VAZIOS CONSTRUÍDOS EM SALVADOR/BAHIA: UMA PROPOSTA DE REUSO PARA HABITAÇÃO SOCIAL. Jones de Sousa Nascimento, Lara Espinheira e Espinheira e pesquisa Vazios Construídos1 Filiação: Universidade Federal da Bahia – PPGAU. Faculdade de Arquitetura. Grupo de pesquisa Lugar Comum. Projeto: Reciclagem de vazios construídos em áreas urbanas centrais. Uma tecnologia social aplicada ao caso de Salvador, Bahia. Programa Pesquisador Visitante Especial do Ciência Sem Fronteiras/CAPES. e-mail: vaziosconstruidosufba@gmail.com Endereço: Faculdade de Arquitetura da UFBa. Rua Caetano Moura, 121, Federação, Salvador, Bahia
EIXO TEMÁTICO: PROCESOS EN EL SABER PROYECTUAL SUBÁREA: PROCESOS PARTICIPATIVOS PALAVRAS CHAVE: VAZIOS CONSTRUÍDOS, REUSO DE EDIFÍCIOS, HABITAÇÃO SOCIAL
Dentro do debate sobre os problemas e políticas habitacionais, existe uma discussão acerca dos edifícios ociosos nas centralidades das grandes cidades enquanto desdobramento do processo de esvaziamento destas regiões, que de modo geral, deriva de processos políticoeconômicos. No contexto de Salvador, uma metrópole brasileira, o esvaziamento de algumas centralidades aconteceu paralelo à criação de um novo centro administrativo e econômico e novos centros industriais, o que acarretou um grande deslocamento de estruturas e de empresas ligadas à circulação e reprodução do capital para outras centralidades da cidade, desabilitando, assim, edifícios inteiros nas centralidades antigas. Diante desse contexto, o projeto Vazios Construídos propõe um workshop de reflexão e projeto de reuso de algumas destas edifícações (FERNANDES, OLIVEIRA, 2016), situadas no interior de uma poligonal mais ampla que abrange parte do Centro Antigo, a Península de Itapagipe e parte do Subúrbio Ferroviário (centralidades de Salvador até meados do século XX) para uso habitacional de interesse social. A proposta de reuso envolve, especificamente, três movimentos sociais de Salvador focados na população sem-teto e na população em situação de rua presentes nesta área. Um trabalho conjunto a estes atores sociais permitiu elencar suas demandas específicas, as áreas de interesse e as tipologias de vazios mais adequadas para atenderem tais demandas que serão trabalhadas conjuntamente no workshop de projeto arquitetônico. No texto em questão discutimos este processo e suas possibilidades de ser replicável, enquanto tecnologia social.
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Desenvolvido no âmbito do grupo de pesquisa Lugar Comum PPGAU FAUFBA, com apoio do programa PVE Ciências Sem Fronteiras Capes.
Vazios Construídos em Salvador/Bahia: Uma proposta de reuso para habitação social
VAZIOS CONSTRUÍDOS EM SALVADOR/BAHIA: UMA PROPOSTA DE REUSO PARA HABITAÇÃO SOCIAL EIXO TEMÁTICO: PROCESOS EN EL SABER PROYECTUAL SUBÁREA: PROCESOS PARTICIPATIVOS Jones de Sousa Nascimento, Lara Espinheira e Espinheira e pesquisa Vazios Construídos2 Filiação: Universidade Federal da Bahia – PPGAU. Faculdade de Arquitetura. Grupo de pesquisa Lugar Comum. Projeto: Reciclagem de vazios construídos em áreas urbanas centrais. Uma tecnologia social aplicada ao caso de Salvador, Bahia. Programa Pesquisador Visitante Especial do Ciência Sem Fronteiras/CAPES. e-mail: vaziosconstruidosufba@gmail.com Endereço: Faculdade de Arquitetura da UFBa. Rua Caetano Moura, 121, Federação, Salvador, Bahia
