Na Baixa dos Sapateiros

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Na Baixa dos Sapateiros Leopoldo Bokor



De repente, no ocaso da vida, esperando a eterna noite, eis que surge e brilha um sol. Para Henriquinho, meu sol.



Leopoldo Bokor

Na Baixa dos Sapateiros

1ª edição Salvador Editora Expoart 2017

PAT R O C Í N I O


B686

Bokor, Leopoldo. Na Baixa dos Sapateiros / Leopoldo Bokor. – Salvador: Expoart, 2017. 88f. : il.

ISBN 978-85-5850-003-6

1. Baixa dos Sapateiros – História da Bahia. 2. História da Bahia. I. Bokor, Leopoldo. II. Título CDD 981.42


A BAIXA Sua denominação oficial é Rua Dr. J. J. Seabra, mas é conhecida por todos os baianos e, por que não dizer, por muitos brasileiros, como Baixa dos Sapateiros. De maneira carinhosa, pode ainda ser conhecida, simplesmente, como “A Baixa”. Tempo houve em que até os Correios e repartições públicas endereçavam suas cartas com o nome oficial, e, elevando a rua à categoria de bairro, acrescentava o nome Baixa dos Sapateiros. A rua, de mais ou menos dois quilômetros de comprimento, é sinuosa, parecendo uma serpente. Conhecida como rua de comércio de preço módico, tem a maioria das lojas concentradas no trecho entre o Terminal do Aquidabã e a Barroquinha. No entanto, nos anos idos, entre 1940 e 1980, no que se refere ao comércio, a Baixa tinha tão somente uns mil metros, entre a entrada do Taboão e a Ladeira de Santana. Na Baixa dos Sapateiros, foi erguido o primeiro cine teatro de Salvador, o Jandaia; foram também colocados os primeiros trilhos de bondes, e foi a primeira rua de “comércio” da dita “Cidade Alta”, embora, a bem da verdade, a Baixa dos Sapateiros estende-se em um plano intermediário entre a Cidade Baixa (o Comércio) e a Cidade Alta (Rua Chile, Av. Sete, etc.). Antigamente, a rua tinha uma vala (razão do seu primeiro nome, “Rua da Vala”) onde desaguava o Rio das Tripas. Entretanto, o rio foi drenado, e colocou-se o calçamento de paralelepípedos sobre ele. Hoje, é asfaltada, mas, devido à infiltração do Rio das Tripas, por baixo da rua, sempre há problemas de ferrugem em peças metálicas em suas casas e lojas.

Dr. J.J. Seabra. Governador da Bahia 1912 - 1916 / 1920 - 1924

A rua foi batizada com o nome do Dr. J. J. Seabra em homenagem ao ex-governador da Bahia, responsável pela modernização da cidade. Curiosamente, o governador José Joaquim Seabra foi quem construiu a Av. Sete de Setembro, que viria a ser uma artéria de comércio mais

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Cena da rua - Década de 70


chique, e que roubaria a clientela da Baixa. Nossa estória relata personagens deste trecho, no período entre 1970 e 1990. Com o tempo, o comércio da Baixa foi se estendendo, primeiramente, do Cine Jandaia até o Aquidabã; depois, por outro lado, foi se alongando até a Barroquinha. O comércio era constituído basicamente de lojas de confecções e tecidos, mobiliarias e bares, mas havia também funerárias, uma loja de ferragens e algumas de louças, alguns bancos, além de duas feiras, a de Santa Bárbara e a de São Miguel. As lojas de confecções pertenciam geralmente aos árabes, portugueses e brasileiros. Já as de móveis, aos espanhóis, e, principalmente aos judeus, como os Miller, Shaidman, Gandelman, Wolf Trief, Bokor, Zausner, Sapolnik, Abramovits, Bergman etc. As calçadas eram estreitas, cheias de tabuleiros de camelôs, e mal comportavam os transeuntes, que tinham, muitas vezes, que andar fora delas e ainda evitar serem atropelados pelo bonde, que mais tarde foi substituído pelos ônibus. Além disso, ainda havia as carroças puxadas por cavalos, que só deixaram de transitar pela rua nos anos setenta. Talvez, devido ao costume das Cortes Católicas de doar grandes áreas ao redor das igrejas às próprias, e por ser a Baixa dos Sapateiros rodeada delas, a maioria das casas e lojas são de propriedade de associações religiosas católicas, como as Senhoras de Caridade e a Ordem Terceira do São Francisco. Também havia o costume, antigamente, de doar imóveis à Igreja, em testamento ou em vida. De qualquer maneira, na época retratada neste livro, este fato fazia com que os aluguéis cobrados por estas associações religiosas fossem irrisórios, ocasionando, talvez, o barateamento das mercadorias vendidas. Em realidade, as entidades religiosas nem sequer possuíam comprovantes de propriedade da maioria destes imóveis doados verbalmente

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por moribundos. Impostos, como o municipal Predial, só passaram a ser pagos nos anos oitenta. Em junho, em virtude do feriado de São João, e em dezembro, por ocasião do Natal, o tráfego era interrompido, pois era muito grande a afluência de pessoas que ocupavam a rua em toda sua largura e extensão, tornando-se difícil transitar normalmente por ela. Outras datas importantes para a Baixa eram o Dia de Samba, em 02 de dezembro, e o Dia de Santa Bárbara, em 4 de dezembro. No Dia do Samba, as festividades tomavam conta das feiras e ruas adjacentes, havendo desfile de Blocos e Batucadas. Já no Dia 4 de dezembro, a festa era no Mercado de Santa Bárbara, onde era distribuído um caruru para centenas de pessoas, gratuitamente. Acontecia também uma procissão pela rua, com a imagem da santa e com a participação do Corpo de Bombeiros, estendendo as comemorações para dentro do Quartel Geral dos Bombeiros, um prédio vistoso e pintado de vermelho, situado na Praça dos Veteranos. Essas festividades ainda acontecem nos dias atuais. Infelizmente, com o crescimento do comércio popular na Av. Sete, hoje a rua é só um arremedo do que foi, com várias lojas fechadas, pouca gente transitando nas esparsas lojas de confecções e de eletrodomésticos, sendo estas últimas simples filiais de grandes cadeias espalhadas pela cidade. Entretanto, até 1990, a rua tinha vida própria, era vibrante e divertida, com seus personagens pitorescos. Era também onde os clientes assíduos, os comerciantes e os camelôs conviviam como uma grande família, já que, praticamente, todos se conheciam uns aos outros. Relatos reais e fofocas corriam soltos, compartilhados por todos.

Caruru de Santa Bárbara - Década de 80

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Procissão de Santa Bárbara - Década de 70

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ALEMÃO Alemão acordou cedo, como sempre acontecia, e logo tratou de esquentar a água para fazer o café. Era um trabalho quase mecânico: colocar o pó no coador, esquentar a água na velha panela usada exclusivamente para este fim (praticamente a única exigência dele na cozinha liderada por sua esposa e filha), e, quando a mesma já estava fervendo, despejava o líquido no coador, já devidamente colocado em cima da garrafa térmica. Era sua rotina de todas as manhãs. Assim, quando sua esposa acordasse, o café já estaria pronto e, na maioria das vezes, Alemão já teria tomado o seu. Logo, sua esposa, uma mulher negra avantajada, gordinha, que trabalhava como lavadeira avulsa, acordava, e depois de tomar café, enchia a pequena marmita de Alemão com um pouco da comida do dia anterior, geralmente arroz e um pedaço de carne. Os dois só voltariam a se ver pela noite, quando Alemão voltasse do trabalho com os pães para o café. Alemão se orgulhava da família, da esposa e dos três filhos (duas meninas e um bebê), e de conseguir manter as garotas na escola, coisa que ele não teve oportunidade quando jovem, pois teve que trabalhar muito cedo para se sustentar. Era de estatura baixa, magro, e tinha uns 50 anos, mas aparentava bem mais. Sua pele era enrugada, vermelha (daí o apelido), e em função do seu trabalho como lavador e guardador de carros (flanelinha, nos dias de hoje), o rosto era salpicado de pequenas feridas, principalmente nos lábios, devido à grande exposição ao sol de Salvador e à fragilidade de sua pele. Durante o Carnaval, quando trabalhava em frente ao Clube Bahiano de Tênis, sob o sol escaldante, as feridas aumentavam.

Alemão - Il. César Romero

Hoje, é possível concluir que, além de um óbvio câncer de pele, ele sofria de vitiligo. Possuía as pernas meio arqueadas, o que o fazia balançar ao andar. Era um “velho” feio, mas não havia ninguém que não

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gostasse de conversar com ele. Era ágil, rápido e metódico, tanto na lavagem como no ato de lustrar os carros. Orgulhava-se de possuir uma fórmula secreta para a cera com que lustrava os carros dos clientes eventuais. Essa “fórmula”, que praticamente ninguém conhecia, consistia simplesmente em adicionar um pouco de óleo de cozinha na pasta para lustrar automóveis, que, naquele tempo (anos 70 e 80), era dura e ressecava com facilidade. Com o óleo, a pasta, além de ficar macia, aumentava de volume, o que lhe barateava o custo. Para adicionar o azeite, era necessário aquecer a cera, e, uma vez, ao fazer isso, teve queimaduras nas mãos, pois a latinha pegou fogo, assim como o azeite. Suas mãos ficaram, além de enrugadas pelo constante contato com a água, com grandes manchas brancas, deixadas como lembranças desastradas das queimaduras. Trabalhava fardado, com botas, quepe e tudo mais, e se orgulhava de ser guardador sindicalizado, com crachá e número, queixando-se sempre dos “moleques” não sindicalizados que invadiam sua área de trabalho, fazendo-o perder parte de suas gorjetas. Sua clientela de lavagem de carros era praticamente formada por lojistas, e se estendia desde o Aquidabã, onde saltava do ônibus, até a Rua Chile, onde virava guardador, passando pela Baixa dos Sapateiros, Pelourinho, Praça da Sé e adjacências. Conhecedor do lugar onde os lojistas estacionavam seus carros, ele passava diariamente em suas lojas e perguntava se queriam que os lavasse. Tinha também clientes fixos, de três vezes por semana, e assim por diante.

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O DOJÃO A primeira parada onde Alemão tentou buscar trabalho foi na firma do Sr. Orlando. O Sr. Orlando possuía uma serraria, que era também madeireira e casa de ferragens, gerenciada em conjunto com seus dois filhos, Edvaldo e Osvaldo, e cujo carro Alemão lavava. Um belo dia, Edvaldo teve uma brilhante ideia. Sempre às voltas com a fraqueza de seus veículos de entrega, adquiriu, em um leilão patrocinado pelo Exército, um caminhão transportador de tropas da Segunda Guerra Mundial, ano 1940, marca Dodge. “Desta vez”- dizia – “estou bem servido com um caminhão de guerra, forte, econômico, inquebrável, que topa qualquer terreno, o que é importante, pois posso levar materiais para qualquer rua, sem respeitar buraco ou ladeira”. O “Dojão” era tão alto que, para subir à cabine, era necessário galgar dois degraus, e sua caçamba ficava a dois metros do chão. Era, naturalmente, todo verde escuro e de metal, com grandes pneus largos. Pesadão! No entanto, Sr. Edvaldo aprendeu que algumas teorias não funcionavam bem na prática. Era um veículo lento! Embora fosse dito que podia alcançar 100km/h, com muita dificuldade chegava a rodar a 60 km/h. Gastava muito combustível, e o que era pior, gasolina! Portanto, nada de economia.

Modelo do Dojão

Tinha pouco “jogo”, requeria muito espaço para manobrar, além de esforço do motorista para virar com o volante os pesados pneus.

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Para completar, era tão grande o “Mastodante” que não conseguia entrar nas pequenas ruelas dos bairros afastados, e até em algumas do Centro. Por sua vez, a altura da caçamba fazia a carga e a descarga das mercadorias ficarem, muitas vezes, complicada, requerendo dois ou mais homens. E, o pior dos males: era um “Casamento Civil”, ou seja, comprar fora fácil, vender, nem pensar. Assim, para surpresa do esperto Edvaldo, as suas expectativas falharam e a estória do “Dojão” virou piada. Um dia, o caminhão sumiu da Baixa. Parece que Edvaldo conseguiu passar adiante em Sergipe, que na época comprava qualquer “bagulho”. Ou, segundo algumas fontes, foi parar na fazenda do Sr. Orlando, para terminar seus dias lá.

Trecho da Rua onde ficavam a Serraria de Geraldo, a Colchões Primavera, como também as lojas do Lobisomem e de Oliveira - década de 60.

