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Considero esta obra um verdadeiro marco. Trata-se da primeira pesquisa acadêmica publicada em português que narra as raízes históricas da tradição Congregacional, desde sua origem, na Inglaterra, passando pela Holanda, Estados Unidos da América e Brasil. Temos bons livros que nos serviram nas últimas décadas com o objetivo de apresentar a nossa origem, mas sem a riqueza de dados históricos e sem citação das fontes. Cuidado devido que o autor tomou para deleite dos apaixonados pela História da Igreja! Finalmente, não podemos esquecer que a obra presta homenagem a uma das primeiras e mais ricas tradições, herdeira da Reforma Protestante. Portanto, como podemos verificar, a expressão “marco” faz jus à laboriosa contribuição de Joelson Gomes à família não só dos Congregacionais, mas dos Protestantes no Brasil. Idauro Campos. Escritor, historiador, diretor do Seminário Teológico Congregacional de Niterói/ RJ, e pastor do quadro de ministros da União das Igrejas Evangélicas Congregacionais do Brasil. O livro do pastor Joelson Gomes vem preencher uma lacuna na nossa literatura, e mui particularmente no contexto da igreja Congregacional. Se como entende o autor “um livro só deve ser escrito se for necessário”, então esse é um texto que justifica sua publicação. Mais do que isso. Justifica que todo líder e crentes interessados numa perspectiva bíblica e histórica do Congregacionalismo o examine com a devida atenção. O referido texto impressiona não apenas pela vasta pesquisa, envolvendo quase 400 citações, mas, sobretudo, pela riqueza dos conteúdos e poder de fundamentação. É importante ressaltar que o autor além do conhecimento e compromisso científico com a pesquisa, apresenta uma profunda convicção bíblicoteológica quanto ao governo Congregacional. Assim é que o livro oferece uma grande contribuição sobre o modelo bíblico de funcionamento da igreja, ao demonstrar que “a decisão final de um problema repousava na congregação” e que “a liderança era compartilhada e não imposta”. O leitor verá, ainda, que ao contrário da cultura atual, "os pastores locais exerciam força coesiva (de coesão, unidade) na comunidade e não coercitiva". E, finalmente, o autor mostra que a história do Congregacionalismo nos “orgulha” por seu legado de pioneirismo e de virtudes. Aurivan Marinho. Palestrante renomado em todo Brasil, pastor do quadro de ministros da Aliança das Igrejas Evangélicas Congregacionais do Brasil, da qual foi presidente por vários mandatos, e professor no Seminário Teológico desta mesma denominação.
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Saudamos com muita alegria o livro: OS CONGREGACIONAIS. Sem dúvida alguma, temos em mãos, uma grande contribuição para os Congregacionais de nosso país. O livro é rico sobre vários aspectos e com certeza fomentará discussões interessantes sobre a nossa herança Congregacional. A obra possui linguagem clara, livre dos entraves linguísticos peculiares a muitas obras historiográficas produzidas em ambientes acadêmicos. O leitor perceberá a facilidade com a qual se verá envolvido e seduzido pelo enredo traçado pelo autor. É possível que o leitor discorde de algumas abordagens e interpretações do autor, como também é possível que não o siga em todas as conclusões a que chega a sua pesquisa. O que não é possível é negar a relevante contribuição do trabalho ora apresentado ao público Congregacional. Não tenho qualquer sombra de dúvida que essa pesquisa contribuirá para o enriquecimento do saber e o fortalecimento da identidade Congregacional em nosso país, mostrando-nos que todos nós temos razões nobres para nos alegrarmos e até, falo com toda reverência, nos orgulharmos de nossa herança e de nossos antepassados Congregacionais. Rogamos a Deus que a obra sirva para fortalecer nossas estruturas e consciências acerca de quem somos e de onde viemos, já que, como a história é o fio da identidade comunitária, uma comunidade sem consciência histórica é uma massa alienada que não sabe de onde veio nem para onde vai e, portanto, nunca compreenderá as razões pelas quais faz o que faz. Bruno César Araújo. Historiador, pastor e diretor do Departamento de Educação Teológica da Aliança das Igrejas Evangélicas Congregacionais do Brasil, e professor no Seminário Teológico desta mesma denominação.
No Livro OS CONGREGACIONAIS, Joelson Gomes desenvolve de forma cronológica e primorosa, uma apresentação abrangente do Congregacionalismo, tendo em seu arcabouço uma analise bíblico-histórica de todos os períodos e fatos feita com clareza de detalhes, dando sempre ênfase a personagens que contribuíram para desenvolvimento dessa forma de governo. Nós estamos diante de uma obra única e necessária, que nos fará conhecer melhor a história e o governo Congregacionalista em nossos dias, principalmente no Brasil. Hugo Wagner Silveira Melo. Diretor do Departamento de Educação Religiosa e Publicações da Aliança das Igrejas Evangélicas Congregacionais do Brasil, pastor e professor do Seminário Teológico desta mesma denominação.
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O autor, pastor e professor Joelson Gomes apresenta com veracidade e autenticidade fatos documentais da história Congregacional, seu pioneirismo, passando pela Inglaterra e convergindo para o Brasil. Temos na narrativa deste livro uma coletânea de referências aos Congregacionais, mostrando a construção de sua história ao longo do tempo. É uma contribuição que nos oferece um acervo Congregacional de dados históricos, biográficos e bíblicos. O livro será útil ao estudo desta história a vários seguimentos de ensino denominacional, e em seus seminários bíblicos. Carloson Roberto. Faz parte do quadro de ministros da Aliança das Igrejas Evangélicas Congregacionais do Brasil, é membro do Departamento de Educação Teológica, professor e diretor do Seminário Congregacional da ALIANÇA em João Pessoa/PB. Indiscutivelmente Joelson Gomes deu-nos um grande presente, uma vez que esta obra preenche sabiamente uma lacuna existente em língua portuguesa. OS CONGREGACIONAIS é aquele tipo de livro semelhante a um bom filme, ao passo em que as cenas vão acontecendo, o nosso envolvimento, curiosidade e interesse vão aumentando, porém, de repente, percebemos que o filme está acabando e já começamos a lamentar dizendo: “o que é bom dura pouco.” OS CONGREGACIONAIS é um escrito lúcido, bem pensado, preciso e, acima de tudo, totalmente bíblico. Sendo assim, aperte os cintos e embarque nesta bela história conhecendo a tradição e o grande legado deixado pelos congregacionais. Valker Neves. Formado em Teologia, Psicologia, Administração e Mestrando em Hermenêutica do NT. Pastor da Igreja Evangélica Congregacional Zona Sul em Campina Grande/PB, e segundo secretário da Aliança das Igrejas Evangélicas Congregacionais do Brasil. Ler OS CONGREGACIONAIS é um grande deleite para mente, um texto riquíssimo em citações e de boa fundamentação bíblico – teológica que rapidamente seduz os estudantes mais dedicados. Joelson Gomes escreve não só com sua mente fértil, mas com seu coração apaixonado pelo conteúdo de seus escritos o que é típico de um reformado experimental. Esse livro não pode faltar em sua biblioteca, desde que suas lições perpassem em sua mente e seu coração. Anderson Firmino. Graduado em Teologia, Pastor e Vice-diretor do Conselho de Pastores da Aliança das Igrejas Evangélicas Congregacionais do Brasil.