Palabras claves: vazios construídos, reuso de edificios, habitação social INTRODUÇÃO O processo de expansão da cidade de Salvador, que se iniciou da década de 1960, modificou a dinâmica que ocorria no bairro do Comércio até então. Muitas atividades industriais e comerciais ali desenvolvidas foram transferidas para outros locais da cidade, contribuindo para seu esvaziamento. É nesse cenário que o Comércio, a partir da década de 1990, passa a ser um local disputado, recebendo muitos projetos que buscam sua “requalificação”. Compreendendo esse contexto, a pesquisa Vazios Construídos, ligada ao grupo de pesquisa Lugar Comum, identificou imoveis vazios em sua área de trabalho, e se aproximou de movimentos sociais que têm como principal reivindicação a moradia. A criação dessa parceria gerou um projeto de workshop que ocorrerá em novembro de 2017. O presente artigo apresenta o projeto de workshop, como forma de tensionar a inserção da habitação de interesse social no centro de Salvador, bem como propor um processo de construção horizontal entre os membros da Universidade e os membros dos movimentos socias. 1. A DESCENTRALIZAÇÃO DO BAIRRO DO COMÉRCIO. Esse artigo é uma reflexão desenvolvida a partir da pesquisa Vazios Construídos que vem sendo desenvolvida desde 2015. Nela procuramos discutir o reuso do que chamamos de vazios construídos3 em uma poligonal que engloba parte do Centro Antigo4 de Salvador, a 2
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Segundo Fernandes e Oliveira (2016) “Entendemos por vazio construído áreas urbanas inteiras esvaziadas de suas funções e de sua vitalidade, precocemente tornadas obsoletas. Fundamentam essa obsolescência as novas lógicas da produção e especulação imobiliária, os requisitos tecnológicos e de cooperação das atividades econômicas e a incongruência entre o que se constrói e as carências sociais existentes”.
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Península de Itapagipe e parte do Subúrbio Ferroviário, como pode ser visto na figura 1. Neste artigo nos deteremos na parte do Centro Antigo, mais precisamente no bairro do Comércio, bairro este onde se concentram os estudos de caso que subsidiam a reflexão a qual pretendemos realizar.
Figura 1: Localidades de Salvador Fonte: elaboração dos autores.
Para desdobrarmos essa reflexão precisamos explicar como surgem os vazios construídos no Centro Antigo de Salvador, um resultado das políticas públicas aplicadas a partir da década de 1960, visando à modernização da cidade. Uma cidade moderna pedia um espaço urbano com fluxo livre das rugosidades (SANTOS) que caracterizavam o centro antigo e lhe atribuíam atrito em relação às atividades de um novo meio que se constituía centrado pelo conteúdo informacional, um meio técnico científico informacional (SANTOS). A cidade de Salvador cresceu em função de sua falha geológica que divide a cidade alta da cidade baixa. A primeira abrigando o poder civil e religioso e a segunda abrigando o porto e as atividades comerciais. É a segunda que nos interessa neste texto. A cidade do Comércio que cresceu alimentada pelas atividades comerciais associadas à produção agroexportadora e depois, também, à atividade industrial que se desenvolveu na primeira metade do século entre a península de Itapagipe e o Subúrbio Ferroviário. O fortalecimento das atividades supracitadas são os motivos que estimularam a ampliação do porto e do aterro, entre o final do século XIX e o início do século XX. O Comércio tornouse uma parte do centro de Salvador a esta época. Tornou-se “centro” por se concretizar como um espaço de... [...] convergência de fluxos e multiplicidade de funções, produzidas socialmente. O centro é o local que concentra e especializa os interesses e funções dominantes da vida na cidade. É o lugar da interação dos fluxos urbanos, o nó do sistema de comunicação‟ da cidade, o lugar para onde os
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O Centro Antigo de Salvador é composto pelos seguintes bairros: Centro, Barris, Tororó, Nazaré, Saúde, Barbalho, Macaúbas, parte do espigão da Liberdade, Santo Antônio e Comércio, além do Centro Histórico.
