Livro de Crônicas- Nem te Crônica

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Shopping-trem Jonathan Vitor

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lhando São Paulo de cima, dá pra imaginar a competitividade aqui embaixo. É o graduado, o estudante e o desesperado disputando uma vaguinha nos vagões – mas não é fixo, é de ambulante. Quem pega a linha 11 Coral, da Luz- Guaianases, bem sabe. Dá pra ver que a concorrência entre eles é cada vez maior. Em uma única viagem você encontra quase de tudo: os que vendem fone de ouvido da Samsung, os que vendem suporte pra celular e os do carregador pra deixar na bolsa; os do chiclete, os da bala Fini e os do chocolate de bacana com preço de banana. É sempre assim: “Porta fechou, perigo passou, shopping trem voltou” e logo em seguida começa a vender o tal do plástico pra documento, que é só 1 real cada e, quem não tem, precisa. Pensei: “Preciso” e já estava procurando minha moeda na mochila quando a senhora ao meu lado disse: - Ô moço, você vai comprar é? Não sabe nem de onde veio. Parei de vasculhar – fiquei até espantado, quando foi que Nem te crônica

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dei permissão para ela dar pitaco? Ainda assim, respirei e respondi com toda a calma do mundo (ou pelo menos o pouco que me restava): - Não, só tô procurando a moeda na mochila pra deixar no bolso mesmo. A senhora até me olhou aliviada, mas mesmo assim continuou: - Ah bom. Eu não concordo com toda essa bagunça que eles fazem. Atrapalha a gente! Ficam de lá pra cá toda hora... - Entendi. - Não sou a favor deles. E nem contra. Se bem que é melhor eles aqui dentro do trem do que roubando lá fora, né?

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Nem deu tempo de continuar a falação da senhora e já foram entrando outros vendedores no vagão. É engraçado como eles, mesmo não tendo vínculo, parecem saber se organizar muito bem. Passam uns cinco com os produtos, atravessando entre si – lembrando aqueles filmes de assalto a banco, sabe? –, desviando-se dos passageiros – como se desviassem dos lasers de alarme. A porta abre e os que estavam no vagão partem. Em seus lugares surgem outros cinco, vendendo os mesmos produtos. Mais do mesmo? Foi então que percebi que alguns já são preferidos do público, que só compra quando o marreteiro mais carismático passa. Os preços são tabelados; nada que deixe os clientes insatisfeitos. E se engana quem acha que eles entram pra vender ao acaso. Outro dia, parei pra conversar com um deles, Marquinhos (o tal do marreteiro mais carismático). Disse-me que o melhor vagão pra se vender é o segundo, depois do carro do maquinista, porque é onde tem as escadas em cada parada, que facilitam a fuga – lembra da história do banco? – e é menos frequentado pelos guardinhas da estação. Por isso, o segundo vagão é onde encontramos os melhores vendedores e as melhores propagandas. Da próxima vez que quiser comprar algo, já sabe onde procurar.

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O guia essencial para não perder seu celular em um assalto Raphael Padrão

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uem mora em São Paulo já se acostumou com os assaltos. Quase como um compromisso que pode ser agendado, eles acontecem a todo momento. É só passar por um bairro mais perigoso, uma rua menos iluminada, ou basta ter cara de bobo, mesmo, que alguém irá te abordar. E aí, meu amigo, é bom estar preparado. Vamos começar entendendo que o bandido é uma pessoa igual a você – ok, eu espero que não do ponto de vista criminal; tô falando de viver no mesmo mundo e possuir opiniões e sentimentos. Sendo assim, há algumas estratégias para as quais podemos apelar para sair dessa situação tão complicada que é o assalto e continuar com seu celular intacto (ou quase): 1) Descubra lugares secretos em suas roupas para esconder seu aparelho. Fica o alerta: atenha-se à roupa! Em hipótese alguma utilize lugares do corpo como esconderijo; no momento do susto, seu esconderijo pode perder a eficiência. Nem te crônica

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2) Seu celular deve ficar sempre no silencioso, afinal, você nunca sabe quando colocará em prática esse tutorial e não queremos que uma ligação da sua mãe denuncie a sua mentira, não é? 3) Alguns meliantes abordam as vítimas perguntando as horas. Pra não cair nessa, é simples: acostume-se a olhar as horas sempre que for sair de um local. Se alguém te abordar na rua perguntando as horas, some 15 minutos e fale o resultado. Não vai ser o horário certo, mas quem quer a hora exata não anda sem relógio, concorda? Agora chegou a principal parte desse tutorial. Aqui, suas maiores habilidades serão necessárias. É indicado, inclusive, que você ensaie quantas vezes achar necessário em frente a um espelho para alcançar o auge da sua performance.