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AGRADECIMENTOS
Este autor deve agradecimentos a algumas pessoas muito importantes na elaboração desse livro. Ao ETERNO ( )יהוהCriador do céu e da terra, pois por Ele vivo e me movimento. A Aurivan Marinho, que fez uma observação que resultou na mudança do título e escreveu palavras que me deixaram honrado. Ao Pr. Walker Neves, que após ler o original, ficou comigo, no dia em que seu primeiro filho ia nascer (sim, isso mesmo, a esposa aguardando a hora de ir ao hospital), fazendo correções de texto em todos os lugares onde eu escorreguei na digitação e ainda endossou o livro. Aos Pastores Idauro Campos, Bruno César, Hugo Wagner, Sérgio Paulo de Menezes, Carloson Roberto por suas palavras carinhosas. E à minha companheira Líllian Régis, que pegou o texto e deixou legível colocando os pingos nos “is”.
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Para: Dra. Joyce Clayton, a minha professora que me fez ter o amor pela história Congregacional; Josete Lira, que me ajudou por muito tempo quando era seminarista sem emprego; Maria José da Mota, que sonhou, mas não me viu consagrado pastor; Primeira Igreja Congregacional de João Pessoa/PB que me acolheu quando mais precisei; E, especialmente, minha mãe Maria Anunciada que já deixou de comer para que eu comesse. 9
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“Eu não sei o quanto consegui, mas alguma coisa eu fiz”. (Roberto Rosselini, cineasta italiano)
“As pessoas dizem: “Ariano tem uma imaginação muito fértil”. Tenho não, eu não crio nada, eu copio” (Ariano Suassuna, escritor)
“Aquele que não conhece a prática da escrita pensa que ela não requer esforço. Três dedos escrevem, mas todo o corpo trabalha” (Lutero) ___________________________
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SUMÁRIO
Cronologia Congregacional Básica ..................................................... 15 Introdução ................................................................................... 19 UM- “Entre vocês não pode ser assim (…)” ................................... 23 DOIS - O Congregacionalismo sempre vivo ................................... 53 TRÊS - O Casamento desfeito que deu origem a uma igreja ..... 79 QUATRO - “Só Cristo é o Cabeça da Igreja” ................................. 87 CINCO - Henry Jacob e o Congregacionalismo não Separatista .................................................................................................................105 SEIS - Os “Pais Peregrinos”; indo à “Terra Prometida” ..........111 SETE - A Liberdade na Inglaterra ....................................................135 OITO - Os Congregacionais nos Estados Unidos; avivamentos, divisões e fusões......................................................................................157 NOVE - A cruz na Terra de Santa Cruz .........................................173 Apêndice 1 – A Aliança das Igrejas Evangélicas Congregacionais do Brasil ....................................................................................................197 Apêndice 2 – O pioneirismo Congregacional ................................201
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CRONOLOGIA CONGREGACIONAL BÁSICA 1567- Primeiro registro de uma Igreja Congregacional no período moderno. Um grupo de Congregacionais Separatistas se reunia fora da Igreja Anglicana, no Salão Plumbers, em Londres. Eram cerca de 100 pessoas. Foram descobertos, presos, e alguns mortos. 1581- Robert Browne primeiro teórico do Congregacionalismo publica seus livros dando os primeiros contornos teológicos do movimento na época moderna. 1607-08- Sofrendo intensa perseguição, as igrejas dos Separatistas Congregacionais de Gainsborough e Scrooby fogem da Inglaterra para a Holanda, país onde havia liberdade religiosa. 1616- Henry Jacob funda a primeira igreja Semisseparatista (Congregacionais não tão radicais quanto os Separatistas) na Inglaterra, e escreve uma confissão de fé. 1620-Viagem de um grupo da Igreja Congregacional em Leyden, Holanda, rumo à América do Norte no Mayflower. 1621-Primeiro Dia de Ação de Graças comemorado pelos Congregacionais na América. 1636-Os Congregacionais americanos fundam o Harvard College para a instrução dos pastores. Mais tarde esta escola veio a se transformar na Universidade de Harvard. 1648-Os Congregacionais americanos aprovam e publicam a Plataforma de Cambridge, documento formado em oposição ao Presbiterianismo aprovado pela Igreja da Inglaterra na Confissão de Fé de Westminster. 1658-Os Congregacionais ingleses aprovam e publicam a Declaração de Savoy de Fé e Ordem defendendo o Congregacionalismo. 1663-É impressa a primeira Bíblia na América. Esta foi uma tradução feita para a língua indígena pelo missionário Congregacional John Eliot. 1700-O Congregacional Samuel Sewall, chefe de justiça do Superior Tribunal de Massachusetts, escreve o primeiro tratado antiescravagista da América. 1701-Foi fundado o Collegiate School para treinar pastores. Esta escola veio a se transformar na Universidade de Yale. 15
1708-Os Congregacionais de Connectcut formam a Plataforma de Saybrook onde é assumido um Congregacionalismo estranho e mais centralizado, com associações ministeriais locais. A assembleia geral de toda colônia agora tinha poder nas igrejas locais. 1735-A Congregacional Phillis Wheatley foi a primeira negra a ter seus escritos publicados na América. 1807-Os Congregacionais organizaram o Seminário Teológico de Andover. Este é o primeiro seminário protestante na América. 1812- É formada a União Congregacional da Escócia. 1817-O Pastor Congregacional Thomas Gallaudet abriu um asilo em Connecticut para a instrução de surdos e mudos. Em 1856 este estabelecimento foi nomeado a mais antiga universidade para surdos aberta em Washington, e a primeira escola para a comunidade surda na América do norte. 1829-É formada a União Congregacional da Irlanda. 1831-Formação da União Congregacional da Inglaterra e País de Gales. 1833-Os Congregacionais fundaram o Oberlim College, em Ohio. Este foi o primeiro colégio dos Estados Unidos a atribuir a quatro mulheres a sua colação de grau. 1839-O Congregacional John Quincy Adams apelou perante o supremo Tribunal de justiça pela liberdade dos escravos do Amistad e conseguiu. O fato foi transformado em filme por Steven Spielberg em 1997. 1853- Em 15 de setembro é consagrada a primeira mulher ministra protestante do mundo, Antoinette Brown, na pequena Igreja Congregacional em South Butler, NY. 1855-Chega ao Brasil Robert Reid Kalley e sua esposa Sarah P. Kalley, primeiros missionários Congregacionais no Brasil. 1858-É fundada a Igreja Evangélica Fluminense, primeira igreja Congregacional no Brasil oriunda dos trabalhos do casal Kalley. 1861-Com os esforços de Robert Reid Kalley é aprovada a lei que regulamentava o casamento de pessoas não Católicas Romanas. Esta lei foi regulamentada em 1863. 1865-Reunião de todos os Congregacionais dos Estados Unidos e aprovação da Declaração de Burial Hill. Era a preparação para a formação denominacional que ocorreu em 1871 com a formação do Conselho Nacional de Igrejas Congregacionais dos EUA. 16
