Súbitos pós

Page 1

sĂşbitos pĂłs (poemas coligidos)

1


sumário

1. súbitos pós o totem abatido o elefante no asfalto render-se do céu, da terra: pós imaginários

2. o pacto de Quasiontem o dono do prólogo instâncias da invalidez antes do fim, inquisições epílogo sem triunfo, sem futuro

3. umbigo de Ebderelis capítulos da coisa incorpórea fragmentos do assassino serpente com fendas nunquidão (amor te nego) calada de Antônio

2


sĂşbitos pĂłs

A ti, Brastilha 3


o totem abatido

...e o incauto espedaรงou-se no asfalto

4


Ă guisa: o meu hĂĄbito desfaz-me o monge o totem se abate insetos passeiam pelos caminhos da cruz nĂŁo sei a poesia sem espanto

5


forasteiro quando cheguei, não vi o céu também cinza feito meu coração os sapos, imaginei-os nas profundezas do lago, gigantes, desde titicaca. passei depois a receber o desdém da humanidade, os urubus a passear na varanda – asas plenas a quarar ao sol. e os dias acabaram findos como as noites: tudo igual – nadas.

6


sentido sem ti: que espaços ouso sentir? as avenidas grávidas os muros invisíveis o arranha-céu de suspensórios os picotes na carne pelas tesourinhas cegas neste lugar, quase nada sou e o vazio sussurra, e ouvir segredos é destruir a paz por isto, não quero mais sentir sem ti

7


passeata não há pinguins nesta cidade - à vista. há deles em cortejo invisíveis pelo largo, no entanto. e gigantes dão petelecos nas peças verdes do dominó. aquele lá, de fraque, revisa o sol do fim da tarde. burocrata, aconselha-se com a luz restante: – é chegada a hora de assinar o pacto com a noite? sem resposta, gira trôpego nos passos e, mais invisível, ergue e reordena em fila as peças de jogo novo até juntar-se aos tantos rumo ao lugar nenhum dos arredores.

8


grãos o pombo morto rodeado de vivos de nada mais sabe. o pombo morto sobre a calçada quase pisado não mais rufla asas. o pombo morto nunca mais bicará os sacos azuis. o pombo morto um dia desaparecerá e ninguém o terá visto. o pombo morto é apenas mais um pombo morto. o pombo morto será para sempre. o pombo morto saberá se há um céu de pássaros? igual a ele, um vivo, passo por esta calçada. um dia, as asas me farão bicar o invisível, então, sumirei também feito um pombo para sempre. para sempre?

9


janelas recolhidas. o frio lá fora já se foi. dentro continua a névoa a esconder os atos. do coração. do pensamento. silencio. a porta vizinha é aberta. uma luz escorre pelo corredor. passos, passos. e tudo volta ao momento anterior. interior. silencio. e assim se encobre de nada o dia parado. no silêncio. o pesar em mente sem oração. os atos escondidos sob a névoa por dentro. o frio não desiste. lá fora já se foi. recolhidas as janelas. nada mais cabe. no corpo gelo o iglu em mim.

10


opções escolheria o dia cinza, janelas pudessem abrir asas e voar escolheria o dia seco, fosse confortável a brisa do sentimento escolheria o dia tempestuoso, remanso pudesse amainar soluço escolheria dia vazio, espírito não sofresse ausência escolheria dia vadio, imaginasse fuga em noites a sós escolheria o dia, simplesmente dia ousasse reinventá-los em papel escolheria, todavia, apenas dia, acaso existisse e mais vida por viver

11


palavrazias não, não pense em ausências, anuência das cadeiras... os bares estão repletos de corpos em pardos tons se revelando é só a mutação do invisível, da esfinge incógnita e sem conceitos ó pré-fabricada ilha, tal que o poeta destacou em insólita intenção ampla é a concretude e a solidão de seus vazios!

12


o que resta este sim, menina, interrompe meu prazer. agonia. as algas se acumulam no cérebro de cristal. quebro-me as veias e celebro a dor. algoritmos indecifráveis me encantam os olhos de perdição por saber. menina, hoje estou nesta solitude, como se a vida fosse um capim. devoro-a, bicho ungulado, e logo desprezo o pensar: saber-se altivo ao vivo é o que me resta. soluço e solução. noite.

13


nos lábios invisíveis da ilha seus lábios permitem olhos de sonhar. e sonhar é quase revelar para dentro de si desejos e segredos. seus lábios são deslimites, fronteiras a serem cruzadas. e passar além desse infinito é quase renascer para mais sonhos e degredos. seus lábios me serpenteiam o perigo de viver. e viver assim me permite quase à margem, colher pesadelos em segredo.

