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CINERGIA Revista NĂşmero II | Setembro 2012


Editorial

por João Palhares Há os filmes muito vistos mas pouco discutidos e há os filmes pouco vistos mas muito discutidos. Sem me alongar muito nas consequências disso, escrevo apenas que é o ponto de partida para este segundo número da Cinergia. Se o blockbuster é amplamente visto como idiota e infantil, há algum cinema português que é ignorado por batalhas políticas incessantes entre quem é pela criação de uma “Indústria” e quem é pelo “cinema de autor” (aquele que vos escreve é por nenhum) e ao qual não é dada uma oportunidade por ser levado de arrasto nesse turbilhão de discussões. Mas bem, crie-se uma Indústria, há casos de sucesso para países com a nossa dimensão. Na Holanda e logo no segundo filme (Turkish Delight), Paul Verhoeven passou a barreira dos três milhões de espectadores (qualquer coisa como 25% da população). Em Portugal, um Avatar nem 10% do país leva às salas. Isto são tudo questões muito complicadas, que têm que ver com políticas de distribuição, divulgação, cultura e sociedade, mas o que me parece simples é que é um paradoxo completo o cinema pedir para ser comercial. Pedir para ser comercial... Em Portugal, o cinema é comercial por ser feito de determinada maneira, é só uma questão de causa e de simular formas. No resto do mundo é por dobrar ou triplicar os orçamentos, há causa e efeito.. É que as coisas ou são ou não são, acho que aqui não há meios termos. Voltando por um momento aos temas que fazem este número, há blockbusters que precisam de ser elogiados e analisados como os filmes que são, porque nalguns casos (mesmo que poucos) é um exercício proveitoso. Pode haver labor criativo mesmo

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no que se vende como tudo menos criativo ou estimulante em campanhas banais. Se nos anos 40 e 50, durante o código Hays, houve quem trabalhasse nas entrelinhas pela identidade e através dos géneros (western, musical, film-noir), no blockbuster há quem faça o mesmo mas por outras razões (não é a censura política, é uma questão de dinheiro e patrocinadores) e através doutros géneros (fantasia, ficção-científica e acção). E é assim que filmes como G remlins, Predato r, Al iens, He at, entre outros, se parecem distinguir da mediocridade dominante. Mas como para tudo, é preciso o tempo e a paciência para reconhecer o valor de quem faz certos blockbusters. Já “o cinema português escondido”, é o cinema que passa lado das novas vagas, das batalhas já referidas no primeiro parágrafo e da fé no “filme que vai salvar o cinema português”. Há muito engano nestas religiões e pratica-se o salvamento do cinema só com mais cinema, que também é preciso, mas sem dar a ver o velho espólio a novas gerações com restauros, re-lançamentos e edições em DVD. Há mais palestras sobre cinema nacional em Portugal do que exibições das obras de António Reis e Margarida Cordeiro, António Campos ou Jorge Silva Melo. Mas estas coisas são melhor desenvolvidas nos capítulos respectivos, portanto adiante. Entrevistámos, para este número, Manuel Mozos e Filipe Melo. A entrevista a Filipe Melo é antiga, data de 2010, mas ressuscitámo-la por parecer fazer algum sentido. E entrevistámos Manuel Mozos nos Encontros Cinematográficos da Guarda do ano passado, uma das ocasiões raras em que se


mostra cinema praticamente invisível (X avier, Mo vimento das Coisas). Agradecemos desde já aos dois, a oportunidade. No passado mês de Maio assistimos a dois acontecimentos que vão marcar os próximos meses do cinema e da vida portuguesa: a morte de Fernando Lopes (a Cinemateca fez-lhe uma lindíssima homenagem, com belíssimos textos de quem o conhecia e admirava) e a projecção de excertos de filmes portugueses na Assembleia da República como forma de protesto aos cortes de 100% para o sector e ao adiamento da Nova Lei do Cinema (Nova Lei, essa, que foi recentemente aprovada). Mas ninguém sabe como vai ser o futuro. Os tempos são outros e hoje só não faz um filme quem tem melhores formas de ocupar o tempo, que a coisa agora é mais uma questão de triunfo da vontade sobre a disposição (mas claro que é melhor com subsídios). Os ofícios do cinema e os da crítica têm que estar atentos às mudanças das plataformas de exibição e até ao próprio “fazer” dos filmes. O cinema já não é só coisa que esteja dependente de estreia em sala ou em festivais de cinema (se calhar nunca foi) ou duma equipa gigantesca e agora merece outra postura, para que não se perca no tempo. Tem que haver uma procura pelos tesouros escondidos destes tempos, mesmo que seja no Vimeo, mesmo que seja em comunidades de Torrents, mesmo que seja no MUBI. Tem que se criar uma responsabilidade conjunta que consiga abarcar todas estas realidades e pluralidades de exibição, alargá-la a círculos críticos, políticas de subsídios, métodos de rodagem, etc. É uma tristeza que a película esteja a desaparecer mas é preciso aproveitar o máximo possível dessa realidade e quase como se se estivesse a coroar um novo herdeiro ao trono... (O cinema morreu, viva o cinema!) Mais uma vez, e como no editorial da edição

anterior, deixo os meus agradecimentos a quem tornou possível este número: Afonso Brito, Álvaro Martins, Ana Martins, António Lopes, Carlos Natálio, Edmundo Cadilha, Filipe Melo, Gonçalo Franco, Ivo Brito, Iúri Silvestre, João Lameira, José Bértolo, Luís Mendonça, Manel José, Manuel Mozos, Manuela Penafria, Miguel Cunha, Ricardo Madeira, Rui Oliveira, Sabrina Marques e Vasco Medinas, bem hajam.

Edição número II Setembro 2012 Director: João Palhares Paginação: Gonçalo Franco Ajuda extraordinária à redacção: Luís Mendonça e Sabrina Marques; Textos: Álvaro Martins, António Lopes, Carlos Natálio, Edmundo Cadilha, João Lameira, João Palhares, José Bértolo, Luís Mendonça, Manuela Penafria, Miguel Cunha, Ricardo Madeira, Rui Oliveira, Sabrina Marques e Vasco Medinas; Entrevistas: António Lopes, Iúri Silvestre, Ivo Brito, João Palhares e Rui Oliveira; Ilustrações: Afonso Brito (Págs. 5/6, 16, 23, 29, 55, 72, 81 e 86), Ana Bartolomeu (Págs. 12, 18, 22 e 75), Manel José (Capa, Índice, Págs. 11, 26, 35/36, 66, 73/74 e Contra-Capa), João Palhares (Págs. 62 e 64) e Jaime Fernandes (Pág. 45); Revisão: João Palhares

CINERGIA

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Índice Edição número II Setembro 2012

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Editorial

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Elogio ao Blockbuster

11 Textos

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O Cinema Português Escondido

45 Textos

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Entrevistas

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Filipe Melo

81

Manuel Mozos

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Elogio ao Blockbuster O Tubarão, António Lopes First Blood, Vasco Medinas Aliens, Rui Oliveira Predator, Rui Oliveira Batman Returns, João Lameira Die Hard: With a Vengeance, João Palhares Heat, Ricardo Madeira M:I-2, Luís Mendonça Mission to Mars, Miguel Cunha

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Elogio ao Blockbuster “- Holy smoke! What was that? - Nothing. - What do you mean, nothing? That thingamajing is the granddaddy of all blockbusters!” Dab Dailey e Corinne Calvet em When Willie Comes Marching Home, de John Ford

Introdução Blockbuster como termo, percorre todo o século XX, tanto usado no mundo do espectáculo para peças ou filmes de sucesso, como para foguetões ou armas de guerra maciças. Faz parte do espírito “explosivo” dos Estados Unidos da América, de armar sensacionalismo e um espectáculo um bocado por trás de tudo. Até aos anos 70, houve vários blockbusters, de Gone With the Wi nd a D oc tor Zhiva go, passando por Going My Way, de Leo McCarey – cineasta injustamente esquecido – o que não houve foi um mercado pensado exclusivamente para eles (complexos comerciais, pipocas, coca-cola, pepsi, merchandising, etc, etc), coisa que passa a acontecer a partir de Easy Rider, Lo ve Stor y, The Gotfather e The Exorcist, que lançam os primeiros prenúncios dessa possibilidade e J aws de Steven Spielberg, filme que catapulta o blockbuster a fenómeno. A partir daqui, os estúdios estadunidenses passam a investir milhões de dólares não só na produção mas também na divulgação de vários filmes por ano, na esperança de se tornarem blockbusters. Sem injustiças em demasia para com Spielberg, Lucas e John Landis (e às vezes apetece, pelo menos com os dois primeiros) talvez se possa dizer que a “idade de ouro” do blockbuster seja a que vai de 1985 a 2000,

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por ser a altura em que cineastas como James Cameron, John McTiernan, Brian de Palma, Michael Mann ou Paul Verhoeven (entre outros) “tomam” Hollywood e são possíveis filmes como Terminator 2, Predator, Mission: Imposs ible, Heat e Basic Instinct, filmes que para além de serem sucessos retumbantes, são também palcos de obsessões pessoais (formais e temáticas) dos seus realizadores. A partir daí, a maior parte “sai de cena” - Brian de Palma com Mission to Mar s, Verhoeven com Ho ll ow Man e John McTiernan com Basic (tendo McTiernan sido o único a não fazer mais filmes) – e deixa de haver um núcleo pesado a dar “alma” ao blockbuster, sem por isso deixar de haver filmes interessantes, esporadicamente, de 2000 a esta parte e nestes contextos de produção.


Censuras Várias Pode-se falar também de “intrusos” ao esquema de produção como forma de exemplo (que é capaz de haver mais), nas pessoas de Joe Dante e John Carpenter, que têm grandes sucessos com G remlins e Es cape From NY e viram tudo do avesso com desconstrucções fabulosas em Gremlins 2 e Escape Fro m LA, as sequelas/remakes respectivas (e talvez superiores), filmes importantíssimos para compreender um e outro e o próprio sistema, de como há entraves e impedimentos para dizer e mostrar certas coisas e de como é preciso trabalhar nas entrelinhas para haver alguma identidade - algo do realizador - nos filmes. E aqui, todo o realizador tem as suas batalhas, podendo continuar ou dizer basta! James Cameron teve problemas com The Abyss, depois de uma ante-estreia que o forçou a ter de mudar o final do filme, McTiernan com The 13 th Warrior, filme que lhe foi roubado literalmente pelo guionista (Michael Crichton) e pelos produtores, e John Carpenter com Big Trouble in Little China, que o fez reconsiderar todo o sistema e voltar com dois extraordinários filmes de baixo-orçamento, Prince o f Darkness e The y Live. Tim Burton tem também a sua quota de problemas com as majors, particularmente com Ma rs Attacks !, cujo orçamento escalava a olhos vistos, deixando a produção e os estúdios em alvoroço e, por isso, sempre “em cima” dele. As Warners e as Paramounts deste mundo têm que prestar contas e fazer render tudo. Num fenómeno em cadeia e com parâmetros que ninguém percebe muito bem (a saber, o porquê de um filme ser feito de determinada maneira vá render mais, necessariamente), as liberdades fecham-se. Talvez fosse frutífero conceder a possibilidade de certos filmes não fazerem dinheiro possa ser culpa de produtores e companhias, também. Ou de críticos. Ou de ninguém, que a culpa morre sempre solteira, como se costuma dizer. O

caso de Heaven's G ate, o dito “filme terrível que acabou com as liberdades da “Nova Hollywood”, parece paradigmático de uma incapacidade de estúdio (ou teimosia) em vender um filme. Ao longo de toda a pós-produção foi só uma questão de estabelecer limites criativos e nunca de tentar perceber o “como vou vender este filme?”. E a incapacidade da crítica em avaliar o filme. O problema do controlo dos produtores (ou dos studio heads) sobre os filmes não é novo, e muito poucos realizadores fazem o que querem nestes casos, mas – há sempre um “mas” - isso não é sempre mau, ou melhor dito, não é necessariamente mau. Se para muitos casos, é um problema, para outros, se calhar é uma solução e uma benesse. Os filmes, depois de terminados, teimam em falar por eles próprios. E a verdade é que dezenas de realizadores usaram o sistema de géneros – ficção-científica, fantasia, policial, acção, aventura – para se manterem fiéis a si próprios. E não será verdade que a maioria desses filmes dos anos 80 são interessantes por haver esse conflito interno na produção? Num contexto tão vasto de produção e com milhares de envolvidos, é difícil ver donde vem a autoria. Como é também difícil saber ao certo o que é a autoria, em qualquer campo artístico. Neste em particular, saber exactamente o que é a “realização”, como a descrever, ao guião e às interpretações. Assumir estas dificuldades é o primeiro passo para entrar a fundo nos filmes. Mesmo quem não é controlado por produtores não é exactamente livre e trabalhar no mainstream americano - pelo turbilhão de problemas burocráticos e batalhas por controlo das rédeas do filme que implica - se calhar impede os realizadores de lidar com questões mais intrincadas.

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“Não consigo entender de mo do algum o problema da 'liberdade' ou 'falta de liberdade' de um ar tista. Ele nunca é livre. A nenhum grupo de pesso as falta mais liberdade. O artista está preso ao seu dom, à sua vocação. Por outro lado, ele é livre para escolher entre e xpres sar o seu t alento da ma neira mais p lena que cons egu ir, o u vender sua alma p or trint a moe das de pra ta. A f re nética busca de To sl toi, Do stoi evski e G og ol não fo i esti mul ada pela co ns ciência que tinham da sua vocação e do p apel que lhes estava destina do? Também e st ou conve ncido de qu e nenhu m ar tista trabalh aria para cumprir sua missão espiritual se soubesse que a sua obra nunca seria vista por algué m. Ao me smo temp o, po r ém, s empre qu e estiver a trabalhar, ele deve co lo car um véu entre ele e as outras pessoas, para se proteger contra a abordagem de temas genérico s, vaz io s e triv iais . Porqu e a co ncretiz ação das po ss ibi lida des cria tiva s de um ar tista só pode ser o btida através da honestidade e sinceridade totais, aliadas à co nsciê ncia de sua pr óp ria resp ons abi lida de p ara c om os o utro s. "

Palavras de Andrei Tarkovski, que deixam perceber que os problemas de liberdade na criação são sempre uma espada de dois gumes. Porque lidar com estas coisas é tentar superar as próprias capacidades e conhecimentos até perceber que é impossível. E isto fica tudo documentado. Há quem trabalhe constrangido por produtores e quem trabalhe constrangido com a consciência (embora toda a gente seja constrangida com

a consciência naquilo que faz, há é maneiras diferentes de lidar com isso). Se no primeiro caso se pode dizer que se tentou de tudo para que fosse doutra maneira, no segundo se calhar não. Resta é permanecer sincero durante todo o processo. Se o caminho é diferente (mas não tanto assim), o resultado é sempre o mesmo: há um filme. Que tem de respeitar algumas regras de estrutura e de montagem e que são sempre as mesmas.

Um Filme é um Filme É difícil – muito difícil – acreditar nisto. Difícil porque nos impede de desculpar certas coisas e pôr realidades em diálogo. Porque as formas estão lá e há sensibilidade para as avaliar. Difícil também porque é como pegar no touro pelos cornos. Se se dividem os filmes em campos (seja blockbuster ou “cinema de autor” ou ficção-documentário) é porque se torna mais fácil avaliá-los, mas é também porque há uma incapacidade nossa em os comparar e em os querer olhar de frente. Dois filmes de um só realizador podem ser mais diferentes entre si do que um blockbuster e um documentário.

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Se se insiste nisto é porque há muita preguiça argumentativa. Discursos iguais, “bases críticas” um bocado para tudo. Se é um blockbuster é o argumento e os actores, se é um filme de autor é a psicologia e os prémios, se é uma ficção é a realização e a fotografia, se é um documentário é a sociologia e a cobertura. Confundem-se constantemente os “discursos” com os “objectos”. E os filmes, onde estão? Temos que ser mais diferentes uns dos outros e pôr essa diferença em diálogo.


O que vale então a pena? O desafio é esse. Tentar descobrir o que vale a pena. Não é nem pode ser igual para toda a gente. O mainstream americano está cada vez mais abstracto, não há ponta de “coesão” ou “forma”, mesmo, na maior parte dos filmes (embora nos mostrem neste capítulo que há quem consiga usar isso em seu favor). É coisa que se nota pouco (e desta parte não há muitas certezas, atenção!) porque é tudo rapidíssimo, passa-se a velocidade relâmpago, serve para distrair. Quanto mais estímulos e bombardeamentos levarmos nos sentidos, mais aptos estamos a dizer que “sim” às coisas, a acreditar que elas pegam minimamente. Se há toda uma panóplia de nuvens de fumo a impedir-nos de ver as falhas de discurso (personagens a entrar e sair do nada, raccords inventados, falsos, inconsistências das mais variadíssimas ordens), nós não as vemos. Dir-se á que é o suspension of disbelief, mas a coisa parece outra: preguiça e incompetência compensada com “estouros” de pirotecnia, os gimmicks da indústria...

sível manter um discurso estético coerente “prestando contas às majors”. Houve quem chamasse a isso “cinema de autor”. Mas faz-se já tarde e pouco se disse. Venham então os filmes...

Adiante, e porque se disse “na maior parte dos filmes”, há então os blockbusters que valem a pena, os que se interessam pelo que filmam e conseguem fazer deslizar algum conteúdo pelos cantos. É possível disfarçar política e inteligência com géneros? Houve vários filmes que nos disseram que sim, de First Blo od a Starship Tro opers. É característica do blockbuster ser “pelo sistema” - é o que se diz -, não ter consciência ou moral própria, opinião, sobre o presente. No entanto, as obras de Paul Verhoeven ou Joe Dante (até Tim Burton) mostram-nos o contrário. De resto, terem sido possíveis filmes como Bas ic Instinct ou Sh owg ir ls(!) no seio de uma indústria como a americana, talvez seja impressionante. O percurso do holandês, aliás, vem demonstrar que é pos-

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Textos

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O Tubarão (Jaws)

de Steven Spilberg (1975, 124’) O realizador Steven Spielberg disse (e ainda diz) que O Tu bar ão foi um dos filmes mais difíceis que teve de realizar. Felizmente para ele, o filme tornou-se um dos mais gloriosos do género. O Tubarão é um filme muito peculiar, não só pela sua história, mas também pelo legado que deixou à indústria e história do Cinema. Foi um dos primeiros filmes a “quebrar” a barreira dos 9 dígitos relativamente às suas receitas e foi também o filme que tornou a época de verão como o período do ano mais dominante para os blockbusters. O filme O Tubar ão conta-nos a história da ilha de Amity - um resort no atlântico norte - que é aterrorizada por um gigan-

tesco tubarão branco. O primeiro sinal da presença deste animal terrível é o aparecimento dos restos mortais de Chrissie Watkins na praia, e é com a morte de Chrissie que o filme começa, numa das mais lendárias cenas da história do cinema de terror. Após o aparecimento do cadáver, o chefe da policia Brody (Roy Scheider) insiste que se fechem as praias até ser capturado o tubarão, no entanto esse desejo é-lhe negado pelo Mayor Larry Vaughn (Murray Hamilton), que, juntamente com o resto dos comerciantes da ilha, teme que a notícia de um ataque de tubarão ameace os lucros do comércio local e dos negócios imobiliários. Consequentemente, o tubarão ataca

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novamente (e novamente) e é aqui que Brody decide tomar acções e capturar definitivamente o animal, Brody junta-se ao oceanógrafo Hooper (Richard Dreyfuss) que é enviado para a ilha como especialista em tubarões. Juntos, debatem-se com o tubarão e com o Mayor Vaughn que continua a não querer encerrar as praias. Brody e Hooper alugam um barco de Quint (Robert Shaw), o mais temível e respeitável caçador de tubarões de Amity: é com este trio que começa uma épica batalha entre o homem e a besta. No final, o tubarão é morto e apesar da explosão estar muito bem elaborada, o que mais nos prende é a música. Em vez de ouvirmos uma música triunfante, damos por nós a ouvir uma sucessão de notas de piano completamente melancólicas, o que nós dá a impressão de que apesar de tudo a morte do tubarão é um evento triste. O capitão Quint é um dos maiores anti-heróis do cinema, é cómico e ameaçador ao mesmo tempo: a mítica cena em que nos conta a história do fatídico USS Indianapolis – onde ao longo de uma semana, enquanto esperavam ajuda, pelo menos 90 membros da marinha americana morreram devido a ataques de tubarões – é uma das mais arrepiantes e inesquecíveis performances gravadas em película. O Tubarão é o filme que iniciou a carreira de Spielberg e está entre os seus melhores trabalhos. Devido ao elevado número de blockbusters de sucesso que Spielberg realizou é fácil esquecermos que é um realizador com um enorme talento artístico. No entanto, O Tubar ão relembra-nos disso, o tempo do filme é soberbo, a mistura entre a comédia e o terror é feita com enorme mestria e observamos que apesar do seu agrado pelos efeitos especiais, não os sobrepõe à importância da história e das personagens. Podemos afirmar que o aspecto mais bri-lhante deste filme aconteceu por aci-

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dente. No inicio das rodagens, o tubarão mecânico ainda não funcionava perfeitamente (e durante as rodagens nunca funcionou na sua totalidade) e devido ao apertado orçamento e à pressão exercida pelos estúdios, o realizador viu-se obrigado a usar imagens subjectivas, apresentando-nos assim o ponto de vista do tubarão que em conjunto com a famosa música de John Williams cria a ilusão da sua presença. O medo do espectador é assim amplificado pelo facto de que durante a maior parte do filme, não conseguimos ver o tubarão, criando um enorme suspense que culminará com o confronto entre o homem e o animal no barco de pesca do capitão Quint. O Tubarão é um sucesso em quase todos os níveis, é aterrorizante sem ser grotesco, é espectacular sem ser incredível, ao longo do filme passa-se por momentos de acção impressionantes, mas é o humor, a emoção e o desempenho dos actores (e realizador) que torna este filme muito mais que um blockbuster. No entanto, apesar de ser um filme magnífico, existe uma espécie de calamidade no seu legado, já que foi O Tubarão que mostrou ao mundo que o cinema não é apenas um meio artístico, mas também uma maneira muito eficiente de fazer dinheiro.