1868-É publicado o primeiro hinário evangélico no Brasil, era o “Salmos e Hinos”, sob o patrocínio do casal Kalley. 1871-É formado o Conselho Nacional de Igrejas Congregacionais dos EUA. 1873-Com os esforços de Robert, Sarah Kalley e colaboradores foi organizada a Igreja Evangélica Pernambucana em Recife/PE. A primeira igreja evangélica do Nordeste do Brasil. 1876-É aprovada a primeira declaração de fé Congregacional no Brasil “Os 28 Artigos da Breve Exposição das Doutrinas Fundamentais do Cristianismo”, preparados por Robert Kalley. 1880-O Imperador D. Pedro II concede o direito de reconhecimento à primeira igreja evangélica brasileira: a Igreja Evangélica Fluminense, Congregacional. 1913-É fundada a primeira denominação Congregacional do Brasil (Aliança das Igrejas Evangélicas Indenominacionais), que a partir daí passou por muitos nomes e hoje é a União das Igrejas Evangélicas Congregacionais do Brasil. 1931-Acontece a fusão do Conselho Nacional com a Convenção Geral das Igrejas Cristãs (outra denominação), formando, assim, o Conselho Geral das Igrejas Cristãs Congregacionais dos EUA. 1942-Fundação em Panambi/RS da Igreja Evangélica Congregacional do Brasil (IECB), denominação de proposta mais litúrgica oriunda de trabalhos missionários apoiados por igrejas Congregacionais dos EUA e da Argentina. 1948-É formada a Conferência Cristã Congregacional Conservadora (CCCC) nos EUA por ministros que não concordavam com o liberalismo teológico da maioria das lideranças Congregacionais americanas. 1955- Formação da Associação Nacional de Igrejas Cristãs Congregacionais (NACCC) nos EUA por um grupo de igrejas que se colocaram fora do Conselho Geral das Igrejas Cristãs Congregacionais. 1957-Fusão do Conselho Geral das Igrejas Cristãs Congregacionais com a Igreja Reformada dos EUA, dando origem a United Church of Christ (UCC) (Igreja Unida de Cristo) que é hoje a maior denominação Congregacional do mundo, porém prega um Cristianismo liberal. 1967-Fundação em Campina Grande/PB, Brasil, da Aliança das
Igrejas Evangélicas Congregacionais do Brasil. 17
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INTRODUÇÃO
A
história das lutas para que fosse resgatado e posto em prática, na época moderna, o sistema de governo Congregacional para igrejas cristãs é longa e árdua. Muitos deram a vida para que o Congregacionalismo fosse novamente implantado e sobrevivesse até hoje. Entretanto, para a maioria dos membros das igrejas Congregacionais brasileiras, o Congregacionalismo, sua fundamentação bíblica e sua história, ainda são, depois de mais de um século e meio de sua chegada em nossa terra, ilustres desconhecidos. Nos nossos seminários sempre foi um problema o ensino desta disciplina, pois não há bibliografia detalhada em português para ser usada. Em muitos locais, o ensino do Congregacionalismo quanto à sua história se resume a Robert Reid Kalley, e quanto à fundamentação bíblico-teológica praticamente inexiste. Não será surpresa encontrar pastores que não saibam nem definir, nem defender com a Bíblia o sistema Congregacional de governo para a igreja local. Como preservar a história é preservar a memória de um povo como fez Josué com o povo hebreu (Js 4. 4-9), o propósito deste texto é conhecermos um pouco da fundamentação bíblica e história desta maravilhosa saga, sua força e determinação. Queremos aqui fundamentar como as igrejas locais se organizavam no Novo Testamento, suas estruturas de poder internas e externas, e observar se o “tempo” se encarregou de fazer mudanças na estrutura delas. Vamos procurar conhecer os desafios de nossos antepassados espirituais da tradição Congregacional, compreender seus pressupostos, visualizar suas batalhas, privações, sofrimentos e vitórias. Aqui saberemos quem foram os principais líderes no resgate do Congregacionalismo como governo da igreja local na Inglaterra. Acompanharemos as aventuras e as fugas das perseguições destes irmãos que lutaram por ser e viver a forma Congregacional de igreja. Veremos seu estabelecimento na Nova Inglaterra1 como construtores de uma nação e o seu pioneirismo em diversas obras hoje reverenciadas mundialmente. Acompanharemos sua chegada ao Brasil, desbravando essa nação para o Evangelho. A Nova Inglaterra é uma região extraoficial dos Estados Unidos de grande valor histórico. Ela compreende os Estados de Connecticut, Maine, Massachusetts, New Hampshire, Rhode Island e Vermont. 1
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Sou partidário do pensamento de que um livro só deve ser escrito se for necessário. Assim, o fato de não haver, praticamente, nada em língua portuguesa que trabalhe largamente a fundamentação e história da tradição Congregacional desde o começo, me levou à escrita. Faço isso porque penso que é um patrimônio grande demais para ficar escondido. Os leitores brasileiros de outras tradições protestantes, e, principalmente, os que fazem parte do Congregacionalismo pátrio, têm o direito de se emocionar com esta história, por isso ela é aqui revivida. Esta é de certa forma minha homenagem a estes bravos que foram incansáveis na defesa deste sistema de governo da igreja local, pois é por causa deles que hoje sou Congregacional por convicção. Como contar toda história seria impossível, aqui teremos apenas o que chamaríamos de esboço. Muitos nomes e fatos simplesmente aconteceram nesta tradição, mas não foram registrados, e muitos foram registrados por outros e não estão aqui por minha exclusiva incompetência de pesquisador. O que você vai ler é apenas uma noção de como era a igreja local no Novo Testamento, e como os Congregacionais que hoje conhecemos começaram e se desenvolveram a partir das duas mais importantes tradições congregacionalistas: a inglesa e a norte-americana. E notar como um povo com uma missão bem definida, que sabe quem é e o que quer, pode se tornar perigoso e imbatível. Também é bom saber que a maior parte do texto será dedicada ao Congregacionalismo antes de chegar ao Brasil, pois para a história deste movimento em nossa terra temos, sim, boa literatura,2 então não vamos aqui repetir o que outros tão bem já escreveram. Mas, é claro que os principais acontecimentos relacionados ao Brasil terão lugar reservado nestas páginas. Quem escreve, escreve sempre para si, do jeito que gosta e como esperaria que um livro fosse feito. Em minha opinião, um livro de história é acima de tudo um repositório de fontes. Assim, na minha escrita segui o costume de historiadores ingleses como Christopher Hill e Antonia Fraser, que são especializados no período quando surge o Congregacionalismo Para o Congregacionalismo brasileiro veja: FORSYTH, William B. Jornada no Império (São Paulo: Fiel, 2006); CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta (São Bernardo do Campo: Edição do Autor, 2001); CESAR, Salustiano Pereira. O Congregacionalismo no Brasil – Fatos e Feitos Históricos (Rio de Janeiro: Associação Evangélica Fluminense, 1983); SANTOS, Lyndon de Araújo. Robert Reid Kalley: um missionário diplomata na gênese do protestantismo luso – brasileiro (Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2012). 2