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O LOBISOMEM Defronte da Serraria ficava uma pequena Bomboniere, uma lojinha de duas portas estreitas, cujo dono era conhecido como “O Lobisomem”, desde o dia em que ele próprio justificou sua aparência. Ele era o décimo terceiro filho homem de seus pais, fato que, como todos na Bahia conhecem, o tornava um Lobisomem. Era de estatura alta, forte, mais para gordo do que para magro, e possuía a aparência de um lobo: orelhas em ponta, narinas abertas e grandes, espessas sobrancelhas que se juntavam acima do nariz, e boca grande, com enormes dentes espaçados. Possivelmente, a sua mãe, durante a gravidez, ficou impressionada com a lenda do Lobisomem, pois é sabido que uma mãe pode influenciar a aparência do filho mentalmente, levando certas grávidas a ficarem olhando fotos de bebês bonitos. Ou, quem sabe, a lenda é verdadeira? Ele era, entretanto, um sujeito pacato, verdadeiro “boa praça”, embora de pouca conversa. Certo dia, lá pelas 18 horas, quando se preparava para fechar a segunda porta de sua loja, foi surpreendido por um assaltante, que lhe pôs uma arma na cabeça e o empurrou para dentro da loja. Enquanto o assaltante estava distraído, rapinando sua gaveta de dinheiro com a féria do dia, o lojista empunhou um velho guarda-chuva que sempre guardava na firma e partiu para enfrentar o ladrão, golpeando-o. O revide do larápio foi um tiro que entrou pela boca do comerciante e saiu pela nuca, quebrando vários dentes. O som do tiro atraiu atenção de passantes e vizinhos, fazendo o ladrão fugir e o lojista ser socorrido. O Lobisomem - Il. Chico Mazzoni

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“O Lobisomem” se recuperou e voltou ao trabalho meses depois. Como a bala não era de prata, o marginal não conseguiu matar o “Lobisomem”...

Postal - Década de 50

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OLIVEIRA Quase defronte à loja do “Lobisomem”, pouco antes do Largo Ramos de Queiroz, ficava a Mobiliaria Oliveira, pertencente ao Sr. Oliveira e sócio. O Sr. Oliveira era moreno, meio baixo, e parecia um “mariachi” mexicano. Alguns comerciantes sonham em burlar o fisco, principalmente o estadual. Assim sendo, o Sr. Oliveira teve uma ideia que acreditava ser infalível. Atrás da cadeira onde trabalhava, colocou uma tomada, dessas pretas, redondas, que, quando puxada, abria uma porta que simulava parte da parede e dava acesso a uma saleta com uma carteira pequena e estante, na qual guardava a contabilidade paralela da oficial, com caixa 2, cadastro dos clientes, fichas de crediário etc. Ele exibia com orgulho sua genialidade, até que (não se sabe como) o Fisco descobriu a salinha escondida e fez a festa: o Sr. Oliveira teve que pagar todos os impostos, mais as multas. Mas este não foi o seu único problema. Seu sócio, que não ficava na loja, resolveu passar a frequentá-la diariamente, o que não seria problema se ele, um louro alto de meia idade, não fosse um homem de hábitos estranhos: achava que podia conquistar toda mulher que entrava na loja, propondo obscenidades, enfiando o dedo no ouvido delas (?!), o que acabava afugentando a freguesia. Por mais que o Sr. Oliveira chamasse sua atenção, ele dizia que tinha direito a frequentar a loja, o que era verdade. Mas não parava de assustar as senhoras que lá entravam. Um dia, escutando as mágoas do Sr. Oliveira, um comerciante amigo lhe informou que seu sócio frequentava uma loja maçônica, e lhe aconselhou a procurar a mesma. Foi o que fez, e pasmem: já no dia posterior, o sócio parou de ir à loja, e só voltava quando o Sr. Oliveira chamava para acertar as contas ou qualquer outro assunto. A Maçonaria funciona mesmo!

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Vista do Largo de SĂŁo Miguel - 1979


LOURINHO Alemão chegou em seguida ao Largo do Ramos de Queiroz, onde alguns lojistas estacionavam. O Largo era somente um pequeno recuo na Baixa dos Sapateiros e o início da subida do Ramos de Queiroz para o bairro do Santo Antonio. Ao chegar, notou que ainda era cedo e que os carros de seus clientes eventuais ainda não tinham chegado. Assim, entrou na estreita Rua das Flores para ver se o dono da pequena fábrica de colchões de molas já chegara. A Fabrica de Colchões de Molas Primavera tinha uma área de estacionamento onde paravam três clientes de Alemão: o proprietário da fábrica; Valfrido do Armarinho, e Lourinho, com seu DKV “Vemaguette”, sempre às voltas tentando regular as três bobinas problemáticas deste carro. Ao chegar da Espanha com sua família, o Sr. Manolo montou uma loja de móveis baratos, conhecidos no ramo como “Lascadinhos”, por se tratar de móveis feitos por fabriquetas de fundo de quintal, com compensados baratos, de design simples, mas muito vendidos na Baixa. Alguns eram até bem feitos, e se não tivessem contato com água ou umidade, duravam um bom tempo. Por se tratar de uma família tradicionalmente católica e conservadora, acharam por bem colocar seu filho em uma escola regida por padres. O menino era um garotinho bonito, de cabelos louros, encaracolados (o que lhe valeu o apelido de Lourinho), e foi logo encaminhado para um colégio interno católico. Com o passar dos anos, surgiu um boato na Baixa de que no dito colégio havia um professor predador de menores. Diziam que este professor escolhia um garoto, passando a aliciá-lo por alguns dias, e depois o convidava para ir à torre do sino, onde prometia que iria satisfazê-lo como mulher.

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O menino, marinheiro de primeira viagem e sabotado pelo professor, não conseguia perpetuar o ato. Depois de várias tentativas, o professor, com a desculpa de mostrar como se fazia, violentava o garoto, e sugeria ao mesmo que não contasse aos outros, para não passasse a vergonha de ter “dado ao professor”. Pelo sim, pelo não, os pais o tiraram do colégio, e ele passou a trabalhar na loja de móveis, com 16 anos. Tornou-se um rapaz de voz fina, de trejeitos femininos, ainda bastante bonito com seus cabelos louros, mas de comportamento antipático. Não dava razões para duvidarem de sua masculinidade, mas como era irascível com os empregados, gritando com eles, estes riam pelas suas costas e, como vingança, diziam que Lourinho, na certa, tinha visitado o campanário com o professor.

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P. Assim como Lourinho, P. chegou da Espanha quando tinha cinco anos, com seus pais, irmão, irmã e tio. Aos vinte, já trabalhava e mostrava seu potencial, gerenciando a loja de móveis montada em sociedade pelo seu pai e o tio, na Baixa dos Sapateiros, quase defronte do Cine Jandaia. Seu pai tinha total confiança nele e o apoiava em suas decisões, mesmo contra os protestos do tio, que não concordava com sua maneira de negociar, contraindo muitas dívidas, relaxando pagamentos aos fornecedores, levantando dinheiro nos bancos, e, principalmente, tendo muitas despesas pessoais, o que era compreensível devido à tenra idade, fazendo-o propenso a farras e arroubos de ostentação de pretensa riqueza. Não se podia dizer que era bonito ou muito simpático: era baixo (possuía menos de 1,70m de altura), tinha a arcada superior proeminente, e falava de uma maneira sibilante, resquício, talvez, de sua origem espanhola, embora não possuísse sotaque. Entretanto, possuía uma “lábia” invejável, conquistando mulheres lindas de todas as idades, além da confiança de fornecedores, clientes e gerentes de bancos. Gostava de carros e sempre os trocava, chegando a possuir um Mercedes-Benz e até mesmo um Ford Focus inglês, de volante no lado direito, (que dirigia magistralmente, embora deixasse seu “carona” em suspense nas suas ultrapassagens), e que tinha grande sucesso entre as garotas que ele conquistava entre a Praça da Sé, a Av. Sete e a Barra. Sempre preferia as mulheres mais altas que ele, pois, segundo suas palavras: “mulheres pequenas, você, com um olhar, vê tudo; as altas, você olha, olha, e ainda sobra mulher para olhar.” Cine Teatro Jandaia - Década de 50/60

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Ele mesmo gostava de consertar os seus carros, e não raro estava com as mãos sujas de graxa. Sempre administrando contas bancárias, débitos com fornecedores e despesas, não era rara a presença de cobradores em sua loja, que ele contornava com promessas ou pagando parte da dívida com pré-datados, mandando aguardar até efetuar alguma vendagem. Podia, até mesmo, jogar a culpa no tio ou no pai, convenientemente ausentes. Com sua influente “lábia”, sempre encontrava um avalista para poder levantar dinheiro ou rolar as dívidas bancárias. No entanto, P. era uma pessoa fiel, disposto a ajudar os amigos em qualquer situação. Certa vez, ao namorar uma loura alta e esbelta, soube que ela iria visitar a prima que morava no Rio de Janeiro. Desejou então ir junto, mas estava, como sempre, sem dinheiro para as passagens e hospedagem, além das contas no Bradesco estouradas, com saldo negativo, e vários “papagaios” (notas promissórias) a vencer. Procurou alguém para levantar dinheiro para ele, mas, naturalmente, não encontrou esta “alma santa”. Usando de todo seu charme e persuasão, durante uma semana, duas vezes por dia, junto ao gerente do Bradesco, bulindo com o imaginário do mesmo, relatando a grande oportunidade de passar uma “lua de mel” com a namorada no Rio, acabou convencendo-o a lhe dar o numerário necessário, aumentando ainda mais seu débito. A viagem foi um sucesso. A garota convenceu a prima a não relatar aos pais que o namorado tinha ido junto, e P. levou a jovem a se hospedar com ele numa pensão, verdadeiro bordel, numa transversal da Av. Brasil. Segundo seu relato,

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faziam sexo todos os dias, só saindo para se alimentar em botequins da vizinhança, voltando logo à pensão, mesmo sob protesto da garota, que queria conhecer o Rio. O problema era que P. não tinha dinheiro suficiente. Também teve a constatação, contrariando o que lera, de que não perdia a potência sexual ao transar tão amiúde. Alguns meses após esta viagem, P. começou a notar algo estranho, que o deixou preocupado: a namorada estava “seca”. Ao transar com ela, notava que a garota tinha pouca lubrificação vaginal. Segundo suas palavras: “ou está me traindo ou ficou fria”. Conhecendo a “performance” da garota no Rio, P. estava convencido de que a namorada o traía e decidiu tirar a prova. Durante cinco noites, postou-se em frente à porta da casa dela, escondido atrás de uma árvore, tentando vê-la sair ou até mesmo chegar com algum homem, mas só conseguiu ficar sem dormir e trabalhar mal humorado. Mas, mesmo assim, não se convencia, e na sexta noite, lá pelas duas horas da manhã, depois de muito fumar, resolveu tentar olhar o muro atrás da casa. Era um muro alto, mas quem sabe? Era uma casa geminada, e ao olhar por acaso, ao alto, procurando a janela do quarto da namorada, no primeiro andar, notou um vulto sair pela janela do mesmo andar da casa vizinha, atravessar pelo telhado e entrar no quarto da garota. O sangue ferveu em suas veias. Estava confirmado! Voltou à porta da casa, batendo vigorosamente, exigindo que alguém a abrisse, e quando o pobre pai da garota a abriu, viu atônito P. invadir sua casa portando um canivete e gritando: “vou cortar o “grilo” dela! Nunca mais vai trepar!”

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Subiu as escadas correndo, mas a garota, ao ouvir o barulho, trancou sua porta, o que acirrou ainda mais a raiva de P., que gritava impropérios como um possesso, batendo na porta com pontapés. Enquanto isto, a mãe aflita chamava a Polícia ao telefone, e o pai, auxiliado por um vizinho, dominava o intruso. Já na delegacia, para não ser preso, P. prometeu, perante seu pai - chamado às pressas – e o delegado de plantão, que não iria mais importunar a garota, agora ex-namorada. Ao relatar estes fatos, P. só tinha um remorso, segundo dizia, que era de não tê-la possuído por trás. P. continuou sua trajetória de vida cheia de altos e baixos. Mais “altos” do que “baixos”, a bem da verdade, graças à boa lábia e ao seu próprio carisma. Conseguiu uma boa sociedade numa empresa de médio porte, casou-se (com uma bela mulher, naturalmente) e se acalmou. No entanto, suas aventuras, se publicadas, dariam, com certeza, um “best seller”.