António Lopes


First Blood

de Ted Kotcheff (1982, 93’) Num dia solarengo à beira de um lago rodeado por montanhas, um homem percorre uma estrada de terra. Veste um casaco verde da tropa e ao ombro traz um saco que se percebe ser do exército. Este homem que, saberemos mais à frente, é um veterano da guerra do Vietname, dá pelo nome que marcará várias gerações de heróis cinematográficos: John Rambo. Rambo chega a um pequeno aglomerado de casas à beira do referido lago e dirige-se a uma senhora que pendura a roupa na corda. Rambo, com um sorriso na cara (a única vez que Rambo sorri), pergunta à senhora por um colega de armas que pertencia ao seu batalhão, na respectiva guerra. A senhora revela que esse homem morreu devido a um cancro provocado pelas armas químicas usadas na guerra do Vietname. Aqui temos a primeira critica feita a esta guerra. Não só os soldados vietnamitas foram mortos pelas armas norte-americanas como os próprios soldados norte americanos sofreram o mesmo destino. É nesta parte que o semblante de John Rambo muda, foi como se o sonho do regresso ao seu país e toda a felicidade que isso carregava tivesse sido desfeito pelo despertar da realidade. A guerra não acabou, ela continua nos EUA e dentro de todos aqueles que de lá voltaram. A cena seguinte do filme introduz-nos o conflito do filme. Esta cena começa com Rambo a vaguear por uma estrada norte-americana. O tempo mudou, tornou-se cinzento, mais frio, e Rambo caminha com um semblante carregado. Atravessa uma placa de uma cidade que diz “Welcome to Hope”. De seguida é-nos apresentado o antagonista, o xerife da cidade que dá pelo

nome Teasle. O xerife sai da esquadra e entra no carro-patrulha. Rambo caminha pela entrada da cidade e cruza-se com Teasle. O xerife pergunta para onde Rambo vai, tecendo antes um comentário que deixa antever problemas: que Rambo, com o aspecto que tem, e com a bandeira norte-americana no casaco, veio ao sítio ideal para encontrar problemas. Rambo entra no carro do xerife e seguem os dois pela cidade. Dentro do carro, o xerife e Rambo têm o único dialogo que partilham durante todo o filme, e aqui ficam completamente definidas as posições de cada personagem. Assim como o conflito do filme. Então se por um lado temos o xerife, que representa a nação americana e que vê os veteranos da guerra do Vietname como assassinos, vagabundos, “Drifters”, por outro temos John Rambo, que representa aqueles que deram o sangue e suor por uma guerra inventada por aqueles que agora os odeiam e que ao regressarem ao seu país são tratados como pragas. “You got some place I can eat around here?” pergunta Rambo ao xerife, que responde “There’s a diner about 30 miles up the highway”. Rambo: “is there a law against me getting something to eat here?” Xerife: “Yeah, me”. Rambo:” Why are you pushing me, I haven’t done anything to you”. Xerife:”First of all , you don’t ask the questions around here, I do. Secondly, we don't want guys like you in this town. Drifters. First thing you know we got a whole bunch of guys like you in this town. That’s why!”. O carro do xerife atravessa a ponte e pára fora da cidade. Rambo sai do carro. O xerife volta para a cidade. Rambo hesita por uns segundos entre seguir viagem

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e voltar para a cidade. Se Rambo tivesse decidido seguir em frente e ignorado a provocação do Xerife daquela pequena cidade a história poderia ter sido toda diferente (ou não, Rambo teria encontrado outro Xerife que o teria provocado). Bom, mas para interesse da ciência, Rambo volta para a cidade de “Hope”. O Xerife vê-o a voltar atrás pelo retrovisor do carro e pára perto de Rambo, levando-o preso. Na cena da esquadra, os adjuntos do xerife - homens arrogantes e preconceituosos - levam Rambo ao limite, fazendo-o recordar situações de tortura que sofreu às mãos dos vietnamitas. Rambo “explode” e a maquina de guerra adormecida, acorda. Rambo foge da esquadra, rouba uma moto e embrenha-se pelo mato. O xerife e os adjuntos perseguem Rambo com o auxilio de cães. Um dos adjuntos, por outro lado, segue Rambo de helicóptero. Rambo acaba num precipício sem hipóteses de voltar para trás pois o Xerife está a pressioná-lo pelo único ponto de fuga possível. Rambo tenta descer o precipício. O Adjunto do xerife de helicóptero encontra Rambo a meio do precipício e dispara sobre ele. O xerife ordena que o adjunto não o mate, quer Rambo vivo. Rambo atira-se do precipício para cima de uma árvore. O adjunto do xerife continua a disparar sobre Rambo com o intuito de o matar. Rambo, escondido atrás da árvore para evitar os tiros, agarra uma pedra e atira-a contra o helicóptero. Com o impacto da pedra, o piloto da aeronave assusta-se e mexe o helicóptero, fazendo o adjunto do xerife desequilibrar-se e cair da aeronave. O adjunto morre no fundo do penhasco. Rambo anda até ao corpo e tira-lhe a arma e o casaco. O xerife e os restantes adjuntos, a pé, avistam o corpo do adjunto no fundo do penhasco e Rambo surge de mãos no ar a pedir clemência. O xerife e os adjuntos disparam sobre Rambo, que foge. “The guy is a war hero” soa via rádio. Aqui, chegam-nos informações sobre quem é, realmente John

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Rambo. Tanto para o espectador como para os personagens. Segue-se uma cena onde vemos as capacidades de guerrilha de Rambo, que derrota todos os homens que o perseguem com relativa facilidade. Os ajudantes e o xerife acabam por ser salvos e nesta fase revela-se uma nova personagem, o Coronel Trautman, que recrutou, treinou e comandou Rambo. O Coronel Trautman sente-se como um pai de Rambo. Porém, Trautman aparece para salvar aquela cidade do poder destrutivo de Rambo. No final, Rambo desce da montanha para a cidade trazendo destruição e caos para aquele calmo povoado. Como é de se esperar, nenhum dos polícias tem hipótese contra Rambo. Depois de alvejar o xerife que se esconde na esquadra, os homens da guarda nacional cercam o local. Rambo prepara-se para lutar contra eles mas surge Trautman. Rambo e Trautman têm uma conversa sobre a forma como os veteranos são tratados nos EUA. Um herói de guerra especialista em qualquer tipo de combate, responsável por milhões de dólares em equipamento militar, mas que no seu país nem para estacionar carros serve. É exactamente com esta frase que Rambo se desarma e volta a ser humano. Deixa de ser a máquina de guerra que destrói uma cidade e volta a ser o mesmo homem que procurava com esperança o seu companheiro de armas. Rambo entrega-se nos braços do Coronel Trautman e deixa escoar a raiva contida. First Blood é um filme de acção. Todavia tem um fundo temático mais forte do que aparenta. Trata essencialmente o tema dos veteranos da guerra do Vietname, que eram vistos como marginais e assassinos pelas pessoas que tentaram proteger. Mas claro que à parte de tudo isto, e volto a sublinhar, Fi rst Blo o d é um filme de acção, onde nasce o herói mítico do cinema deste género, John Rambo, um homem capaz de derrotar um regime político, de entrar no Afeganistão e capturar o Bin Laden (se ainda fosse vivo). Digo mais: se tivessem o Rambo


na altura da Segunda Grande Guerra, provavelmente não teriam criado o Capitão América.

Vasco Medinas

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Aliens

de James Cameron (1986, 137’) No ano em que o nome de James Cameron volta a estar nas salas de cinema, com a reposição de um dos seus maiores sucessos de crítica e de bilheteira, Titanic, desta vez em 3D, e no mesmo ano em que estreia nas salas P ro metheu s, o muito aguardado regresso ao universo Ali en por Ridley Scott, o criador da saga que se iniciou há precisamente 33 anos atrás, nada mais pertinente do que recordar e falar um pouco da obra que juntou o nome de James Cameron a este universo da ficção científica. James Cameron já tinha dado cartas em 1984 com o primeiro Terminator, filme produzido com um orçamento modesto dados os padrões de Hollywood, mas que acabou por se tornar um êxito de bilheteira e filme de culto, lançando os seus actores e realizador para a ribalta. Dois anos mais tarde, Cameron aceitou tomar o leme da sequela do filme de Ridley Scott (Alie n de 1979). E revelou ser a opção certa, criando mais do que uma simples sequela, um filme bastante diferente do seu predecessor, num registo de acção e espectáculo, com uma vertente dramática que mantém sempre presente. Ali ens, com o subtítulo português “O Reencontro Final” (que não seria o final, como sabemos) confirmaria Cameron como um dos nomes maiores do cinema-espectáculo de Hollywood das próximas décadas. Neste 2º capítulo, vamos encontrar a nossa heroína e única sobrevivente do primeiro filme, Ripley (interpretada pela inigualável Sigourney Weaver) adormecida num tubo criogénico, a ser encontrada e le-

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vada de volta à Terra. Aí ela é confrontada com o facto de já terem passado 57 anos desde os acontecimentos na Nostromo, e de basicamente todos os familiares e amigos na Terra terem já morrido. O planeta LV-426, onde a forma de vida foi encontrada no 1º filme, está já colonizado por seres humanos, mas o contacto com a base dos colonos é perdido, e é pedido a Ripley que acompanhe um esquadrão de elite (marines) para os guiar até lá e aconselhar no combate à letal forma de vida alienígena que ameaça a sobrevivência humana, e que apenas ela tão bem conhece. Apenas 2 anos depois do sucesso do primeiro Ter mi nato r, Cameron consegue criar um novo filme de culto para os fãs da ficção científica e não só. Com um orçamento consideravelmente maior (cerca de 19 milhões de dólares), tem já meios para criar décors ambiciosos (o planeta LV-426 e todo o complexo da colónia), assim como veículos e naves. Os efeitos especiais estavam num período de grande revolução, e isso permitiu criar um filme mais ambicioso e espectacular, tanto a nível da própria acção como dos próprios aliens (bastante realistas e credíveis, com os bonecos animatrónicos). Ainda hoje vemos o filme e este não parece nada datado a nível de efeitos visuais (a não ser um ou outro écran verde) e décors. Aliás, o filme viria a ganhar 2 Óscares em 1987, para Melhores Efeitos Especiais e Melhores Efeitos Sonoros. Algo a que os filmes de Cameron não são alheios, já que todos os filmes que realizou desde Ter minato r ganharam o Óscar de Melhores Efeitos Especiais, excepto True Lies (1994).


O filme consagrou Cameron como um grande realizador do género, mas também a sua protagonista Sigourney Weaver (que já era uma actriz conhecida, com o 1º Ali en e Os Caça-Fa ntas ma s), foi reconhecida como uma actriz de grande valor interpretativo, tendo sido nomeada em 1987 para o Óscar de Melhor Actriz por este filme, a primeira a ser nomeada para o prémio num filme do género. Para além da realização dinâmica e segura de Cameron e da qualidade do argumento, é mesmo a energia e a garra da interpretação de Weaver que concede à sua personagem toda a força e carisma que esta nos transmite, e pela qual nos faz ter grande empatia, tornando o filme ainda mais intenso e empolgante. O argumento permitiu também a Weaver criar uma heroína de acção com espessura dramática, com traumas, emoções e interesses, não se esgotando nas frases feitas e no desempenho físico da personagem. Não precisamos de pensar muito para lembrar que nos filmes de Cameron a personagem central é sempre uma mulher de armas, que assume o papel de herói no feminino, em torno da qual é construída a narrativa. A relação maternal e protectora que Ripley estabelece com Newt, a menina orfã da colónia, é muito intensa e bem conseguida, tornando-se no cerne da história na recta final do filme. Quem con-

segue esquecer a famosa frase antes do confronto com a “Rainha” Alien, dentro do monta-cargas humanóide: “Get away from her, you bitch!”? Cameron gere a acção e o suspense com mestria, presenteando-nos com uma obra que é mais que um filme de acção, e se torna uma verdadeira aventura/pesadelo recheada de momentos de grande intensidade dramática e terror, mantendo o espectador na expectativa sobre o destino dos personagens principais até ao final. Os últimos 40 minutos, a partir do confronto com a rainha Alien são um non-stop de nervos numa corrida em contra-relógio. Apesar de nesta sequela termos um registo completamente diferente do filme de Ridley Scott, que é sobretudo um filme de terror e suspense passado no espaço, este filme bélico de grande espectáculo, não deixa de ser um marco no cinema de ficção científica, e um dos melhores filmes da quadrilogia Alien, indispensável para qualquer fã do género, e não só.

Rui Oliveira

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Predator

de John McTiernan (1987, 107’) De um dos maiores monstros/criaturas da história do cinema fantástico contemporâneo, para outro. Em 1987 John McTiernan realiza este inteligente, trepidante e original thriller de ficção científica, com momentos de grande suspense e algum terror psicológico, cuja acção se passa em plena selva da América Central, com Arnold Schwarzenegger como protagonista. Aqui, McTiernan leva-nos para as selvas tropicais da América Central, de início aparentemente num simples filme de guerra sobre os conflitos entre governo americano e terroristas. Arnold Schwarzenegger (então no início de uma promissora carreira no género) interpreta o papel principal do Major “Dutch” Schaefer, líder do comando que é enviado numa missão de salvamento de elementos do governo americano, cujo helicóptero foi abatido e raptados por terroristas refugiados no meio da selva. A missão rapidamente revela ser uma fachada para outra missão da CIA envolvendo tráfico de droga. A acompanhá-lo está um grupo de competentes actores secundários, que interpretam os diferentes elementos da equipa. Na 1ª parte do filme estamos perante uma banal fita de acção em que os americanos e traficantes se confrontam, e os comandos acabam por destruir o acampamento inimigo, apercebendo-se de que a missão não passava de uma fachada para salvar a face a um elemento corrupto da CIA. Mas a inflexão na história surge quando uma ameaça externa começa a perseguir e literalmente a ‘caçar’ um a um os elementos da equipa de comandos liderada por Schwarzenegger. Ainda maior é a surpresa quando percebemos que se trata de

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vida extra-terrestre que visita o nosso planeta já há décadas (quiçá séculos), para empreender ‘caçadas’ ao homem, que fazem parte do ritual de passagem à idade adulta dessa mesma espécie. A partir desse ponto, assistimos a uma luta pela sobrevivência em ambiente hostil (em plena selva tropical, longe da civilização) desse grupo de homens, preparados e treinados para combater outros homens, mas não uma espécie extra-terrestre habilitada de força e armamento tecnologicamente superior ao nosso. O realizador mostra neste filme a sua enorme capacidade para realizar com segurança e dinamismo sequências de acção espectaculares, e ao mesmo tempo dirigir com competência actores não muito conhecidos (à excepção de Schwarzenegger), mas convincentes nos seus personagens, bem construídos e com alguma densidade dramática e psicológica. Aliás, essa lenta construção dos traços psicológicos de cada um deles ao longo do filme, vai-nos permitir, a nós espectadores, sentir o impacto da morte de cada um quando surge o momento, já que conhecemos o seu background e percebemos o significado desses momentos para o resto do grupo. Destaque, claro está, para os efeitos especiais que valeram ao filme uma nomeação para o Óscar nesta categoria, e para o trabalho feito com o extra-terrestre Predador, interpretado por Kevin Peter Hall (um actor afro-americano que se destacou precisamente por interpretar o Predador neste filme e na sequela de 1990), que teve


de penar bastante para suportar o bem conseguido, mas pesadíssimo e sufocante fato de látex criado pelos técnicos de efeitos especiais do filme. McTiernan consegue também uma excelente gestão da intriga, mantendo o suspense sobre o que será que persegue os comandos (na 1ª parte), e mais tarde sobre quais serão as motivações e verdadeiro aspecto do Predador (que usa um fato de combate) mesmo até ao final, num duelo devastador entre protagonista e Predador. Como esquecer o comentário de Schwarzenegger quando

retira a máscara ao Predador: “You're one ugly motherfucker!”. Este foi o filme que lançou outro grande nome do cinema de grande acção e espectáculo dos anos 80 e 90, John McTiernan, o qual no ano seguinte a Predador viria a dirigir outro grande super-êxito deste género: D ie Hard (“Assal to ao Arranha-Céus” em português).

Rui Oliveira

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Batman Returns

de Tim Burton (1992, 126’) No início da carreira, Tim Burton era infalível: conseguiu uma série de filmes todos pelo menos muito bons — B eetlejuice, Edward Scissorhands, e Ed Wood — , passando incólume ao blockbuster, registo em que foi, se possível, ainda mais pessoal, que é como quem diz mais "autor" (segundo a teoria do dito). Os dois Batman que realizou — que se incluem facilmente nessa série quase milagrosa — são profundamente seus, principalmente o segundo, B atman Retur ns, como procurarei defender. A definição de um cineasta como autor, até pela génese da teoria, tem tanto mais validade quanto a sua obra é realizada sob a pressão dos grandes estúdios (ou, no contexto actual, no enquadramento de uma grande produção). Só nesse caso se torna evidente a marca de um verdadeiro autor, pois sobrevive a incontáveis interferências externas (quem arrisca muito dinheiro tenta sempre pôr um dedo quando não o braço inteiro). Dá-me ideia que hoje, passados vinte anos sobre a estreia, seria impossível haver outro Batman Returns, que, recorde-se, foi mal recebido pela crítica, para além de não ter atingido os lucros desejados (embora fosse dos filmes mais vistos de 1992); queixaram-se todos que havia pouco Batman para muitos vilões, que a história era confusa e desnecessariamente complicada, que a forma ensombrava (às vezes, literalmente) o conteúdo. Quem tenha olhos de ver, não poderá refutar qualquer das acusações, todavia, saberá que, em cinema, há coisas mais importantes que o escorreito e o bem-feitinho. Aliás, o que sobressai de Batman Retu rns é o sentido de risco, de

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experimentação numa obra para o grande público, o que as precauções financeiras (e volte a sublinhar-se que filmes destes implicam um grande investimento) tendem a evitar. Pegue-se nos Batman de Christopher Nolan — exactamente os mesmos problemas: argumentos fracos ou indulgentes (o início de Batman Begins, por exemplo, é extremamente maçudo). No entanto, granjeiam de uma larga estima do público e não só (têm boa cotação da crítica) que o segundo tomo da saga de Burton nunca teve (foi até comparado ou considerado um prenúncio dos Batman de Schumacher). Posso estar a ver a coisa mal, mas a grande diferença estará no estilo. Nolan não tem estilo, ou, voltando à teoria de autor, não se lhe detecta qualquer marca distintiva (a não ser, talvez, a falta dela): filma tudo no mesmo registo "naturalista" e "realista" que delicia os espectadores contemporâneos (diga-se que, nalgumas sequências de acção, até mal, falhando em princípios básicos da linguagem cinematográfica). Pelo contrário, Burton aposta na estética expressionista que lhe é tão cara (no primeiro, mais ligeiramente, mais próximo do film noir, o descendente americano do expressionismo alemão; no segundo, desbragadamente) e que, paradoxalmente (pois é um fenómeno a posteriori), mais se associa ao universo Batman. Não é por acaso que, em Batman Returns, anda por lá uma personagem chamada Max Schreck (nome do actor que protagonizou Nosferatu de Murnau) ou que o prólogo é uma pequena curta muda ou que se entra no filme pelo esgoto,


nem que os tons (numa fotografia a cores) são negríssimos, nem que Catwoman veste o último modelo Saber Masoch em látex, nem que a cor-de-rosa saudação "hello there" se transforma no ominoso "hell here", nem que a história se passa, é fácil esquecer, na altura do Natal, subvertendo as festividades. Nem será por acaso que no centro de tudo esteja uma noção tão romântica como o amor louco e impossível: Bruce Wayne (extraordinário Michael Keaton) e Selina Kyle (belíssima Michelle Pfeiffer) beijam-se debaixo do azevinho; Catwoman quer matar Batman e este aniquilá-la — um amor que só se consuma na destruição do outro. Falta ainda referir a veia bíblica da história com os filhos primogénitos (e o tema mais abrangente da paternidade) e a pequena sátira eleitoral à volta da candidatura a presidente de câmara de Oswald Cobblepot, vulgo Penguin, entre os diversos motivos de

interesse. Escreveu alguém que o maior pecado no cinema é ser-se anódino. Na batalha entre o cinema esdrúxulo e excessivo e o cinema correcto e bem posto, a vitória de Nolan (que se deseja passageira, um ar dos tempos) é, por isso, muito triste.

João Lameira, numa paragem do 28

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Die Hard: With a Vengeance de John McTiernan (1995, 131’)

Dir-se á por aí que é falta de discernimento tentar defender os filmes da nossa juventude. E para muitos filmes será verdade. Mas não para este. E como defender aquilo que nos parece que não precisa de defesa alguma? Não basta ver os primeiros planos no genérico de Die Hard: With a Vengeance para perceber que é coisa doutra liga e doutro arcabouço? Ou as várias sequências, espalhadas pelo filme, para perceber que é obra séria? Pode ser que o seu estrondoso sucesso o tenha impedido de ser apreciado pelo que é, mas parece-me improvável.. A verdade é que o engenho de Die Hard: With a Veng eance (para mim o melhor filme da trilogia Die Hard e também o melhor filme de McTiernan) está camuflado, em camadas, e é difícil de encontrar. Mas o que custa a encontrar dá mais gosto e o meu respeito e admiração pelo filme crescem a cada visualização.

como o grupo 8 de Basic e como o exército misterioso de The 13th Warrior. No fim, é tudo uma questão de tornar visível essa invisibilidade e perceber as forças que a move. Em Die Hard: With a Vengeance, Simon Gruber só aparece passados quarenta minutos no topo de um edifício para dizer “They bought it”, no entanto só se torna visível para o espectador. Para John Mclane, para as forças policiais e para a câmara municipal da cidade, os seus desígnios continuam indecifráveis. Até se irem descobrindo, primeiro pelo diálogo inocente de uma criança que diz por outras palavras que a cidade está completamente a descoberto e fragilizada por não haver polícias num raio de centenas de metros (pelas ameaças de bomba de Simon, foram todos mobilizados para as escolas primárias de Nova Iorque), depois por um frasco de aspirinas que denuncia o esconderijo dos terroristas.

