto a partir das manchetes dos jornais para enfatizá-los, vejo o ímpeto de quem procura acusar a violência da polis a que os jornais não amenizam, mas exacerbam; no gesto de mapear estas formas, cheias de cores, vejo o desejo de quem insiste em ver, do que resta “em branco” nessas “áreas livres”, um espaço de reinvenção. Ao partir da ideia já exposta de que os jornais mimetizam um modelo de organização geopolítica das cidades, pode-se ler, neste gesto do artista, uma tomada de partido e uma aposta de quem deseja encontrar áreas livres da violência no [con]texto de um “Estado cinza” — como intitula um de seus últimos trabalhos, no qual utiliza o pigmento de jornais queimados e restos de palavras para compor um cenário de pura fragmentação. É nessas áreas, que já estão aí, e tantas vezes não são vistas, que Joélson busca obsessivamente para dar algum sentido àquilo que parece não ter sentido nenhum. E é daí que devém o que vejo de propositivo em seu trabalho que, em última instância, acredita, e quer nos fazer acreditar, que outro mundo é possível, contanto que se encontre as brechas.


Estado Cinza - Cinzas de jornal, restos de papel queimado e colado sobre papel | 50cm x 70cm | SĂŁo Paulo 2018





JOÉLSON BUGILA

residência artística faap sao paulo | abril | 2018


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