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CARLOS Carlos trabalhava na firma de Pepe como armador e polidor de móveis. Era muito eficaz, tanto com a chave de fenda como com a “punça” (pedaço de pano macio com um chumaço de algodão dentro, como uma trouxinha, usado para envernizar móveis), e logo ficou encarregado do depósito e de preparar as mercadorias para entrega ou exposição na loja. Era um verdadeiro mestre ou chefe, assumindo totalmente estas funções, e aliviando bastante o trabalho dos proprietários. Animado com a evolução dos negócios, os proprietários da loja decidiram ampliar seu ramo e passaram a fabricar móveis de estilo. Naturalmente, isto requeria um espaço maior do que seu depósito, o que foi resolvido ao assumirem uma carpintaria no bairro da Lapinha, na Liberdade. Para gerenciar a área de produção, não havia ninguém melhor do que o abnegado Carlos, que era um homem calmo, de fala pausada, magro, alto, e beirando os cinquenta anos. Carlos trabalhava com afinco e responsabilidade, e os móveis de estilo colonial, portugueses e espanhóis, copiados de revistas especializadas e encomendadas pelos clientes, eram bem feitos, o que fazia a pequena fábrica trabalhar a contento. Conforme as encomendas cresciam, a necessidade de trabalhar aos domingos surgia, e, numa destas oportunidades, Carlos não apareceu para o trabalho. O pior é que já no sábado ele não tinha comparecido, alegando, antecipadamente, na sexta feira, que iria ao médico. A segunda feira chegou e nada de Carlos ir trabalhar. Pepe, então, resolveu ir visitá-lo em sua casa. Para seu espanto, foi recebido pela esposa do próprio Carlos. Nervosa, criticou o patrão do marido, por explorá-lo, obrigando-o a trabalhar, sem descanso, várias noites, até duas da manhã, e que o marido fora trabalhar sábado dizendo que iria virar o dia até a segunda-feira. Carlos - Il. de César Romero

Depois de, sem sucesso, procurar Carlos nos hospitais, Pepe resolveu

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ir à Polícia, onde soube que seu marceneiro encontrava-se preso em flagrante por roubo. Sucedia que, há certo tempo, as lojas da Baixa estavam sendo arrombadas pelo telhado e roubadas em confecções e dinheiro, culminando com um roubo audacioso de uma pequena joalheria, quando o ladrão abriu um buraco na parede de uma loja junto à mesma, e depois saiu pelo telhado, levando várias joias. Então, a Polícia montou um esquema de vigília, e não demorou a cercar o ladrão, numa noite, em um telhado, obrigando-o a descer e prendendo-o. Era o marceneiro Carlos. Carlos confessou que se apaixonara por uma mundana residente na Rua do Maciel, no Pelourinho, e, para mantê-la, tivera que se dedicar ao furto, usando seu conhecimento para penetrar facilmente nos telhados das lojas. Quanto às joias, ele relatou que a mundana as entregou a uma irmã que morava em Brasília, e que iria vendê-las por lá. Depois, o pobre Carlos ficou sabendo que fizera papel de bobo, pois a “dama” tinha um cafetão a quem entregara as joias para vender. Portanto, o que ela fazia era somente usá-lo. O Delegado responsável pelo caso disse que este fato não era incomum, pois a pior paixão que existia era a de um homem para uma prostituta, e decidiu então ajudá-lo. Tendo a sorte de topar pela frente um delegado compreensível, e por ajudar a Polícia a prender a mulher e o cafetão - além de ter emprego fixo, garantido pelo proprietário da fábrica de móveis – Carlos foi solto e voltou a trabalhar sob a responsabilidade do patrão, que não queria perder tão bom gerente e marceneiro. Era casado, pai de dois filhos, e bom ladrão, pois agiu durante seis meses sem ser pego. Só foi preso por causa da ganância da mundana.

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TRAZIDOS Defronte do Cine Jandaia, havia a loja de Ferragem Santa Cruz, do Sr. José, um português. Era costume dos portugueses e espanhóis trazerem parentes da “terrinha” para trabalhar para eles. O regime era pesado, não tinha horário fixo, e era quase um trabalho escravo. Assim chegou outro Pepe, este para trabalhar para o Sr. José. Dormia na própria loja de ferragens e não saía para nada. Com o tempo, foi-lhe permitido dormir na casa do Sr. José, e, com isso, se deu bem, gerenciando a loja e se casando com a filha do dono. Outro que veio da Espanha foi Inocêncio, trazido pelo irmão Leopoldo para trabalhar na sua barraca, uma das maiores do Mercado Santa Bárbara. O Sr. Leopoldo era figura proeminente no Mercado, organizava as festividades e procurava deixar tudo limpo e perfeito. Tudo que ganhava investia na compra ou na construção de casinhas na periferia de Salvador, como uma garantia de aposentadoria, através dos aluguéis que cobraria. Claro que procurou incutir em Inocêncio a mesma dinâmica, mas o irmão se queixava do trabalho e do pouco dinheiro e tempo que tinha para se divertir, já que Leopoldo controlava tudo. Cito estes dois exemplos de como eram tratados os que eram trazidos pelos familiares para trabalharem na Bahia. A meu ver, era trabalho escravo, mas, dava certo, pois todos se fixavam em Salvador e conseguiam levar a vida a contento.

Quartel dos Bombeiros Il. Antonello L`Abbate

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PORTUGUESES No meio da ladeira do Pelourinho, havia uma lojinha de móveis populares, os famosos “lascadinhos”. Tinha uma porta só, mas bastante larga, o que é comum até hoje na região do Pelô. A lojinha pertencia a três portugueses - o pai e duas filhas, uma de dezesseis e outra de vinte e poucos anos - que moravam no andar de cima da loja, e que servia também de depósito de mercadorias. Todos os três portugueses eram gordos. O pai era bem barrigudo e sempre trajava uma bermuda com camiseta decotada e sandálias nos pés. As filhas usavam vestidos longos e sandálias, e eram bem maquiadas, podendo-se dizer, principalmente da irmã mais velha, que não eram feias, com suas faces arredondadas, embora seus corpos gordos destoassem da beleza padrão da época. Eram portugueses, e como tal, invariavelmente, estavam comendo algo na lojinha, onde eles também ofereciam suas comidas aos clientes ou a qualquer um que lá entrasse. Muito famosa era a travessa de sardinhas frescas cozidas com rodelas de cebolas banhadas em azeite de oliva, servidas com lascas de pão e degustadas com a mão, sem talheres. Naquele tempo, não havia pão miúdo, só o famoso pão de meio quilo, do qual se tirava a lasca com a mão, mergulhava na travessa e “pescava” um pedaço da sardinha ou uma rodela de cebola naquele caldo de azeite de oliva. Uma delícia preparada com esmero pelos portugueses. Eram honestos, nunca deixavam de pagar suas dívidas, mas muitas pessoas os olhavam com desconfiança. Nunca viram as meninas em companhia de rapazes, estavam sempre com o pai, que as acompanhava, inclusive, nas festas do Pelourinho ou em qualquer outro lugar. Corria o boato de que o pai vivia maritalmente com as duas filhas, o que fazia com que algumas pessoas os evitassem e deixassem até de comer seus quitutes, quando oferecidos.

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ROGÉRIA Residente do Maciel, Rogéria era um travesti e trabalhava como cantora e dançarina numa boate, que outra coisa não era do que uma casa de prostituição. Homossexual assumido, destes que tinham comportamento escrachado, era bem conhecido em toda a região do Pelourinho e Baixa dos Sapateiros. Seu nome verdadeiro ninguém sabia, tendo recebido o nome de Rogéria numa possível alusão à atriz e travesti carioca. Embora houvesse outros acessos à Baixa e à Feira de São Miguel, onde almoçava todos os dias, ela preferia caminhar pela Rua São Francisco, descendo até a 28 de Setembro (Rua do Tijolo), alcançando a Baixa, onde vinha caminhando pelo passeio do lado ímpar, o lado da Feira. Tudo isto para desfilar com suas vestes femininas, ou seja, calça justa e blusa ou ¨bolero¨ decotado, fazendo trejeitos e rebolado exagerados com seu corpo magro. Nestas ocasiões, recebia assobios e propostas indecorosas dos carregadores e camelôs da área. Era benquista por todos que viam nela uma diversão de quase hora marcada (perto do meio-dia). Entretanto, às vezes, quando estava de mau humor, ela respondia agressivamente, com ofensas à mãe de quem gritava ou assobiava, ou então dizia que o camelô ou carregador não era “páreo” para uma mulher de seus dotes: “Venha, filho, se você acha que pode com este material!” ou ”Você só faz gritar, não é de nada, não pode nem com sua mulher!”.

Rogéria - Il. Chico Mazzoni

Entrava na Feira de São Miguel e almoçava em uma das muitas barracas de comida, onde os frequentadores já estavam acostumados com suas excentricidades. Certo dia, correndo as barracas e decidindo onde almoçar, aproximou-se da mesa de um forte estivador que estava se alimentando de um prato farto de feijão com carne e, murmurando que ia experimentar para ver se a carne estava boa, pegou um pedaço

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de seu prato, com os dedos de longas unhas, levando-o à boca. O estivador levantou-se de supetão, derrubando o banco onde estava sentado, e desferiu um potente soco no rosto de Rogéria, que desabou no chão. Não se sabe se foi do soco ou do fato de ter batido a cabeça no chão, mas a realidade é que Rogéria morreu na hora, e o estivador fugiu imediatamente. Soube-se depois que este estivador tinha o pavio curto e já socara outras pessoas, como, por exemplo, um frequentador da feira, que respondeu: “sua bunda está me chamando? Já vou já!”, quando o estivador soltou um sonoro pum. Rogéria esqueceu que nem sempre todos estão receptivos a uma brincadeira. Ela se tornou assunto por alguns dias e motivo de tristeza entre camelôs, carregadores, vendedores e alguns lojistas da Baixa.

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DESMARCADO Outro personagem que servia de diversão aos lojistas e trabalhadores desta rua era o Desmarcado. Era um senhor de uns trinta e poucos anos, e que tinha uma anomalia: seu pênis era grande. Para alguns, alcançava o joelho, para outros, se estendia até o meio das coxas. Não dava para saber ao certo, mas podia-se notar que, quando andava, algo balançava, encostado à coxa, dentro de suas folgadas calças. Apesar de o tamanho do pênis raramente significar virilidade, pois, na maioria das vezes, o portador desta anomalia tem dificuldades de ereção, sempre se tinha uma anedota jocosa sobre a virilidade do Desmarcado e suas aventuras amorosas e sexuais. A mais famosa é a de sua ida a um meretrício na Rua do Seminário, quando a prostituta, depois de ver o tamanho de seu “falo”, saiu correndo do quarto, nua, gritando que aquela coisa iria arrombá-la toda e estragar seu “ganha pão”. Diziam que, quando uma nova garota chegava ao meretrício, as antigas chamavam o Desmarcado para pregar uma peça nela, o que era motivo de grandes gargalhadas ao imaginarem a reação da novata perante aquele “troço” descomunal. A verdade é que o Desmarcado gostava da fama que tinha e da atenção que despertava por onde passava. A bem da verdade, nunca contava bravatas, só desfilava pela Baixa, sorrindo. Porém, tampouco desmentia os boatos.