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naquelas terras (séculos XVI-XVII), e recheiam seus textos de notas de pesquisa.3 Eu gosto disso. Daí o grande número de notas de rodapé. Fiz assim para que o leitor curioso como eu possa sair dessa parca introdução e mergulhar em outros textos mais completos sobre os temas abordados (uma grave lacuna no texto é o trabalho das mulheres em toda esta história, isso porque os documentos simplesmente escondem-nas, um testemunho do machismo reinante no mundo historiográfico). A maneira das citações é a seguinte: toda vez que uma obra aparecer em um capítulo pela primeira vez, ela aparece com a bibliografia completa, autor, título, número da edição se houver, volume se houver, local, editora, data e página (p. ex: DALE, R. W. History of English Congregationalism (Weston Rhyn: Quinta Press, 2008), p. 90). A partir da segunda citação aparecerá apenas o autor, o título, número da edição se houver, volume se houver, e a página citada (p. ex DALE, R. W. History of English Congregationalism, p. 90). Quem sabe ao fim desta leitura o Congregacionalismo seja mais amado e respeitado por seus herdeiros de hoje, e quem sabe estes herdeiros louvem ao Deus Criador dos céus e da terra por serem participantes desta tão importante tradição eclesiástica. Se estas poucas linhas que se seguem conseguirem acender a chama para um amor mais renovado por esta tradição Protestante, e despertar pessoas para conhecerem mais e buscarem o cerne do Congregacionalismo, me dou por satisfeito. Se virtudes há em tudo o que você vai ler, credite isso às minhas fontes de pesquisa, aos autores que copiei. Se defeitos forem achados, e vão ser achados, credite-os a mim, é a minha marca registrada neste trabalho. Aqui está minha eclesiologia, aqui está a minha tradição. Joelson Gomes
Em português indico os seguintes livros nos quais o leitor pode ver este expediente: FRASER, Antonia. Oliver Cromwell: uma vida (Rio de Janeiro: Record, 2000); A Conspiração da Pólvora (Rio de Janeiro: Record, 2000); HILL, Christopher. A Bíblia Inglesa e as Revoluções do Século XVII (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003); O Mundo de Ponta – Cabeça (São Paulo: Companhia das Letras, 1987). Todos estes livros retratam o período do começo e desenvolvimento do puritanismo, e consequentemente do Congregacionalismo, na Inglaterra. 3
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UM “ENTRE VOCÊS NÃO PODE SER ASSIM (...)” (A organização das igrejas locais no Novo Testamento) “Então Jesus chamou todos para perto de si e disse: — Como vocês sabem, os governadores dos povos pagãos têm autoridade sobre eles e mandam neles. Mas entre vocês não pode ser assim. Pelo contrário, quem quiser ser importante, que sirva os outros, e quem quiser ser o primeiro, que seja o escravo de todos. Porque até o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para salvar muita gente” (Marcos 10. 42-45, NTLH) “Eu afirmo a vocês que isto é verdade: o que vocês proibirem na terra será proibido no céu, e o que permitirem na terra será permitido no céu. E afirmo a vocês que isto também é verdade: todas as vezes que dois de vocês que estão na terra pedirem a mesma coisa em oração, isso será feito pelo meu Pai, que está no céu. Porque, onde dois ou três estão juntos em meu nome, eu estou ali com eles” (Mateus 18. 18-20, NTLH)
L
ondres, Inglaterra. 19 de junho de 1567. Uma pequena igreja com cerca de cem irmãos se reúne secreta e disfarçadamente para cultuar a Deus no “Salão Plumbers”. Já fazia algum tempo que se encontravam naquele local, e entendiam que o lugar tinha sido uma providência divina. Tudo era muito calculado para não serem vistos, pois a Coroa real punia severamente quem se reunisse em grupos clandestinos fora da Igreja Anglicana. O culto começou de forma normal, os irmãos esperavam mais uma vez louvarem ao Deus do céu e ouvirem a pregação das verdades que acreditavam estar nas Escrituras. Mas... ... Nesse dia, suas vidas mudariam para sempre. Ouviu-se uma movimentação lá fora. Seriam mais irmãos chegando? Não. 23
Era a polícia real. Não se sabe como – se alguém os delatou às autoridades ou se foram descobertos por investigação – o que se sabe é que de pronto a casa foi invadida pela milícia sem cerimônias. Portas abertas com violência. Os irmãos são pegos de surpresa e acuados. Soldados aos gritos. Crianças e mulheres chorando. Ouvem a sentença: “em nome de Sua Majestade estão todos presos!”. Para a igreja Congregacional do Salão Plumbers chegara o dia de sofrer pelo Evangelho. Mas, como as coisas chegaram a este estado? Porque esses irmãos não puderam celebrar em paz naquele dia? Como a imposição de uma igreja única veio a ser obrigatória na Inglaterra? De onde esses irmãos tiraram a ideia de se reunirem fora da Igreja Anglicana? Esta história será contada neste livro. No entanto, nossa caminhada não seria clara se partíssemos daqui. Precisamos voltar ao começo. Voltar, mais precisamente, ao Novo Testamento, pois é lá onde as bases para a compreensão da igreja desses irmãos que foram presos estão assentadas.
I- O que se entendia por “igreja” (ekklêsia) no Novo Testamento? 1- O significado da palavra “ekklêsia” A palavra traduzida por “igreja” em nossas Bíblias é o termo grego “ekklêsia”. Palavra de uso secular que os cristãos do Novo Testamento empregavam para designar suas comunidades. À primeira vista, o mais normal seria os irmãos escolherem uma palavra do ambiente religioso da época para denominar suas comunidades. Todavia, há explicação. Eles escolheram esta palavra com um propósito. Vamos, pois, tentar desvendá-la, pois entendo que a forma como as primeiras comunidades cristãs se organizavam perde o mistério, se compreendermos esta palavra. Como o mundo grego antigo e os cristãos usavam a palavra ekklêsia? William BARCLAY nos dá a definição mais objetiva e precisa que conheço.