Não é preciso pensar muito para reparar na semelhança dos nomes da personagem principal e do realizador do filme John Mclane e John McTiernan -, pode-se até dizer que é o seu alter-ego. São os dois da mesma cidade e foi a única personagem a que McTiernan voltou na sua obra. Isto pouco quer dizer, mas como salta à vista convém fazer notar. Porque a verdade é que se o primeiro filme da trilogia gira à volta de John Mclane (Bruce Willis), o segundo gira à volta de Simon Gruber (Jeremy Irons). Sob que perspectiva?, convém-me explicar: Bruce Willis é a ameaça invisível do grupo de terroristas no primeiro filme e Jeremy Irons é a ameaça invisível das forças de defesa da cidade de Nova Iorque, neste terceiro filme. Como o predador alienígena de Predato r,

Mas há mais do que isto. Pense-se nas grandes sinfonias urbanas do tempo do mudo, que elogiavam a força da imagem e renunciavam a narrativa. O facto de Die Hard: w ith a Vengeance ter narrativa (e estimulante) parece-me secundário. Acaba por ser só uma desculpa para documentar os sistemas de defesa de uma cidade enorme, de a percorrer de lés-a-lés com essa obsessão, do Harlem a Wall Street. Senão, repare-se nas cenas na esquadra, na quantidade absurda de chamadas ao 911 (o nosso 112), em como se transita de umas coisas para as outras e, sobretudo, na montagem de apresentação dos vilões, que me parece sintomática das intenções do realizador. John McTiernan não é estranho nenhum a estas andanças, frequentou a cena experimental do cinema un-

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derground de Nova Iorque. No princípio do filme, a câmara aparece reflectida numa carrinha que passa na estrada e no tilt para Simon Gruber, no telhado, ele aparece com binóculos para controlar a comoção urbana e dizer o já citado “They bought it”. É tudo uma questão de luta pelo controlo do espaço, seja pela câmara ou por Gruber. A seguir, acabam-se os diálogos por 2o minutos, tirando os que são só descritivos, e começa-se a ouvir a música When Johnny Comes Marching Home enquanto Simon e o grupo fazem o assalto aos cofres. Está tudo assente na ocupação do espaço, como já disse, é desbravamento visual, cinematográfico acima de tudo, repare-se no jogo de luzes na apresentação de Katya (Sam Phillips), a vilã silenciosa, com vermelhos prodigiosos e no jogo de perspectivas com as câmaras de vigilância, antes da morte horrorosa do segurança. Durante estes momentos, John Mclane está com Moses (fabuloso Samuel L. Jackson) a resolver as adivinhas que Simon os obriga a resolver (que como já se sabe são um engodo para manter a sua invisibilidade). Se há outro ingrediente para a fórmula McTiernan e outra razão para D ie Hard: With a Vengeance ser tão prazeroso de se ver (daqueles que se se apanha na televisão, é-se instantaneamente impulsionado a ver), é a dinâmica Willis-L. Jackson. Conhecem-se por um acaso completo e estão sempre em conflito, brincando o mais que podem com as tensões sociais e raciais que os separam (ver um filme de grande orçamento explorar estes conflitos sem se refugiar na chico-espertice e na demagogia é outro dos grandes trunfos de Die Hard: With a Vengeance). Filme sobre um polícia com uma ressaca do tamanho do mundo, que só a quer curar e cuja cura acaba por resolver também o caso, filme que põe à prova as bases civilizacionais o quanto pode, passado

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em vinte e quatro horas e concentrado nas relações espaciais e temporais dum assalto monumental aos cofres da cidade de Nova Iorque, Die Hard: with a Vengeance é um dos melhores filmes dos anos 90 (embora não seja grande elogio). Crença de pouca gente para já, mas pode ser que o tempo nos acabe por dar razão...

João Palhares


Heat

de Michael Mann (1995, 170’) Quando falamos no Blockbuster, falamos daquele filme que toda a gente paga para ver, e quando dizemos toda a gente, falamos do maior numero de pessoas possível e imaginário. Falamos daquele público que vai regularmente às salas, e que as enche, à espera de uma grande dose de entretenimento enquanto desfruta de um balde de pipocas XXL. Quem me dera que em 1995 eu pudesse ter apreciado esta Masterpiece de Mann no grande ecrã. Lembro-me perfeitamente de quando o vi pela primeira vez e lhe torci o nariz pelo seu maior senão, o Tempo, mas... lá chegaremos, porque dei como extremamente bem empregue esse tempo. Quero acreditar que existe uma espécie de Panteão para todos os grandes filmes, e acredito que se tal coisa existe, Heat estará lá, certamente, entre todos os outros grandes nomes, lado a lado com os seus pais, avós e irmãos, iguais em género. É um filme que ocupa uma posição de excelência no sem fim de filmes de Acção/Policial, talvez, dos últi-

mos 40 anos, disso não tenho dúvidas. Como todos os seus semelhantes, tem aquela linha narrativa básica, a história do Gato e do Rato que já todos conhecemos mas que curiosamente ainda nos faz parar e ficar estatelados na cadeira, a sofrer e a esperar por mais e mais, tal como esse ritmo “hollywoodesco” nos educou enquanto espectadores. A estória de um polícia bastante competente e determinado que procura um ladrão e a sua equipa, que enchem as mesmas medidas. Mas, atenção! Não julguemos o livro pela capa. Não escapando ao que é habitual, a estória não foge ao cliché, mas consegue, por vezes, escapar-se ao ritmo destrutor de Hollywood, e a acção desce a um nível tão profundo quanto o silêncio das monstruosas personagens e actores lhe permite. Afinal sempre há uma alma num filme de acção. Nunca será escusado mencionar o grande elenco, nomeadamente os dois nomes mais sonantes, de De Niro e de Al Pa-

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cino que por mais curioso que pareça, quase nunca contracenam juntos durante os 152 minutos de filme. É talvez graças a esta perversidade de Mann, que as suas personagens se tornam tão especiais, por nunca chegar a haver aquele momento de catarse meio homossexual em que o bom e o mau se envolvem numa luta tête à tête para resolver toda a problemática, que cena após cena se vai intensificando. Essa cena existe, mas de um modo tão simples que nos deixa boquiabertos. Robert De Niro e Al Pacino contracenam juntos, pela primeira vez na vida, em Heat, num longo diálogo, onde se insurgem um contra o outro, e há uma alegria que ambos emanam, que me leva a crer que são mais eles próprios do que meras personagens. O génio de Michael Mann não envereda por esses caminhos pecaminosos do axiomático. Juntamente com a grande panóplia de actores, conseguiu tornar o filme numa obra de arte, meticulosamente controlada e completamente envolvente para o espectador. Procurou a saída dos fundos, mas foi por lá que teve mais glória, e talvez tenha sido essa fuga ao óbvio que criou este monstro inesquecível do género. As suas quase três horas são um entrave, e estão recheadas de clichés, claro que estão! Mas, vamos julgá-los como bons clichés! Todos os pneus a chiar, as balas infindáveis a voarem e a fazer buracos em corpos que tombam no asfalto podiam fazer com que Heat se afogasse nas suas próprias trivialidades, mas não o fazem. Em suma, Heat é tudo o que nós, espectadores, vamos à procura quando entramos numa sala para ver um filme de Acção. Heat é um marco! Um must see para qualquer fã do género, e de Cinema.

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Ricardo Madeira


Mission Impossible II de John Woo (2000, 123’)

A acção impossível dos corpos e do rosto em M:I-2 Antes de convencer Nyah a juntar-se à sua nova missão, Ethan Hunt tem de "bailar" com ela, não "corpo-a-corpo", mas "carro-contra-carro", numa perseguição no limiar de um desfiladeiro mortífero; ele num BMW, ela num Audi. Jogo de sedução de altíssima cilindrada, com música flamenca, a mesma que, poucas horas antes, por entre as saias esvoaçantes das bailarinas, pontuara a sua primeira troca de olhares. Uma troca de olhares que não é bem o tradicional, muito hollywoodesco, "love at first sight", mas mais um "I dare you to fall in love with me". E, quem diria, poucas horas depois - tudo é muito rápido num filme de Woo, todos nós sabemos -, lá estava ele encostado a ela, "metalcontra-metal", rodopiando, bailando, entre a vida e a morte, ao som da mesma música flamenca, sexy e viril. E o tal "fall in love" torna-se num "rescue you from falling...", quando Ethan Hunt, depois do pouco responsável duelo de carros provocado pela beldade, lança o braço à fêmea em apuros. Ela está "apanhada" por ele e, logo, ela aceitará a sua missão, mesmo que esta seja como tem mesmo de ser, isto é: nem mais nem menos do que impossível. "Tanto aparato para tão pouco?", questionará o espectador das lógicas absolutas e à prova de bala. Para tão pouco?, respondo eu. Hunt seduz Nyah e leva-a consigo para uma "missão impossível" - "tão pouco", meus meninos, só se pode alcançar com aparato. Aliás, o aparato em Woo, o Woo americano e o Woo de Hong Kong, é coisa para ser levada muito a sério tanto quanto é coisa para se levar muito pouco a sério. O

leitor está confuso? Então vamos por partes. Quando se atira do último andar (42.º, para sermos exactos) do arranha-céus onde estão instalados os laboratórios da Biocyte, Ethan Hunt não abre logo o páraquedas, ele adorna o movimento com um pequeno e curto salto mortal. Antes de tomar "de empréstimo" uma das motas que são dirigidas contra si, Hunt põe uns estilosos óculos escuros no rosto. O sol está forte, mas não assim tão forte. Todo o tipo de acrobacias que realiza em cima e até ao lado (!) da sua mota "tomada de empréstimo" é fogo de vista para uma plateia invisível ou faz parte do modo que Hunt encontrou para se desembaraçar, com o máximo de eficiência, dos seus inimigos? O adorno (o salto moral ou os óculos escuros) parece apontar para a primeira hipótese, contudo, os stunts nesses embates motorizados são de uma precisão e consequência à prova de bala. Woo soube interpretar cineticamente a própria ideia contida no título de missão impossível: aqui, não é só a missão que representa uma impossibilidade, mas, antes de mais, são os números de acção que se alimentam dessa impossibilidade. Porém, não é uma impossibilidade inutilmente "adornada". Há qualquer coisa neste M:I-2, como num Fa ce Off, como, até, a espaços, num The Killer, que parece ditar o seguinte: "Já que vamos parecer impossíveis, então vamos também ser impossíveis. E já que vamos ser impossíveis, então por que não fazê-lo com estilo?" E até aqui vai a, simultânea, seriedade e criancice do cinema de Woo: let's play seriously. O mote do seu cinema é esse e resulta: é con-

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sistentemente de uma perfeita incongruência, como quem se conduz ao abismo com um sorriso irónico nos lábios. M:I-2 é um filme que faz a síntese entre o Woo americano e o Woo de Hong Kong. Há o ballet das balas, a pé, de carro, de mota, de helicóptero, que reinterpreta, na direcção dessa (caricatural) impossibilidade made in USA, filmes como Once a Thief, The Killer, Hard Boiled, mas também o americaníssimo Face Of f. Os stunts em M:I-2, todos corajosamente assumidos pelo próprio Tom Cruise, são milimetricamente coreografados, resistindo sempre à verosimilhança ou à dimensão relativamente down to earth, por exemplo, muito vincada no primeiro tomo da série, realizado por Brian De Palma. Se De Palma é, por norma, alguém que também faz gala em responder com um "sorriso irónico nos lábios" aos clichés do cinema de Hollywood, a verdade é que foi John Woo quem revelou tomates e coração - para os dinamitar. Suspensão da descrença? Não, pá, cada momento de actionballet, de balas, de pontapés rotativos, em cima de uma moto, ao lado dela, ou no ar, em voos rasados por pombos vindos dos céus (vindos também da igreja de T he K iller...); digo, cada cena de acção pretende ser a mais sonora e pirotécnica celebração da impossibilidade dessa suspensão. Aliás, Woo dedica um festim de imagens kitsch e over the top a essa, lá está, impossibilidade. M:I-2 é, por isso, um filme sobre ilusões e enganos. E daí começar com a perfeita introdução ao nosso herói, ao seu rosto, pelo menos. É Hunt que começa por matar, friamente, um cientista russo que nos aparece "pintado" como o inocente. De repente, Hunt leva as mãos ao rosto e literalmente arranca-o como se fosse uma máscara. Quem está por trás da cara de Hunt - não deveria ser o próprio Cruise-actor? - não é Hunt, é aquele que "pintamos" de imediato como "o vilão" da história: Sean Ambrose. A

partir deste momento, percebemos que em M:I-2 a noção de identidade é tão volátil quanto já o fora em Fac e Of f, filme que quer dizer literalmente "rosto para fora". Woo arranjou um artifício, o da máscara, para encenar a primeira de muitas ratoeiras que o filme nos irá reservar, sobretudo, para o fim... Perto do ending oficial do filme, um ending falso é orquestrado, coreografado pela câmara de Woo. Hunt é vilão nos primeiros minutos e é morto por Sean no fim. Se nos fiarmos apenas nas aparências, podemos voltar a cair na ratoeira "(re)montada" por Woo. Mas não: o vilão verdadeiro, que ganhava a vida a imitar o herói verdadeiro, foi ludibriado no fim. O feitiço vira-se contra o feiticeiro quando Ambrose se apercebe que não matou Hunt, mas o seu capanga número 1. Ethan Hunt pôs o seu rosto nele (= face in), mascarou-o de Ethan Hunt e levou Sean Ambrose a eliminar o seu "braço direito". O dedo mindinho cortado denuncia-o - uma clara referência a 39 Degraus de Hitchcock. Nesta altura, depois de novo bluff, à volta de tanta sofisticada metonímia do corpo (braço direito, dedo, rosto...), M:I-2 fecha o círculo e termina o seu jogo de ilusões com o espectador. Certo? Errado. A perseguição final, com os tais números em cima e ao lado da mota, é a apoteose de toda a impossibilidade de "Missão Impossível". Muito concretamente, os nossos olhos - haverá um músculo ocular que se estimule com tanta agitação cinética? - são atraídos pelo duelo derradeiro entre Ambrose e Hunt, que, de uma maneira peculiar, rimará visualmente com o "jogo de sedução" do início, desenrolado entre Hunt e Nyah, só que com a muito significativa diferença de aparecer carregado, sobrecarregado, de sentimentalismo justiceiro. A justiça realiza-se, ritualisticamente, num motorizado frente-a-frente que parece simular, não o tal

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bailado do começo, mas uma Justa Medieval - bem mais que um duelo de western. Não há lanças, mas há os corpos no seu lugar: Hunt e Ambrose acabam por se tocar no ar lançando-se, em pleno andamento, das suas motos numa acrobacia verdadeiramente incrível - e impossível. O corpo-a-corpo seguinte é um despejar de ódio de parte a parte, mas sempre sem abdicar do seu poder ornamental. Toda a luta neste filme de acção é luta performativa, os seus lutadores são coreografados como num bailado e, ao contrário do que é habitual na maior parte dos filmes americanos, as personagens comportam-se como performers, mesmo que o espectáculo que protagonizam - excessivamente adornado, acção sempre "com nota artística" - seja, no fim, destinado a uma audiência invisível, de mortos - não são, por norma, os primeiros espectadores destes espectáculos os vilões que levam a sova das suas vidas antes de cada um se despedir da sua? No mundo do herói, não há nada para lá dessa audiência invisível - bem, existimos nós... -, mas ele, mesmo sabendo disso, continua o seu show.

Luís Mendonça, CINEdrio

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Mission to Mars

de Brian de Palma (2000, 114’) “What if that means something? The universe is not “chaos”, it's connection. Life reaches out for life. That's what we're born for, isn't it? To stand on a new world and look beyond it, to the next one. It's who we are.”

Monólogo do Filme Não penso que Mission to Mars se possa considerar um blockbuster, no entanto tenho a certeza que foi feito de maneira a cumprir esse alcance. Ou seja, sabendo que tinha o mundo como público. De Palma tomou como modelo 20 01 de Stanley Kubrick mas, no final, fica-lhe a dever muito pouco. E digo “fica-lhe a dever muito pouco” porque em todo o caso é um filme de Brian de Palma e o ter sido feito para um “grande público” ou parecer um remake (subversivo) de A Space Odissey 1, não apagam isso. Os pr imeiros planos contêm já neles os assuntos e temas de um filme. M iss io n to Ma rs começa com o lançamento de um foguete de brincar para o céu. A câmara desce e assistimos a uma festa que parece ser de despedida (há um cartaz, em segundo plano, que diz BON VOYAGE MARS ONE!). Só nos são apresentadas todas as personagens no plano seguinte, mas o primeiro já prenuncia o resto portanto centremo-nos nele: começa tudo na infância. Ser astronauta é sonho de criança, imaginar viagens pelos céus e pelo espaço, a aventura de tudo isso, porque só depois é que se procura o dar significado às coisas; o amor. 1 2

Tema pilar de todo o filme que mais interessante é por não se limitar ao amor “matripelo também é não, monial”, conhecimento, pelos amigos e pelo desconhecido. É quando nos é apresentada a personagem de Jim McConell que percebemos que Mission to Mars é também um filme sobre perda. Perda um bocado de tudo mas de fé, principalmente. Fé essa que é restaurada pelo cosmos. E quando assistimos ao salto temporal da caixa de areia onde brincam os miúdos para Marte, além de vermos que Mission to Mars é um filme sobre Jim, que este é o herói desta história, todas as outras questões se conjugam. Ao pôr o pé na areia, Jim recorda que já sonhou ali, em miúdo, com o espaço, que já teve uma mulher e que quer significado para as dúvidas. Que lhe falta qualquer coisa, que talvez Marte seja a resposta. É além disso a elipse que já 2001 tinha. Não tão longe no tempo mas mais longe um bocado no espaço2. No filme de Kubrick pode-se dizer tratar-se de uma questão histórica, no de De Palma uma questão de estória. Quem quis (e quem ainda quer) mal a este filme, disse que era uma versão light de 2001 e Solaris, eu digo

. De Palma fala também de Desti nation M oon de Irving Pichel como inspiração para este filme.

. Se nos lembramos, em 2001 saltavam-se milhões de anos, de um osso no ar para uma estação espacial em órbita do planeta Terra.

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que o filme dá forma ao que nos outros dois era envolto em enigmas. Fez-se o exercício narrativo de forjar uma explicação para a vida, mas se ela parece infantil ou ridícula isso só abona em favor do filme, além do deslumbramento da descoberta estar lá e me parecer tão belo como o dos filmes de Kubrick e Tarkovski. Não é costume de quem estuda e critica filmes querer aprofundar no que parece auto-explicar-se. Mas Mis sio n to Mars não se auto-explica. O final do filme parece-me rodeado de mistérios. Porque Jim não sabe para onde vai, é a fé que o move, foi o ter ouvido a mulher a dizer que tínhamos todos nascido para ir para um mundo novo e olhar além dele, para o próximo. Ninguém sabe para onde foi ele e o derradeiro segredo foi-lhe reservado. Ou outra coisa. Ter Mis sio n to Mar s sido muito enxovalhado por altura da estreia diz mais sobre nós do que sobre o filme, propriamente. “Acreditar” não é muito coisa dos tempos que correm, que ser deslumbrado com uma pepsi numa mão e pipocas na outra não cai lá muito bem. Talvez. Mas quem viu a alegria nas caras de Jim (Gary Sinise), Luke (Don Cheadle) e Terri (Connie Nielsen) no momento daquela revelação não pode deixar de o fazer. Have a great ride, Jim!

Miguel Cunha No Princípio era o Verbo

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O Cinema Português Escondido O Suspenso, Sabrina Marques Filmar o quê e como?, Manuela Penafria O Fauno das Montanhas (1926) de Manuel Luís Vieira, Edmundo Cadilha Sobre a Dança dos Paroxismos, José Bértolo O Pintor e a Cidade (1956) de Manoel de Oliveira, Ricardo Madeira A Caça (1954) de Manoel de Oliveira, Ricardo Madeira Mudar de Vida (1966) de Paulo Rocha, Miguel Cunha Jaime e a lucidez silenciosa, Carlos Natálio Trás-os-Montes (1976) de António Reis e Margarida Cordeiro, Álvaro Martins O Movimento das Coisas (1979-85) de Manuela Serra, João Bénard da Costa À Flor do Mar (1986) de João César Monteiro, João Lameira Xavier (1992) de Manuel Mozos, João Palhares

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O Cinema Português Escondido Introdução O que é o cinema português escondido? Responde-se sem tentar responder, pelo menos para já, ao que é isso do cinema português, porque há muitas noções, imagens e ideias sobre a coisa. O cinema português escondido é o cinema português que não tem voz, ou tem muito pouca, os filmes que são silenciados por editoras e/ou políticas de distribuição e financiamento ou que se dizem deslocados no trajecto de um realizador. Filmes que se perdem no tempo por uma razão ou outra, mas que ao contrário do que se possa pensar, não são menos marcantes, nem se pode dizer que se o tempo os silenciou é porque não valem a pena. Há filmes que têm a teimosia de resistir ao tempo e são re-descobertos, anos - mesmo décadas - depois de serem feitos. Há realizadores que resistem à indiferença generalizada e continuam movidos pela paixão que os consome: a pulsão de fazer filmes.

Cinema português escondido será, então, como um baú num qualquer sótão, como a arca do Pessoa, como relíquias a que se tem de tirar o pó para se lhes ver o brilho. Há pouco interesse nisto da parte de quem mostra cinema em Portugal e há obras inacessíveis a assombrar a consciência de produtores, exibidores, distribuidores e espectadores, obras que só vêm a luz do dia em situações muito especiais, às vezes em cópias danificadas pelos anos que têm em cima, talvez uma vez em cada cinco anos, em Festivais ou na Cinemateca. Quando acontece. Sem edições em DVD, sem exibições na TV e sem excertos ou trailers no YouTube. Assim anda a memória colectiva do espólio dos mais variados cineastas portugueses.