Vista da Rua - Il. Antonello L`Abbate

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SERGIPE Defronte do Albergue Noturno da Prefeitura, perto da Feira de São Miguel, ficava uma lojinha com pequeno fabrico de colchões de capim (palha), crina (crina vegetal), e paina (algodão). No verão, a Baixa era assolada por uma chuva torrencial que enchia a rua e invadia as lojas, atingindo a altura de 1 a 1,5 metro. A dona da fabriqueta de colchões residia num apartamento defronte do Cine Pax, portanto, perto de seu trabalho. Um dia, durante esta chuva torrencial, de manhã cedo, chegou à janela e viu um desfile inusitado. Chamando sua irmã, ficaram estarrecidas com o que viram. Quando acontecia enchente na Baixa, os motoristas de ônibus se divertiam em acelerar e formar ondas que quebravam as portas das lojas e as invadiam. Foi o que aconteceu com a Colchoaria São Lázaro. As irmãs viram passar, boiando, alguns colchões, sendo que um deles era seguido por travesseirinhos, tal qual uma mãe com filhotes, todos em fila indiana, descendo a rua, num cortejo inusitado. Acharam a cena engraçada, até perceberem que os colchões e travesseiros provinham de sua própria loja. Para os outros comerciantes, foi a nota cômica para amenizar os que tiveram prejuízos com a chuva. Nesta colchoaria trabalhava Izidro, com carteira assinada. Era encarregado de auxiliar nas descargas dos fardos de capim seco para o feitio de colchões (algumas pessoas poderiam chamá-los de “colchões de palha”, mas para os baianos eram “colchões de capim”), assim como em destorcer as cordas de crina vegetal, conhecida, na Baixa, como “clina” (para diferenciar da crina animal), e que chegavam a Salvador por navio, procedente do Rio Grande do Sul ou Santa Catarina. Além de ajudar as colchoeiras, ele também fazia algumas entregas de colchões. Nesta pequena loja-fábrica, trabalhavam geralmente duas ou três colchoeiras, duas vendedoras e a proprietária, uma senhora gorda

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e de certa idade. Portanto, Izidro era o homem “pau pra toda obra”, sendo o único empregado “macho”. Com o tempo, foi adquirindo a confiança da proprietária e passou a desempenhar várias funções além de vender, tais como fazer depósitos e pagamentos nos bancos. Praticamente não mais “carregava”, a não ser para trazer os colchões do fundo da loja, onde eram fabricados, para frente, onde eram vendidos. Era baixo, meio gordinho, de rosto redondo, cabelo curto com pequena calvície precoce, o que lhe angariou o apelido de “Sergipe”, sendo ou não sergipano. Vestia-se sempre com um tipo de “safári”, com calças brancas e uma bata, ou camisa branca ou de cor clara, e nos pés a invariável sandália de couro, destas vendidas nas cutelarias da Cidade Baixa. Sempre alegre e brincalhão, de voz fina e aguda (que ficava mais aguda e incompreensível quando irritado), era figura conhecida por todos os frequentadores da Baixa, por morar na Rua do Tijolo (Rua Vinte e Oito de Setembro), conhecido meretrício popular. Talvez, por isto mesmo, era um verdadeiro “connoisseur” dos homossexuais que transitavam na Baixa. Não importava a classe social ou o comportamento deles, dissimulados ou escrachados, conhecia-os todos. Apontava-os ao passarem em frente à sua loja, e dizia, numa voz baixa e confidente: “Aquele ali é doutor” “Este que saiu daqui é advogado. Riquíssimo!” Sergipe - Il. Chico Mazzoni

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“Aquela é uma bicha louca!” Em caso de dúvida quanto à masculinidade de alguém, era só consultar “Sergipe”. O mais interessante era que, ao encontrar um cliente homossexual na loja, seja ele engravatado ou não, sempre o acariciava no pescoço, e, portando um olhar carinhoso, perguntava baixinho como estava de saúde e outras coisas corriqueiras. Nunca o acariciado protestava ou se afastava do afago. Não havia dúvida que o carinho era sincero. Com o advento dos colchões de molas e principalmente dos de espuma (bem mais baratos), os colchões de capim, crina e algodão caíram em desuso e, somado ao envelhecimento da senhora proprietária, a pequena firma encerrou suas atividades, ficando “Sergipe” desempregado. A última notícia que se soube foi que ele estava ganhando a vida satisfazendo seus queridos homossexuais na Rua do Tijolo, o que podia ser verdade ou mais um boato da Baixa. Izidro veio a falecer de infecção renal aos cinquenta e poucos anos.

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MULHER DE ROXO Defronte da loja onde Izidro trabalhava, ficava o Albergue Noturno Municipal da Baixa dos Sapateiros. À noite, o Albergue enchia-se de mendigos de todo o centro da cidade, e, às vezes, até de índios, que vinham do interior para reivindicar algo junto ao governo que, sem ter onde alojá-los, abrigava-os à noite, ficando os índios sentados nas calçadas da Baixa durante o dia, aguardando serem transportados pelo governo de volta para suas aldeias de origem. A pessoa mais famosa que frequentava o Albergue era a “Mulher de Roxo”. Sempre vestindo roupas que lembravam as freiras, na cor roxa, Florinda Santos não tardou a receber a alcunha de “Mulher de Roxo”, ou “Dama de Roxo”. Andando descalça, vestindo longas mantas, portando um grande terço com enorme crucifixo pendurado no pescoço, esta mulher de estatura mediana e um pouco gorda inspirava respeito, pena, e até carinho de quem a via e conhecia algo ou algum boato sobre sua história. Portando seu invariável saco preto e usando maquiagem pesada no rosto e nos lábios, geralmente saía do Albergue todos os dias pela manhã, andava pela Baixa até a Ladeira de Santana, onde subia até a casa de oração da espírita Nair Saback e tomava café, juntamente com vários mendigos.

Mulher de Roxo - Il. César Romero

D. Nair era uma espírita que distribuía café da manhã, almoço e ceia aos pobres, em sua casa, junto à Igreja de Santana, sendo sempre perseguida por vizinhos e até autoridades, polícia, padres etc, devido à grande aglomeração de mendigos e desocupados que ficavam perambulando pelas ruas adjacentes aguardando o horário das refeições. Mesmo assim, D. Nair, nunca interrompeu sua ajuda humanitária, ou

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os seus barulhentos cultos noturnos. Depois do café, a Mulher de Roxo descia a ladeira e se dirigia até a Praça dos Veteranos, quando subia a Ladeira da Praça, atingindo a Rua Chile. Logo, se postava em frente à Casa Sloper, seu “ponto” de pedinte e local de grande afluência de pessoas de classe média e alta na época (anos 50 até a década de 80). À noite, chegava cedo ao Albergue, temendo perder o lugar para dormir, o que ocasionava, às vezes, de ficar na fila em frente ao local. Em qualquer lugar era sempre notada. A sua história, que corria de boca em boca, era de que fora abandonada pelo noivo no altar, durante o casamento, o que fez com que ficasse meio louca. Essa estória nunca foi confirmada, nem mesmo pela própria personagem, que não esclarecia suas origens nem seus motivos a ninguém. Os comerciantes da Baixa sempre lhe dava algum dinheiro, embora ninguém pudesse atestar que ela pedisse esmolas. Ela simplesmente as aceitava. Acreditava-se que ela nascera em 1917. O certo é que faleceu em 1997, sendo, durante sua longa vida, alvo de inúmeras reportagens, vídeos, documentários, fotos e até inspiração para personagens de filmes. Dificilmente surgirá outra personagem tão carismática nas ruas de Salvador

Florinda Santos, a “Mulher de Roxo”

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ÁGUA GELADA Outro que dormia no Albergue era “Água Gelada”. Homem de grande estatura, corpulento, meio gordo, passava o dia todo bebendo a cachaça “desdobrada” (Uma mistura de cachaça, álcool e água, para baratear a aguardente), vendida na Feira de São Miguel e embrulhada num saco de papel pardo. Vivia sendo assediado por outros pedintes e cachaceiros, pois, quando de bom humor, distribuía um pouco da bebida. Sempre bebia em copinhos plásticos de café usados que catava do chão; nunca bebia do gargalo. Seu apelido provinha do grito que emitia toda vez que, sentado no batente de alguma loja, decidia “tomar uma”: “Água gelada!”. Era um grito carregado de prazer, e repetido antes, durante e após degustar a bebida. Portanto, este grito era ouvido várias vezes na Baixa dos Sapateiros. Como todos que se perdiam no vício da bebida, o boato era de que pertencia a boa família, possivelmente residente no bairro da Graça. Poderia ser verdade, pois aparecia periodicamente limpo e bem nutrido. A família o recolhia das ruas e tentava reabilitá-lo. Algumas vezes, era visto andando com passos ligeiros e decididos, geralmente num fim de semana, pelo Vale do Canela, perto da Graça, o que reforçava o boato.

Água Gelada - Il. Sante Scaldaferri

Sendo um homem forte e truculento, não acatava as reclamações dos lojistas para livrar suas portas, o que gerava muitas discussões. Numa destas, a polícia foi acionada. Depois de desacatar os policiais e ofendê-los, “Água Gelada” mostrou sua disposição para enfrentá-los, e os três policiais acharam por bem voltarem para a viatura e irem embora.

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No dia seguinte, o que se falava na Baixa era de que à noite, em frente ao Albergue, pararam duas viaturas cheias de policiais, onde “Água Gelada” foi obrigado a entrar. Nunca mais se ouviu o grito de “Água Gelada” na Baixa.

Sala de espera do Cine Tupy - Obra de Juarez Paraiso

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QUELÉ Quelé vivia eternamente bêbado. Era um homem pequeno, magro, tipo ébrio inofensivo, e tudo o que fazia era balbuciar frases incompreensíveis, onde só se entendia a palavra “Quelé”, com que chamava a si próprio com vigor, na maioria das vezes gritando. Tinha o semblante triste, e parecia estar sempre chorando, choramingando frases. Na década de 70, durante a lenta obra de asfaltamento e de esgoto (alongada politicamente pelo Governador em exercício para que o que o próximo eleito inaugurasse), e em virtude das chuvas de verão, a Baixa, já interditada, transformou-se em um grande lamaçal, ocasião em que as lojas ficaram sitiadas, pois até as calçadas foram retiradas. Foi então que Quelé ficou famoso pelo seu antológico banho de lama. Ele sentou-se no meio de uma poça de lama, e, com o auxílio de seu boné, passou a pegar a lama e jogar em sua cabeça. Logo, ele estava todo coberto de lama marrom, enquanto se esfregava, como quem toma banho, passando no peito, nas axilas, etc, e gritava: “Quelé está tomando banho”, numa ladainha interminável de umas duas horas, até que alguém o retirou e o levou ao albergue para banhar-se convenientemente. Quando o asfaltamento ficou pronto, Quelé encontrou outra diversão: ficava no meio da rua, em frente ao Albergue, após uma curva, e aguardava os ônibus frearem bem pertinho dele.

Quelé - Il. Sante Scaldaferri

Ora, com o asfalto novinho, os motoristas dos ônibus pisavam fundo no acelerador, e ao fazer a curva, se deparavam com aquele homem mirrado na frente. Era um suspense para todos que assistiam, e, às vezes, ele recebia pequenas trombadas, mas ainda assim demorava a sair da frente do ônibus.

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Sempre aparecia com algumas escoriações, e uma vez até com o braço engessado. Acredita-se que a “brincadeira” de Quelé terminou mal, pois ele, um belo dia, desapareceu para nunca mais voltar para a Baixa dos Sapateiros. Às vezes ele era visto acompanhando, a passos trôpegos, os passos rápidos da Mulher dos Cachorros.

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DAMA DOS CACHORROS A Mulher dos Cachorros, ou Dama dos Cachorros, também gostava de uma “pinga”. Era negra, baixa, meio gordinha, de rosto arredondado típico das nordestinas, e usava sempre um vestido comprido, até quase os calcanhares, inteiriço, branco ou creme, tipo mortalha. Na cabeça, usava um lenço branco amarrado atrás. Andava razoavelmente limpa. Sempre descalça e de passos largos e apressados, vivia acompanhada por dois ou até três cachorros “vira-latas” de médio porte. Os cachorros acompanhavam fielmente seus passos, e quando a bebida a obrigava a deitar e dormir, o que fazia em qualquer lugar nas calçadas, eles a protegiam, deitando junto a ela e levantando em posição de vigília logo que achavam que alguém estava perigosamente por perto. Era um mistério a forma como ela cativava estes cães, ou como conseguia sobreviver, pois estava sempre apressada e enfezada. Constantemente grávida (devido à inércia dos órgãos públicos que não ligavam suas trompas), ela paria quase uma criança por ano, mas nunca aparecia amamentando ou cuidando de bebê. Dizia-se que ela era a maior fornecedora de bebês para adoção. Não sendo muito certa da cabeça, podia ser violenta, se instigada. Acreditava-se que os seus filhos eram de Quelé (pelo menos alguns), pois não raro este a seguia pelas ruas, mantendo distância segura.

Dama dos Cachorros - Il. Sante Scaldaferri

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DEIXA A VIDA DE QUELÉ Por pouco tempo, outro Quelé ficou conhecido na Baixa. Quelé começou a vida adulta como estivador no Cais do Porto de Salvador, e quando envelheceu, não aguentou o trabalho de carga e descarga dos navios de cereais, colocando sacos de 50 ou 60 quilos na cabeça, e foi trabalhar na Baixa. Já idoso, embora de porte alto, era fraco para a função, preferindo transportar carretos leves: uma cama aqui, um colchão ali, compras da madame na feira de São Miguel, ou, principalmente, as mercadorias dos camelôs entre os depósitos pertencentes aos mesmos ou distribuidores e os seus tabuleiros de manhã cedo, e vice-versa, à noite. Sempre se queixando de dores, doenças e infelicidades, ninguém sabia seu verdadeiro nome, como muitos que ganharam seus apelidos na faina do dia-a-dia na Baixa. Devemos esclarecer que Quelé não é somente um apelido, é um modo de ser. Quelé é todo aquele que carrega um semblante sofredor, com olhos caídos, testa enrugada, andar e fala mansa, e que acaba, durante qualquer conversa, queixando-se das agruras e desventuras da vida. Enfim, de aparência, conversas e gestos infelizes. Existia em Salvador um bloco carnavalesco cujo nome era “Deixa a Vida de Quelé”, frase que traduz o sentimento de todos os “Quelés”. Eles só querem ter uma vida tranquila, sem padecimentos. O estivador Quelé surgiu na Baixa mansamente e quando desapareceu, só se notou, se alguém o fez, muito tempo depois. Como agora, nestas linhas...