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Ekklêsia tem um pano de fundo grego. Nos grandes dias clássicos em Atenas a ekklêsia era a assembleia convocada do povo. Consistia em todos os cidadãos da cidade que não tinham perdido seus direitos civis. À parte do fato de que suas decisões deviam conformar-se às leis do Estado, seus poderes eram ilimitados para todos os efeitos. Elegia e demitia magistrados e dirigia a política da cidade. Declarava a guerra, fazia a paz, contratava tratados e planejava alianças. Elegia generais e outros oficiais militares. Alocava tropas para várias campanhas e as enviava da cidade. Era responsável, em última análise, pela maneira de conduzir todas as operações militares. Obtinha e designava verbas. Duas coisas são interessantes de se notar. Em primeiro lugar, todas as suas reuniões começavam com orações e sacrifícios. Em segundo lugar, era uma verdadeira democracia.4
Algumas vezes se encontra como significado de ekklêsia “chamados para fora”, mas esta definição não tem sustentação linguística e está praticamente em desuso atualmente.5 Na época do Novo Testamento, esta palavra era normalmente usada para designar uma reunião por qualquer motivo (At 19. 32, 39, 41- onde a palavra ekklêsia é traduzida por “assembleia”). Num lugar em que havia gente reunida, ali havia uma ekklêsia. Em Atos 19. 39 a palavra é usada para designar a reunião política regular do conselho da cidade de Éfeso para resolver seus problemas. John STOTT diz que esta assembleia se reunia três vezes ao mês.6 Encontramos o mesmo uso comum da palavra em textos como: Atos 7. 38; Hebreus 2. 12,7 onde o termo claramente não se refere a uma igreja cristã, mas é empregado pelo significado primário de “assembleia”, “congregação”, “reunião”, seja de que tipo for. No caso específico destas passagens, se aplica à reunião do povo de Israel no Antigo Testamento. O povo hebreu era uma ekklêsia não no sentido de comunidade religiosa estrita, mas de assembleia, reunião de Palavras Chaves do Novo Testamento, 2. ed. (São Paulo: Vida Nova, 2000), p. 45. Id. Ibid., p. 46. 6 A Mensagem de Atos (São Paulo: ABU, 1994), p. 349. 7 O texto correspondente citado em Hb 2. 12 é Sl 22.22 no qual a palavra que aparece é o hebraico qahal: ajuntamento, congregação, agrupamento, multidão, assembleia, comunidade. A palavra pode descrever vários tipos de ajuntamento: para um propósito malvado (Gn 49. 6; Ez 23. 47); uma congregação de malfeitores (Sl 26.5); a congregação dos santos, como no texto citado (Sl 22.22); a comunidade restaurada em Jerusalém depois do exílio (Ed 10. 8, 12, 14); assembleia de nações (Gn 35.11), ou de povos (Gn 28. 3); uma grande massa de pessoas (Nm 22. 4). Para detalhes: Dicionário Hebraico do Antigo Testamento de James Strong, em: Bíblia de Estudo Palavras – Chave: Hebraico e Grego (Rio de Janeiro: CPAD, 2011), pp. 1899-1900. 4 5
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pessoas. De forma objetiva podemos usar as palavras de Atos 19. 40-41 para dar a definição da palavra: “Porque também corremos perigo de que, por hoje, sejamos acusados de sedição, não havendo motivo algum que possamos alegar para justificar este ajuntamento. E, havendo dito isto, dissolveu a assembleia (ekklêsia)”. (Destaques meus). É clara a identificação direta de ekklêsia com “ajuntamento”, “reunião”. Deve ser notado que havia quatro marcas no uso clássico da palavra ekklêsia: Uma assembleia local;
Uma assembleia autônoma; Uma assembleia com qualidades definidas; Uma assembleia conduzida por princípios democráticos.
2- O uso da palavra “ekklêsia” pelos autores do Novo Testamento Vimos que no uso secular ekklêsia era uma reunião, assembleia, convocada com um propósito, agora, observe alguns aspectos do uso desta palavra pelos autores do Novo Testamento.
No Novo Testamento ekklêsia podia ser a reunião de crentes em uma casa (Mt 18. 15-17; Rm 16. 4-5, 23; 1Co 16. 19; Cl 4.15; Fm 2). É nesse sentido que a palavra aparece na esmagadora maioria das vezes; No Novo Testamento ekklêsia podia ser a reunião de crentes em uma determinada cidade (At 11. 26; 1Co 16. 1-2; 2Co 8.1); No Novo Testamento ekklêsia podia ser a reunião de crentes em uma determinada região, como em Atos 9. 31: “A igreja, na verdade, tinha paz por toda a Judeia, Galileia e Samaria, edificando-se e caminhando no temor do Senhor, e, no conforto do Espírito Santo, crescia em número”. Observe que aqui a palavra engloba todos os cristãos das regiões citadas. Mas, é importante notar algo; mesmo havendo esse uso da palavra “ekklêsia” no singular, Werner de BOOR é muito claro ao escrever: Neste texto Lucas emprega a palavra “igreja” no sentido de reunião de muitas “congregações” em um grande corpo pela 26
primeira e única vez em sua obra historiográfica. Ele o faz de maneira muito espontânea e sem dar maiores explicações. Isso corresponde a uma poderosa circunstância simplesmente dada pela atuação de Deus, e não por todas as ponderações dogmáticas ou pelo direito eclesiástico. Sem dúvida o jovem cristianismo – também ainda sob Paulo – vivia de modo “congregacionalista”, ou seja, em igrejas locais isoladas e independentes. Porém por princípio ela somente podia ser a igreja una do único Senhor e Messias, assim como também havia somente um único Israel de Deus. Consequentemente, é a igreja una, atravessando toda a Judeia, Galileia e Samaria, que desfruta de paz.8
“Igreja” no singular em Atos 9.31 é apenas um recurso literário usado por Paulo. O texto é muito similar a Atos 16.5: “Assim as igrejas ficavam mais fortes na fé, e o número de cristãos aumentava cada dia mais”, onde ele usa o plural “igrejas” apropriadamente. Não, Paulo não tinha na cabeça que os cristãos da Judeia consistiam numa “única igreja”, pois ao citá-los outra vez ele escreve: “E não era conhecido de vista das igrejas da Judeia, que estavam em Cristo” (Gl 1. 22, destaque meu).
Por fim, algumas vezes no Novo Testamento ekklêsia descreve a reunião dos salvos por Deus em todas as épocas; a comunhão de todos os verdadeiros cristãos, em todos os tempos e lugares, sem distinção (Cf. Ef 1. 22-23; 5. 25-26; Cl 1. 18-24). Os que já estão com Cristo (Hb 12. 23); os que ainda estão na terra, e os que ainda serão salvos. A ênfase aqui é num “corpo espiritual universal”, invisível, não numa organização terrena. É um organismo vivo, não uma igreja local ou nacional. O emprego do termo “igreja” se referindo à totalidade dos cristãos na terra ou a uma denominação, não existe no Novo Testamento. Quando Jesus fala da edificação de “Sua” ekklêsia ele se refere a este organismo universal, e não a uma denominação ou instituição humana (Mt 16. 1618).