O Cinema Português tem uma identidade? Porventura não será importante (e há exercícios muito mais proveitosos, como ver - se as há - as ligações entre Oliveira e Bresson ou Pedro Costa e Matt Johnson, o vocalista dos The The), mas há traços comuns e pontes entre os primeiros trabalhos de Manoel de Oliveira, os “documentários” de António Reis e Margarida Cordeiro, o único filme de Manuela Serra, O Mo vimento das Coisas, e a obra de Pedro Costa, por exemplo, que não se esgotam nas filiações, inspirações e homenagens, é coisa de tentar ir ao coração de um país e da sua identidade. Que se há filmes portugueses que são

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populares são estes, por se obcecarem com a noção e por deixarem documentadas aldeias e subúrbios, as comunidades, os seus ritos e rituais. Mas se as semelhanças são só o ponto de partida, as formas distanciam-se e as intenções tornam-se outras. Se não basta a curiosidade de ver um Portugal totalmente diferente do actual (para perceber a sua evolução, que foi rapidíssima e ainda não foi digerida por inteiro, democracia incluída), e porque é de cinema que estamos a falar, não há só documentação (embora seja justo dizer que todo o grande


cinema documenta, como nos salientou Pedro Costa no número anterior), há ficção, também. Pelos dispositivos do cinema, os de tentar encontrar uma linha narrativa não necessariamente lógica, mas emocional. Como é do campo do emocional ver o Ventura em contra-picado pelo Bairro das Fontainhas ou o Porto sobre constantes e novas perspectivas em O P into r e a Cid ade (dar-nos o visto por nunca visto, porque há sempre algo que nos escapa: no tempo, numa viela, numa expressão) ou as acções, gestos e tempos dos aldeães, das pessoas n' O Mo vi mento das Co isa s (nesse filme - nesse documentário, ensaio - atrozmente silenciado). Ou a absurdamente inadjectivável sequência final de Trás-os-Montes... E enquanto se discute o “cinema português” (já desde há 34 anos exactamente da mesma maneira, desde o rescaldo de Amor de Perdição), a ponto da própria expressão enojar um bocado toda a gente, deixa-se passar ao lado o que de bom se faz por cá. É um acontecimento semestral, o da “discussão do cinema português”, deve ter que ver com as estações, e como o calor ou o frio são demais para uma pessoa fazer outra coisa, em jeito de ultimato e com todas as certezas do mundo, temos que escolher entre ser o país do Paulo Branco ou do Alexandre Valente. E enquanto se implora, porque sim, por que o cinema português seja comercial ou se pede, às vezes também só porque sim, mais subsídios (embora agora seja da mais absoluta necessidade), fazem-se filmes. Fosse isto motivo de regozijo nacional, mas não é e nestes impasses entre a baixa-cultura e a alta-cultura, o que não tem pretensão de se chamar cultura de espécie alguma, passa despercebido. E não é dizer que o único cinema feito em Portugal que interessa, é o escondido, que não é, mas é esperar que se fale do que há, do que se faz, sem martelar incessan-

temente no que se quer ver feito ou nos modelos que se querem importar. O cinema não se torna comercial por se fazer de determinada maneira (tem de ser, de facto, comercial; ou seja, tem que fazer dinheiro, não devia haver grandes dúvidas nisto) e o cinema de autor como se discute e pensa hoje em dia, não é de autor coisa nenhuma (tem de haver uma procura, devia ser epíteto custoso de alcançar e não estar lá de partida como se fosse um género). Nestas teimas e nestas batalhas, o destino de filmes como O Movimento das Coisas, de Manuela Serra e X avier, de Manuel Mozos parecem reveladores do desinteresse do cinema em prol das “questões do cinema”. Um, o primeiro, não estreou, fez o circuito de festivais nos anos 80 com muita discrição, tendo ainda assim ganho alguns prémios (daqueles a que não se dão grande importância porque não são numa estância balnear ou num teatro reluzido a ouro), o outro, o segundo, primeiro filme de Manuel Mozos, estreou dez anos depois de ter sido rodado e três anos depois de Qua ndo Tro vej a, segundo filme do realizador, estrear. Estreias pendentes por puro desinteresse e preconceito de distribuidoras e governos e não só estreias mas produções inteiras também. “Os pobres dos subsidiados”, dirá o povo jocosamente, “que chupam os dinheiros públicos até à medula”. A visão panorâmica de tudo isto, será muito mais complicada, mas não é assunto para palcos destes nem há conhecimento e sabedoria para os tratar com a justeza que merecem. Resta ficar contente por ser às vezes possível ver filmes que apesar dos acidentes de produção, foram acabados. No caso de Manuela Serra e de O Mo vi me nto da s Coi sas, a grande custo. Depois de uma tentativa frustrada de fazer um segundo filme, abandona o cinema, pelo menos até agora.

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“Nós saímos de um país sem imagem. A imagem do país que temos é muito construída pelo cinema. Há a consciência, em qualquer cineasta português, que o cinema foi uma escola para muita gente e foi também uma maneira de f ix ar um país que estava a deslocar-se a uma velocidade inacreditável. Eu acho que isso está f ilmado, acho que o cinema por tuguês f ixou esse deslocamento . E fo i capaz de f ilmar muita coisa ao mesmo tempo: um país muito longínquo no tempo, na História, etc.. Era tudo isto e, simultaneamente, um país muito contemporâneo.” As palavras são de João Mário Grilo na Número Magazine (nº18). E lembra-nos que apesar de tudo, da vontade de determinadas esferas sociais em olhar para o lado e ignorar (porque a televisão é que é o palco das realidades), o cinema fixa certos tempos, movimentos e transições. Documenta. E não há como fugir a essa realização. Numa tentativa de fazer o sumário de um espírito e procura comuns dos cineastas portugueses, cunhou-se o termo étnico, que é muitíssimo redutor. Diz-se que há uma “escola portuguesa”, que tem como precursores Douro, Fai na Fl uvial, de Manoel de Oliveira e Maria do Mar, de Jorge Leitão de Barros. Já antes tinha também havido Os Lobos, de Rino Lupo, que caiu na invisibilidade absoluta, mas que ia ao encontro dessa “escola”. O Cinema Novo abraçou esteticamente esses dois filmes e partiu para os seus próprios projectos. E viu-se o cinema a sair para a filmagem dos ritos e das tradições, a procurar

as ficções escondidas no litoral e no interior. António Campos, António Reis, Margarida Cardoso, Paulo Rocha, etc. Inserir Campos na “trupe” é irónico, porque talvez não tenha havido cineasta mais independente e avesso a grupos que ele em Portugal... Talvez só Pedro Costa. O que possivelmente não encaixe nestas designações (embora façam algum sentido) é que não há buscas que sejam iguais. Não é o mesmo quando Paulo Rocha vai para o Furadouro ou o casal ReisCordeiro para o interior, para Trás-osMontes. Até porque os fins não são os mesmos, há o lirismo quase romanesco dum e a abstracção quase rudimentar dos outros dois. É “este” e “oeste”, em mais do que um só sentido. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

Da Deslocação

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Diz-se, para tentar simplificar as coisas, que há objectos estranhos e deslocados na obra de vários realizadores. Diz-se quando não se gosta tanto desses filmes como dos outros (a que parece sempre a justificação mais saudável), quando não se quer entrar a fundo nos porquês das coisas, ou quando simplesmente não se quer ver as semelhanças. Associa-se sempre Ford aos westerns, quando a verdade é que só perto de um terço dos filmes que fez o são (e a maior parte foi feita de 1917 a 1919!). À Flôr do Ma r, como Vered as, são vistos como

deslocados na obra de João César Monteiro, por serem “bonitos”. Ver a coisa assim é achar que há só fealdade e indelicadezas na trilogia de Deus e nos alter-egos de Monteiro. Recordações da Casa Amarela é um compêndio exemplar da herança artística dos últimos dois séculos, de Wagner a Murnau, passando por Dostoievski, o que não o impede nem de ter beleza a entrar e a sair com tanta frequência como o mais sórdido nem de ser abertamente português. Da divertidíssima cena à noite nas varandas daquele bairro lisboeta, talvez a mais “por-


tuguesa” da obra de Monteiro, à ressuscitação imagética do hospício de J aime, de António Reis. A persona monteiriana ofusca estes pormenores, o facto de Monteiro ser já um Tarantino antes do tempo, só que um Tarantino mais renascentista. Mas como é possível duvidar que quem realizou Um Passei o co m J oh nny G uit ar e orquestrou a final e milagrosa sequência de Vai e Vem possa ter feito coisas belas? A Manoel de Oliveira torce-se o nariz a muitíssima coisa. Ser o cineasta mais discutido em Portugal não o torna, de todo, no mais visto. Não há grande difusão nem se faz muito por que haja, e era aqui que as televisões podiam ter algum papel. Sintoma da ideia generalizada portuguesa em relação ao cineasta (embora esteja a melhorar, a admiração e dedicação além-fronteiras ao estudo e compreensão da obra do cineasta forçaram isso) é a Grande Entrevista horrorosa conduzida por Fátima Campos Correia, por ocasião do 103º aniversário de Oliveira. O que quer dizer, no fundo: nada sobre os filmes, tudo sobre as ideias que rondam os filmes e o homem como abutres (“porque é que os seus filmes são longos?”; “Foi automobilista de competição, os seus filmes têm velocidade?”, etc, tudo uma questão de velocidades, de lentidão, de choque, de paredes, de muros e de incompreensão, de austeridade, quando a obra e a pessoa não merecem palavrões ferozes e violentos desses). Mas como já se disse, estas coisas estão a melhorar e a RTP, para todos os efeitos, defende e representa uma estrutura de programação completamente alienada da realidade (embora houvesse um tempo em que não era assim). “Cá fora”, mesmo que com muita resistência, as paredes dissipam-se e escrevem-se livros, organizam-se catálogos. Faz-se um esforço por compreender. Claro que a compreensão não será muita se não se virem os filmes e talvez seja lamentável que se produzam calhamaços sobre a história do cinema português, sem fazer

"política" - política pura e dura - para devolver os filmes às pessoas, para tornar a história numa coisa viva. Um dos grandes mistérios da obra de Manoel de Oliveira é a transição documentário-ficção e a aparente disparidade entre esses dois períodos. Há dois grandes intervalos na sua carreira, um de 14 anos (os que separam Aniki Bobó e O Pintor e a Cidade) e outro de sete (os que vão de As Pinturas do meu irmão Júlio a O Passado e o Presente, o filme que à superfície parece marcar o início da forma e do pensamento da sua obra) e uma espécie de revelação que muda a sua concepção do cinema em O Acto da Primavera, onde se diz já ecoarem as obsessões e temas de trabalhos futuros. As reveses de tudo isto são a separação dos dois períodos e os rótulos de “menores” ou “atípicas” a obras que se calhar até podem dialogar com o resto. Deixo a palavra a José Bénard da Costa, que por sua vez as deixava a José Manuel Costa: “(...) a aparente clareza do Acto ocultava a sua máxima perturbação, demasiado inovadora para ser compreendida. Sucedia o inverso no críptico A Caça em que a perturbação se sobrepunha à clareza, mas o processo era o mesmo e a mesma a modernidade. Oliveira, como o Dreyer de Ger trud, não estava “para trás”, estava demasiado à frente. Só a obra futura do cineasta permitiu descobrir esta evidência (...)” Mas mesmo assim, talvez não se vá ainda suficientemente a fundo. Há um fosso entre o pré e o pós Amor de Perdição? Mais do que político, estético? Como se filma um livro? Como se povoa o décor, como se diz o texto? Oliveira disse que “a História mostra a evolução dos povos, das civilizações, dos sentimentos, do gosto. A arte exibe a substância dessas evoluções.” Ora, ele vai procurar essa substância a Camilo, a Bessa Luís, a Régio, a Pessoa, a Flaubert e propõe-nos uma documentação dessa evolução, em filme.

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Que dá em contrastes, mas só aparentes, em filmes como Franci sca (Camilo encontra Bessa Luís) e Vale Abrãao (Madame Bovary no Douro). É trabalho que precisa de ser feito? Que relação tem o cinema português com os seus escritores, com o que documen-

tou épocas e hábitos? É trabalho que mais alguém faz com a preserverança e consistência do nosso decano realizador? O que é que significa estrear em 2005 um filme chamado O Quinto Império – Ontem como Hoje?

La Resistance Há poucas dúvidas de que o cinema português é mais discutido que visto e que é difícil distinguir o que é mais escondido do que não é. Prova disso é haver todos os anos um filme candidato a “salvador do cinema nacional”, que o mito do desejado (o puto Sebastião) aplica-se a tudo e tem vontade própria. A variante social é o “melhores tempos virão”. Houve quem não quisesse salvar nada nem achasse que fosse preciso e mesmo assim deixasse obra feita. Os cineastas para quem poucos quiseram olhar (com a consciência de que é possível haver mais): Rino L upo: (1888-1934) Italiano nascido em Roma e realizador de Os Lobos, filme onde, segundo o já citado Bénard da Costa, “vivem os primeiros fantasmas do cinema português e afirma-se pela primeira vez, um imaginário específico dele”. Rino Lupo é um dos grandes vultos dos primórdios do cinema lusitano, mas só chega a Portugal em 1921, depois de ter feito os primeiros filmes em Itália, na Rússia, de ter fundado uma academia de cinema na Polónia (na altura a Segunda República Polaca), dirigido a revista Kinema e ter trabalhado na companhia Gaumont, em França. No nosso país, realiza oito filmes, entre os quais o já referido Os Lobos e também Mulheres da Beira, que são vistos como os seus melhores filmes. Manuel Luí s Viei ra: (1885-1952) Este cineasta e director de fotografia madeirense nascido a 21 de Junho de 1885 no Funchal, fundou a Empresa Cinegráfica Atlântida, que serviu como produtora de inúmeros dos

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seus pequenos documentários sobre a ilha bem como produtora e distribuidora das suas três ficções, A Calúnia, O Fauno das Mont anhas e Indige stã o. Como director de fotografia, trabalhou com Jorge Brum do Canto (n'A Dança dos Paroxismos), Leitão de Barros (Maria do Mar, Maria Papoila e Camõ es) e António Lopes Ribeiro (Revolução de Maio e Feitiço do Império). Jo rg e Br um do Ca nto: (1910-1994) Jorge Brum do Canto nasce em Lisboa a 10 de Fevereiro de 1910. Depois de um curso de Direiro inacabado, várias colaborações em revistas de cinema (Kino, Cinéfilo e Imagem), um jornal (O Século) e um papel como actor em O Desconhecido, de Rino Lupo, chega-lhe a oportunidade de realizar A Dança d os Paro xis mos aos 19 anos, filme dedicado e inspirado no vanguardismo francês. Seguem -se um projecto inacabado (Paisagem), alguns documentários e trabalhos como assistente de realização. Em 1938 filma A Canção da Terra, que lhe dá visibilidade e o permite realizar mais seis longas-metragens. Em 1953, abandona Lisboa e fixa residência na ilha de Porto Santo, aparecendo como actor em várias peças teatrais e numa série da RTP e realizando os seus quatro últimos filmes, de Retalho s da Vida de um Médico (1962) a O Crime de Simão Bolandas (1984). António Campos: (1922-1999) “Não tenho nenhum filme nem nenhum cineasta que me sirva de referência. Fiz sempre aquilo que me apeteceu, que me pareceu melhor. Talvez


porque trato de mim, da minha vida, até da minha educação, desde os cinco anos. Construí a minha própria existência à minha custa, não devo nada a ninguém.” Estas três frases são do próprio António Campos, cineasta leiriense com um dos percursos mais singulares da história do nosso cinema, e deixam entrever o seu trabalho solitário, livre e contra a corrente. Nascido em 1922, António Campos realizou cinco longas-metragens e dezenas de curtas, trabalhando no som, às vezes na montagem, escrevendo, produzindo e financiando as suas obras. O seu último filme, Terra Fria, é uma adaptação da obra homónima de Ferreira de Castro. O primeiro, Vilarinho das Furnas, retrata a aldeia do mesmo nome antes de ser submersa para sempre, por causa da construcção de uma barragem. António Campos foi alvo de uma retrospectiva em 2009, na terceira mostra Panorama. Morreu em 1999, na Figueira da Foz e a obra permanece quase inacessível ao grande público. Antóni o Rei s e Mar gar ida Co rdeiro: (1927 – 1991 e 1938), Casal de cineastas com uma das mais ricas e interessantes obras do país (e que deixou linhagem, pelo menos no Pedro Costa da Casa de Lava e em Vítor Gonçalves). António Reis nasceu em Valadares (concelho de Vila Nova de Gaia) em 1927 e Margarida Cordeiro em Mogadouro (distrito de Bragança) em 1938. Reis, antes de realizar Ja ime - obra a solo em que Cordeiro é assistente de realização além de dar uma mão na montagem e no som – trabalha com Manoel de Oliveira no Acto de Primavera e com Paulo Rocha em Mudar de Vida, no primeiro como assistente de realização e no segundo como dialoguista. Nos anos 5o, escreve Poemas do Quotidiano, Novos Poemas do Quotidiano e associa-se ao Cineclube do Porto, onde começa a trabalhar em cinema na secção de cinema experimental. Nos anos 70 e 80, o casal realiza o tríptico Trás -o s-Mo nte s, Ana e Ro sa da Areia, obras essenciais para compreender o

nosso cinema e cuja presença se sente mais pelos cineastas que os viram e as usaram como inspiração para os seus próprios filmes, do que propriamente pela sua existência, que é discreta em demasia e por muitas razões. António Reis teve também papéis em vários filmes, como Um A deus Po rtuguês (João Botelho), O Barão de Altamira (Artur Semedo), Matar Saudades (Fernando Lopes) e Ter ra Fr ia (António Campos). Morreu em 1991, em Lisboa. António de Macedo: (1931), Alvo de uma retrospectiva este ano na Cinemateca, este cineasta lisboeta realizou um dos filmes berço do Cinema Novo, Domingo à Tarde. Por razões várias, sai das lides do cinema aos poucos. Chá For te com Limão foi a sua última longa-metragem (em 1993). A partir daí tem escrito ensaios, romances e peças de teatro. Explicando o seu abandono do cinema, disse em entrevista que “houve uma espécie de conflito estético-cultural, o que lhe quiserem chamar, com os júris que atribuem os apoios financeiros para se fazerem filmes de fundo e que eram facilmente manipuláveis. A verdade é que alguns membros dos júris me disseram, mais tarde, que o meu tipo de cinema era “um cinema que não interessava” — um cinema fantástico, um cinema “desligado das realidades”, um bocado fantasioso, e esse tipo de imaginário não interessava para o cinema português. E por isso comecei a ser censurado num regime onde, constitucionalmente, não há censura”. Ricardo Cost a: (1940), Nascido em Peniche, a 25 de Janeiro de 1949, Ricardo Costa estuda na Universidade de Lisboa (faculdade de letras), dando depois aulas no ensino secundário, escrevendo também sobre cinema, literatura e teatro. Com o 25 de Abril, começa a fazer a cobertura dos acontecimentos políticos para a CBS e a ARD, cadeias televisivas norte-americana e alemã, respectivamente. Associa-se ao Grupo Zero,

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do qual fazem também parte, entre outros, João César Monteiro e Jorge Silva Melo. Entre os filmes que realizou, contam-se Mau Tempo, Marés e Mudança (1976) e Brumas (2003). Manuel a Ser ra: (1948) Manuela Serra nasceu em Lisboa, a 31 de Maio de 1948. Depois de abandonar um curso de psicologia e outro de cinema na IAD, em Bruxelas, para trabalhar com Rui Simões em D eus, Pátria, Autoridade (1975), funda a Cooperativa de Cinema VIRVER. Associada à Cooperativa, trabalha como assistente de realização, argumentista, produtora e editora em diversos projectos, sendo um deles Bom Po vo Po r tuguê s, também de Rui Simões. Em 1981, deixa a Cooperativa para se dedicar ao seu único projecto como realizadora, O Mo vi mento das Co isa s, acabando por abandonar o cinema definitivamente em 1991, depois de uma tentativa de fazer um segundo projecto, que cai por terra. O que um filme como O Movimento das Co isas acaba por fixar e ensinar em tempos como os nossos, é que não há formas nem ritos-padrão, que a montagem é uma força que cimenta o diálogo (entre os planos, entre a natureza e os movimentos, o rio e as tradições - as rotinas rurais) e que não há coisa como assumir as incertezas em relação a tudo isso – que só assim é que nasce algo diferente, algo que se exprima como pessoal, intrinsecamente pessoal. Mas transmissível. Jo rg e Sil va M elo: (1948) Como Ricardo Costa, Jorge Silva Melo também frequentou a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo depois estudado Realização na London Film School com bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. Fundou o Teatro da Cornucópia com Luís Miguel Cintra, em 1973 e é autor de várias peças e traduções literárias, além de ter participado na cooperativa Grupo Zero. Realizou Passagem ou a Meio Caminho, A gosto e An-

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tónio, um Rapaz de Lisbo a (entre outros filmes), co-escreveu X avi er com Manuel Mozos e O Desejado com Paulo Rocha, entrando também como actor em filmes de João César Monteiro (Silvestre; Quem espera p o r s apa tos de de funto mo rre desc alço), Paulo Rocha (A Ilha do s Amores), Manoel de Oliveira (Le So ulie r de Satin), Vítor Gonçalves (Uma rapariga no Verão), José Nascimento (Repórter X) e José Álvaro Morais (O Bo bo). Fundou a Artistas Unidos e dirige-a desde 1995, onde encena várias das suas peças. Víto r Gonçalves: (1951), Vítor Gonçalves é actualmente professor e director do departamento de realização na ESTC, escola onde foi aluno de António Reis. Açoriano de origem, veio para Lisboa. Fundou com José Bogalheiro a Trópico Filmes, que servirá como produtora do seu primeiro filme, de 1986, Uma Rapariga no Verão e também de O Sangue, de Pedro Costa. Manuel Mo zo s: (1959) Cineasta lisboeta. Estudou Montagem na Escola Superior de Teatro e Cinema, realizador de Xavier e 4 Copas. (Entrevista e biografia alargada a partir da pág.84) Sand ro A gui lar: (1974) Licenciado em Montagem na ESTC e fundador da O Som e a Fúria, Sandro Aguilar é talvez o rosto menos conhecido e discutido da produtora (por oposição a Miguel Gomes e João Nicolau). Tem uma única longa-metragem até ao momento, A Zona de 2008, tendo feito algumas curtas, também. Foi produtor de grande parte dos projectos da O Som e a Fúria, trabalhando como montador (A Cara que Mereces, de Miguel Gomes) e câmara (Ruínas, de Manuel Mozos) noutros projectos.