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BOCA TORTA Havia carregadores que primavam pela eficácia e honestidade. Um deles era Silvino “Boca Torta”, assim chamado por possuir a boca virada para a esquerda. Era um carregador avulso, que ficava sentado na entrada das lojas de móveis, aguardando que o lojista ou o cliente o chamasse para um carreto. Cobrava preço acessível, e o cliente podia contar com a presteza e segurança no transporte das suas mercadorias. Tinha a aparência de um típico caboclo. Escondia sua precoce e pequena calvície, comum na profissão, com o invariável chapéu de couro mole e abas caídas, de todo carregador que se preze, e vestia calças e camisas sempre limpas. Nos pés, sandálias havaianas. No entanto, não portava cordas e sempre improvisava também a “rodilha” (pedaço de pano enrolado, deixando um espaço no meio, como um pneu, para servir de apoio e não machucar a cabeça do carregador) até com jornais. Algumas vezes, transportava a mercadoria colocando-a no “coco” mesmo, para não perder o cliente. Em datas festivas ou uma vez por semana, à noite, batia atabaque num terreiro de Candomblé sito no Alto da Vila América, no Rio Vermelho. Foi numa destas noites que se deu um fato inusitado. Naturalmente, o culto terminava tarde, varando a noite até a madrugada, lá pelas duas ou três horas.

Boca Torta - Il. César Romero

O acesso à casa onde tocava era feito por um caminho, uma picada enladeirada de terra batida que subia até ela, mas, que ao chegar no meio, bifurcava, arrodeando uma espessa moita de capim alto. Poder-se-ia escolher que lado da moita tomar para subir ou descer, embora ambos os lados voltassem ao mesmo caminho.

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“Boca Torta” vinha descendo, lá pelas duas horas da manhã, e escolheu um dos lados da moita, quando, na penumbra do luar, divisou um vulto preto que parecia um grande cachorro à frente. Todos que andam em lugares ermos sabem que não devem se aproximar de um cão desconhecido numa noite escura. Apesar de ser corajoso, Silvino parou e tentou enxotá-lo, gritando, mas a figura não se moveu. Tateando, achou uma pedra no chão e jogou contra o animal, que ficou impassível. Depois de jogar a segunda pedra e o vulto não dar sinal de que queria mudar de posição, puxou do facão e pensou (segundo seu relato): “Nenhum cão idiota vai me fazer ir pelo outro caminho!” e arremeteu-se contra o vulto, brandindo o facão. Foi quando o cão foi crescendo e ficando em duas patas, com os olhos vermelhos em brasa, e vociferou com voz cavernosa: “Vai me enfrentar? Vai lutar com Exu?”. “Boca Torta” não desceu pelo mesmo caminho, nem pelo outro; saiu correndo pelo meio do matagal mesmo, cortando o rosto e braços com as tiriricas. Este relato foi feito no dia seguinte, para justificar os arranhões. Silvino “Boca Torta” acabou entrando no anedotário da Baixa como o homem que queria enfrentar o Diabo. Recebeu uma proposta para tomar conta de um sitio em Araçás, pertencente a um comerciante da Baixa, e deixou de ser carregador.

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Boca Torta e Companheira


MÃOZINHA Carlos “Mãozinha” também fazia ponto na Baixa. A vida de Carlos “Mãozinha” foi sempre pontilhada por dramas e tragédias e, talvez, em virtude deste fato, não podemos criticar sua afeição pela bebida. Depois de uma infância pobre, conseguiu, quando jovem, depois de muitos biscates, ser contratado a um emprego fixo, como vigia noturno de uma obra de construção na periferia de Salvador. Era um trabalho tranquilo, e ele passava a noite cochilando numa cadeira tosca, em companhia do invariável cachorro vira-lata, daqueles que sempre frequentam (frequentavam?) obras em construção, eternos companheiros dos trabalhadores e vigias, partilhando da comida e da solidão dos mesmos. Sumiam quando as obras terminavam. Uma noite, o latido do cão interrompeu seu sono, e ele notou, na parca iluminação noturna do canteiro de obras, vultos perto dos sacos de cimento. Cimento era mercadoria cobiçada pelos larápios ocasionais, não ladrões propriamente ditos, pois quem roubava o fazia para uso próprio em obras de “puxadinhos” ou reforma em suas casas. “Mãozinha” interpelou os intrusos, que eram em número de três, para enxotá-los, mas estes, ao notarem que o vigia era um só, resolveram enfrentá-lo. No auge da sua juventude, imbuído por um senso de responsabilidade, embora com pouca lógica, Carlos os enfrentou, apesar de desarmado. Segundo seu relato, um dos malfeitores portava um facão e com ele atingiu seu braço esquerdo, cortando-o ao comprido, do cotovelo até a mão. Mesmo assim, ele o desarmou, e o cortou na altura da barriga, quase dividindo-o em dois, matando-o. Legitima defesa, portanto, segundo seu relato.

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Seja por ser humilde, de poucas posses, ou pela incompetência do advogado que o defendeu, ou até mesmo pela mentira, pois era pouco provável que ele ficasse de vigia de obra sem uma faca, o juiz que o julgou deixou bem claro que ser vigia não dava o direito a ninguém de matar, e ele foi condenado a prisão por oito ou dez anos (ele não sabia precisar). Conforme as más línguas, ele se passou por pederasta na prisão para não ser morto. De qualquer maneira, ao terminar a pena, foi ser biscateiro e carregador na Baixa dos Sapateiros, atingido pela realidade de que ninguém queria contratar um ex-detento e assassino. Além do mais, seu braço esquerdo, do cotovelo até os dedos, era só pele e osso, meio deformado, atrofiado, rígido e sem serventia, razão pela qual passou a ser chamado de “Mãozinha”. Vivia com uma mulher forte, gorda e mais alta que ele, que quando não estava apanhando, estava batendo nele, fruto do álcool que ambos ingeriam. Tinha um filho, José, fruto de relações anteriores, que viria a estudar, trabalhar honestamente e criar uma aversão à bebida. Além de vestir-se bem e falar demonstrando sua cultura, com voz macia, mas firme, preocupava-se com o pai e tentava corrigi-lo, desmentindo a máxima de que “filho de peixe, peixinho é”. “Mãozinha” era honesto (segundo ele, “assassino não é ladrão”), mas, quando bebia, podia tornar-se violento com a mulher, sabe-se Deus por quê. Depois, sóbrio, prometia com lágrimas nos olhos que nunca mais beberia de novo. Embora preferisse ajudar na carga e descarga das camionetes que faziam carretos para as lojas, conseguia utilizar a mão paralítica para apoio no amarrar das mercadorias, quando até os dentes entravam na operação. Era quase uma arte. Também carregava na cabeça.

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Apesar da compleição fraca, podia trabalhar duro e não refugava serviço, por mais difícil que fosse. Quando os carretos foram rareando, Carlos conseguiu um emprego para tomar conta de um sítio em Lamarão do Passe, levando consigo a fiel companheira. Pouco tempo depois, o sítio foi vendido e, embora desempregado, Carlos não retornou a Salvador, ficando em Lamarão lavando carros numa oficina. Envolveu-se em outra briga e foi ferido mais uma vez, agora no braço direito. Tornando-se quase imprestável para o trabalho, foi ajudado pelo filho, que insistia em seu retorno a Salvador, mas sem a companheira, coisa que não aceitava. Não ia abandonar sua “Filinha”, como a chamava, e a quem amava. Viviam entre tapas e beijos. Era difícil um carregador melhorar de vida ou ter uma velhice tranquila, pois não tinham aposentadoria, e o que ganhavam mal dava para seus gastos pessoais, que incluíam, na maioria das vezes, a bebida e o fumo. No entanto, podemos afirmar, com segurança, que a vida de Carlos “Mãozinha” foi uma das mais sofridas, e acredito que terminou sua infeliz epopeia no limbo dos insignificantes e simples passantes pelo tempo terrestre.

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Mesmo em obra a rua 47 fervilhava - 1979


CHARUTO Charuto era um carregador negro e idoso, desdentado, de passos lentos, quase arrastados. Era metódico e risonho, não bebia, não se misturava com outros, não jogava conversa fora, e por isso não era muito bem quisto. Sempre reclamava dos outros carregadores, acusando-os de roubarem seus carretos, oferecendo, por exemplo, preços mais baratos, ou simplesmente, pegar um carreto já acertado por ele. Vestia-se de forma mais típica possível: sandálias de couro, calça folgada de brim creme amarrada na cintura com cordões ou cinto bem gasto, camisa folgada, e o invariável chapéu de couro mole e abas caídas. Enfiado no braço, ou simplesmente carregando na mão, ia a rodilha, e na cintura, presa, ia a corda para prender os carretos, muito bem enrolada. Costumava cobrar mais caro que os outros e vivia cuspindo, um cuspe escuro decorrente do fumo do charuto barato que constantemente fumava e mastigava. Embora passasse bem uns quinze minutos escolhendo seus quatro ou cinco charutos diários, nas barracas da Feira de São Miguel, não raramente jogava fora um ou outro, depois de acendê-los, exclamando: “Este não presta!”. Eram charutos longos, grossos, toscos e artesanais, conhecidos como “Charutos de Macumba”. Depois de ter acertado o preço e amarrado a mercadoria, acendia o charutão calmamente, rodando-o entre os lábios e mordendo-o, e só depois aceitava que se colocasse o carreto em sua cabeça protegida pela rodilha, partindo fumando e mastigando o fétido charuto. Se já estivesse fumando, sempre colocava o charuto apoiado em algum lugar antes de entrar nas lojas, pois sabia que o mesmo fedia. Talvez, por isto, gostava de saborear jiló cru, que dizia fazer bem ao estômago.

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Às vezes, quando o frete era pequeno e leve, ele conseguia colocá-lo em ônibus, graças ao fato de conhecer os motoristas, já que seu filho trabalhava nesta função. Quando conseguia isto, passava o dia em ótimo humor e se vangloriando do dinheiro fácil que ganhara. Seu “ponto” era um banquinho de madeira entre as lojas “Móveis Pax” e “Mobiliaria Brasil”, quase em frente à Ladeira de Santana. Geralmente, enquanto aguardava ser chamado para trabalhar, ele cochilava recostado na parede. O dono da Mobiliaria Brasil, Sr. Abraão, era muito brincalhão, e não perdia a oportunidade de pregar peças em seus conhecidos, como representantes de vendas, amigos, empregados e até alguns clientes mais íntimos. Famosa era a sua cadeira com tachinhas em baixo do estofado, oferecida sem cerimônia a todos que visitavam seu escritório, assim como os copos de água que vazavam, ou a caixa de bombons que dava choque. Surpreendente, também, era que, em vez das fotos de sua esposa e filhos, de quem tanto gostava, o que adornava a parede de seu escritório era um quadro retratando um homem, vestido, com as mãos na cintura, só que com uma bunda generosa voltada para frente, em vez de nas costas. Mas, ele era bom administrador, e tratava bem seus empregados, que lhe eram fiéis.