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Vazios Construídos em Salvador/Bahia: Uma proposta de reuso para habitação social fluxos convergem e se distribuem. É o lugar onde as trocas econômicas e sociais se intensificam e interagem. (CARVALHO, 1997, p. 09)
Este cenário tornou a cidade baixa um espaço voltado para atividades industriais, comerciais e de serviços, enquanto que a cidade alta realizou-se predominantemente residencial. Ambas interligadas através de elevadores e planos inclinados. Nas primeiras décadas do século XX se iniciou o processo de esvaziamento devido às mudanças de usos que ocorriam no centro antigo. A criação do Código Urbanístico, em 1966, proibiu o uso residencial em algumas áreas da cidade baixa. Embora não tenha vigorado por muito tempo, o código interferiu na dinâmica residencial que ainda havia no bairro, implicando em consequências até os dias de hoje. Mas é com a construção de novas áreas industriais – criadas em zonas metropolitanas, como o Centro Industrial de Aratu (CIA) e o Polo Petroquímico de Camaçari, modificando a dinâmica industrial que, até então, ocorria na cidade baixa – bem como o deslocamento do centro comercial e administrativo para outras áreas da cidade, que o bairro do Comércio irá sofrer significativamente. Aliado à isso, a construção de um novo centro de comércio e serviço guiado pela construção do shopping Iguatemi e rodoviária, ambos edifícios polarizadores, mais a transferencia do setor público do centro antigo para o Centro Administrativo da Bahia (CAB), acessado através da Avenida Paralela, foram processos que contribuiram para o desenvolvimento de novas centralidades. Podemos dizer que, no caso de Salvador, a descentralização está associada á dispersão de estruturas ligadas às deseconomias de aglomeração da área central, crescimento demográfico e espacial (CORRÊA, 1998), bem como à criação de um mercado imobiliário especulativo no norte da cidade. De acordo com Maricato(2000), esse processo de modernização das principais cidades brasileiras, inclusive Salvador, se deu de forma seletiva, em regiões que compunham a chamada cidade formal; e considerando este urbanismo modernista/funcionalista que reestruturou a cidade de Salvador a partir de novas centralidades, reverberou também de outras maneiras, nas palavras de Maricato(2000): “ele contribuiu para ocultar a cidade real e para a formação de um mercado imobiliário restrito e especulativo”. O Centro Antigo se encontrou no final do século XX, esvaziado e em descenso. Uma área com considerável capacidade instalada subutilizada (MOGILKA). Entretanto, ao mesmo tempo, outros discursos emergiam no cenário internacional e penetravam nas reflexões sobre intervenções urbanísticas, dialogando diretamente com os agentes produtores de solo urbano (CORRÊA) ligados ao capital. Ao mesmo tempo se desdobrava uma crise mundial do sistema capitalista que permitiu a emergência de um novo modelo político-econômico: o neoliberalismo. São as políticas neoliberais que, promovendo a reprodução do capital através da expropriação/desapossamento (HARVEY), permitem a articulação de movimentos sociais cuja pauta de reivindicações incluem, no âmbito da cidade, o direito a seu acesso pelas populações mais pobres, desapossadas de seu direito à moradia e, de certa forma, de seu direito de dispor de sua força de trabalho. Observemos: esses movimentos reivindicavam habitação, mas não em qualquer lugar. A habitação deveria ser no centro. Num cenário mundial, a ideia de resgate de centros antigos começou a ser debatida por volta da década de 1960, embora os sinais de decadência tenham sido percebidos anteriormente. Grandes cidades começaram a repensar seus centros urbanos, seja por se encontrarem em decadência ou por não mais atenderem as demandas existentes, mas sempre pensando numa nova forma de reprodução do capital. Criam-se novas formas de denominação para atuações no espaço urbano. Segundo Arantes (2000): [...] recurso constante ao eufemismo: revitalização, reabilitação, revalorização, reciclagem, promoção, requalificação e até mesmo renascença e por aí a fora, mal encobrindo, pelo contrário, o sentido original XXXVI Encuentro y XXI Congreso de Escuelas y Facultades Públicas de Arquitectura del Mercosur | San Juan. Argentina. 2017
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Vazios Construídos em Salvador/Bahia: Uma proposta de reuso para habitação social de invasão e reconquista, inerentes ao retorno das camadas afluentes ao coração das cidades. (ARANTES; MARICATO; VAINER, 2000, p. 31).
A “requalificação” dessas áreas centrais, em sua grande parte, se apropria do imaginário e simbolismo que os centros urbanos representam para seus habitantes, e são traduzidos numa política homogeneizada, reproduzindo o modelo de linguagem urbana globalizada para os espaços, desconsiderando a complexidade inerente a esses, como descreve DEL RIO: “[...] a complexidade da vida urbana, do patrimônio histórico, da integração e inter-relação entre as funções e atividades humanas, a importância das redes sociais estabelecidas, dos valores afetivos e de tantos outros fatores vitais para o cidadão” (DEL RIO, 1990, p. 20-21).