BIBLIOGRAFIA: - COSTA, João Bénard da, HISTÓRIAS DO CINEMA, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1991, Lisboa - FIGUEIREDO, Nuno Aníbal, Em defesa de uma “ecologia” para o cinema português (ou questões levantadas pelo desaparecimento de um ecossistema) - PENAFRIA, Manuela, O Paradigma do Documentário: António Campos, Cineasta, Livros LabCom, 2009 BLOGS: ANTÓNIO REIS (http://antonioreis.blogspot.pt/)

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Textos

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O Suspenso ou A involução do Cinema Português de 2012 “A primeira condição para se ser secretário de Estado da Cultura, neste país, é distinguir uma vaca de um boi. A seguir pode, às vezes, vir o resto: distinguir um livro de um livro, um quadro de um quadro, um filme de um filme. Quando, em suma, se começa a ter noção do peso intrínseco de cada coisa e a capacidade de estabelecer a reacção desse peso com o lugar que o produz, está-se apto a conceber as traves mestras de uma política cultural que não nos defraude tece à história da comunidade a que julgamos pertencer nem fraudulentamente nos situe face a ela.”

início da Carta Aberta contra o Secretário de Estado, de João César Monteiro, publicada no jornal Diário de Lisboa, a 22 de Julho de 1978 "Foi aquela coisa horrível chamada Cahiers du Cinéma, a desgraça do cinema europeu, que criou essa figura do cinema de autor”.

NICOLAU BREYNER, in Jornal Sol, 8 de Maio de 2012

E um Novo Cinema Novo? A passada terça-feira marcou-se pela ida do realizador Fernando Lopes para um outro lugar. Permanentemente confundindo a arte e a vida, um dos nomes centrais do Novo Cinema Português deixou alguns dos títulos mais importantes no percurso do nosso cinema e as lembranças de um espírito sábio, que nunca escasseou em pontuar o discurso com elogios aos nomes maiores que admirou. Em Fer nando L opes, Provavelmente - a conversa com João Lopes (2008) que a RTP2 exibiu - o realizador relembra o utopismo da geração de sessenta (o necessário fôlego que agrupou Fernando Lopes a Paulo Rocha, António de Macedo, Silva Melo, Seixas Santos, Campos ...) que dizia não rever na relação da geração actual com o fazer cinema; No entanto, parece não haver cá hoje outro horizonte do que a utopia. As certezas são nenhumas, e nunca como agora foi tão necessário pensar o lugar do cinema neste país cosido sobre si, que à época lavou

os olhos com o estilo jovem, e que hoje parece esforçar-se por enterrar as artes de vez. Não há como deixar de evocar o compromisso de Fernando Lopes para com a RTP, que deve actualmente, por consequência, servir para reflectir a crise nacional na concepção de serviço público de televisão. A noite de ontem, marcou-se na Cinemateca Portuguesa pela exibição de Belarmino (Fernando Lopes, 1964), por excelência o filme da memória colectiva. Desde esse ano, relembrou José Manuel Costa, “passaram-se 48 anos, tantos os do regime em que nasceu e em que foi um dos grandes sinais de resistência. E a sessão de hoje, 5 de Maio de 2012, ocorre num contexto dificílimo, em que o léxico das conversas é outra vez defesa, combate, união, em torno deste cinema que aqui nos junta.”

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Às cinco da tarde da passada quintafeira, de novo se reuniu no S. Jorge para se discutir a petição que por aí circula, assinada por realizadores, produtores, actores, programadores, distribuidores, que evoca um “Ultimato ao Governo”, assinalando o final do período de cerca de três meses de discussão pública da nova Lei do Cinema - uma proposta pendente, bem acolhida pelos profissionais do Cinema - decidindo-se então um pedido de audiência ao primeiro-ministro para a semana. No texto, lêem-se factos. Do relato - parti pris que submete o meu tom de comentário às miudezas do dissecar jornalístico, somente por parecer essencial a esquematização numérica e factual desta situação sem precedentes! - cita-se uma “situação dramática, com um corte de 100%, que não tem paralelo em mais nenhum sector de actividade". A paralisação do sector, com a falta aos compromissos do ICA nas produções financiadas para 2010 e 2011 e a falta de concurso em 2012 : “A produção de novos filmes está paralisada – e uma boa parte das empresas produtoras na iminência de encerrar, atirando para o desemprego milhares de pessoas – e a distribuição, os festivais, os cineclubes, a promoção internacional, sem quaisquer apoios”. As exigências dos signatários são que “o Governo encontre uma solução de emergência para a situação de ruptura e descalabro financeiro do Instituto de Ci-

nema e que permita dotá-lo dos meios financeiros necessários aos compromissos assumidos com os produtores e aprovados entre 2010 e 2011”; A homologação dos concursos de 2011 pelo secretário de Estado da Cultura e a sua contratualização pelo Instituto; Que a “versão definitiva da nova Lei do Cinema seja tornada pública de imediato e que o governo assuma um prazo para a sua aprovação em Conselho de Ministros e posterior apresentação à Assembleia da República”; Que a nova lei consagre “as contribuições e investimentos de todas as empresas que operam no mercado do cinema e do audiovisual”; O “reforço do princípio da atribuição dos dinheiros públicos de fomento do Cinema por concursos públicos”. É francamente irónica esta eminência de que se afunde o cinema quando, como nunca, se parece erguer qualitativamente a olhos vistos (de tal modo, que aos olhos da crítica estrangeira pareça estar de saúde). Depois de décadas de não-reconciliação, o público português parece procurar os filmes que exteriormente se premeiam. Em conversa no Indie Lisboa, após a recente exibição de Rafa (2012) de João Salaviza em sala esgotada, a curta que trouxe de Berlim o Urso de Ouro e que todos queriam ver, Salaviza encolhia os mesmos ombros da dúvida geral - sem Lei do Cinema, que continuidade?

Filmes-Fantasma Este é o governo de todas as contradições, mas são várias as portas da responsabilidade. Lembre-se a aquisição, em 2010 pela Zon-Lusomundo (ou pelo abafador, como assim a nomeava Manoel de Oliveira) de 90 filmes produzidos e comercializados por Paulo Branco e 27 filmes do património da Tóbis, também comercializados pelo produtor. Somando aos 45 filmes previamente

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adquiridos (pelo Coronel Luis Silva, anterior dono da Lusomundo), tornou-se a principal dona do património do cinema português, antigo e contemporâneo (com obras de Manoel de Oliveira, João Botelho, Pedro Costa, João César Monteiro, Teresa Villaverde, Margarida Gil, João Mário Grilo, António Ferreira, Catarina Ruivo, Claúdia Tomaz, Edgar Pêra, Eduardo Guedes, Fernando


Lopes, Ivo Ferreira, João Canijo, João Guerra, Joaquim Pinto, Jorge Silva Melo, José Álvaro Morais, José Fonseca e Costa, José Nascimento, Luís Filipe Rocha, Marco Martins, Mário Barroso, Raquel Freire, Rita Azevedo Gomes, Rosa Coutinho Cabral, Vicente Jorge Silva...). Filmes que, desde então, nunca mais se viram : “Quando se pede um filme para um festival pedem fortunas, que é para não mexerem neles, e estão a esconder uma das coisas mais valiosas na arte portuguesa que é o cinema português, porque são agentes comerciais do cinema americano". Lembra João Botelho, e para lhe dar razão basta consultar a agenda de uma das 217 salas do monopólio ZON-Lusomundo, ou a programação dos canais da TVCabo, ou os filmes disponíveis para aluguer na Zon-box. (Não há lugar nestas contas para os prodígios pimba Navarro-VasconcelosBreyner-Vieira, esse logro cujo financiamento, vá se lá perceber como, ainda vai sendo comparticipado por este grupo económico, como se de cinema se tratasse...) Num momento em que o tema da privatização da RTP anda aos solavancos na agenda (exemplificando como as vistas curtas de Passos Coelho inevitavelmente tomam uma emissora televisiva por negócio, no qual o Estado se deve abster de intervir, eliminando a qualidade de serviço público da consideração...), se este grande agente económico de vasta permeabilidade no mercado que é a Zon-Lusomundo, por uma vez se organizasse sob uma perspectiva artística e não em busca de um suposto retorno financeiro imediato - por exemplo, num projecto vagamente inspirado pela magnífica cadeia televisiva ARTE? E se assim, não só proporcionando ao público uma alternativa de visionamento, solidificasse um novo palco para a visibilidade das obras apoiadas, com uma identidade própria e uma programação efectivamente cuidada, de exibição televisiva e virtual?

A viagem em busca do Cinema Português não acaba - há vários baús onde é preciso volver. Lembramos O Movimento das Coi sas o filme abandonado da Manuela Serra (1985), inesquecível sessão de Novembro de 2011, na mais recente edição dos Encontros Cinematográficos da Guarda. Uma importante mostra que soube descentralizar a qualidade da exibição do seu macrocefalismo lisboeta, trazendo consigo outra preciosidade - o acidentado e magnífico Xavier, de Manuel Mozos (1992), que eu sonho um dia ver editado do melhor formato possível em DVD. A questão dos direitos (de exibição, de autor, de produtor, de edição, de sabe-se lá...), é mesmo um dos mais embaraçados novelos em que se paralisa toda a história deste cinema, e que, à medida que as gerações progridem - ao complicar-se entre burocracias e leis desajustadas aos dias de hoje - lhes vai amputando o direito de vir a conhecer certas coisas. Outros títulos portugueses, tantos, tão importantes e tão invisíveis, os que permanecem engavetados na história, lá no ANIM. À espera. Por sorte, para quem é de Lisboa, vão podendo ainda ser vistos amiúde numa sessão na Barata Salgueiro, quando a Cinemateca abre os cofres. (Uma Cinemateca, note-se, de auditórios renovados, jovens e presentes, longe da negligência do público de outros dias.) É o caso de António Campos, o independente documentarista que filmou sem subsídios, e de quem pouco se vê regularmente. Em 2009, a propósito da sua retrospectiva na 3ª mostra “Panorama”, uma notícia de jornal lembrava como a Midas Filmes anunciara dois anos antes a intenção de editar a obra integral do cineasta em DVD, mas que “o projecto continua alegadamente à espera de luz verde da entidade detentora dos direitos dos filmes”. Outro caso conhecido de quase invisibilidade é o do importante cineasta António Reis, cujos direitos se encontram em posse da mulher e co-realizadora Margarida

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Cordeiro.

Eppur si Muove! Já se sabe acerca das fraquezas na diversidade de oferta em sala ou na televisão (em canais generalistas ou por cabo), onde as programações discriteriosas indistintamente se entopem de filmes de hollywood de considerável orçamento e fraca qualidade. Já se sabe que estes, investindo em máquinas publicitárias esmagadoras, aí garantem a adesão das massas e as consequentes receitas, à custa da desinformação do seu público, insistindo numa padronização do estilo, nivelado por baixo à semelhança da globalidade dos conteúdos audiovisuais.

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Mas num cenário mais ou menos pintado nos tons catastrofistas, com a revolução digital, a internet surgiu para equilibrar o barco. Nunca como hoje - nem na geração dos Cahiers amarelos! - a cinefilia teve assim espaço para florescer, possível de acompanhar as nuances de cada gosto, de se expandir ao passo de uma descoberta ininterrupta, de gerar comunidades virtuais específicas, de descentrar a discussão, de dar a conhecer o mais submerso e mais raro. Film Studies For Free, o título é de um grupo virtual de discussão em torno do cinema, mas quase podia ser um slogan pronto a consagrar a essência da relação entre a cinefilia e a internet. É claro que a internet é, em primeiro lugar, um encontro sem paralelo com o extensíssimo mercado internacional de livros e DVDs especializados, incomparavelmente mais vasto do que a mais focada das livrarias ou bibliotecas em Portugal. E se é verdade que a experiência presencial se dissolve, que a atenção se subtrai perante a multiplitude da difusão de imagens, o novo espectador, alheio a condicionantes temporais e geográficas, pode tornar-se simultaneamente programador e crítico. O compartilhar de filmes é o primeiro al-

truísmo desta nova forma de viver a cinefilia, que dá a ver uma cópia do Trás-os-Montes (sem legendas, “ripada” de um VHS granulado, gravado da RTP2 em mil novecentos e noventa e tal), ao ávido japonês que anda a descobrir o cinema português através do Karagarga. Como eu, porventura, usarei a mesma plataforma para descarregar certos títulos japoneses de difícil acesso. É claro que algumas destas práticas passarão muitas vezes ao lado da lei, mas isso não é tão condenável como a deterioração das exigências com a qualidade técnica da exibição, que melhor saiba valorizar a obra em questão. E é aqui que entra o papel crucial do restauro, da edição, da distribuição, e da descentralização programática anteriormente mencionados: para que os filmes que imperativamente precisam de ser conhecidos, cheguem aos que os querem conhecer - se não no seu formato original, da forma mais próxima possível disso. A libertação dos meios de produção, que deu os primeiros passos com o acesso ao vídeo, tem hoje um tremendo protagonismo face às limitações crescentes das entidades subsidiárias. Na era em que todos somos massivos produtores, consumidores e editores de imagens, em que até a autonomia dos mais pequenos gadgets capta com uma qualidade extraordinária, dispensaram-se câmaras e equipamentos pesados, grandes equipas hierarquizadas, produções dispendiosas. (E, provavelmente, dispensam-se também as escolas de cinema...) Em relação a este contexto, o que dizer? O que ninguém tem muito interesse em dizer - seja porque são cineastas pessoalmente beneficiados, seja porque são críticos de cinema que não são cineastas (como todos os com um mínimo de visibilidade em Portugal, de momento...).


Interessa dizer, que se não há dinheiro neste país para filmar em película, então já não se devia filmar em película. E que, se a Lei do Cinema chegar, como esperamos, que chegue consciente da época digital em que se encontra - que distribua os seus subsídios mais equitativamente, apoiando um maior número de projectos. Efectivamente, permitindo que quem deseja iniciar um percurso no cinema, possa fazê-lo. Neste ponto de estagnação, espera-se para um veloz amanhã o cumprimento dessa promessa em suspenso, a Lei da Cinema que tarda. E ainda de outro projecto animador de Francisco José Viegas, que prevê a implementação de um Plano Nacional do Cinema, a partir do ano lectivo 2013-2014, a compreender cem títulos chave da história do cinema nos programas de ensino. Até ver, contam-se zero faces de respeito da parte deles. Eles, os direitistas mais tortos de âmago que por cá andaram. Seja para que direcção se olhe, todos à mercê dos dias e a traçar as figas, à espera do mínimo vislumbre do que só pode ser - que isto siga para melhor.

Sabrina Marques, CZARADOX Lisboa, 6 de Maio de 2012

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Filmar o quê e como? Sobre o cinema de António Campos É já consensual, assumido e verificável que a possibilidade de todos e cada um de nós fazer um filme deixou de ser exclusivo de grupos restritos. Fundamentalmente, esta possibilidade assenta no maior acesso aos meios tecnológicos porque, muito claramente, captar imagens e sons implica necessariamente equipamento. A questão pois que se coloca é: filmar o quê e como? A este respeito, várias poderão ser as respostas, uma delas é ir ao passado do cinema. No caso português, António Campos (Leiria, 1922 – Figueira da Foz, 1999) servirá como exemplo, essencialmente por duas razões: 1) os seus filmes foram feitos com poucos recursos e 2) a sua filmografia não se restringe a um género, fez documentários e ficções. Desconfortável com um cinema onde predomine a figura do produtor e fortemente avesso a uma organização que pudesse afetar a sua liberdade, António Campos encontra na abordagem documen-

tal a possibilidade de um outro cinema mais arrojado, um “anticinema”, para usarmos uma expressão sua. O que interessa ao realizador é uma outra forma de produção, mais pessoal e mais íntima no contacto com os intervenientes do filme e, também, com os espectadores. No contacto com os intervenientes a falta de orçamento para um formato profissional (35 mm) - praticamente toda a filmografia de Campos foi realizada no formato amador (8 ou 16 mm), um equipamento mais manejável e mais facilmente transportável – tornou-se uma vantagem porque lhe permitiu deslocar-se quase sempre sozinho e estabelecer um contato direto com as pessoas que queria filmar. O formato amador também permitiu exibições fora do circuito comercial, em especial em Cine Clubes - onde maioritariamente os seus filmes foram exibidos e debatidos, muitas vezes na sua presença. Campos tinha assim um contato mais direto com o espectador.

O que é que António Campos filmou? Campos optou por selecionar temáticas que lhe eram próximas. No seu primeiro filme O Rio Lis (1957), filma o rio que passa em Leiria, sua terra natal. Esse filme foi uma experimentação da sua primeira câmara de filmar, o seu primeiro contacto com a realização cinematográfica e onde ensaia aproximações ao real. No cenário natural, Campos encontrou o seu laboratório para exercitar a agilidade técnica. De um tema que lhe era geográfica e sentimentalmente próximo passou a integrar temas que são próximos, quer a si, quer a

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todo o povo português, ou seja, ao presente, àquilo que está a acontecer “aqui e agora”. Aquele que passou a ser o seu lema: filmar o presente, passou, também, a ser uma missão a cumprir pelo cinema. Definido o seu propósito, Campos realiza os seus documentários maiores: A Almadraba Atune ira (1961), Vil arinho d as Fur nas (1971) e Fa lámo s de Ri o de Ono r (1971) assim como a sua mais emblemática ficção: A Invenção do Amo r (1965). A Al madra ba Atuneira é sobre aquela que foi a última almadraba ou “companha” de pescadores de


atum na Ilha da Abóbora, Algarve. É um filme que presta homenagem ao árduo trabalho destes pescadores e pouco depois do filme estar concluído, o mar destruiu este arraial algarvio. Vil arinho das Furnas e Falámos de Rio de Ono r são sobre duas comunidades agro-pastoris, no primeiro Campos desloca-se à aldeia minhota para registar a vida comunitária quando todos já sabiam que Vilarinho iria ficar submersa por uma barragem. Em Rio de Onor, na zona de fronteira entre Portugal e Espanha, Campos filma a vida comunitária e a origem do desmembramento dessa vida, a emigração. A invenção do Amor é um filme de pendor modernista a que o próprio Campos chamou de “realidade subentendida”. O filme tem lugar num tempo e num espaço sobre os quais não nos é fornecida qualquer

indicação precisa, mas que facilmente podemos identificar como sendo o do regime salazarista. A i nvenção do Amor, baseado no emblemático poema homónimo, de 1961, do poeta natural de Cabo Verde, Daniel Filipe é tão contemporâneo, representativo e atual na sua temática - pois trata de uma vivência do povo português que haveria de se prolongar até abril de 1974 – quanto, por exemplo, Vilarinho das Furnas. Em suma, os temas que motivaram Campos primam pela sua atualidade (o que, em grande medida, é correlativo de uma preservação da memória coletiva). Assim, filmar o presente é a expressão que melhor define a sua conceção de cinema e que atravessa toda a sua filmografia.

Como é que António Campos filmou? A respeito do “como” destacamos os principais aspetos que caracterizam a sua atividade enquanto realizador, que decorrem e se adequam à sua conceção de cinema. Campos filma o presente, com dignidade e justeza, sem lamentações, nem recorrendo a qualquer tipo de demagogia, nem estimulando qualquer tipo de exotismo. Por exemplo, nunca os cantares típicos são usados para embelezar genéricos iniciais ou finais ou qualquer outro momento do filme. A existirem, apenas aparecem sincronizados com a imagem. A vida do povo português preencheu e encheu o ecrã dos seus filmes, mas Campos nunca cai no mero “postal ilustrado”, nem no mero exercício formal, nem naquilo a que podemos chamar de um “assalto ao real” (ou seja, Campos afasta-se de um registo “nu e cru” do real). Por exemplo, em Vilarinho das Furnas é o Sr. Aníbal, que aparece logo no início do filme, quem nos conduz pela comunidade. Este filme é um

ato de resistência, solidário com os habitantes de uma aldeia irremediavelmente ameaçada pela construção de uma barragem. E aqui, o olhar de Campos não é de resistência ao progresso, mas de um alerta para a sua violência. Apesar de muitos dos seus filmes terem como ponto de partida contos literários, por exemplo, de Miguel Torga, Loureiro Botas ou Ferreira de Castro ou estudos antropológicos, Campos não abdica dos recursos próprios ao cinema. A sua câmara é sinónimo de “olho humano”, ou seja, o que se pretende é uma sobreposição entre o ecrã e o objeto filmado e os limites do quadro fecham, guardam e preservam o objeto filmado para o espectador, aquele que poderá olhar para o passado através dos seus filmes. É uma câmara atenta a tudo o que a rodeia, movimentando-se para absorver e preservar no ecrã o mundo de “hoje”. Como o próprio Campos disse, os seus filmes pretendiam “tornar sólido um presente onde o

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futuro se possa articular”, por isso, a sua missão de filmar o presente constitui-se como fundo moral do cinema. Assim, em Campos, o espaço fílmico é um espaço de permanência. No filme Um Teso iro (1958), aquele que o próprio Campos considera, de facto, o seu primeiro filme, a protagonista entra em campo num primeiro plano e nos dois planos imediatamente a seguir é apresentada já dentro de campo. Este procedimento de deixar que elementos entrem em campo e aí permaneçam, vai manifestar-se em toda a sua filmografia. A permanência em campo irá centrar a atenção de Campos no enquadramento e composição dos planos. Dentro de campo, os elementos são apresentados de modo equilibrado numa composição constituída por uma figura e o seu fundo (a profundidade de campo é a de um primeiro e segundo planos). Quanto ao enquadramento, os elementos encontram-se, maioritariamente, centrados. São estes, no essencial, os aspetos que enformam o “como” que Campos colocou em prática. António Campos é aqui apresentado como um exemplo de como o cinema se constitui em projeto ao mesmo tempo artístico e pessoal. É um exemplo a seguir? Não. Ao contrário do que se costuma dizer, os exemplos não são para ser seguidos. Perante os exemplos deverá ser adotada uma atitude adequada à contemporaneidade; lançar sobre eles gestos que caracterizam a atual produção artística, tais como: combinar, recombinar, conjugar, fragmentar, reformular, ajustar, confrontar, religar, reciclar; em suma, ter os exemplos (que em sentido alargado significa conhecer o passado do cinema) apenas como pontos de referência e sobre eles construir o presente e o futuro.