Charuto - Il. Sante Scaldaferri

Abraão se vangloriava de ter uma fórmula infalível de induzir o empregado a fazer algo de que não gostava, como trabalhar no domingo, ir à casa de um cliente à noite, fazer serão etc. Ele dizia ao empregado que precisava dele para algo importante, e o chamava para o escritório, onde já havia outros esperando. Aí ele ficava ocupado com telefonemas, papéis, ordens para outros funcionários, e ignorava as indaga-

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ções do empregado sobre qual era o problema. Segundo ele, depois de certo tempo, quando solicitava ao empregado algum sacrifício, o mesmo não tinha como recusar, ao ver como Abraão estava pressionado. Alguns “brinquedos” de Abraão eram obscenos, como o falo de cor avermelhada feito de borracha rígida e tamanho grande que guardava em sua escrivaninha, numa gaveta. Não eram poucos que, no fim do ano, ele convidava para ir ao seu escritório, no primeiro andar da firma, perguntando: “Já recebeu uma folhinha este ano? Não? Vamos ao escritório, eu guardei a sua!”. Ao chegar ao escritório, ele oferecia o falo ao atônito convidado, agressivamente: “Olha aí sua folhinha, seu F. da P.” – E gargalhava de prazer. Era um empreendedor nato, sempre inovando na arte de comercializar. Como exemplo, lançou o programa de troca de móveis usados por novo, ficando os usados como pagamento da entrada. Aí, ele reformava os móveis, principalmente os estofados, e colocava na loja para vender. Ganhou muito com isto, pois, além de vender o que pouco lhe custou, ficou com um estoque considerável de móveis coloniais de primeira linha, que os clientes menos esclarecidos trocavam pelos mais modernos, menos valiosos. Em outra ocasião, ao saber que o Governo Estadual permitia descontar em folha o que se comprava da Associação dos Funcionários Públicos dos Estado, fez uma parceria com esta Associação, encheu o seu prédio de móveis e passou a vendê-los para desconto em folha de pagamento. Foi um sucesso! Nunca tinha vendido tanto móveis, o que o fazia ca-

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çar fornecedores para não faltar mercadoria, mas acabou desistindo, pois o preço em saúde era muito alto. Abraão estava ficando neurótico, sempre envolto na burocracia da papelada que o processo requeria, preocupado com as entregas, as compras, e as pessoas tinham que falar várias vezes a mesma coisa para ele escutar. Era um ótimo negócio, mas não para ficar centralizado em uma só pessoa. Se não me engano, Abraão foi pioneiro nesta modalidade de venda a funcionário público. Certo dia, o Sr. Abraão resolveu que “Charuto”, que dormia no batente da porta da loja, encostado à parede, era tentação demais, e, depois de garantir uma plateia, colocou o dito falo nos lábios entreabertos do pobre carregador, que, sentindo algo roliço na boca, pensou naturalmente em seu adorável charuto, e, de olhos fechados, ficou alguns segundos chupando e lambendo o objeto, para deleite do grupo de pessoas que se formou. Acordado com os risos, passou horas xingando e cuspindo. De negro, quase virou branco de raiva. Durante um tempo, “Charuto” passou a ser chamado de “Engole”, mas depois prevaleceu o velho apelido. Afinal, ele cheirava a fumo o tempo todo. Não à fumaça, mas a fumo, charuto mesmo. Ao passar dos anos, “Charuto”, naturalmente, envelheceu, e ficou fraco. Seu último carreto foi uma cama. Ele saiu da Baixa mais ou menos às nove da manhã, em direção ao bairro de Brotas. Era natural que, em carretos pesados ou longos, os homens parassem para descansar, mas, segundo relatos, neste dia, “Charuto” bateu todos os recordes, descansando várias vezes, só chegando à casa do cliente depois do meio-dia. Nem voltou a Baixa dos Sapateiros. Sumiu. A velhice é o preço alto cobrado por se viver...

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SR. RUBIN Poucas pessoas sabem, mas Sr. Rubin, outro comerciante judeu da Baixa, mudou a rotina de todos os baianos. Era um homem de movimentos nervosos e falava com o sotaque dos que emigraram, já adultos, provavelmente da Rússia ou Bielo-Rússia. Com a ajuda da mulher, tocava seu negócio, uma pequena carpintaria e uma loja de ferragens e madeiras, hoje classificadas como “loja de material de construção”. Ambos eram um pouco rudes no trato com os empregados, o que ocasionou até uma discussão violenta com um deles, de resultado quase funesto, pois o empregado tentou matá-lo, conseguindo apenas furá-lo levemente no olho. Provavelmente, ou em uma de suas viagens ou em suas leituras, chamou-lhe a atenção um tipo de negócio que nunca tinha visto e que tinha o atrativo de, segundo acreditava, ser fácil de administrar. O negócio requeria poucos empregados: os clientes se serviriam sozinhos, e ele, ou seu preposto, ficaria no caixa cobrando na saída. Era chamado de “Self-Service”. Decidiu investir nisto e montou o primeiro “Self-Service” no Bairro da Saúde, perto de sua casa, onde os fregueses poderiam comprar produtos de mercearia tranquilamente, escolhendo à vontade, e só pagar na saída. Foi o primeiro Supermercado da Bahia. Porém, junto com os clientes, vieram os “pivetes”, pequenos larápios. Houve também problemas com funcionários não treinados, que estragavam as mercadorias, assim como desvio de dinheiro pelos caixas. Em resumo, o Sr. Rubin não soube administrar o mercadinho, ou por falta de prática ou porque os moldes centralizados “judaicos” de administração de negócios não davam certo para este tipo de comércio.

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Na Baixa, existia uma loja de “secos e molhados” chamada “A Sergipana”, bem defronte do Cine Jandaia, onde se podia comprar artigos de mercearia e também apetrechos de cozinha a preços módicos. Pertencia a um sergipano chamado Mamede Paes Mendonça, e tinha grande vendagem, portanto faturava muito bem. Como era muito sabido (todo sergipano o é), embora um pouco analfabeto (ele mesmo se classificava assim), comparou o negócio do Sr. Rubin com o dele, onde o desperdício era grande, com muitos empregados executando diversas funções, trombando uns com os outros, atrás do balcão, disputando os clientes e as balanças, pois, naquele tempo, o mesmo atendente de balcão servia, pesava e cobrava. Em certos horários, chegava a perder alguns clientes, já que não conseguiam ser atendidos pelos balconistas. A casa estava sempre cheia de mercadorias caídas pelo chão, o que fazia a festa dos ratos e baratas à noite. Sabedor das dificuldades do Sr. Rubin, Sr. Mamede acabou comprando o mercadinho, para alívio do ex-dono. Logo os supermercados Paes Mendonça se espalharam pela cidade toda, monopolizando o ramo de alimentos durante muitos anos. Até o fim de sua vida, um mistério assolava o velho Sr. Rubin, e ele fazia questão de sempre enunciar: “Como o negócio do mercado deu certo com o sergipano e não comigo?” Até hoje, o Supermercado da Saúde ainda permanece operando.

Ambulantes na Rua

Mas, a bem da verdade, deixemos registrado que foi o Sr. Rubin quem trouxe este tipo de mercado para a Bahia.

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LADISLAU Nas décadas de 60 e 70, Ladislau era proprietário da Mobiliaria São Lázaro. Era gordinho, de tez avermelhada, nariz proeminente (típico de todo judeu que se preze), cabelos avermelhados. Não se podia dizer que era bonito, o máximo que se podia era julgá-lo como simpático, mas o seu principal dote era a lábia. Dizia-se que ele poderia vender gelo a esquimó...na Antártica! Era húngaro de nascimento, e chegou a enganar a CPOR (Curso de Preparação de Oficiais da Reserva) entrando para esta agremiação, quando só brasileiros natos o podiam. Depois de algum tempo, descobriram a tramoia e ele foi dispensado, mas antes ele comandou uma pequena tropa e tem como grande feito ter interceptado um bonde carregado de revolucionários, não permitindo que chegassem ao centro da cidade. Casou-se com uma das mulheres mais lindas de Salvador, embora sua mãe insistisse em dizer que ele só se casou porque a avó da namorada serviu um almoço que ocasionou um distúrbio intestinal nele, e quando Ladislau foi à privada, ela surrupiou sua cueca e fez uma mandinga para que a neta, que era criada por ela, casasse com o “Bacharel em Ciências e Letras”, comerciante rico da Baixa dos Sapateiros. Para se ter uma ideia da beleza desta mulher, ela chegou a paralisar o Colégio da Bahia. Foi assim: ela teve que ir ao Colégio da Bahia para levar um livro que sua filha de 13 anos tinha esquecido. Ao chegar, vestindo um “tubinho” justo, acima dos joelhos, fez com que todos corressem para ver aquela mulher, e as salas de aula do primeiro andar ficaram vazias, enquanto ela “desfilava” subindo as escadas, o que fazia o vestido encurtar ainda mais. Quase ninguém acreditou quando a filha disse que era sua mãe. Achavam que era sua irmã. Ladislau teve três filhos (um menino e duas meninas) com esta mulher,

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e alguns filhos com outras, pois era muito mulherengo. Não podia ver rabo-de-saia que queria logo levá-la para cama, fosse feia ou bonita, e isto azedou o casamento, levando-o à separação. Não era raro, ao abrir a loja, os empregados encontrarem a invariável garrafa de sidra no chão, junto com colchão ou até simples pano, mostrando que mais uma vez o proprietário tinha usado a loja como alcova. Ele gostava, além das mulheres, de fumar um bom charuto e de jogar na Loteria Federal (bilhetes inteiros). Um de seus hobbies era viajar ao interior da Bahia e de Sergipe. Ele chegava às cidades do interior com grande pompa. Os habitantes da cidade viam aquele homem “vermelho”, gordo, com charuto na mão, dirigindo carro esquisito (Nash), que mais parecia um jacaré, perguntando pela melhor estalagem do local e sobre quem mandava na cidade. Só podia ser pessoa importante! Ele adorava isto. Quando entrava um cliente na loja, ele perguntava de onde era (muitos do interior vinham à capital para comprar móveis e confecções baratas na Baixa), e quando o freguês dizia o local, Ladislau perguntava pelo “coronel Fulano”, “prefeito Beltrano”, ou “Dr. Sicrano”, cativando logo o comprador, pois alguém que conhecia as pessoas proeminentes de sua cidade deveria ser boa gente. Era interessante vê-lo vender uma sala de jantar modesta, que só tinha de madeira maciça a prateleira, onde Ladislau dava socos para dizer que toda sala era de madeira de lei. Devido às dívidas, vendeu a loja para os Bokor. Tentou voltar ao comércio, mas seu nome já estava muito desgastado, inclusive nos bancos.

Nash Ambassador 51, o “Jacaré”

Era empreendedor também. Certa vez, comprou dez carros novos (Kaizer “Cintura Fina”) e colocou na praça. Todavia, os táxis não deram o retorno esperado. Segundo suas palavras, “os motoristas prefe-

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riam pegar garotas e passearem com os carros novos a pegar clientes”. Quando, certa vez, foi ao Farol da Barra, encontrou quatro de seus motoristas com os táxis azarando garotas. Assim, desistiu do negócio e vendeu os carros. Ele sugeria e ajudava os amigos a abrirem negócios. Foi ele quem sugeriu aos Bokor, ao retornarem do Rio, a fazerem a Fábrica de Colchões de Molas Primavera. Já idoso, foi viver com uma amante antiga até o fim dos dias. Morreu de diabetes.

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GUILHERME Guilherme possuía um pequeno fabrico de colchões de molas no Desterro e uma loja na Baixa, onde vendia seus colchões. Também fornecia para lojistas revendedores, tanto na Baixa dos Sapateiros quanto na Av. Sete. Era um homem magro, baixo, de rosto fino e nariz grande, fala rápida, e andava sempre apressado. Podia-se dizer sem errar que era um homem feio, mas simpático no trato, de olhar penetrante e sincero. Tinha dois filhos que herdaram suas feições. No rapaz isto não representava grande tragédia, pois em nossa sociedade a feiura masculina é relativa, mas na filha era mais evidente. A família de Guilherme era judia, e conseguir um partido para a filha com estes atributos, numa colônia pequena como a da Bahia, era muito difícil. Os judeus têm uma frase que sempre usam quando se despedem, e que expressa suas vontades de ir à Terra Santa: “Próximo ano em Jerusalém”. Como Jerusalém, em Israel, era, além de longe, difícil de ir, todo judeu pensava em amealhar uma fortuna e ir para São Paulo, que era tida, na colônia judaica, como a “Jerusalém Brasileira”, pois a colônia são-paulina era grande e cheia de oportunidades. Guilherme achou que a solução para sua filha era esta. Assim, fechou a fábrica, vendeu a loja e foi para São Paulo, onde montou um pequeno fabrico de roupas numa lojinha dentro de uma galeria. Inexperiente, comprou tecido errado para a estação e se deu mal; perdeu muito dinheiro e a tranquilidade que tinha em Salvador. Sua filha? Conseguiu casar, mas a que custo? Esta prática de levar a filha para São Paulo (juntamente com um dote) em busca de um noivo era comum entre os judeus baianos, embora alguns, como os Trief, o fizessem sem fechar suas lojas em Salvador.

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Existiam, também aqueles que iam apenas em busca de status. Esta fixação por São Paulo aconteceu com outros comerciantes, como os proprietários da Móveis Pax, que também venderam tudo, foram para lá montar uma mobiliaria e enfrentaram dificuldades, pois a comercialização de móveis e o gosto paulistano eram diferentes do gosto dos baianos. O dono da Móveis Brasil, Abramovitz, também fechou tudo e foi para São Paulo, assim como outros comerciantes da Baixa, o que desfalcava o comércio desta rua destes verdadeiros empreendedores, que começavam pequenos e cresciam graças à muita dedicação e trabalho.