Vale salientar que das 114 vezes9 que a palavra ekklêsia aparece no Novo Testamento, 93 se refere à reunião de um grupo local.10
Atos dos Apóstolos – Comentário Esperança (Curitiba: Editora Esperança, 2003), p. 151. Aspas dele. 9 Mateus 03 vezes; Atos 20 vezes; escritos de Paulo, sessenta e seis vezes; Hebreus, uma vez; Tiago, uma vez; 3ª João, três vezes; Apocalipse, vinte vezes. 8
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Deve-se ter em conta que a distinção que se costuma fazer entre comunidade = comunidade local, conjunto dos cristãos que habitam em um determinado lugar, e Igreja = conjunto da totalidade do povo de Deus ou conjunto universal dos cristãos, é uma distinção que não existe no NT, isso se acha intimamente relacionado com o fato de que o cristianismo primitivo não concebia primariamente a ἐκκλησία como uma entidade organizada, mas como uma dimensão teológica. Nem a ecclesia universalis é um agrupamento meramente secundário das diversas igrejas particulares autônomas, nem a comunidade local é uma unidade organizativa subordinada dentro de a Igreja universal. Longe disso, uma e outra – a assembleia local dos cristãos e a comunhão supralocal dos crentes – são expressões igualmente legítimas da ἐκκλησία criada por Deus.11
Esta forma de emprego da palavra pelos autores bíblicos demonstra o que eles entendiam que a ekklêsia significava. Para eles não é algum clero, o número de membros, oficiais, ou o lugar da reunião que determina se existe uma ekklêsia cristã. Se a reunião é feita em nome, sob a autoridade de Jesus Cristo, ali ela está.12 A ênfase está na reunião em si e não na forma ou local. “Os cristãos primitivos não dispunham de edifícios chamados “igrejas”; eles não “iam à igreja”. Eles eram a igreja e, em certas ocasiões e lugares designados, reuniam-se “como” igreja (1Co 11.18)”.13 Isso estabelece a norma de uma vez por todas: o significado original de ekklesia “igreja”, não era uma hiperorganização de funcionários espirituais, desligada da assembleia concreta (um clero). Denota uma comunidade reunindo-se num local específico, a uma hora específica, para uma ação específica – uma igreja local, embora formasse com as outras igrejas locais uma comunidade abrangente, a igreja inteira (...). Assim, cada igreja local torna a igreja inteira plenamente presente; de fato, pode ser entendida- na GARRET, James Leo. Teologia Sistematica, tomo II. (El Paso: Casa Bautista de Publicaciones, 2000), pp. 464-465. 11 BALZ, Horst e SCHNEIDER, Gerhard (Eds.). Diccionario Exegético del Nuevo Testamento, vl. I, 3. ed. (Salamanca: Ediciones Sígueme, 2005), p. 1254. 12 “... nem a significância da cidade, nem o tamanho numérico da assembleia determina o emprego do termo. O que conta é a presença do Cristo entre aquelas pessoas (Cf. Gl 3:1) e a fé que Ele alimenta nelas”. BROWN, Colin. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, vl. II (São Paulo: Vida Nova, 1989), p. 403. 13 FEE, Gordon D. Paulo, o Espírito e o Povo de Deus (São Paulo: Vida Nova, 2015), p. 102. Destaques dele. 10
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linguagem do Novo Testamento – como povo de Deus, corpo de Deus e edifício do Espírito.14
A confusão atual que se faz aplicando esta palavra a um templo, ou superestrutura denominacional não tem respaldo nem linguístico, nem na compreensão das pessoas do Novo Testamento. Os cristãos primitivos não concebiam a igreja como um lugar de culto como se faz hoje. Igreja significava um corpo de pessoas numa relação pessoal com Cristo. Esse grupo se reunia em casas (At. 12: 12; Rm 16: 5, 23; Cl. 4:15; Fm 1-4), no templo (de Jerusalém) (At. 5:12), nos auditórios públicos de escolas (At. 19: 9). E nas sinagogas enquanto lhes permitiam fazer isso (At. 14: 1,3; 17: 1; 18: 4). O lugar não era tão importante como o modo de se encontrarem para ter comunhão uns com os outros e cultuar a Deus.15
Olhando a definição e os usos deste termo pelos autores bíblicos, duas coisas ficam evidentes: “participação ativa do povo e autonomia da assembleia”. Isso diz muito sobre o que os cristãos primitivos estavam querendo dizer quando escolheram essa palavra para suas reuniões, sobre como eles se organizavam. *** Depois do que vimos podemos tirar uma conclusão. Se quem fazia parte da ekklêsia grega; quem era ativo nas suas decisões, eram todos os cidadãos que tinham direitos civis legítimos na polis (cidade grega), então, se transportarmos isso para o âmbito da ekklêsia cristã a analogia é simples: deve tomar parte nas decisões da assembleia cristã não uma classe de líderes, mas todos os seus membros com direitos legítimos. Será que era assim que os autores do Novo Testamento enxergavam os membros da ekklêsia (igreja); tomando-os como participantes ativos nas suas decisões? É o que procuramos demonstrar abaixo. KÜNG, Hans. Igreja Católica (São Paulo: Objetiva, 2002), p. 30. CAIRNS, Earle E. O Cristianismo Através dos Séculos: uma história da Igreja Cristã, 2. ed. (São Paulo: Vida Nova, 2008), p. 70. Para um estudo exaustivo sobre o uso da palavra “igreja” no Novo Testamento veja: GARRET, James Leo. Teologia Sistematica, tomo II. pp. 461- 467; BALZ, Horst., SCHNEIDER, Gerhard. (eds.). Dicionario Exegético del Nuevo Testamento, vl. I, 3. ed. pp. 1250-1268. 14 15
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II-
A organização da igreja (ekklêsia) local no Novo Testamento
O tema “governo da igreja” não é tão discutido no Brasil como na América do Norte, especialmente entre os Batistas.16 Será que é porque os nossos teólogos não acham o tema importante? Bem, falando sobre o caso, CALVINO, a quem muitos seguem como voz divina, disse uma vez: Se todas as coisas devem ser feitas com ordem e decoro nas assembleias cristãs (1Co. 14.40), então nenhum assunto deve ser com maior diligência cuidado do que a constituição do governo eclesiástico, pois nada é mais perigoso que algo gerido na desordem.17
Para ele era claro que precisamos estudar este tema com afinco e responsabilidade, e nisso eu concordo. Em nossa língua, literatura sobre a fundamentação neotestamentária do governo Congregacional praticamente inexiste, levando ao fenômeno de termos igrejas que têm nome de Congregacional, mas que, na prática, funcionam como igrejas presbiterianas ou episcopais. No mais das vezes isso se deve à formação e à literatura que consomem, sem condições de fazer análise crítica por não terem noção do que seja Congregacionalismo. Por isso, a minha tentativa aqui é de ao menos tocar de leve a questão. Por definição Congregacionalismo é:
Veja por exemplo esta pequena lista de publicações recentes: COWEN, Gerald P. Who Rules the Church? Examining Congregational Leadership and Church Government (Nashville: Broadman & Holman, 2003); TOON, Peter. et al. Who Runs the Church? 4 Views on Church Government (Counterpoints; Grand Rapids: Zondervan, 2004); BRAND, Chad Owen., NORMAN, R. Stanton. Perspectives on Church Government: Five Views of Church Polity (Nashville: Broadman & Holman, 2004); Midwestern Journal of Theology 2/1 (Fall 2003); SBJT 7/3 (Fall 2003); DEVER, Mark. Nine Marks of a Healthy Church (Wheaton: Crossway, 2000), com tradução em português pela editora Fiel. MERKLE, Benjamin L. The Elder and Overseer: One Office in the Early Church (Studies in Biblical Literature 57; New York: Peter Lang, 2003); NEWTON, Phil A. Elders in Congregational Life: Rediscovering the Biblical Model for Church Leadership (Grand Rapids: Kregel, 2005), com tradução em português pela editora Fiel. 17 Institutas IV. 3,10. 16
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...uma companhia de crentes professos em Cristo, associados voluntariamente com base nas Sagradas Escrituras, para o culto público a Deus, para a observância das ordenanças cristãs, e para a ajuda e encorajamento mútuos, no cumprimento dos deveres cristãos. Tendo poder para eleger seus próprios oficiais, admitir e excluir membros, para possuir propriedade, e para administrar todos os seus problemas, independentemente do controle de qualquer homem ou grupo de homens, sejam quais forem. 18
Será que encontramos esta forma na ekklêsia do Novo Testamento? O que uma investigação na política das comunidades bíblicas nos revela sobre sua organização? No que segue neste capítulo, minha intenção é demonstrar como as igrejas da época bíblica eram administradas, para com isso vermos se o Congregacionalismo se fundamenta na Bíblia ou é mais uma invenção da história em meio a tantas outras. Um bom jeito de conhecer a estrutura de poder de um grupo é estudar como resolviam seus conflitos: havia alguém que ordenava tudo ou as decisões eram tomadas de forma livre? No nosso caso, externamente as igrejas do Novo Testamento eram autônomas ou submissas a um poder central? Internamente existia um conselho legislador na ekklêsia ou as decisões eram tomadas livremente por todos os participantes? Vamos olhar isso na vida cotidiana das igrejas primitivas começando pelos Evangelhos. 1- Os Evangelhos Nos Evangelhos a palavra ekklêsia só ocorre duas vezes e em Mateus (16.18; 18.15-20). A primeira é uma referência a Igreja Cristã de forma geral, o povo que o Senhor Jesus veio edificar: “Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16.18). O texto não dá informações sobre sua organização, nem poderia, pois a referência é aos salvos como organismo vivo, não uma comunidade local, é uma realidade teológica, não terrena. Agora, observe que se olharmos a segunda ocorrência da palavra notamos que já ali temos alguns dados a respeito de como os irmãos das igrejas compreendiam suas estruturas de poder.
General Conference of the Congregational Churches of Maine. A Manual of Congregationalism (Portland: Hyde & Lord: 1848), p. 22. Tradução minha. 18
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"Se o seu irmão pecar contra você, vá e, a sós com ele, mostre-lhe o erro. Se ele o ouvir, você ganhou seu irmão. Mas se ele não o ouvir, leve consigo mais um ou dois outros, de modo que ‘qualquer acusação seja confirmada pelo depoimento de duas ou três testemunhas’. Se ele se recusar a ouvi-los, conte à igreja; e se ele se recusar a ouvir também a igreja, trate-o como pagão ou publicano (Mt 18. 15-17 – NVI, destaque meu).
Quando se lê este texto com atenção uma coisa fica muito clara: segundo as palavras de Cristo a decisão final de um problema na ekklêsia local, repousava na própria congregação. Ela era a última instância. As pessoas que leram isso na época que Mateus escreveu entenderam, porque essa com certeza era a sua prática. Senão estas palavras de Jesus em Mateus 18 não fariam sentido algum. Veja que não existe aqui nem sombra de um poder central como instância a quem se recorrer (bispo, conselho, presbitério, ou cabeça institucional); não existe uma central a quem se procurar para dar a solução do caso em nenhuma das instâncias colocadas no texto. O recurso final é a ekklêsia reunida para este fim com Cristo, Seu único Cabeça, dando a sanção por meio deles (20). Nesse sistema descrito por Jesus o povo é o instrumento da decisão dEle; age sob a vontade, decisão, autoridade dEle. Esta passagem é de extrema importância para sabermos como os irmãos da época em que o Evangelho de Mateus foi escrito19 entendiam as questões de direção e poder na igreja local. Se eles tinham uma hierarquia piramidal, um clero, um chefe humano, ou coisa semelhante para dar a direção em seus problemas cotidianos, ou se tudo era resolvido pela comunidade local em reunião. Uma leitura sem paixão desta passagem dificilmente nos fará chegar a uma conclusão diferente da que chegou Leonhard GOPPELT: Os membros da igreja, não qualquer encarregado especial, devem ocupar-se com os que andam em caminho errado, ensejar-lhes retorno ao caminho reto e perdoar-lhes com autoridade. Medida extrema: a assembleia da igreja exclui aquele que não se deixa demover de seu pecado.20 Hoje é comum afirmar que Mateus foi escrito entre 40 e 63 d.C. Para um tratamento mais completo sobre o assunto com um estudo comparativo entre as datas propostas pelos estudiosos e seus prós e contras veja: MAUERHOFER, Erich. Introdução aos Escritos do Novo Testamento (São Paulo: Vida, 2010), pp. 107-115. 20 Teologia do Novo Testamento, 3. ed. (São Paulo: Teológica, 2003), p. 463. 19
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Estas palavras de Cristo em Mateus 18. 15-20 não poderiam ser dirigidas a nenhum sistema de governo de igreja que não fosse o Congregacional onde as congregações locais são completas e soberanas. Um Congregacional que conhece seu sistema entende que a decisão da assembleia (ekklêsia) é a vontade de Cristo através do Seu povo. Não é uma democracia estrita, mas uma teocracia. 2- Os Atos dos apóstolos Mas, e quando os apóstolos estavam vivos não eram eles os chefes que comandavam as igrejas? O livro dos Atos dos Apóstolos mostra de forma clara como todas as comunidades cristãs primitivas tratavam seus problemas, mesmo com os apóstolos entre eles.