Manuela Penafria Professora na UBI/Dept. de Comunicação e Artes (texto sob o Novo Acordo Ortográfico)

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O Fauno das Montanhas (1926), de Manuel Luís Vieira Tivesse o cinema apenas nos dado o sonho, mas deu-nos também a realidade... Fosse apenas isso e não teríamos mais que os presentes banais que cada um, ao seu jeito, faz. Que o tempo, por sua vez, desfaz. Mas deu-nos este presente sem futuro que tanto tempo passado, nunca deixa de ser presente. Se o movimento é a vitória do espaço sobre o tempo; Se a acção é a vitória da vida sobre o movimento, o cinema é a vitória da memória sobre a acção. Quando a ideia de verdade sai do mundo fático, quando da dedicação de um homem resultam 45 minutos da vida de outro, inserindo, à força, a memória de outros tais, quando isto acontece, o que temos não é obra de qualquer outra índole, é ciência o que se faz. O Cinema nunca deixou o propósito científico porque foi criado, a prova disso, uma daquelas algures perdida, é O Fau no d as M ont anhas. É uma máquina do tempo. Uma ilustração, um retrato geográfico e psicológico. Uma expedição, não só a uma Madeira perdida e selvagem, mas a uma psique ainda mais impenetrável. Uma descoberta, uma cura para a memória. Ainda assim, o mais interessante de O fauno das mont anhas é a visão fratal que contém, tão relevante e desprezada: Se o filme se propõe a uma viagem de um pai e uma filha ao interior recôndito de um país e nele se encontraram, nós propômo-nos, enquanto espectadores, a uma viagem para descobrir as personagens. E aquilo que descobrimos é um país. E naquilo que

procuramos encontramo-nos, sempre na procura, sempre nós próprios, mais pequenos a cada passo, descobrindo-nos também na paisagem que abarca o enquadramento, até ao universo negro fora da luz que molda o filme, sempre mais pequenos, até nós próprios e aí recomeçamos. É este colocar em perspectiva, filmar, que faz O Fauno das mo ntanhas. Entra-se num túnel, como quem entra na mente Humana. Entra-se na mente da personagem feminina como quem entra num túnel, por etapas. Primeiro o sonho acordado, a expectativa. Depois o pesadelo, os desejos e os medos inconscientes. Depois a realidade de volta, a consciência, a luz e a resolução. Quando Jinny atravessa a gruta, atravessam-lhe os mais tenebrosos receios, é uma cultura passada, moral e religiosa o que lhe causa a aflição, não a natureza escondida no breu. É a sua sexualidade exposta, o medo do homem simples, de desejos simples, a imaginação e a volúpia juntas em faustosas danças. O pesadelo de Jinny com o homem simples que tomou por fauno numa agressão ao seu pai significa que o seu receio não a afectava a ela directamente, mas ao seu pai: ele: a ciência, decência, a sociedade moderna, a família, a moral. O mais importante no filme é o que ele esconde, o que ele diz por outras palavras... Diz-nos que é sempre, tudo, uma questão de ângulos e escalas. Também a História se encontra, nos encontra e segue o seu caminho. O que há de mais remoto e

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profundo está perdido algures em nós. A forma e o conteúdo em harmonia, a matéria e o espírito; pais de um filho pródigo, porque em devir constante: O Cinema.

Edmundo Cadilha

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Sobre A Dança dos Paroxismos O primeiro intertítulo não só mostra o título do filme como precisa a sua origem: «filme português», imprecisando, em simultâneo, a data: «1929-1930». Segue-se um plano com um travelling que passeia, nervoso, por céu e árvores, seguindo-lhe sobreposições das mesmas em negativo (confluência de duas dimensões [no mínimo], como em No sferatu). Estas imagens serão repetidas no final do filme, e por isso sabemos tratar-se de imagens em câmara subjectiva que simulam o olhar de um homem que morre, o que legitima a ideia de que todo o filme que se segue será visto em diferido, porque activado por um dispositivo de memória (naturalmente, não fiável) de um homem moribundo (o termo paroxismo no título parece corroborar esta leitura, se o lermos como «os últimos momentos da vida»). O suficiente para se dizer que este é um dos primeiros filmes da história do cinema a ter na sua base uma diegese totalmente em flashback. No entanto, apesar dos possíveis problemas narratológicos, A Dança dos Paroxismos não é um filme que confortavelmente assente no paradigma do cinema narrativo, e para isto aponta a escolha das palavras no intertítulo seguinte: «Ensaio visual de Jorge Brum do Canto»: numa altura em que o privilégio que o cinema mudo havia dado ao trabalho da imagem se via ameaçado pelo estabelecimento do som como processo essencial à prática do cinema, o filme de Brum do Canto assume-se como ensaio sobre as imagens (um ensaio que parte dos interstícios das próprias imagens sobre as quais pretende reflectir), isto é, sobre a possibilidade de trabalhar o visual em cinema.

A fotografia, diz-nos o genérico, é «cuidada por Manuel Luiz Vieira», como quem diz que a imagem, aqui, não ilustra, antes produz. E, por fim, o gesto decisivo de se filiar a uma estética específica: «A Marcel L’Herbier, o creador de “Eldorado” e de “O defunto Pascal”». A D ança (das formas) desenrola-se de modo solto, rumo a um caminho aparentemente incerto, e, embora o paradigma seja o da primeira vanguarda francesa, o filme de Brum do Canto talvez acabe por falhar na articulação entre a espessura do real e a irrealidade fantasmagórica da imagem cinematográfica que os vanguardistas franceses tão bem faziam. A Dança do s Paroxismo s nunca consegue ser um poème cinégraphique (como os de Dimitri Kirsanoff), embora tal dificilmente se possa apontar como defeito a um filme que se assume, desde o seu início, como um «ensaio». Dispondo, então, dos termos que ele próprio sugere, dir-se-ia que, como filme ensaístico (sobre o cinema de L’Herbier et al.), funciona nomeadamente na eficaz articulação de toda a gramática formal explorada pelos realizadores da 1ª vanguarda. No entanto, estes fantasmas nunca se insinuam para lá (/cá) da sua origem mecânica, que os inumaniza (L’Herbier) até ao ponto da transparência. No experimentalismo técnico de L’Herbier insinua-se a tessitura do real; no de Brum do Canto não há real, porque o filme se esgota em exercício de autofagia cinematográfica. Para filme sobre os paroxismos de um condenado à morte, revela-se, porventura, demasiado indolor. Apesar disto, nada justificaria o silenciamento (por invisibilidade) que foi im-

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posto a A Dança do s Paroxismos, um dos primeiros exemplos de muito bom cinema auto-reflexivo em Portugal.

José Bértolo, Nitrato lírico

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O Pintor e a Cidade (1956), de Manoel de Oliveira Muitas vezes é definido como um filme documental; e sim, tem algo de simples e de verdadeiro que lhe pode conferir essa conotação, mas pelo contrário, O Pintor e a Cid ade pode ser tudo, tudo menos um documentário sobre a cidade do Porto. É talvez um devaneio, um percorrer da cidade pelos olhos dos próprios, Pintor e Realizador. Magotes, crianças, o vapor das máquinas, as pontes, a civilização e ele, o Pintor. Quase um retornar refrescante ao Cinema de Douro Faina Fluvial, às ideias de Ruttmann, acompanhadas por essa simbiose deliciosa, por esse paralelismo inevitável entre a pintura e o Cinema. A exaltação da era moderna, bastante evidente nas imagens e esse saudosismo que irrompe das conexões entre fachadas de prédios novos, que rasgam com cor os céus da cidade, e as velhas paredes graníticas de edifícios e monumentos que pontilham abundantemente a cinzenta cidade do Porto. Metrópole que tinha nas veias essa sociedade fabril que em tempos lhe deu vida. Operários, centenas deles, entram e saem, numa azafama urbana por entre a qual o olho observador do Cineasta e do Pintor, abraçados, se imiscuem de forma tão pura.

lizam o objecto, atingindo o ponto em que nos fazem ver que o que é belo por vezes está colado na nossa testa. Peca, sim, talvez por não fazer transparecer a sua ideia Mãe de uma forma mais segura e transparente. Não obstante, a justaposição das formas de arte e da óbvia necessidade da mesma por parte de ambos os artistas, as suas cores esbatidas (em ambos os casos) e os seus enquadramentos desafiantes acompanhados por uma banda sonora que não passa despercebida, tornam-na numa obra de um invulgar interesse, conferindo-lhe assim um lugar cimeiro, tanto na cinematografia do autor como no que diz respeito ao panorama do Cinema Português dentro destes moldes.

Ricardo Madeira

O que nos é pedido enquanto espectadores, é que nos deixemos levar pela mão e nos deixemos arrastar por esse infindável mundo de comparações entre formas e cores que muito ficam a dever à beleza nestas feições. É o poder do tempo, da montagem, das imagens que respiram e descontextua-

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A Caça (1964), de Manoel de Oliveira Por um lado, A Caça é uma obra que vinga pela sua simplicidade narrativa, que não poderia ser mais simples e directa, tanto em termos cinematográficos como em termos de exposição diegética no seu todo. No entanto, o reverso da medalha é o mais interessante, sempre. Feita durante o período da ditadura salazarista, é um murro na mesa, pela calada. Não foram a falta de apoio e a censura à perna que fizeram Oliveira baixar os braços. Depois de uns longos três anos de espera, consegue finalmente rodar a tão desejada curta metragem. Se tivesse de usar uma, e só uma, palavra para definir "A Caça", talvez essa palavra fosse Parábola. Acompanhamos a jornada de dois amigos, jovens, que decidem ir caçar, sem a espingarda que o Pai de um deles se recusa a emprestar a dois rapazolas daqueles. Caminham pelas ruas daquela localidade, e aí somos entregues ao génio de Oliveira que salpica a tela com planos de génio, pequenas metáforas surreais e subversivas que nos indicam qual a verdadeira direcção a seguir no meio deste pequeno trilho de filme. Creio que tudo começa a fazer maior

sentido quando um dos rapazes olha fixamente uma estátua que está claramente protegida por umas altas grades e por uma grande ave negra. O fruto proibido! O desejo do Zé Povinho, todo ele interdito pela mão negra do regime Salazarista. Assim, mesmo sem a espingarda, os dois jovens decidem deambular pelas zonas de caça, onde têm conversas, que têm impressas em si próprias essa indelével quantidade de deliciosa repugna ao regime. Nos entretantos, dá-se o momento alto da acção; um dos Jovens cai num poço de lama e começa a afundar-se, lentamente. O seu amigo, esse, enche o peito de ar e corre até à aldeia em busca de ajuda. Consegue reunir alguns transeuntes que se deslocam ao local e que tentam fazer uma espécie de corrente humana para que consigam tirar o jovem do poço de lama. Aqui, surge uma das mais caricatas situações que dizem respeito ao filme em si. Os homens, todos de mãos dadas, puxam e gritam, esforçam-se para conseguirem ajudar o rapaz, mas, não se entendem. Uma mão que escorrega, um braço que fraqueja, um que pragueja com este, outro com aquele, e rapidamente se esquecem do pobre rapaz.

A mão! A mão! A mão ! Grita o maneta enquanto o mancebo se continua a afundar nas águas lutulentas. Era assim, com esta espécie de aviso, que terminava a versão original da pequena obra. Mas a censura, de forma infeliz, exige que se crie um final alternativo que exalte a entreajuda e que culmine no salvamento

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heróico do rapaz através da força da união e do entendimento entre os camaradas que formam a corrente humana. Este não é um filme sobre dois ra-


pazes que vão à caça, e dita o terrível ensejo deste nosso Portugal, que não há, certamente, melhor altura para se ver ou rever um filme destes. Um tesouro obrigatório desse Lusitano Cinema perdido.

Ricardo Madeira

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Mudar de Vida (1966), de Paulo Rocha He said come wander with me, love. Come wander with me... Away from this sad world.. Come wander with me...

Bonnie Beecher, em Come Wander with me, canção e episódio da Twilight Zone Mudar de Vida é o segundo filme de Paulo Rocha. Podia ter sido o primeiro, porque era um projecto já antigo mas que não aconteceu, na altura. Só uns anos mais tarde, depois de estrear Verdes Anos, é que tomou forma. Portanto talvez não faça grande sentido falar na transição oriental na carreira de Rocha em Mudar de Vida, não só por isso mas também porque a admiração pelo oriente era já antiga e em Verdes Anos se calhar até já se sente. Mas como é de Muda r de Vida que aqui nos ocupamos, ocupemo-nos disso mesmo. Para acabar com a questão, a paisagem do filme é capaz de nos remeter para o “oriente” e há uma consciência disso por trás da câmara (ler “na forma de enquadrar”). Os barcos no rio, a vegetação, a neblina. Enfim, pode-se também dizer que o próprio conflito remete para, por exemplo, um Ugetsu M ono gatari. Para Sunrise ou City Girl, também, que são “ocidente”. Mas como é injusto para este filme entrar em comparações destas (e nem por serem dois dos maiores artistas do séc. XX, mais por Mizoguchi e Murnau terem na altura desses filmes as formas resolvidas, era já um olhar sereno sobre as coisas; Rocha começava, ainda, o olhar era jovem) escrevo sobre o que ele conta (e conta tanta coisa).

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Adelino regressa à terra natal depois de anos sem dar ou ouvir notícias. O tempo permite que “os seus” façam as suas vidas, que a sua prometida, Júlia, se torne sua cu-

nhada, que o mar avance sobre a areia e sobre as casas e que ele pouco reconheça do Furadouro. Depois de se habituar à mudança, transita, e a paisagem acompanha-o (repararão que a primeira metade do filme é “mar” e a segunda, “rio”, que Adelino percorre muito discretamente essa transição, além de chegar a dizer “eu dantes gostava do mar e agora gosto do rio”, a dada altura no filme). Paulo Rocha disse que o mote do filme foi registar esse mundo antes de desaparecer e a transição está registada e colada às personagens como dispositivo cénico. Se o mar varreu as memórias, é preciso procurar outras – é preciso mudar de vida - e aí entra Albertina, a aparição angelical do filme (anjo da guarda, salvação, fabulosa Isabel Ruth). Cruzam destinos numa capela, pormenor que não me parece inocente, ele lá para meditar e ela para pilhar as esmolas. Se é ele que começa a tentar corrigir a conduta dela, é ela que acaba por o salvar (ou é um salvamento mútuo), e ao tentar compreendê-la enterra o resto, esquece Júlia, esquece o Furadouro. Ela, que não compreende juras de amor e, ele, escravo eterno da paixão, sentem-se seduzidos pela diferença, pela barreira das ideologias e das vidas que levam. Ela, a modernidade, ele, o passado. Os lindíssimos encontros na cabana de palha, a teimosia dos dois, as discussões, os desatinos e as más-línguas. O final que os encerra, com o alívio de poder sobreviver, apesar de tudo. Risos de resignação? Talvez... se calhar é preciso viver mais uns anos para perceber se sim ou


se não. Tentada foi a génese dos acontecimentos e das intenções do filme, pela minha parte. Só que há mais coisas, porque nem só de forças naturais se alimenta o filme. Que dizer dos rituais quase em cumprimento fúnebre? Das pescas, das cantigas e das marchas que parecem feitas com um grande pesar e uma grande saudade? E do interlúdio musical que leva Júlia a perder os sentidos, quase arrebatamento de culpa e angústia. Pode ser que o filme não dê muitas respostas mas diz-nos, pelo menos, que os tempos já foram assim, que já houve homens que lutavam contra a Natureza com os braços. Desprotegidos. Homens que ganhavam só para o pão e que continuavam. Que é agora o Furadouro? Mudar de Vida parece uma antologia de últimos momentos: para o amor, para a pesca, para as tradições e para a vida. Um monumento à sagacidade e agudeza de toda esta gente. Despeço-me, deixando dois poemas que me parecem fazer algum sentido, um do Man'yoshu e outro do Kokinshu (duas antologias poéticas japonesas):

“If this were a world in which there were no such thing as false promises, how great would be my delight as I listened to your words” “I long for a way to recapture bygone times, to see the palace of which I but hear rumors noisy as a rushing stream”

Miguel Cunha, No Princípio era o verbo

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Jaime e a lucidez silenciosa Nietzsche, a propósito do seu conceito de intempestivo, disse-nos que por sobre os grandes eventos barulhentos da linearidade histórica existem pequenos acontecimentos silenciosos que ecoam nas suas traseiras. Esta “justaposição” é a presença do poético sobre o histórico. Ao olhar o corpo de filmes de António Reis e Margarida Cordeiro apetece dizer que estes são a perfeita ilustração desse “silêncio”, dessa poesia visual que nunca deixou de se manter na sombra para que a história do cinema português pudesse fazer ainda mais sentido. Em particular a média-metragem Jaime (1974), o primeiro filme rodado em película dos dois, enceta um movimento frágil e delicado, que nunca viria a deixar os autores e que usa as imagens e os sons para essa passagem operada entre o espaço físico, da natureza, e o espaço mental, poético, ancestral. Ao contrário de outros “eventos silenciosos”, como o foram a estranheza e a brevidade de Rimbaud e Kafka na literatura, ou da energia vitalista de Jean Vigo no próprio cinema, a arte de António Reis e Margarida Cordeiro bate-se por uma outra energia do íntegro e honesto na relação do cinema com a realidade. A grande “luta” com um filme como Jaime reside sobretudo na procura de novas pistas para um grande mistério que a obra contém e que não se deixa apenas explicar num perfeito domínio da linguagem cinematográfica. Esta acontece no interior de uma premissa que tenta documentar a vida de um homem que passou mais de trinta anos no Hospital Miguel Bombarda, e fá-lo a partir dos lugares mentais que aquele criou através da sua arte. Se a busca de uma “pureza” do género documental, no domínio do retrato de alguém, pode dizer-se

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que se faz na luta entre fixar imagens que tentem fazer justiça a essa fluidez interminável de ausências de sentido (o único sentido justo e completo do humano), António Reis viu como ponto de partida lógico uma dupla ausência. Jai me evoca uma primeira ausência factual, a morte do paciente, do homem, do artista. “Oito vezes Jaime morreu já cá”. E a viúva, que ainda o chama, fá-lo para nós, “mal empregado homem, mal empregada senhora”. Contra essa ausência inexorável, o cineasta trabalha uma outra: a ausência de sentido que Jaime fazia para a sociedade, essa transmutada nos seus escritos e pinturas em que o artista trabalhava a sua própria “desidentidade”: “Neñgueñ. Soieu”. São essas “fotografias de obscuridade”, trabalhadas por Jaime a seu bel-prazer, que nos abrem o contacto entre o mistério da sua arte e o nosso rótulo da sua insanidade. Essas ausências que referimos permitem a António Reis explorar simultaneamente o impressionismo, a “consciência da matéria e do espaço” e o expressionismo dos seus estados mentais (como explica José Manuel Costa no texto que escreveu sobre o filme para a Cinemateca Portuguesa), sendo que é a ficcionalização das formas e do som a partir das obras de Jaime aquilo que permite a evocação quase-biográfica do homem ausente. Evocação feita entre duas fotografias que abrem e fecham o filme. Assim, o evento silencioso que é Jaime, a sua poeticidade, está sobretudo nessa forma de construir e instruir o real pela subjectivização pura, de conceber o registo documental depurado através da intervenção criativa, transformadora. Nesse vai-vem, António Reis deixa ver o seu universo em que se fundam as raízes profundamente antropológi-


cas, científicas, do espaço onde coloca a câmara e a lógica organizadora e dialéctica da sua montagem, com os sons e imagens “entredevorando-se”, como aliás disse na célebre entrevista dada a César Monteiro para a Cinéfilo em 74. Essa dupla partição do imaginário de Ja ime começa com os planos mudos, em íris, a revelar um olhar simultaneamente curioso e de “pudor estético” sobre o pátio exterior do hospital. Dessa observação de outros pacientes, nas suas presenças e sombras, mas também das linhas redondas da fonte central ou do próprio pátio circular panóptico, Reis migra para o exterior e para o som e para o espaço onde viveu ainda em liberdade Jaime. Esse espaço de texturas naturais, de riachos, de campos de flores, de composições de uma natureza morta misteriosa (como é o famoso plano das maçãs e da máquina de costura ou do guarda.chuva aberto sobre o milho) são o espaço físico de onde emana a interioridade artística de Jaime. Dos retratos que “também hão-de morrer” visita-se a textura das redes, das frases, as linhas de zeros, a linha dos montes e os inúmeros olhares, abismados, expectantes, de um ou mais corpos. A câmara de Reis está sempre entre mundos, a

desfazer a metáfora, o símbolo e a buscar a limpidez das formas, de um passado rural tornado tela e frase. Nessa viagem, Jaime, o “louco-são”, artista prisioneiro, que sabia do “oficio” de meter os homens nas estrelas, constrói o cineasta Reis. E Reis agradece-lhe, fazendo do seu ensaio uma homenagem à lucidez pairante de um homem que “nada sabia”. Mas o seu percurso comum prolonga-se. Ambos passaram da escrita à imagem. Mas enquanto a escrita de Jaime se foi tornando ilegível e visual, a passagem de Reis da poesia ao cinema nunca abandonou uma profunda crença: a de que o verdadeiro objectivo da sua arte estava menos na fiabilidade de uma tecnologia e mais na revelação privada dos seres na sua relação com a terra. É essa revelação-libertação que, ao ser trazida a um homem como Jaime, é também sinal de uma libertação maior. A de um povo também ele “louco”, também ele encerrado num regime, então, prestes a ceder.