É seguindo esse modelo, ignorando a complexidade da vida urbana e a importância das redes sociais, que a maior parte dos projetos voltados para o Comércio se inspira no planejamento estratégico. Nesses projetos propõe-se o Comércio como uma mercadoria voltada para consumidores virtuais com necessidades genéricas, e não como um espaço a aqueles que estão inseridos no local onde possuem uma demanda imediata, principalmente se tratando de classes menos abastadas. Como afirma Vainer: “[...] não fica difícil entender por que as propostas constantes de todos os planos estratégicos, sejam quais forem as cidades, pareçam-se tanto uma com as outras: todos devem vender a mesma coisa aos mesmos compradores virtuais que têm, invariavelmente, as mesmas necessidades” ( VAINER, 2000, p. 80).
Visto como um produto, o espaço urbano, neste caso, o Centro Antigo, passa a ser cenário de muitos projetos. Na década de 1990 houve uma tentativa de retomada deste espaço através de investimentos voltados para o turismo, contribuindo para sua gentrificação. Na década seguinte, surge em Salvador o movimento sem teto reivindicando moradia no centro antigo. 2. A UNIVERSDADE NA DINÂMICA URBANA A universidade, um importante organismo dentro da dinâmica urbana ao longo do século XX, manteve na sua relação com a sociedade, um posicionamento iluminista, no sentido de trazer a luz da razão aqueles que não tinham tido uma educação formal (BOAVENTURA). A partir dos anos 90, a partir de um contexto de escassez produzido pelo modelo neoliberal, os movimentos sociais passam a cobrar da mesma outras respostas. A fim de não perder o seu posto de centro produtor/sistematizador de conhecimento formal, a universidade, agora procurar estebelecer com os movimentos sociais uma relação mais horizontal no processo de produção de conhecimento. Neste momento, a mesma se vê no papel fundamental de tornar público o conhecimento produzido e contribuir com os seus conhecimentos nas temáticas de relevância que se passam na cidade, como cita Bienenstein, Bienenstein e Freire (2017): Este tipo de atuação permite que a universidade pública cumpra, de forma mais efetiva, o seu papel, disponibilizando o seu conhecimento técnico para a população e apoiando suas lutas pelo direito à moradia e à cidade, numa perspectiva de explicitação de conflitos subjacentes à produção do ambiente urbano. (BIENENSTEIN; BIENENSTEIN; FREIRE, 2017, p. 08)
Entendendo o contexto de transformações do espaço urbano soteropolitano que ocorreu a partir da segunda metade do século XX – mais os agentes que tensionam este espaço e as lutas sociais pela defesa do Direito à moradia e à terra – pode-se compreender o trabalho XXXVI Encuentro y XXI Congreso de Escuelas y Facultades Públicas de Arquitectura del Mercosur | San Juan. Argentina. 2017
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desenvolvido no projeto de pesquisa: “Vazios Construídos: Regeneração de vazios construídos em áreas urbanas centrais. Uma tecnologia social aplicada ao caso de Salvador, Bahia” 5 . Ele tem como objetivo a elaboração de estratégias de ocupação e regeneração dos vazios construídos, tensionando questões como: i) a dinâmica da cidademercadoria no seu sentido mais estratificador do solo urbano; ii) o reaproveitamento das infraestruturas em desuso e iii) a relação entre a universidade e a comunidade, de forma a se produzir conhecimento fruto desta troca. No decorrer da pesquisa, confirmou-se que o bairro do Comércio, parte do Centro Antigo de Salvador, é a região, dentro da poligonal supracitada, que apresenta a maior quantidade de edificações totalmente esvaziadas ou em situação de subutilização, decorrente dos processos já apresentados. A partir dos anos 90, o Comércio começa a sofrer uma tentativa de retomada das suas atividades, tanto por parte do capital quanto pelos movimentos sociais que lutam por terra e moradia. É a estes, os movimentos sociais, que o projeto Vazios Construídos quer dar uma resposta. Percebendo que a luta destes movimentos se intersecciona com o objeto de interesse do projeto de pesquisa – e que trazê-los para o seu escopo era a oportunidade de ampliar os debates acerca das temáticas abordadas no território do Comércio, e de certo modo, dar voz e visibilidade aos mesmos – foram contatados três atores sociais já estabelecidos no Comércio e que trabalham essencialmente com as questões habitacionais em Salvador, sendo eles: Movimento dos Sem-Tetos de Salvador - MSTS, Famílias em luta pela moradia e a Comunidade da Trindade. A condição de uma construção coletiva – fruto da relação horizontal entre universidade e sociedade civil, neste caso movimento social – sempre esteve no escopo do projeto. No bojo desta configuração, os membros do projeto procuram aliar pesquisa e extensão, idealizando a elaboração de um workshop, enquanto metodologia que promova a discussão e problematização dessa