a) Quando os primeiros discípulos em Jerusalém se reuniram após a ressurreição de Cristo deliberaram que alguém deveria ocupar o lugar de Judas Iscariotes, o traidor que havia se enforcado (At 1. 15-20). Agora note o processo usado para resolver esta questão: “Então, propuseram (gr. istemi: propor, recomendar)21 dois: José, chamado Barsabás, cognominado Justo, e Matias” (At 1.23). A pergunta lógica que deve ser feita é: quem propôs? O contexto imediatamente anterior responde: Naqueles dias, levantou-se Pedro no meio dos irmãos (ora, compunha-se a assembleia de umas cento e vinte pessoas) e disse: Irmãos, convinha que se cumprisse a Escritura que o Espírito Santo proferiu anteriormente por boca de Davi, acerca de Judas, que foi o guia daqueles que prenderam Jesus (...). É necessário, pois, que, dos homens que nos acompanharam todo o tempo que o Senhor Jesus andou entre nós, começando no batismo de João, até ao dia em que dentre nós foi levado às alturas, um destes se torne testemunha conosco da sua ressurreição (At 1.15-16, 21-22, ênfase minha).
Após esta leitura é lógico que foram os “irmãos” – no meio de quem Pedro se levantou – que propuseram os nomes de José e Matias, pois é para eles que Pedro fala, relata o problema, e o verso 23 diz “Então, propuseram...”. O fato é que toda a comunidade é chamada a dar sua participação na solução LOUW, Johannes., NIDA, Eugene. Léxico Grego-Português do Novo Testamento (São Paulo: SBB, 2013), p. 382. 21
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de um caso simples, mesmo com os apóstolos entre eles. E o versículo 26 é ainda mais esclarecedor: “E os lançaram em sortes, vindo a sorte recair sobre Matias, sendo-lhe, então, votado (gr. sugkatepsêfisthê: ser escolhido por voto)22 lugar com os onze apóstolos”. Esse primeiro fato relatado nas origens da ekklêsia cristã mostra que ao menos no começo a liderança das igrejas locais era compartilhada. Aqui o escritor Lucas é claro em dizer que após todos os trâmites, o substituto de Judas foi escolhido pelo voto da comunidade (ekklêsia). Ela é considerada o órgão da vontade divina na escolha de Matias.
b) Depois, quando aconteceu um problema na ação social que a igreja em Jerusalém praticava veja o que os apóstolos fizeram: Então, os doze convocaram a comunidade (gr. plêthos: multidão) dos discípulos e disseram: Não é razoável que nós abandonemos a palavra de Deus para servir às mesas. Mas, irmãos, escolhei (gr. episkeitomai: escolher ou selecionar com base em cuidadosa investigação)23 dentre vós sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria, aos quais encarregaremos deste serviço; e, quanto a nós, nos consagraremos à oração e ao ministério da palavra. O parecer agradou a toda a comunidade; e elegeram (gr. eklegomai: escolher, eleger) Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timão, Pármenas e Nicolau, prosélito de Antioquia (At 6.2-5, destaques meus).
Observamos que mais uma vez, neste caso, todo o processo foi feito pela comunidade local, não pelo grupo dos apóstolos que nela estava. Do jeito que a passagem foi escrita, nos dá a ideia de que realmente era a intenção dos apóstolos fazer todos participarem das decisões. Temos três passos claros: eles convocam a comunidade; eles pedem à comunidade que escolha os diáconos, e a comunidade age elegendo. Não é difícil saber que só no Congregacionalismo isso acontece.
c) Em Atos 14.21-23 nos é dito que Paulo e Barnabé promoviam a eleição de presbíteros para as igrejas locais recém-formadas. Devemos prestar atenção a isso, pois temos aqui uma palavra que faz muita diferença. No
RIENECKER, Fritz., ROGERS, Cleon. Chave Linguística do Novo Testamento Grego (São Paulo: Vida Nova, 1995), p. 195. 23 Idem, p. 325. 22
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verso 23 aparece o termo grego: cheirotonéô: “votar, eleger pelo voto erguendo as mãos, apontar”.24 Comentando este texto, CALVINO, que tinha ideias presbiterianas quanto à política eclesiástica, é honesto ao dizer: Lucas, de fato, narra que Paulo e Barnabé constituíram presbíteros nas igrejas, mas explica que isso foi feito por sufrágio ou, como diz o termo grego, mediante a voz do povo (At. 14.23). Portanto, os dois escolheram, mas, conforme o costume dos gregos testemunhado pelos historiadores, a multidão toda, erguendo as mãos, indicou quem queria.25
Depois de analisar o versículo veja a conclusão a que chega Ralph EARLE: O verbo grego é cheirotoneo, que vem de cheir, “mão”, e teino, “esticar”; i.e., “esticar a mão”. Seu significado original era “votar esticando a mão”, como era feito na ecclesia de Atenas, ou assembleia livre de cidadãos eleitores. Aparentemente, esta é a conotação da palavra na única passagem onde ocorre no Novo Testamento (2Co 8.19). Este termo também foi usado com um sentido mais genérico de “nomear”. Ramsay acredita que as congregações dessas cidades da Galácia tinham voz na escolha dos anciãos. A Primeira Epístola de Clemente — escrita aproximadamente no ano 95 d.C. — diz que os apóstolos nomeavam os anciãos. Depois de discutir mais longamente este assunto, Alexander expressa a sua preferência pelo que ele chama de “o verdadeiro significado entre extremos opostos”. Ele escreve: “O fato de este verbo expressar tão claramente o que Paulo e Barnabé fizeram significa apenas que eles nomearam ou ordenaram esses anciãos sem determinar a forma da eleição ou a forma da ordenação. No entanto, o uso particular dessa expressão, que originalmente significava o voto de uma assembleia, é suficiente para justificar a nossa suposição de que o método de escolha era o mesmo que foi registrado (...) em 6.1-6, onde consta explicitamente que o povo escolheu os sete anciãos que foram depois ordenados pelos doze”. Parece que esta é a melhor conclusão a que podemos chegar.26
LOUW, Johannes., NIDA, Eugene. Léxico Grego - Português do Novo Testamento, p. 325; RUSCONI, Carlo. Dicionário do Grego do Novo Testamento (São Paulo: Paulus, 2003), p. 493; ROBERTSON, A. T. Comentario al Texto Griego del Nuevo Testamento – obra completa (Terrassa: Clie, 2003), p. 315. 25 Institutas, IV. 3. 15, negrito meu. 26 EARLE, Ralph., MAYFIELD, Joseph H. João a Atos: Comentário Bíblico Beacon, vl. 7 (Rio de Janeiro: CPAD, 2006), p. 316. 24
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