Carlos Natálio, Ordet.

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Trás-os-Montes (1976), de António Reis e Margarida Cordeiro “Posso dizer-te que jamais filmámos com um camponês, uma criança ou um velho, sem que nos tivéssemos tornado seu companheiro ou amigo. Isto pareceu-nos um ponto essencial para que pudéssemos trabalhar e para que as máquinas não levantassem problemas. Quando começámos a filmar com eles, a câmara era já uma espécie de pequeno animal, como um brinquedo ou um aparelho de cozinha, que não metia medo.”

António Reis in Martins, 1993, p. 45. Trás-os-Montes, objecto tão puro e tão rudimentar quanto o mais remoto dos sítios desse Nordeste Transmontano que Reis e Cordeiro quiseram documentar é coisa bruta, por lapidar, cinema que nasce da exposição do objecto e do recriar dum tempo perdido e distante, cinema que nasce da sua crueza e da sua mitificação, da recusa da total documentação e ficção, ou seja, duma certa fusão nesses dois géneros que não aceita totalmente quer o real quer a ficção. O que Reis e Cordeiro expõem são os ritos duma região oculta do nosso Portugal, ritos esquecidos e “engavetados” na cultura transmontana, coisas de outrora a que os cineastas dedicaram, como diria Leitão Ramos, “um dos olhares mais rigorosos e comoventes jamais lançados sobre essa terra”, um olhar lírico e apaixonado em busca do mito e do imaginário do homem transmontano de outrora, em busca duma honestidade e dum telurismo da região que não existe mais. Coisa que foge à narrativa (e ao folclore) em busca do irromper da cultura popular de Trás-os-Montes como principal propósito, do recriar simbólico, alegórico e antropológico dessa mesma cultura, dos ritos, do primitivismo e das paisagens e monumentos ancestrais transmontanos que

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hoje em dia cada vez mais se vão desvanecendo. Procura-se o passado numa mistura com o presente, procura-se o imaginário numa mistura com o real. Monumento à vida, monumento ao povo, homenagem à terra. Fora de qualquer embelezamento visual ou sonoro (a que o som muito se procurou recriar ancestralmente) e fora de qualquer contexto comercial, filmado por entre os montes e aldeias transmontanas, Trás -o s-Mo ntes procura se movimentar nesse meio entre a ficção e o documental, mas sobretudo, bem assente na “rudimentarização” dum cinema cru e estéril de qualquer atractivo visual ou narrativo só comparável ao cinema de Paradjanov tanto na estética como na veia simbólica e alegórica que brota. Arte das artes cinematográficas que procura documentar e evocar memórias ancestrais de tradições, usos e costumes dum Nordeste Transmontano dis-

Álvaro Martins, Preto e Branco


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O Movimento das Coisas (Manuela Serra, 1979-85) A filmes como O Movimento das Coisas costuma aplicar-se a designação “documentário”. É despropositado, nesta “folha”, retomar a discussão acerca de tal designação e do que separa ou não separa, enquanto objecto fílmico, o documentário da ficção. Mas também não adianta iludir a questão classificativa e acrescentar lugares comuns do género dos que afirmam que toda a ficção é documento e todo o documento ficção. Porque O Movimento das Coisas se situa na região indefinida onde essas questões podem e devem ser postas sem as reduzir a chavões. Para exemplificar apenas com filmes portugueses recentes, pode ser grande a tentação de aproximar O Mo vimento das Co isas das obras de António Reis e Margarida Cordeiro, particularmente Trá s-os Mo ntes e Ana. A meu ver, não há maior contra-senso. Não apenas por uma questão qualitativa (se muitos são os méritos de Manuela Serra, há uma enorme distância entre tais méritos e a grandeza atingida por António Reis e Margarida Cordeiro) mas sobretudo porque a raiz do filme que vamos ver, o seu imaginário e o seu fantástico, são de ordem completamente diferentes. Se comecei por uma comparação ingrata a Manuela Serra, não foi para apoucar (mesmo relativamente) o seu filme, mas porque essa comparação tem sido exercida noutros textos sobre esta obra prejudicando a sua compreensão e o seu alcance. Atrás usei (e sublinhei) o adjectivo indefinida. Não foi por acaso. Ao rigor que preside aos regressos originais e originados de António Reis e Margarida Cordeiro, opõe-se em O Mo vi-

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mento das Coisas uma indefinição que lhe dá grande parte do seu interesse e o singulariza não só em relação à via única - e inimitável - desses cineastas, como a singulariza em relação a outras obras que podem, à primeira vista, ser aproximada desta, como são os casos dos belos filmes de António Campos ou de Philippe Constantini. O Mo vi mento das Co isa s não é nem pretende ser uma gesta mítica, como não é nem pretende ser um documentário etnográfico ou antológico. Reparar-se-á que a aldeia onde o filme se passa nunca é situada. Lanheses é um nome que só aparece no genérico final, nos agradecimentos da autora. Qualquer português identificará a aldeia, situando-a no norte de Portugal, mas a imprecisão geográfica, ou a indefinição, para usar um termo mais apropriado, existe desde o inicio do filme. Não sabemos bem aonde estamos e nunca saberemos porque razão a realizadora nos levou até ali. Aparentemente, é uma aldeia igual a tantas outras, onde coexistem ritmos ancestrais com influências da emigração, aldeia onde predominam as mulheres, mas onde o trabalho destas não é exclusivo e as marcas de incipiente industria se começam a fazer sentir. Mas, desde a belíssima abertura, com o rio, as névoas, os juncos e a câmara, muito lentamente, a descobrir-nos a povoação, sentimos que há uma relação física entre o olhar da câmara e o que esta nos dá a ver, como se aquele espaço, aparentemente indefinido, fosse também o único espaço possível para a corporização do imaginário contemplativo de Manuela Serra. Essa mesma indefinição entre os di-


versos materiais é uma constante que atravessa o que o filme nos vai dando a ver, com grande demora e certeira beleza. O filme não nos conta uma história (a família que o atravessa jamais é portadora de qualquer ficção ou qualquer verdade); o filme não ilustra o quotidiano de uma aldeia (as imagens do quotidiano mais ofuscam a narração do que a esclarecem); o filme não está ao serviço de qualquer causa (em vão procuraremos ver nele leituras políticas, sociais ou etnográficas); o filme não segue o ritmo exterior temporal (género, um dia na vida de uma aldeia, ou o ciclo de estações). Podia continuar as enumerações, respondendo sempre pela negativa. E, no entanto, tudo isso lá está (história, quotidiano, causa, tempo, espaço) mas lá está no mesmo modo indefinido com que penetramos na comunidade. Numa língua literária, diríamos que a realizadora nunca utiliza artigos definidos, mas opta sempre pelos artigos indefinidos. Como estes “artigos” se articulam a uma matéria correcta (aparentemente despida de qualquer metafísica) a conjugação é estranhíssima e impõe, desde o inicio, um singular perturbação. O exemplo flagrante do que estou a dizer é o uso da montagem. Aparentemente, a inserção de sequências alheias ao que parece centrar a atenção da realizadora (pense-se nomeadamente, na sequência do jantar da família ou na sequência da igreja) não tem qualquer nexo, parecendo arbitrárias e retirando a duração necessária aos planos: Mas, com maior atenção, vamos descobrir que o uso de montagem da cineasta é precisamente uma interrogação à montagem, como se Manuela Serra, a cada momento, pusesse em causa essa própria noção, substituindo-a pela noção de colagem e reunindo um todo os diferentes materiais que vai dando a ver.

Essa utilização específica é particularmente impressionante naquele que é, para mim, o mais belo momento do filme. Refiro-me a sequência da igreja. O plano começa por nos mostrar a imagem de Cristo no altarmor e, depois, vai lentamente descobrindo o padre, o altar e a assistência. Contra-plano e, do ponto de vista do altar, vemos a assistência e a porta da igreja aberta contra um céu nocturno e azulíssimo. Tudo nos leva a supor que estamos numa missa nocturna, até que, lentamente e após novas inserções das imagens "leit-motif" do campo, do rio e das névoas, voltamos à igreja, com uma luz diferente, como se muito tempo se tivesse passado e os personagens permanecessem fixos naquele ritual, tal arrancados a qualquer tempo Preciso como a imagem de Cristo que a câmara nos dá em pormenor. Quando as pessoas saem da igreja é dia (crepúsculo? alvorada?) ficando apenas acesas as luzes da Igreja, como se a noite se projectasse de interior desta para o exterior, num sinal contrário ao da iluminação inicial. Exemplos deste género multiplicam-se no filme, sempre por fragmentos, como se no houvesse outro movimento senão aquele do que o título da Obra nos fala. E esses fragmentos, e esses movimentos, são tanto visuais como sonoros. Ouvimos bocados de diálogos que, em si mesmos, parecem sempre esparsos e insignificantes. Mas o som com que ficamos é o da flauta da bela música de José Mário Branco, tão obsessivo e tão embalador como o plano visual do rio que passa junto a aldeia. Tudo flui e tudo flui indefinidamente nesta obra que voga vagamente. Mas tudo flui em torno desses pontos de sustentação que são, paradoxalmente, os pontos de referência mais imateriais deste filme: a paisagem ritual e o som da flauta, que guiam do princípio ao fim no nosso olhar. O Mo vimento das Coisas é, simul-

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taneamente, um filme extremamente materialista e extremamente abstracto. Os dois termos não são inconciliáveis. Só que para o não serem é preciso uma determinável visão e é essa visão que dá coerência a este filme disperso e o transforma numa obra una, com surpreendente lógica e surpreendentes rimas.

Texto de João Bénard da Costa, In Folhas da Cinemateca

CINEMATECA PORTUGUESA - 90 ANOS DE CINEMA PORTUGUÊS - INÉDITOS DOS ANOS 80 - 29 de Dezembro de 1986

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À Flor do Mar (1986), de João César Monteiro Num dos extras da caixa de DVDs com a obra completa de João César Monteiro lançada após a sua morte, Vítor Silva Tavares, amigo e editor dos livros do realizador na & etc, diz não gostar de À Flor do Ma r. Mais, considera-o o filme menos característico do cineasta, demasiadamente bonito e no qual falta a veia de provocador (socorro-me da minha memória, que para citações é muito fraca). João Bénard da Costa diz, noutro extra da mesma caixa, que, na obra de César Monteiro, o sórdido e o sublime são indissociáveis e que a adversativa que muitos críticos usam para descrever a obra do realizador ("é porco, mas depois é capaz de grande beleza" e vice-versa) não faz sentido. No entanto, em À Flo r do Mar, obra de que o próprio gostava muito, há bem mais sublime do que sordidez. À Flor do Mar é o último filme de César Monteiro antes de Re cordaçõ es d a Cas a Amarela, ou seja, antes do "nascimento" de João de Deus, personagem que, com algumas variações, há-de marcar a obra do realizador daí para a frente e fixar-se como a imagem definitiva na mente de todos. Talvez seja uma das razões por que é tão esquecido, quando não desprezado. Outra, com certeza, será o facto de só ter tido direito a exibição comercial dez anos depois de ter sido feito. Porém, nada disto interessa perante a beleza das imagens, azulíssimas de mar, amarelíssimas de Verão, que escorrem em longos e lentos travellings (a fotografia é de Acácio de Almeida, julgo que na última vez

que trabalhou com César Monteiro); o sabor das referências literárias e cinematográficas (o Robert Jordan, herói de Hemingway; o New York Herald Tribune, jornal de Godard; o Roberto, nome de Rossellini); a doçura e a paz de um Algarve paradisíaco, antes de ser esventrado pela construção desenfreada e as hordas de turistas; as suaves paixões entre terroristas e viúvas, entre terroristas e adolescentes; a Teresa Villaverde com a cara borrada; a Laura Morante deitada na praia; a Manuela de Freitas, figura tutelar, de cigarro à banda; o peixe a ser arranjado pela Senhora Amélia; o gelado na esplanada; o barco a passar lá em baixo, quando as luzes se apagam na casa, no último plano. Toda esta paz, melancólica é certo, só é perturbada na sequência dos assaltantes (pois nem a história de assassinatos e conspirações políticos abala muito a situação), na qual um tal de Stravoguine (prefiguração de João de Deus) parte umas coisas e desarruma a estante dos livros. É o único momento em que o provocador, na pele de César Monteiro, comparece. De resto, o espectador é apanhado e deixa-se estar no transe do sublime. É preciso coragem para se fazer algo tão bonito e singelo. César Monteiro não o voltaria a fazer. Não assim. Embora goste muito do que veio depois, terei sempre saudades daquele Verão no Algarve.

João Lameira, numa Paragem do 28

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Xavier (1992), de Manuel Mozos “Can you imagine being lit up by some hot shells? Imagine being tossed around and put in jail, Imagine life when you can't get from under.”

Snoop Dogg, em Imagine de The Blue Carpet Treatment Não se deu nem se pensou o suficiente num lugar para X avie r no cinema português devido ao seu tempo de gestação - é um filme de 1992 a estrear em 2002. Não devia importar, não devia querer dizer nada, tudo isso. Podia-se pensar se um filme que não estreia na “sua” década pode influenciar o resto, se pode pairar nas consciências pela sua não-existência de dez anos, se resolve um embate de gerações de cinema, se confirma que é possível um verdadeiro trabalho de actores por este lados, se impõe Pedro Hestnes como personificação suprema da “saudade” ou como mito quase deanesco, de uma juventude revoltada e sedenta de sangue, quando “sangue” é “vida”. Mas faz-se pouco disso e por muitas razões, sendo a principal a sua quase total invisibilidade.

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X av ier retrata uma Lisboa assombrada, um passado e uma infância que não acabam no seu tempo e que regressam ao destino da personagem principal do filme. Retrata uma sede tocante de existir, quase como acto de resistência. Contra tudo, consciência, remorsos, família, amigos, amores, negócios, estratagemas, dinheiro. Das conversas que estruturam uma amizade, em telhados da capital, de quanto ela respira e de quanto o filme a documenta. Das viagens de uma vida, dos dias e meses que nos transformam, as bases e consequências dum turning point que poucas voltas dá, mas que deu quantas lhe foi possível. Os ponteiros não

param e os dias passam, cem minutos de convivência e amor em contra-relógio, em contra-vivência. Por ser difícil. Mas por valer a pena exactamente por isso. “There was a naughty boy. A naughty boy was he. He could not stay home, he could not quiet be”. Havia Xavier. E Xavier é o quanto se paga por ser assim, que não é uma escolha. Por não tentar a saída fácil e tentar curar as feridas irreparáveis, tentar abordar as pessoas em acto de desespero calmo. Em surdina. A melancolia doce disto tudo... É só este sentimento dominante – diria quase que a tonalidade - que me vem à memória, que é muito traiçoeira. Vi-o há uns meses sabendo que era oportunidade única e acabo por esquecer grande parte, passados uns meses. Depois, olvidadas já as situações e os pormenores da plot do filme, salvo pequenas parcelas, ouço os versos do Snoop Dogg em epígrafe e vêm-me à cabeça os passeios do Pedro Hestnes pela capital e do negrume daquilo tudo, sem perceber bem porquê. Primeiro, penso que se o cinema é como a música, é porque ambos, música e filme, estão na mesma tonalidade, mas isso é a reacção emotiva, irracional. Depois, que é uma questão de luta (struggle), do tal acto de desespero, que é uma questão de ser do bairro e de subir como se pode, a muito custo, de que tenho a arrogância de pensar que, sim, compreendo isso, quando não tenho a mais pequena ideia. “Imagine


life when you can't get from under”.. Mas também não é isso e inclino-me mais para o regresso nostálgico às raízes. Que andamos todos uma vida inteira a tentar regressar a casa ou à infância, a herança narrativa mais antiga de todas, mas talvez a que mais coisas tenha que se lhe diga, por estar muito além da narrativa. Muito que se lhe diga. “We may be through with the past, but the past is never through with us”. “Prender” no tempo, com planos ou notas, aquele momento (ou momentos)-chave em que uma pessoa se apercebe de si, do “eu”, com todas as lições e arrependimentos documentados e se torna adulta. Lições sinceras e que têm que custar a aprender. A todos, sem excepção... Mas porque é de cinema e de Xavier que tenho que falar, elogio o labor de Manuel Mozos nos dois pontos que me não largaram mesmo passados meses: 1. O amor aos actores e ao que eles podem dar (e aqui dão). A Pedro Hestnes é escusado tecer elogios que nunca bastariam. Vêem-se actores e actrizes que se reconhecem de novelas e doutros filmes e a luz é diferente, não parecem os mesmos. Nunca se viu ou ouviu

Sandra Faleiro como aqui se vê e ouve (porque não lhe é dada a oportunidade). É tocante e revelador. Realização é um trabalho de espera e paciência, de fé e resistência. 2. A cena terrível da morte da mãe que vemos “só” nos olhos e na reacção de Xavier e a montagem elíptica de toda essa cena. Prova de que há um realizador que pratica um jogo justo e limpo com o espectador, sem ilusões ou aparatos que ofusquem o pensamento e a experiência de ver um filme, que confia e respeita a nossa inteligência. A tal coisa que nos faz duvidar da nossa invisibilidade e do nosso conforto no processo. Somos nós que vemos os filmes ou são os filmes que nos vêem a nós? É que o conforto é só deles, não mudam um frame que seja ao longo dos anos. Nós é que mudamos... Que faríamos se conhecêssemos um Xavier? Se calhar já conhecemos... se calhar já somos...

João Palhares

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Entrevistas Filipe Melo, por João Palhares, António Lopes, Iúri Silvestre, Ivo Brito e Rui Oliveira Manuel Mozos, por João Palhares

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Filipe Melo Filipe Melo nasceu a 13 de Setembro de 1977, em Lisboa. É músico de profissão que tem como hobby o cinema e a banda-desenhada. E se I'll See You In My Dreams é o seu trabalho mais conhecido (mas em que não é creditado como realizador), talvez seja O Mundo Cati ta a sua melhor obra nas andanças do audio-visual, a mini-série com o mentor dos Irmãos Catita e dos Ena Pá 2000, Manuel João Vieira. Foi para o ar

na RTP2, há coisa de três anos, com algum secretismo, mas encantou quem a viu. Eram os dias e noites de Vieira contados em seis episódios, numa tentativa de perceber quem ele era. Se se acaba por não perceber, por ser impossível, fica a personagem e a música, os bares, os concertos e as consultas no dentista, o jogo das vacas, as coisas favoritas, Phil Mendrix, João Didelet, Karley Aida e... Sofia.

Entrevista João Palhares: Estás satisfeito com o resultado final e a adesão ao livro D og Me ndo nça? E, já agora, que papel tiveram as redes sociais na divulgação? Filipe Melo: Ora bem, eu posso dizer que das diversas coisas que tenho feito ao longo dos tempos, este livro é capaz de ser o que mais se aproxima da ideia inicial, portanto estou muito contente. É provavelmente a única coisa que se voltasse atrás não teria feito nada diferente, o que é bom. A grande vantagem em relação aos filmes é que quando sai alguma coisa mal pode-se fazer outra vez. Em relação à adesão ainda é um bocado cedo para saber, eu sei que a editora fez uma tiragem um bocadinho ambiciosa para uma bd, mas este livro que tenho aqui foi impresso hoje de manhã e é um exemplar da segunda edição. Eles avisaram-me que eu tinha de esperar pela tarde até pegar nele, porque tinha de secar. Então eu estou contente, porque se fizeram mais 700 isso é muito bom. Significa que as pessoas estão a comprar – muita gente que normalmente não compra banda-desenhada. As redes sociais têm sido uma ajuda impres-

cindível na divulgação do livro, porque temos conseguido chegar ao público que normalmente nos segue por causa dos filmes. Eu tenho esta produtora que se chama “O Pato Profissional” - que tem um pato – e, de facto, nós sempre que temos uma novidade pômos no Facebook, e as pessoas põem “gosto” mesmo que depois não comprem o livro. E isso tem-nos ajudado a chegar a mais pessoas, o que é sempre bom. JP: O projecto começou por ser pensado para filme. O que é que aconteceu entretanto, foi propositado ou por falta de meios? FM: Não foi por falta de meios, na realidade houve duas possibilidades reais de fazer um filme. Houve dois produtores que queriam tornar isto uma realidade, e chegou-se a falar numa fase de concretização, mas só que nas reuniões eu começava a pensar na concretização do filme e não estava a conseguir ver aquilo, não estava a conseguir ver. Talvez também por falta de meios, mas mais que isso, por alguma falha de comunicação ou assim, a melhor maneira de contar a história ia ser assim. Portanto, isto não é um plano b, isto não é um filme que se transformou

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numa banda-desenhada, é uma história que sempre quis ser uma banda desenhada, só que eu estava enganado no início.. JP: Referencias o Bi g Trou bl e i n L ittle China. O Carpenter foi um cineasta importante para ti? FM: Eu posso dizer que o primeiro filme do Carpenter que eu vi no cinema foi o Príncipe das Trevas. Isso significa que eu comecei a ver filmes do Carpenter muito jovem, muito jovem mesmo. E obviamente que qualquer pessoa que goste de cinema fantástico tem que referenciar e reverenciar o Carpenter. JP: Ou que goste do cinema em geral.. FM: Claro, porque não há dúvida nenhuma que o Carpenter é um dos grandes. O que é que tu achas do Carpenter? JP: Eu adoro Carpenter. FM: Qual é o teu filme preferido do Carpenter? JP: Por acaso é o Príncipe das Trevas.. FM: Gostas mais do Príncip e das Trevas ou do Nevoeiro? JP: O Nevoeiro também é... lá está, não consigo escolher, é muito difícil.. bem, já estamos fora do guião da entrevista.. Mas que achaste do Escape From LA, já agora? FM: O Escape From LA é uma boa piada, tal como o Gremlins II é uma boa piada. Quer dizer, é um fantasma do que é o original.. Mas posso dizer que gostamos tanto do Carpenter que numa página da nossa bandadesenhada, o protagonista tem na parede do seu quarto o poster do The Thing, que é indiscutivelmente o melhor filme de terror da História. Mas, essencialmente, o Es cape

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From LA é um remake do primeiro a gozar, o que não deixa de ter a sua graça.. JP: Foi o John Landis que fez o prefácio à tua bd, podes-nos dizer como é que o abordaste e qual foi a reacção dele ao livro? FM: Ok, eu conheci o John Landis num festival de terror de Lisboa, que é o MotelX. Eu sou amigo de infância de alguns membros da organização e, então, este ano eu estava lá a re-lançar o I'll See You in My Dreams, numa edição feita por eles e na festa de encerramento eu estava no S. Jorge e sorteei um dos dvd's do filme a quem soubesse dizer como é que se chamava o produto capilar do filme Um Príncipe em Nova Iorque. A resposta era Soul Glo. Ora bem, entre o público estava o grande, grande realizador, sem dúvida nenhuma o melhor realizador de cinema da história, o John Landis, e depois, no final do festival, houve um jantar, em que eu dei por mim e estava frente a frente com o John Landis e com o Stuart Gordon. Então, foi incrível estar a ver cada um deles a discutir os projectos que vão fazer a seguir e estar a fazer perguntas sobre os filmes de um e doutro. Isso foi muito incrível, muito incrível. E então eu tinha três pranchas e, de facto, ele percebeu que eu gostava muito dos filmes dele, que sou um apaixonado por aquele género e acho que ele foi muito importante. Então mostrei-lhe algumas pranchas e disse-lhe que era um abuso pedir-lhe isso mas que queria que ele escrevesse um prefácio e disse que ele tinha a obrigação de o escrever porque grande parte das coisas que aqui estão foram inventadas por ele. Ou re-inventadas por ele e por isso é que entraram no meu imaginário. Eu nunca pensei que ele fosse escrever, mas um dia recebo um mail, depois de lhe ter enviado a banda desenhada completa em pdf e ele disse que gostou muito e escreveu um prefácio. E estou aqui a ver e, de facto, é verdade, é bonito. Faz com que tenha valido a pena, já.