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SR. LEON Junto à entrada de “Móveis Pax” ficava uma escada que dava acesso ao primeiro e único andar do edifício de mesmo nome, pertencente aos padres da Ordem Terceira de São Francisco, e onde havia salas a serem alugadas para escritório. Uma destas salas era ocupada pelo Sr.Leon e sua esposa. O Sr.Leon era baixo, gordo, usava óculos de lentes grossas, tipo “fundo de garrafa”, pois era míope. Não se podia, em nenhuma hipótese, dizer que era bonito, embora fosse simpático no trato, a despeito do sotaque, típico de judeu imigrante. Era também analfabeto, e como sobrevivente do Holocausto, tinha um número tatuado a ferro no braço. Tanto ele quanto sua esposa, magrinha, baixa e de rosto enrugado, já eram de certa idade, e viviam de vender de tudo no comércio de “porta em porta”, principalmente confecções, colchões e móveis, vendagens estas controladas com um sistema de cartões (conhecido por todos que trabalhavam desta maneira), que continha os dados dos clientes, a mercadoria comprada e as prestações quitadas e a serem pagas. O cliente encomendava a mercadoria, Sr. Leon a comprava em lojas, colocava seu lucro e revendia ao comprador em módicas prestações. O freguês honrava o “cartãozinho” sem assinar nada, e na maioria das vezes, durante as cobranças mensais ou no fim do pagamento, sempre havia um jeito de vender mais algum produto. Era prático, o freguês comprava e pagava em casa, e o vendedor não perdia contato com ele, o que fazia a venda ser relativamente segura. Sr. Leon trocava cartas com um amigo em São Paulo, mas precisava de alguém para escrever ou ler para ele, o que era feito por uma jovem que trabalhava em uma loja de colchões.

Ed. Pax com o Cine Pax

Naturalmente, sua saúde não era boa, devido ao seu histórico de vida, mas tinha muito bom humor. Quando ficava doente, era tratado e mi-

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mado por sua esposa, que costumava dizer que tinha prometido à mãe de Leon, no Campo de Concentração Nazista, cuidar bem dele, coisa que ela ia fazer, custe o que custasse. Depois do falecimento de Leon, a jovem que escrevia as cartas foi surpreendida com o aparecimento da viúva, transtornada, com uma foto na mão, dizendo: “Aquele desgraçado, aquele sem-vergonha, fazer isto comigo, só vivi para ele. Cozinhei, lavei, cuidei dele doente, e ele me faz isto!”. Mostrando uma foto em que aparecia Leon numa sala, ao lado de um televisor, sorrindo, e do outro lado uma jovem morena segurando um garotinho. Queria a pobre senhora saber se Leon falara que tinha uma amante. Não falara nada, pelo menos a quem escrevia as cartas. O que aconteceu depois foi que a mulher da foto apareceu com advogado, dizendo que o filho era de Leon, e que ela tinha direitos sobre a firma e herança do mesmo, exigindo ser sócia ou, até mesmo, a partilha do estoque, para choque da esposa. Verdade é que a foto poderia estar documentando só uma entrega de mercadoria, mas a dita jovem apresentou testemunhas do fato. Passado algum tempo, a velha esposa mudou de atitude, passando a elogiar Leon, dizendo que fora bom marido, gentil, atencioso e carinhoso, e que provavelmente a jovem da foto estava tentando dar um golpe. Pelo sim, pelo não, a firma acabou e o escritório fechou, pois a esposa não tinha o carisma nem o jeito de vender de porta em porta do esperto Sr. Leon. Todos terminaram mal: Leon morreu, a esposa ficou sem nada, e a amante com um filho para criar e a metade do nada.

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CINE PAX No Edifício Pax ficava o Cine Pax, um grande cinema que, naquele tempo (décadas de 70 e 80), passava filmes épicos como “Sansão e Dalila”, “Os Dez Mandamentos” etc, ocasião em que as filas para as sessões contínuas dobravam esquinas. O Cine Pax foi o terceiro cinema construído na Baixa. Antes dele, existiam o belo Cine-Teatro Jandaia, antigamente conhecido como o “Palácio das Artes”, primeiro cinema de Salvador, e o “Olympia”, que depois passou a se chamar Cine Aliança, perdendo sua sofisticação e passando a exibir filmes de segunda categoria, acabando por fechar as portas. Hoje é uma loja de comércio varejista. Da mesma forma, o belo Cine-Teatro Jandaia também parou de funcionar, depois de ter degradado sua programação de filmes, e hoje, apesar de vários projetos para aproveitamento cultural do prédio, encontra-se fechado. Seria interessante que o Cine-Teatro Jandaia voltasse a funcionar. Defronte existe uma ilha de pequenas e inexpressivas lojas, entre a Baixa dos Sapateiros e a Rua das Flores, que poderiam ser desapropriadas e derrubadas para fazer um amplo estacionamento. Portanto, lugar para deixar os carros não seria problema, e o prédio é bastante bonito e funcional. Depois do Cine Pax, foi erguido o Cine Tupi (luxuoso, com desenhos de Carybé na parte interna), que, infelizmente, teve vida curta e foi transformado em cine pornô. Havia também um cinema a poucos passos da Baixa, o Cine Santo Antônio, na Ladeira de São Francisco, mais conhecido como o Cine “Pulga”, por ser pequeno, barato, e com programação, acomodação, frequência e higiene ruins.

Cadeirante - Il. Antonello L`Abbate

O Cine Pax é muito bem feito, construído na esquina de uma ladeira (Ladeira do Pax), e a aproveitava para colocar suas cadeiras de madeira em desníveis, o que garantia boa visão dos espectadores, sendo

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impossível que alguém tapasse a visão da tela. A entrada é pela lateral da gigantesca tela, e é o único cinema que tem uma ladeira interna, pois o espectador, literalmente, sobe uma ladeira íngreme, escolhendo onde sentar. Nada mais justo numa cidade famosa por suas ladeiras. Era gerido por uma senhora de cabelos bem loiros, que mantinha o cinema sempre limpo, decente e seguro, pois era frequentado por muitos jovens. Hoje está fechado. Junto à entrada do cinema, ficava um pedinte cadeirante, naquele tempo chamado de paralítico, que chegava impulsionado por um rapaz, antes de começar as seções, e saía quando começava a última. Era magro, negro, com as pernas finas, típicas da maioria dos paralíticos, e disputava o troco do que era cobrado nas entradas como esmola. Tinha somente como concorrência os “Baleiros”, que vendiam bombons (balas), pirulitos e chocolates. Um belo dia, notou-se que outro esmoler ocupava a velha cadeira de rodas, no mesmo lugar. Logo se esclareceu o mistério: o antigo ocupante da cadeira resolveu se aposentar, pois era proprietário de várias casas que lhe rendia alugueis, além da própria, onde morava, e vendeu o “ponto” e a cadeira, em suaves prestações mensais, ao novo ocupante. Vive bem o resto de sua vida, comprovando a generosidade do baiano. Pelo menos quando vai ao cinema...

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CEGUINHO Como todas as ruas de movimento de pedestres, a Baixa também tinha e tem seus mendigos e pedintes. No entanto, só havia três pedintes cegos, e eram bem diferentes entre si. Um deles era bem maltrapilho, e era trazido para seu “ponto” por um rapaz que o deixava virado para uma parede, de costas para o povo, entregando ao cego um pedaço de papelão do tamanho de mais ou menos meia folha de jornal. Ele passava o dia inteiro batucando o papelão, como se fosse um pandeiro, e trocando os pés no chão, como que dançando. Se alguém quisesse lhe dar alguma moeda, teria que colocar em seu bolso. Ele, além de não agradecer, possivelmente nem notava. Outro ceguinho era um jovem relativamente bem vestido, que andava pela rua com o auxílio de uma bengala. Tinha sempre bom humor, reconhecendo praticamente todos os camelôs que o ajudavam a evitar os seus tabuleiros, conversando brevemente com todos sobre futebol, o tempo, ou simplesmente perguntando como estavam de saúde. O terceiro era alto, beirando dois metros de altura, forte, e andava com o auxilio de um cajado. Como sempre era roubado pelos pivetes, o cajado resolvia o problema, pois o brandia quando sentia uma mão estranha em seus bolsos. Além disto, outra solução encontrada por ele foi encher os bolsos de jornais amassados, o que o fazia andar com os bolsos das calças e jaqueta estufados, mas que protegia o dinheiro no fundo dos mesmos. Um dia, Ypiranga, um camelô que sabia de tudo na Baixa, começou a xingá-lo quando passava. Interpelado, Ypiranga justificou os xingamentos dizendo que soubera que o cego tinha violentado a filha. A partir deste dia, sempre que o cego alto passava, era xingado e retribuía o xingamento.

Ceguinho - Il. Antonello L`Abbate

Quem não soubesse o motivo, sempre ficava intrigado assistindo à cena.

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Vista da rua - 1978

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CAMELÔS Na Baixa, se poderia dizer que a rua era o paraíso dos camelôs. Tinha todo tipo de camelôs, de diversos ramos (embora prevalecesse o de confecções), como os efetivos, que montavam suas “guias” (tabuleiros) diariamente, e os que só apareciam em datas festivas, para aproveitar as vendas de São João e de Natal. Podemos citar o caso típico de funcionários públicos, que preferiam faltar ao trabalho, nestas épocas, pois ganhavam bem mais mercando nas calçadas. Alguns tinham ponto fixo, consolidado, e eram respeitados pelos colegas; outros batalhavam os melhores locais, ocasionando pequenas discussões. Discussões acirradas também aconteciam entre os camelôs e os lojistas, vez que eles colocavam suas “guias”, muitas vezes com as mesmas mercadorias, em frente às lojas. Naqueles anos, os lojistas ainda não tinham descoberto uma maneira de evitar isto. Só bem mais tarde passaram a colocar vendedores nas calçadas, chamando fregueses, e assim, bloqueando os camelôs. Muitos não possuíam licença municipal (ou qualquer outra), portanto ficavam passíveis de terem suas mercadorias apreendidas pelo “rapa”, ou seja, pelos fiscais da Prefeitura. Quando isto acontecia, eles pagavam a irrisória Licença, retiravam as mercadorias e voltavam para seus “pontos”, sem evitar certo prejuízo, pois os fiscais não eram cuidadosos, jogando as mercadorias de qualquer jeito na caçamba de velhas camionetes. Mesmo assim, incompreensivelmente, os camelôs da Baixa, com raríssimas exceções, não pagavam antecipadamente as Licenças para ficarem tranquilos. Um dos que estavam quites com os impostos era Ypiranga, que tinha

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Camelôs durante o São João - Década de 70 67


seu “ponto” fixo à porta da serraria do Sr. Rubim. Só vendia uns três a quatro tipos de cuecas baratas, arrumadas cuidadosamente em sua “guia” de 80cmX100cm, e, surpreendentemente, conseguia tirar seu sustento disto. Seu apelido, “Ypiranga¨ é decorrente de ele ser torcedor do auri-negro Esporte Clube Ypiranga, que antigamente disputava o campeonato baiano. Como o Campeonato Baiano de Futebol tinha seus jogos no domingo, e o “Ypiranguinha” raramente ganhava um jogo (ou empatava), segunda-feira não era um bom dia para Ypiranga ou para seus fregueses, pois, exacerbado pelas gozações dos colegas, ficava de péssimo humor, agredindo verbalmente aqueles que demoravam na escolha de que tipo de cueca comprar. Se, por acaso, o seu time ganhasse ou empatasse, ficava eufórico, dizendo que daquela data em diante tudo ia ser diferente, que o time era bom e passaria a ganhar todas. Infelizmente, tal coisa não acontecia, e na próxima semana, seria outra segunda feira com Ypiranga emburrado. Como ele, um jovem de uns 25 anos, veio a torcer por este time era um mistério, porque, como o “Ypiranguinha” só tinha uma história de vitórias antigas (Foi campeão em 1951, depois só dois vice-campeonatos, em 1952 e 1960), a totalidade de seus torcedores era de idosos. Ypiranga era um grande conhecedor dos pivetes e ladrões oportunistas, aqueles que cortavam as bolsas das mulheres ou surrupiavam mercadorias das lojas e dos camelôs, como os da “Gangue do Garoto”, e sempre os enxotava de perto de seu “ponto” ou avisava os outros colegas sobre o perigo que corriam. Desta maneira, ajudava, também, os comerciantes ao seu redor, pois os avisava se algum meliante entrasse em suas lojas.