produção de cidade vigente dentro da dinâmica do mercado imobiliário e especulativo, além de tensionar à função social dos edifícios e o direito à moradia, que é negado à população invisibilizada no Comércio, inclusive aos atores sociais que trabalharão, no workshop, em parceria com os participantes da atividade. Ao longo do período do workshop, os mesmos estarão desenvolvendo junto com os estudantes, todas as atividades propostas provenientes de demandas reais, entendendo que as trocas entre estes poderão gerar produtos mais eficientes em sua própria natureza (BORDENAVE) e que esta dinâmica é uma forma de legitimar os movimentos sociais enquanto agentes produtores do espaço urbano, como sustentam Bienenstein, Bienenstein e Freire (2017): Dessa maneira, no processo projetual, considera-se a inegável experiência e o conhecimento da população na sua luta por uma cidade (e uma arquitetura) mais igualitária e justa, especialmente no que se refere à produção de moradias, rompendo com a posição de “trabalhar para o usuário” e adotando a postura de “trabalhar com o usuário”. Assim, se reconhece no morador um planejador popular cujo conhecimento é adquirido na sua vivência cotidiana dos espaços da cidade. (BIENENSTEIN; BIENENSTEIN; FREIRE, 2017, p. 08, grifo dos autores)
3. A CONSTRUÇÃO DO WORKSHOP E SUAS METODOLOGIAS Com esse intuito – de construir com os movimentos sociais uma proposta de reuso de vazios construídos – os membros da pesquisa desenvolveram a ideia de um workshop no 5
O projeto que é vinculado ao Grupo de Pesquisa Lugar Comum e conta com o financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES
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qual seriam elaborados projetos arquitetônicos que pensassem habitações de interesse social nas quais as necessidades de três movimentos sociais específicos, com ações no Centro Antigo de Salvador, seriam acolhidas. Esta atividade será promovida pelo grupo de pesquisa Lugar Comum, coordenado pela Professora Doutora Ana Fernandes, durante a XVII Semana de Urbanismo da Bahia; e contará com a parceria e orientação do arquiteto uruguaio Raul Valles. O movimento de escolha destes atores sociais se deu, com o MSTS e o POPRUA, através de parcerias já firmadas entre estes e o grupo de pesquisa Lugar Comum. Enquanto que o contato com a Comunidade da Trindade, liderada pelo Frei Henrique, se iniciou através de um uma procura dos membros da pesquisa que tiveram conhecimento do trabalho do líder católico juntos àqueles que não podiam pagar por uma moradia. Escolhidos os movimentos sociais passamos a parte onde escolheríamos os vazios construídos possíveis de serem refuncionalizados para a habitação de interesse social. Para cada movimento social construiu-se uma metodologia específica para a efetuação desta escolha, a qual descreveremos mais adiante. Escolhida a edificação passou-se a aquisição do cadastro, ou via os órgãos competentes, ou via o próprio esforço dos membros da equipe de pesquisa, os quais íam a campo para fazerem o cadastro da edificação em questão. As plantas serão importantes, mais tarde, no workshop quando as equipes de arquitetos participantes se debruçarem sobre os prédios para construírem um projeto que convergisse com as necessidades dos moradores existentes ou potenciais. Adquirida a planta, a próxima etapa foi realizar um levantamento do histórico dos atores sociais engajados no movimento de apropriação do centro para moradia. Esse momento – de levantamento do histórico – estava relacionado à construção de um necessário contexto para o entendimento mais aprofundado dos motivos e processos que caracterizavam cada movimento social relacionado. Essa etapa seria útil, por exemplo, para as explicações, ainda que parciais, acerca de como cada movimento social chegara ali – o Centro Antigo – e porquê. Poderíamos, a partir do histórico, pensar como as dinâmicas sociais mais amplas, relacionadas ao próprio movimento da história na escala nacional estavam implicadas no movimento por moradia em Salvador. Feito isso passaríamos à construção do perfil que caracterizava cada população atendida por cada movimento social. Para os profissionais envolvidos no futuro workshop pensarem os diversos tipos de moradia demandados pelos movimentos sociais citados seria necessário que eles conhecessem com algum nível de detalhe quais seriam as populações atendidas. Com essas informações em mãos eles poderiam decidir sobre a conformação mais adequada das futuras moradias que atenderiam cada grupo social. Entendendo também que ter este material disponível não subtrai o fato de uma necessária aproximação física, se propôs uma visita guiada à cada edificação que será trabalhada, juntamente àqueles que compõem os movimentos sociais a fim de se criar, um, uma ligação entre os participantes e, dois, uma oportunidade de interagir com o espaço trabalhado. Para a preparação