JP: Como é que foi para ti e para os outros envolvidos trabalhar à distância? FM: Foi muito fácil. Teve um problema sério que é a diferença de horário que a dada altura foi de cinco horas. Eu muitas vezes chegava a casa de um dia cheio de trabalho (chegava a casa às onze da noite) e ligava-lhe e tinha que estar a trabalhar com ele até às quatro, cinco da manhã para me levantar no dia seguinte, às nove. Então, tive aí uma fase que andava um bocadinho trocado de horários. Mas a partir do momento em que se está a trabalhar com boas pessoas, com amigos, a comunicação torna-se muito fácil. Nunca tivemos propriamente discussões de “isto deve ser assim ou assado”, estávamos todos a ir na mesma direcção e muitas vezes as discussões eram sobre como conseguir melhorar algo, nunca sobre como conseguir mudar numa direcção oposta à dos outros. Foi fácil. Nesse sentido foi um trabalho fácil. JP: A curta I'll Se e You i n My D reams deu-te alguma visibilidade. Isso permitiu-te concretizar projectos mais facilmente? FM: É um bocadinho difícil responder a isso porque de alguma forma eu sinto sempre que é muito difícil, que todos aqueles problemas que surgiram quando eu comecei a fazer a curta continuam a existir, continuo a ter as mesmas inseguranças, continuo a ter alguma dificuldade a fazer com que algumas pessoas me atendam o telefone ou me levem a sério, continuo a ter problemas em arranjar formas de tornar reais os projectos. Mas também não quero parecer amargo, o I'll See You in My Dreams trouxe-me, acima de tudo e muito mais do que condições para fazer novas coisas, boas memórias. Portanto, eu diria que é sempre um percurso muito ingrato mas ao mesmo tempo é o que eu mais gosto de fazer. Mas não vejo que as coisas fiquem muito mais fáceis do que eram... JP: Foste hacker. Como é que isso se mani-

festou no que fazes no cinema e na música? FM: Bem, não há nenhuma relação directa. A única coisa que eu posso dizer é que o interesse que eu tinha por computadores, nessa altura, foi transferido para a música e depois para os filmes. Isto é, tentar levar alguma coisa até às últimas consequências, se bem que essa primeira experiência não teve assim muito bom resultado. Mas foi mais do que tudo uma tentativa de melhorar nalguma coisa. Continua a ser o mesmo princípio que aplico às outras coisas. Aprender e melhorar. JP: O que é que achas que as novas tecnologias podem acrescentar ao cinema, hoje em dia? FM: Ora, estamos numa era em que provavelmente o cinema vai mudar radicalmente com a história das três dimensões já serem mais naturais e não precisarmos de óculos da Tv Guia. Então, o cinema pode dar um passo gigante e eu acho que todas as inovações tecnológicas serão bem-vindas, sempre. Se nós aplicarmos o mesmo princípio à escrita, por exemplo: hoje em dia toda a gente escreve no computador, já ninguém escreve à mão e não sei quê. Conclusão, o que eu acho é que tudo o que é tecnológico, ajuda, se o que estiver por trás for criativo e humano. As máquinas nunca vão substituir as pessoas. JP: Música, cinema, banda-desenhada.. O que é que vem a seguir? Já tens novos projectos? FM: Eu ultimamente tenho tido muita ansiedade por causa da música, porque como tenho feito muita coisa diferente acabo por não conseguir dedicar-me seriamente à coisa que eu mais gosto, que é tocar piano. Então, na verdade, sou capaz de desaparecer das lides do fantástico, dos filmes e da banda-desenhada durante um tempo até que se justi-

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fique o regresso. Para isso, não poderá ser qualquer coisa que apareça por acaso, terá de ser algo que eu tenha realmente vontade de fazer. Até lá, estarei a tocar por aqui e por ali.

vou fazendo de vez em quando, que é tocar a música que gosto, fazer estes projectos que eu gosto mesmo e tentar sobreviver disso. Uma pessoa não está a fazer coisas para ganhar dinheiro... fazer as coisas que se gosta!

JP: Como é que consegue sobreviver uma produtora em Portugal sem subsídios?

JP: Se tivesses tido formação profissional de cinema antes de fazer o I'll See you in My Dreams, como seria o filme? Melhor? Diferente?

FM: A nossa produtora sobrevive de pequenas coisas. Primeiro, nós não temos escritório. Tínhamos um escritório e deixámos de o ter porque não justificava ter aquele encargo. Outra coisa que nós fazemos é trabalhar sem receber da produtora, nós termos a produtora é mais um símbolo da nossa dedicação a uma causa que é tentar fazer alguma coisa de interessante no panorama do fantástico... Nós estamos interessados em trabalhar em teatro, em música, em filmes e na banda-desenhada. É isso que nos interessa. Não posso dizer que sejamos milionários, não temos muito dinheiro, mas fazemos o que gostamos e quando uma pessoa faz isso, acaba sempre por sobreviver. JP: O terror e a bd são apostas um bocado arriscadas em Portugal. É o caminho que queres seguir? FM: Suponho que todas as áreas em que eu me movo são um bocadinho direccionadas para minorias, não é? Não há assim muita, muita gente a gostar de cinema fantástico ou de terror. Há alguma, mas ainda continua a ser considerada uma minoria, não é? JP: Pois, aqui em Portugal, pelo menos, acho que é assim.. FM: Claro, eu acho que não é injusto dizer isso.. E, na música, o jazz não é propriamente uma música de massas.. e, então, eu fui-me habituando um bocadinho a isso, que é, eu não procuro propriamente reconhecimento nem nada disso. A única coisa que eu quero é continuar a fazer estas coisinhas que

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FM: Ok, a educação em determinada área tem um lado muito bom e um lado muito mau. Obviamente que qualquer tipo de formação estimula muito a criatividade de uma pessoa, mas por outro lado há muita gente que, quando está num estabelecimento de ensino, acredita que só isso fará com que a pessoa aprenda e na verdade deve ser tudo um processo de auto-didactismo em que a pessoa vai ter que aprender a fazer, fazendo. Eu acredito que quanto mais formação uma pessoa tiver numa determinada área, em teoria melhor será. Só que muitas vezes o que acontece é que, com isso, vem também uma série de pressões psicológicas que fazem com que essa pessoa não tenha tanto à vontade, como se fosse um amador, para fazer as coisas. Cria um certo medo, um certo receio. Eu falo por mim. Muitas vezes consigo fazer muito mais facilmente filmes ou banda-desenhada porque não tive qualquer formação e então tento fazer as coisas o melhor que posso, mas por exemplo na música, sinto o peso da responsabilidade sempre que gravo um disco - “tem de ser bom, tem de ser bom” - e a prova disso é que eu não gravo um disco há cinco anos. Então começa-se a criar aquela ansiedade. Mas eu acredito sinceramente que uma pessoa deve tentar aprender, quer seja numa escola quer seja por sua conta e depois obviamente, tem que tentar aplicar isso sem se deixar assombrar pela pressão da exigência. JP: Achas o mundo catita?


FM: Eu acho que o mundo é completamente catita, com os bons e os maus momentos que também existem na série de televisão. A palavra “catita” engloba muitos sentimentos diferentes, não é? Se isto fosse tudo alegre e bonito, a verdade é que depois não tinha profundidade nenhuma. JP: É verdade.

Entrevistado por João Palhares, António Lopes, Iúri Silvestre, Ivo Brito e Rui Oliveira.

FILMOGRAFIA como realizador Um Mundo Catita - série de tv (2008) como argumentista Um Mundo Catita – série de tv (2008) I'll See You in My Dreams (2003)

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Manuel Mozos Manuel Mozos nasceu a 6 de Junho de 1959, em Lisboa. Apaixonado pelo cinema desde muito cedo (como nos diz nesta entrevista), especializa-se em Montagem na Escola Superior de Teatro e Cinema e acaba por realizar o seu primeiro filme (Um Passo, Outro Passo e Depois...) sob a alçada de Fernando Lopes, que na altura trabalhava na RTP. Três anos depois vem X av ier, filme nuclear da sua obra e do cinema português. Resgatando o herói dilacerado de O Sangue (Pedro Hestsnes, esse grande, grande actor português), Mozos conduz-nos por uma Lisboa nem muito diferente da de Os Verdes Anos nem muito distante da de A Canção de Lisboa. E num sopro, parece aglomerar coisas inconciliáveis, resolver uma data de equívocos e preconceitos estéticos e políticos e fazer a cidade respirar das alegrias e tristezas que por ela pairam e velam. Sob o corpo e alma de Xavier. Xavier, talvez filmesíntese das novas e velhas vagas e novas e velhas noções de cinema que foram marcando de uma forma ou outra este nosso pequeno país (que era uma postura e procura que João César Monteiro mantinha também nos seus filmes). Nesta que é outra das preocupações de Mozos também como arquivista da ANIM e como documentarista. Prova disso são vários dos seus documentários, de Olhar o Cinema Por tuguês a Ruínas. Resgatar memórias dispersas, reuni-las e plantá-las no presente com a esperança que se colham no futuro, um dia... Em 2006, Mozos realiza 4 Co pas (que só estreia em 2008), filme que termina o seu quadrado ficcional (Um Passo, Outro Passo e Depo is..., Xavier e Quando Troveja são os outros três, para já). 4 Co pas é obra que não mereceu a descrição da sua estreia mas não é só obra que não mereceu a

descrição da sua estreia, como defenderam os críticos que na altura simpatizaram com o filme (poucos, por sinal). Aquele microcosmos familiar, cuja narrativa é próxima da novela – e na altura confundiu-se muito injustamente com isso mesmo, uma novela -, parte só desse princípio porque o labor é outro, totalmente. E nesta altura, em que se celebra Sangue do Meu Sangue pela representação do Portugal pequenino (o portugal sem P grande), esqueceu-se ou não se quis ver que o filme de Mozos saiu antes. E é só mesmo uma questão de anterioridade que aqui se aponta, mais nada, a qualidade e as comparações são outra história. 4 Co pa s documentava a luta de uma adolescente por manter o casamento do pai com a madrasta. A coisa desenrolava-se e Diana, com as suas criancices belíssimas, entrava no mundo adulto. E é na desenvoltura que está o segredo todo, nas conversas antológicas com a vizinha amiga, no monte como símbolochave de toda a narrativa e no trabalho formidável com os actores. E se o cinema de Manuel Mozos tem um só plano lindíssimo (não é verdade, não é verdade!), é o de Diana no topo da montanha, com as suas conquistas pequenas mas maiores que a soma das suas partes, que a projectam como um sonho da nossa consciência. Das nossas próprias derrotas e conquistas. E o que são Xavier e 4 Co pa s senão dedicatórias fervorosas aos seus actores principais? A Hestnes e Rita Martins. De quanto cinema recente se pode dizer o mesmo? Sem quantificar, que é mesquinho, talvez não o suficiente...

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Entrevista João Palhares: Qual foi o momento em que percebeu que queria ser cineasta? Foi algum filme, algum realizador, vários, ou foi alguma coisa exterior ao cinema? Manuel Mozos: Bom, isso por acaso foi um pouco fortuito, ou seja, gostava muito de cinema e era um espectador muito assíduo de cinema (e ainda sou) desde muito cedo, graças à minha mãe que me levava ao cinema. Depois, na adolescência, com os meus amigos, mas nunca pensei em ser realizador. Ainda estava na faculdade, em História, e trabalhava também e houve um acaso que me fez ir ao Conservatório - por causa da minha irmã, para inscrever a minha irmã em aulas de ballet - e vi um anúncio que havia concurso para concorrer à escola de cinema. E pronto, concorri, passei as provas, entrei na escola e aí vi que sim, poderia vir um dia a ser realizador. E embora tenha trabalhado em várias áreas de cinema, sobretudo anotação e assistente de realização, a minha área-chave era a montagem - eu trabalhei durante muitos anos em montagem e ao contrário de alguns colegas meus que a partir do momento em que terminaram a escola começaram a concorrer aos concursos do Instituto de cinema, eu ainda andei um tempo antes de me atrever a concorrer com um projecto meu. Pronto, e um dia lá me decidi, embora o meu primeiro filme, o Um Passo, Outro Passo e Depois..., não tenha sido produzido através de um concurso do Instituto, mas sim porque foi um convite do Fernando Lopes, na altura estava à frente das produções externas da RTP e que tinha um projecto, do qual ele também estava à frente, e que ele achava que poderia ter continuidade. Esse primeiro projecto, chamado Fados, com dez realizadores: seis da “casa” (dos quadros da RTP) e quatro exteriores que, no caso, eram o Vítor Gonçalves, o Joaquim Leitão e o José Nascimento e a

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Cristina Alsa. No ano seguinte, ele propôs a feitura de quatro filmes sendo um realizador da RTP e três de fora. A diferença é que as do ano anterior já eram de realizadores que tinham feito um filme, excepto o caso da Cristina Alsa, que tinha feito três, mas curtas-metragens – os outros três é que tinham feito longas-metragens. No nosso caso, quer do Luís Alvarães, do Pedro Ruivo e eu, éramos técnicos (eles eram sobretudo assistentes de realização, e eu também era, mas a minha área era mais a montagem) mas ele (Fernando Lopes) sabia do interesse de qualquer um de nós em vir a fazer filmes e abriu-nos, digamos que as portas, para fazermos cada um de nós o seu primeiro filme. JP: Nos filmes que vi, usa muito o fado na banda-sonora. É para enaltecer um bocado as vidas das personagens ou é outra coisa? MM: Não, tem a ver com isso, é por causa das personagens, tem a ver também com um outro aspecto, digamos, que é eu considerar o fado uma música própria de Portugal e de Lisboa, em particular (e não só). E, portanto, não achar propriamente importante. Se isso para mim faz sentido para o filme... para poder utilizar o fado nos filmes que faça e ache que a utilização dos fados faça sentido para a própria narrativa e para a construcção de alguns personagens.. JP: Sobre o X avi er. Porque é que estreou quando estreou e porque é que estreou como estreou? Quer dizer, teve uma estreia um bocado discreta, não foi? MM: Sim, foi. Todos os meus filmes tiveram estreias bastante discretas, digamos. Qualquer um. No caso do Xavier... JP: É que é um intervalo de 12 anos entre a rodagem e a estreia..


MM: E não só. É que não é só a questão da estreia, o filme só foi terminado onze anos depois da rodagem. Houve problemas de produção e de gestão do produtor original e no último dia de rodagem interrompeu-se tudo e ficaram duas cenas do filme por serem rodadas e eu achava que aquilo seria uma coisa que se resolveria com brevidade. Não foi o caso, com o material que eu tinha, graças a algumas pessoas que me ajudaram nesse sentido de eu poder ter, digamos, uma primeira montagem, em bruto, e sem grande trabalho em termos de, por exemplo, de som. Só podiam utilizar o som captado durante a rodagem, sem música, sem trabalhos de montagem sonora e de mistura. Tal como na imagem, não estava feita em étalonnage e, mesmo os planos, estavam um bocado por largo, não cortados.. mas era a maneira de eu poder mostrar o filme a eventuais produtores que tivessem fé no filme, para que eu o pudesse concluir. Pronto, durou os anos que durou até que mais ou menos em... por volta de 1998, o Paulo Rocha decidiu pegar na produção do filme e permitir assim que se concluísse. Claro que a coisa não.. uma coisa é a intenção e outra coisa é a prática, por isso há este hiato entre 98 e 2002, que foi quando realmente acabei o filme e houve a posterior estreia. Obviamente que como é um filme que teve esses problemas todos e não havia também verbas para poder fazer uma campanha noutro sentido, de promoção do filme, é um objecto um bocado anacrónico. Um bocado fora do tempo.. JP: Pois, que é um filme essencialmente daquela época.. MM: É, isso também não favoreceu a estreia do filme. JP: Trabalha na Cinemateca. MM: Sim. JP: No restauro de...

MM: Eu trabalho para a Cinemateca, não na Cinemateca a sede, em Lisboa, mas na ANIM, o Arquivo Nacional das Imagens em Movimento, que é um sector da Cinemateca. JP: Em que medida é que isso se reflecte no seu trabalho? Mesmo o ficcional. MM: Quer dizer, reflecte-se na medida em que eu tenho um acesso muito razoável, digamos, ao visionamento de filmes. Sobretudo filmes portugueses. E o meu trabalho é o de identificar materiais e depois isso entra na base de dados e os materiais de cada filme são organizados. Tem essa grande vantagem, que é a possibilidade de ver muitos filmes no meu trabalho. Por outro lado, o facto de eu ser funcionário da Cinemateca, também me permite ir à Cinemateca, às sessões normais, e ver mais filmes, ainda. JP: Partilha da ideia que os realizadores do Cinema Novo tinham e têm das comédias feitas durante o Estado Novo? Pergunto isto porque quer-me parecer que tem algum carinho por esses filmes. Usa um excerto sonoro do G rande Elias, acho eu, no Ruínas e mesmo algumas situações no Xavier remetem um bocado para isso. Posso estar enganado, mas.. MM: Não, há alguma verdade nisso. É assim, eu tenho uma opinião sobre o cinema português em geral e obviamente tenho as minhas preferências - os filmes portugueses que eu prefiro ou que acho mais importantes ou mais interessantes. Mas o facto de conhecer os filmes faz-me ter algum carinho, algum respeito, por qualquer época do cinema português. Se calhar a atitude que os realizadores do chamado Cinema Novo poderiam ter - ou podem, não só esses, mas os realizadores mais recentes que partilham da mesma opinião - que não gostam desses filmes, pronto, e eu respeito o gosto de cada

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um.. Eu não partilho desse antagonismo sobre esses filmes e julgo que, dalgum modo, nas ficções em particular, provavelmente há algumas proximidades com alguns filmes no sentido, por exemplo, da localização - a vida desses filmes passa-se em bairros típicos de Lisboa, famílias de classe-baixa-média. No geral. E eu, se calhar, também trabalho nessa zona. Em relação aos cineastas do Cinema Novo, o que eu sinto é que para eles a atitude seria diferente da minha (ou de realizadores da minha geração e mais novos, ainda) Eles...

guns realizadores, eu percebo que haja uma emergência sobre o retratar, denunciar ou comentar, quanto mais não seja, a sua própria época, através quer da ficção quer do documentário.

Entrevistado por João Palhares

JP: Tinham que ser consistentes com a ruptura... MM: E no fundo havia ali uma clivagem entre os realizadores da velha guarda e os novos realizadores, naquela época. JP: Se calhar até é possível que gostassem de alguns filmes. MM: Eu conheço alguns que hoje em dia são capazes de reconhecer que gostavam de alguns desses filmes. Não são todos, obviamente, mas vários deles gostam de alguns desses filmes. Por outro lado, eles também têm para além desse lado de corte de gerações, razões políticas. Isso vai-se atenuando. Nós - digo nós, gente da minha idade – não tivemos que fazer essa clivagem com a geração anterior como eles tiveram. JP: Acha que qualquer realizador tem a obrigação de falar sobre o presente? Sobre o estado das coisas? MM: Obrigação, acho que não. Agora, obviamente que pode.. eu julgo que é mais fácil falar – falar e não só falar – por causa dos meios que implica, fazer um filme contemporâneo do que o chamado filme de época. Em termos de ter que procurar automóveis, guarda- roupa, adereços de época A, B ou C. Num certo tipo de cinema, nas opções de al-

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FILMOGRAFIA Ruínas (2009) Aldina Duarte – Princesa Prometida (2009) 4 Copas (2008) Diva (2007) Olhar o Cinema Português (2006) Sobre o Mar (2003) António Pinho Vargas – Notas de um Compositor (2002) Erupção (2001) Crescei e Multiplicai-vos (2000) Censura: Alguns Cortes (1999) ...Quando Troveja (1999) José Cardoso Pires – Diário de Bordo (1998) Cinema Português? (1997) Solitarium (1996) Lisboa no Cinema – um Ponto de Vista (1994) Xavier (1992) Um Passo, Outro Passo e Depois... (1989)


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CINERGIA Revista NĂşmero II | Setembro 2012


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