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CONTO DO PACO A “Gangue do Garoto” era formada por cinco ou seis garotos de mais ou menos quinze anos, comandada por um menino que dizia ter nove anos e que nunca era visto sem pelo menos dois dos maiores como Seguranças. Se, por acaso, um policial conseguisse pegá-lo, ele gritava que era criança, e esperneava dizendo-se inocente, fazendo com que o povo passante pedisse ao policial para soltá-lo, o que geralmente acontecia. Acreditava-se que ele já passara dos dezoito anos, só que era portador de nanismo, uma doença que o fazia parecer pequeno. Era bem arrogante e ameaçador para com os lojistas, que não o deixavam agir dentro de suas lojas quando cheia de clientes. A Baixa tinha seus punguistas, batedores de carteira, assim como os que aplicavam o “Conto do Paco” (aproveitadores da ingenuidade dos humildes que frequentavam os Bancos). Mas o roubo frequente tinha como alvo as mulheres, que, no afã das compras, esqueciam-se de ficar vigilantes com suas bolsas a tiracolo, e eram vitimas fáceis para os ladrões, que cortavam as bolsas e surrupiavam as carteira ou dinheiro soltos, fugindo, quando descobertos, pelas diversas ladeiras que interligam a Baixa com o Pelourinho ou o Bairro da Saúde e Nazaré. Devemos citar uma ladra em especial, pelo seu biotipo e modo de agir. Era baixa, velhinha, e portava sempre pendurada no braço uma sacola de uma das lojas da Baixa. Só roubava mercadorias das lojas, preferindo as mais cheias de compradores, quando, fingindo examinar produtos, deixava habilmente cair dentro de sua sacola peças de confecções e artigos diversos, até louças, como pratos, copos e pequenas panelas (!!) sem fazer nenhum barulho, nem balançar o braço. Seria genial vê-la agir, se não desse prejuízo às lojas. Gangue do Garoto - Il. Chico Mazzoni

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ENGANADORES Havia também os “Vendedores de Ferro” que, como sua alcunha deixava claro, vendiam joias que diziam ser de ouro, mas nada mais eram que “ferros” pintados ou folheados. Sempre convenciam os ingênuos de que estavam vendendo a “corrente de ouro” da família, ou a “aliança de ouro” de seu casamento, para poder retornar ao interior, sua cidade natal. Os “sabidos” compradores, que queriam se aproveitar do pobre caipira, acabavam sendo os tolos, e se retornassem arrependidos não encontravam mais o vendedor. Dependendo do valor cobrado, pelo menos por uma hora, ou duas, o vendedor “desaparecia” da rua. Estes “Vendedores de Ferro” vendiam também relógios, cópias falsas de marcas famosas, como “Mido”, “Seiko” e outras feitas no Japão, como se fossem verdadeiros. Isto era menos mal, pois os relógios funcionavam relativamente bem, mas, às vezes, eles aceitavam trocas, e aí eles passavam adiante a “bronca” que recebiam. Outros enganadores do povo eram os que faziam o “jogo dos copinhos”, que consistia de três copinhos emborcados, sendo que um deles escondia uma bolinha. O “enganador” alternava a posição dos mesmos, arrastando-os sobre a pequena mesa dobrável de madeira. Fazendo a operação lentamente, a vítima acertava em qual copinho estava a bolinha, e era quando o “ajudante” do “enganador” incentivava a vítima a apostar, apostando também. Claro que, ao se manejar rapidamente os copinhos, a vítima errava e perdia o dinheiro. Se por acaso a vítima ganhasse, não a deixavam sair do jogo, forçando-a, através de ameaças, a continuar jogando. O resultado era sempre o mesmo, só quem ganhava era o meliante. Ao ver algum policial, eles fugiam rapidamente. Ninguém nunca foi preso por isto ou por vender “ferro”.

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VALERIANO Alemão terminou satisfeito sua faina diária na Rua Chile, pois tinha lavado três carros. Como de costume, desceu a Ladeira da Praça e foi comprar as três varas de pão na padaria existente embaixo da ladeira, de esquina com a Baixa dos Sapateiros e defronte do Quartel dos Bombeiros. Depois, como sempre fazia, foi andando em direção ao terminal do Aquidabã, no outro extremo da rua. A primeira pessoa conhecida que encontrou foi Valeriano Felix da Silva, com o qual trocou algumas palavras. Valeriano era carteiro, trabalhava nos Correios, e era poeta. Suas poesias eram de boa qualidade, mas, por ser pobre, não conseguia apoio nem reconhecimento pelo seu trabalho. Seu livro “Palmares” (homenageando sua terra natal) era o que se podia chamar de obra prima, e foi editado com recursos próprios e comercializado de porta em porta, conforme entregava a devida correspondência. Da mesma maneira, escrevia e imprimia cordéis numa tipografia sita na Ladeira do Taboão. Além disso, ele achou, um belo dia, uma edição antiga do jornal “O Carteiro” jogado num depósito do Correio Central, no Comércio, e, investigando, notou que o jornal não estava mais sendo editado, mas que tinha as devidas licenças para voltar a circular.

“Palitos Monroe” ficava na primeira porta alta à esquerda - foto de 1978.

Ele, então, tomou para si esta responsabilidade, e passou a editá-lo, escrevendo o jornal todo, colocando notícias, poesias, programação dos cinemas, negociando publicidade entre os comerciantes das ruas onde

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o distribuía gratuitamente quando entregava as cartas. Evangélico, o novo projeto do poeta era escrever a Bíblia em versos. Infelizmente, não consta de ele ter conseguido. Parou também de editar “O Carteiro” e, eventualmente, de frequentar a Baixa, talvez por aposentadoria. Outra parada de Alemão, no seu trajeto ao ponto do ônibus, foi para falar com “Palitos Monroe”. Palitos Monroe era um homem de uns trinta anos, que vendia palitos encostado ao batente de uma das duas portas de um bar que fazia esquina da Baixa com a entrada da Rua do Taboão. O nome provinha naturalmente do artigo que vendia em caixinhas: os palitos da marca “Monroe”. Ele passava o dia inteiro mercando, no mesmo lugar, sem gritar, como se estivesse conversando baixinho, “Palitos Monroe”. Deveria ter boa freguesia, pois vivia disso, mas, mesmo no transporte, ou simplesmente andando pela rua, não parava de dizer “Palitos Monroe”. O boato na Baixa dos Sapateiros era de que ele mercava seus palitos até dormindo.

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VOLTANDO PARA CASA Ao chegar ao Aquidabã, ponto final do ônibus que servia seu bairro, Alemão viu que um veículo vazio o esperava, e ele logo embarcou, pondo-se confortável, apoiando-se na lateral do ônibus, abaixo da janela. Sabia que, ao chegar ao ponto da Sete Portas, o ônibus iria lotar, mas isto não o importunava, pois sempre cochilava durante o trajeto, e confiava em seu corpo, que sempre o acordava ao se aproximar do seu ponto de chegada. Em casa, depois de tomar um banho e de sorver um café acompanhado de um generoso pedaço de pão, seu corpo cansado pedia cama, e era para onde se dirigia. Logo dormia, embalado pelo som da novela, que passava na TV e que sua mulher não dispensava de assistir. No próximo dia, tudo se repetiria, mas, quem sabe, ele lavasse quatro carros. Seria ótimo. FIM

A Baixa vista do terminal do Aquidabã

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Quartel dos Bombeiros Baixa dos Sapateiros

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A N T O N E L L O L’ A B B AT E


Quartel dos Bombeiros, Vista da Rua, Ceguinho e Cadeirante 77


CÉSAR ROMERO

Mulher de Roxo, Carlos, Alemão e Boca Torta (à direita) 78


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SANTE SCALDAFERRI


Água Gelada, Quelé, Charuto e Dama dos Cachorros 81


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CHICO MAZZONI


A Gangue do Garoto, Lobisomem, RogĂŠria e Sergipe 83


C H I C O L I B E R AT O Festas na VisĂŁo de Chico Liberato 84


EPÍLOGO Erika Maciel, editora deste livro, questionou o porquê de eu não ter relatado nenhum episódio envolvendo minha pessoa ou a de meu pai, ou ainda nossa família. Esclareço que Ladislau, citado nestas páginas, era meu primo e a dona da colchoaria, minha tia. Não acredito ser eu a pessoa mais indicada para fazer algum relato sobre mim ou meu pai, mesmo porque todo mundo gosta de falar de seus acertos e não desacertos. Poderia citar a tentativa de dar um “up grade” na nossa filial perto do cine Tupy, ou seja, defronte da serraria e loja de ferragens do Sr. Orlando, quando reformei a loja e coloquei uma vitrine iluminada, expondo um lindo colchão de molas (fabricação nossa), que permaneceu acesa durante a noite. Saliento que na década de 1960 aquele trecho de rua não fervilhava como acontecia desde a entrada do Taboão à subida da ladeira de Santana. No dia seguinte, de manhã cedo, fui abrir a loja todo animado, pois um comerciante que encontrei no caminho me disse que a vitrine fez grande sucesso durante a noite. Ao chegar, notei por que: os ratos fizeram a festa, procurando sementes de algodão no enchimento do colchão. O colchão estava todo esburacado, com algodão espalhado por todo lado. O fato deve ter gerado muitos comentários jocosos dos espectadores que viram aquele espetáculo bem iluminado. Por outro lado, tive sucesso quando contratei uma propaganda na TV, e uma equipe foi fazer umas tomadas na loja. Quando, no meio da manhã, fui ver como estava a gravação, notei uma aglomeração na frente da filial, quase parando o tráfego. Pasmem!: Em plenos anos 60, eles colocaram uma morena de camisola deitada num colchão, mostrando as pernas. Foi um sucesso! Por fim, gostaria de citar um comerciante da região da Calçada, Sr. Kislansky. Ele dizia que existiam três tipos de clientes: os fregueses, os fregueses amigos e os amigos fregueses. Os fregueses compravam, os “fregueses amigos” voltavam a comprar, e os “amigos fregueses” são os que traziam seus amigos para comprar também. A Baixa tinha o melhor dos três tipos.

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O autor na loja - déc. 70 / 80

A segunda loja Colchões Primavera na Baixa do Sapateiros, nº 124, onde funcionou até 1989.

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Leopoldo com Desidério, seu pai, na fábrica Primavera - Rua das Flores, década de 60.


SOBRE O AUTOR Leopoldo Bokor, além de ter residido, desde a idade escolar até seu casamento, em 1974, na Rua do Castanheda, adjacente à Baixa dos Sapateiros, trabalhou durante quarenta anos nesta rua comercial, e, mesmo aposentado, continuou a frequentá-la por um bom tempo. Em sua rotina diária, percorria a Baixa em sua extensão, tanto a trabalho quanto a lazer, frequentando os cinemas e fazendo compras em suas lojas, feiras, e “camelôs”. Embora tenha trabalhado no ramo de móveis e colchões como proprietário da fábrica de colchões de mola e da loja Colchões Primavera, chegou a possuir uma sapataria e até mesmo uma lotérica. Foi um dos primeiros a inaugurar uma loja no Shopping da Baixa dos Sapateiros. Encerrou as atividades de comerciante em 1992, passando a atuar na área de representações.

Primeiro cartão de visita do autor.

Durante estes quarenta anos, o autor travou conhecimento e teve contato com lojistas de várias nacionalidades e credos, assim como trabalhadores e frequentadores desta famosa rua. Foi um dos que participou das reuniões para a formação da ALBASA (Associação dos Lojistas da Baixa dos Sapateiros), sendo também um dos seus primeiros associados. Com o advir dos anos, tornou-se escritor e poeta, mas sem deixar de sentir uma afinidade com a Baixa dos Sapateiros, rua que o marcou e fez parte importante de sua vida.

A primeira loja Colchões Primavera Baixa dos Sapateiros nº 343. - Dec. 50.

Neste livro, o autor narra tanto fatos presenciados como também fatos ou boatos escutados durante o tempo em que trabalhou na Baixa. Do Autor: Cordéis: Jacó – Epopéia de um Legado; Clarindo – O Falante Muar; O Poeta Assonâncio; Nhozinho e o Paraiba; Nhozinho e a Morte.

Livros: Lágrimas na Noite; Sentimentos; De Insetos e Pitangueiras.

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Editora Expoart (71-99972-7474) Erika Maciel Autor Leopoldo Bokor Ilustradores Antonello L´Abbate César Romero Chico Liberato Chico Mazzoni Sante Scaldaferri Revisão Erika Maciel Projeto gráfico Jonathas Medeiros Fotografias Baixa do Sapateiros antiga Antonio Queiroz Arquivo A Tarde Leopoldo Bokor Fotografia das ilustrações Jonathas Medeiros Pesquisa e seleção de imagens Leonardo Bokor Leopoldo Bokor Agradecimentos Cristiano Silva Negrão Cândida Luz Liberato Erika Maciel Juarez Paraiso Leonardo Bokor Lívia Lima de Jesus Marcelo Lima de Jesus Acesse o livro on line: adoroler.com.br

Este livro foi editado pela Expoart com o patrocínio da RedeMix utilizando os benefícios do Programa Estadual de Incentivo à Cultura - FAZCULTURA - Governo do Estado da Bahia, Lei nº 7015/96. Salvador - Bahia - 2017. PROIBIDA A REPRODUÇÃO DO TODO OU PARTE DESTE LIVRO SEM A EXPRESSA AUTORIZAÇÃO DO AUTOR E DA EDITORA.

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