do material de caracterização foi realizada, durante a pesquisa, uma aproximação junto aos movimentos sociais como uma etapa para o workshop, a fim de compreender suas dinâmicas e reivindicações. Com cada movimento social o diálogo foi construído de uma forma e envolveu um tipo de interlocutor. No caso do MSTS, os edifícios escolhidos não se encontravam mais vazios no momento da pesquisa. Eram edificações ocupadas pelo movimento e, portanto, já desempenhavam a função habitacional, mas que anteriormente tinham sido abandonadas pelo processo de esvaziamento do Centro. As plantas dos edifícios ocupados foram construídas, através de campo específico para tanto, pelos próprios membros da pesquisa. O histórico da ocupação foi construído a partir de conversas com um dos líderes do Movimento, Idelmário Coelho e XXXVI Encuentro y XXI Congreso de Escuelas y Facultades Públicas de Arquitectura del Mercosur | San Juan. Argentina. 2017
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os líderes das ocupações trabalhadas, José Carlos, Irailde Santana e Carlos Maia; além da leitura de trabalhos acadêmicos que discorrem acerca do trabalho desenvolvido por este ator social dentro da cidade de Salvador. O perfil da população atendida foi construído através de entrevistas com as lideranças supracitadas, que ocorreram em dois momentos: a) uma roda de conversa formal entre alguns membros da pesquisa e as lideranças e b) conversas informais durante a realização do cadastro dos edifícios. Neste processo, contamos ainda com uma pesquisa aprofundada no livro publicado pela professora doutora Ângela Gordilho, intitulado “O direito de morar em Salvador”. Através das visitas às ocupações, confirmou-se a necessidade de repensar os núcleos habitacionais, no sentido de trazer melhorias e estabelecer uma moradia de qualidade para aquelas pessoas. Outra demanda perpassa a dimensão do emprego e renda, já que a maioria dos indivíduos que ali residem, estão desempregados ou trabalhando no mercado informal. Com a Comunidade da Trindade nosso interlocutor principal foi o próprio fundador do projeto. Diferentemente do MSTS e do Pop Rua, esse movimento não prega um conteúdo político como orientador de suas ações. O frei Henrique prima por um conteúdo religioso. Dessa forma o movimento que ele representa não possui um caráter explicitamente insurgente, no sentido político do termo, visto que o espaço ocupado por ele – a Igreja da Trindade – foi confirmado pela arquidiocese de Salvador. A proposta da Comunidade da Trindade, inadvertidamente, confronta o capital, já que ocupa um espaço urbano, com fácil acesso ao Centro Antigo de Salvador, pela necessidade característica do valor de uso. Os indivíduos moradores da Comunidade da Trindade não contribuem para a reprodução direta do capital, mas transformaram o prédio da igreja em espaço de moradia. Frei Henrique, notadamente, procura resgatar a população em situação de rua da sua condição de vulnerabilidade. Assim sendo as características das demandas que ele apresentou para orientar a escolha das edificações que seriam utilizadas pelo workshop são coerentes com o caráter do movimento até então. Ele deseja edificações que possibilitem uma forma de habitação acompanhada, onde o morador de rua em fase de transição entre a rua e uma vida normativamente reconhecida pela estética hegemônica tenha a possibilidade de conviver com indivíduos socialmente aceitos. Nesse sentido as edificações deveriam ser relativamente pequenas, para poderem continuar comportando o caráter intimista que permeia a Comunidade da Trindade. Escolhidas as edificações, passou-se ao momento onde garantiríamos as plantas dos mesmos para o workshop. Ao contrário do que ocorreu com o MSTS não se precisou ir a campo para realizar a construção desse cadastro. Eles foram fornecidos pelas instituições proprietárias das edificações. Já com o Pop Rua a interlocução e a construção da proposta se realizou ainda de outra forma bem diferente daquelas descritas até aqui. O Pop Rua possui em comum com a Comunidade da Trindade o fato de trabalhar com a população em situação de rua e, ao mesmo tempo, com o tema habitação. Porém, as semelhanças entre os dois movimentos não se desdobram. O Pop Rua, ao contrário do que acontece com a Comunidade da Trindade e se aproximando mais do MSTS, tem um forte conteúdo político e militante. Esse movimento procura dialogar diretamente com o poder público, nas diversas instâncias, além de possuir um diálogo bem próximo com a Pastoral do Povo da Rua. Por sinal, são membros da Pastoral que estabeleceram contato conosco representando o Pop Rua, e não as lideranças do próprio movimento. Esses interlocutores nos traçaram um perfil do movimento, além de nos fornecerem um perfil básico, bastante real de uma população existente que seria a possível usuária do projeto arquitetônico a ser construído no workshop.