Em algum momento o bandido mandará que você passe suas coisas – como se espera de um assalto –, nesse momento, você vai olhar pra ele e, com a mesma cara de pau que você olha 10


nos olhos de um mendigo – mesmo no quinto dia útil – e diz que não tem nada, vai falar: “– Cara, não é possível! Ainda ontem eu fui assaltado aqui na rua de baixo e agora me aparece você... Eu não tenho nada, porra, já me levaram. Que mundo é esse que a gente tá? São Paulo tá foda mesmo, viu... Sabe o que é isso? São os políticos que a gente vota. Só roubam, roubam e não investem nada. Chegou num ponto em que você não tem nem o que roubar de mim porque outro cara já chegou e levou tudo. É ridículo, né?” Se tudo der certo, o ladrão vai se sensibilizar e entender que são só acasos da vida. Ouvi dizer do caso de uma mulher que ganhou até um celular que o bandido havia roubado antes mas, ficando com dó, deixou com ela. Preciso ser sincero com você, leitor: o guia tem uma pequena chance de não dar certo, mas aí, na pior das hipóteses, se o bandido descobrir e levar o seu celular, ao menos você já sabe o que contar no dia seguinte, caso outro ladrão venha te abordar.

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Tem uma São Paulo no meu interior

Bianca Almeida

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u sempre morei em cidade grande. Em São Paulo, pra ser mais precisa. Mudei algumas vezes de endereço, mas nunca cheguei a sair do centro. E, como grande parte dos paulistanos, costumo usar ônibus e metrô para locomoção. Quando não, uso trem. E quem tá acostumado com essa rotina de transporte público, geralmente, já viu de tudo um pouco. Tenho certeza de que ou tem uma história ou, ao menos, conhece alguma. Eu poderia passar horas contando minhas experiências ou experiências alheias – algumas de gente que eu sequer conheço. Dia desses, porém, fiquei encabulada com uma história que minha tia contou. Isso pelo fato de não ter acontecido em uma metrópole como São Paulo (em que estamos acostumados a ver esse tipo de coisa), mas, sim, num lugarzinho que transmitia tranquilidade e calmaria, pelo menos era o que se esperava. É que ela é motorista de ônibus e, há um tempo, mudou-se para uma cidadezinha do interior bem pequena e pouco populosa, Nem te crônica 13


daquelas que todo mundo conhece todo mundo, sabe? Meus avós nasceram lá e, vira e mexe, vou lá pra visitá-los. Fato é que, passando por uns perrengues aqui, minha tia precisou ir pra lá. No fim das contas, achava que um pouco de calmaria faria bem em sua vida. E fez tudo planejado, já que a ideia mesmo era não ter nenhuma dor de cabeça. Foi com emprego garantido e tudo. Dada a sua experiência como motorista em São Paulo, resolveu aproveitar isso e continuar trabalhando na mesma área. Imaginava que seria bem tranquilo. O que caiu por terra já nas primeiras semanas. Em um dos turnos, tia Marcinha saiu da garagem e partiu em direção ao centro da cidade, seguindo o extenso trajeto, que passa por todo o vilarejo. Como os ônibus costumavam ter intervalos de até três horas, não era de se surpreender que estivessem sempre lotados. Para minha tia, no entanto, a superlotação e as reclamações sempre foram rotina, então, não seria aqui que isso atrapalharia. Bem, atrapalhou.

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Nesse dia, um dos passageiros, querendo se juntar aos colegas que estavam no fundo do ônibus, ao ver que não haveria como passar pelo meio da galera, resolveu sair pela porta do meio e voltar pela de trás. Péssima ideia já que minha tia estava recebendo o dinheiro de um dos passageiros e não viu quando o rapaz saiu. Tudo o que ela viu foi ele subindo atrás. E, tendo trabalhado tanto tempo em São Paulo, tia Marcinha já havia acostumado com os engraçadinhos querendo dar uma de malandro e não pagar a passagem. Assim, não pensou duas vezes antes de parar o veículo e ir atrás do suposto penetra. A confusão seguiu até que um conhecido ajudou minha tia a resolver todo esse alvoroço. E, no meio da nossa conversa, percebi minha tia um tanto reflexiva. Pensando bem, enfim, talvez essa ideia de se mudar da cidade grande para o interior em busca de tranquilidade tenha sido uma grande ilusão. Até porque o que faz uma cidade não é o próprio lugar, e sim as pessoas. E tia Marcinha se deu conta disso de uma maneira não tão agradável.

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