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Segundo os interlocutores do Pop Rua, a possível população usuária consiste em 50 mulheres ex-moradoras de rua que precisariam, por sua vez, de apartamentos comuns sem nenhuma proposta especial de forma de habitar. A única demanda mais específica que eles colocaram diz respeito a elaboração de um espaço no térreo com vistas a alugar para lojas. Sendo assim, a edificação a ser escolhida deveria ser preferivelmente um prédio residencial ou possível de ser adaptado para habitação. O processo de escolha das edificações pensadas por esse grupo foi especialmente complicado, visto que os prédios escolhidos com essas características, a princípio, não possuíam cadastro de acesso viável ao grupo de pesquisa, assim como não conseguimos permissão para entrar nos referidos prédios para que pudéssemos, nós mesmos, realizarmos os cadastros. Os três movimentos tinham em comum o fato de preferirem edificações na região do Comércio, um espaço da poligonal de pesquisa contido no espaço do Centro Antigo de Salvador. Esta posição é decorrente de fatores como: a) as facilidades de se viver no centro, podendo usufruir da sua infraestrutura; b) o significado político da territorialização de um movimento social ao ocupar um espaço no centro, tradicionalmente um território das elites. 4. CONCLUSÃO A prática do desenho na arquitetura tem uma significância muito grande, no sentido de que reverbera diretamente na vida cotidiana das pessoas. Neste sentido, quando este movimento é realizado junto aos futuros usuários, a compreensão de cada indivíduo e o seu papel dentro do contexto em que se insere, se configura como essencial para o desenvolvimento do projeto. Pode-se citar, por exemplo, o papel da mulher enquanto agente do espaço da moradia e como sua luta e experiência podem direcionar novas possibilidades no desenho destes espaços, se aproximando da realidade vivida. Sendo assim, considerase que cada experiência realizada é única, pois deriva de processos, dinâmicas e atores inerentes particularmente a cada caso. Em se tratando de uma veia social, o trabalho aqui apresentado e a ser ainda realizado; permite novas possibilidades de se refletir sobre os modos de vida e habitação presentes nos dias atuais. Discutir demandas reais junto aos atores envolvidos no processo e conceber, também com eles, esses novos espaços, direciona a arquitetura à uma vertente mais democrática e horizontal, como defende Bienenstein, Bienenstein e Freire(2017): Em termos da arquitetura, como apontado anteriormente, o desafio é praticar uma arquitetura que considere o ambiente construído pelos grupos sociais envolvidos, no sentido de construir um urbanismo referenciado à cidade popular, o que, necessário reforçar, não significa assumir e ou valorizar e ou naturalizar a miséria e ou produzir uma arquitetura da pobreza!… Muito pelo contrário, significa e prioriza a necessidade de compreender a força dos saberes populares, buscando contribuir para o avanço das suas identidades e lutas, aqui delineadas pelo direito à cidade, à moradia e uma arquitetura que possa representar aspirações, desejos e valores coletivos, ou seja, uma arquitetura dotada de uma missão social. (BIENENSTEIN; BIENENSTEIN; FREIRE, 2017, p. 08)
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