14


antes do epitáfio os barcos colidem nas veias - correnteza encarnada rumo ao músculo o sonho é de vaga-lumes a incendiar de périplos - a noite dolorida do meu bem luzes ao fundo - princípio do precipício onde estanco, não sei cravos contra a multidão livre de mim escolho nenhuma dessas horas me inspiram a solidão desisto o paradoxo é a lucidez a pena que alucina fatal

15


myselfless e Eu nunca passou um ano fora de casa esteve sempre entre lá e aqui alhures tantas vezes retornou e nunca Eu passou um ano fora de casa este passar o ano fora de casa é tempo corrido e Eu nunca passou tanto assim longe e fora de casa mas houve e há um final de ano que será assim para Eu: estar longe e fora de casa. o vento pode ser igual àquele soprado lá, aqui e alhures – mas a chave da casa, não mas houve, há e há de haver este dia e Eu saberá amanhecer e será tanto indefinido como sempre foi em qualquer lugar: lá, aqui e alhures, finitamente no espanto da memória os sons serão os mesmos, no vento, e Eu saberá continuar amarrotado no amanhecer como sempre quis, em qualquer estado de ente agora é tarde e Eu está agora fora de casa e nunca passou um ano entre outros, sem os de lá, sem os daqui, sem os de alhures Eu não se esconde mais de contentamento descontente Eu, só, queria sorver, apenas, nem que fosse o veneno, desde que já não mais estivesse longe dali, desde aqui, deste alhures

16


para que testamento não ponham flores no túmulo não usem fumo mesmo que recrudesça a moda não coloquem notas nos jornais não enviem mensagens de luto pelas redes sociais não produzam ritos de corpo presente não chorem... não chorem... não comemorem cem anos como se vivo fosse não escrevam necrológios de qualquer espécie não aprisionem cinzas em urnas para sempre não fotografem o corpo inerte sob castiçais não entoem hinos de tristeza e de dor não chorem... não chorem... não guardem na lembrança as coisas más não sacrifiquem o sono no dia de finados não delirem no lusco-fusco entre sombras não reguem as flores sobre nenhuma presença não reforcem nos vivos a sempre ausência não chorem... não chorem... talvez seja tarde demais e o pranto amanheça talvez seja óbvio o despertar do desencanto talvez seja insano abafar a nostalgia talvez seja inválido desempatar a dor talvez... mas não chorem... não chorem... e finda a dor, não cumpram o testamento.

17


as flores a primavera constrói silêncios de êxtase as mesmas cores flexiona palavras e corolas insonhadas saber-se a vida não contempla qualquer significado neste tempo o invólucro é apenas o dilema a resplandecer ao sol desabrochar o ápice quase completa o que virá ao fim a primavera somente resgata o súbito colapso das flores

18


céu a cidade é a pele de um tigre morto, espichado no relevo do chão verde. o homem desenha fios e símbolos de geometria como se não atinasse. o que fui, o que era estão nessas cicatrizes: o que sou me escarpa. dentro de mim, resta a matéria-prima do desvario: me acumula a humanidade.

19


noite azul I o espelho transmite o reflexo de uns olhos mais turvos que a noite. gelados, nenhuma corrente de ar entre o sonho e a visibilidade do instante, eles resistem ao descontentamento, apesar de mais turvos que a noite. sem saber a razão dessa visão, o homem consumiu-se na superfície prateada. entre habitar narciso e o inferno, encarou-se. o delírio estava por iniciar-se no mais dentro da encruzilhada. o espelho é nosso cavalo de troia de cada dia. II e esta noite fria é azul! e não sei onde esqueci o chapéu, mas tenho a certeza de que não foi no estacionamento da lua de plutão... 18graus celsius .Insisto em sair do lugar e permanecer no mesmo lugar . é este o mistério desta noite... meus olhos no céu: estive na montanha e saltei no abismo. agora estou no céu... de lá, daqui, salto em novo abismo em forma de chuva...

20


sem cerimônia não sei do tempo de que preciso para colher o pó de estrelas. não sei que espaço posso reconstruir entre mim e as galáxias. não sei de certezas e nem me arvoro a sabê-las. se deus não joga com os dados, meu querido einstein, jamais serei pela minha sorte. por isto, traduzo a lei mais imprecisa, recolho os trastes de nenhuma sabedoria, invalido meus sonhos. e tenho por esta memória a tradição de continuar sem saber. meu mundo é a pele de uma vertiginosa escolha, em que suplico detalhes, apenas para preencher silêncios. e se vivo esta melancolia, estou salvo, meu mundo não existe. e posso, tranquilo, resvalar os passos pelas ruas da cidade, mesmo as invisíveis, como as tais forjadas pela frágil delicadeza dos suspiros. e a existência se torna fluida neste éter construído a sonho e a delírio. afinal, ninguém vive sem viver.

21


morte o travo na boca. o gesto por invadir o espaço ao redor. o silêncio por ser renovado. a perplexidade ante a vertigem. este corpo instantâneo quebra os limites. o abraço escorre pelas horas. a explosão dos ânimos tiquetaqueia. como se não esperasse, o fim pode ser para sempre, ou apenas promove o princípio de uma nova gênese.

22


o elefante no asfalto

...estreia os passos sobre o fio, a romper-se

23


ao soprares essas palavras contra mim, embaralhas os nacos do que me resta. cacos dos espelhos, fragmentos de ilusões, réstias, poeira suspensa, teclas partidas... meu silêncio. te alimentas dessa insana alma, a que acobertastes um dia, mas que a cobristes de armadilhas. mas, se lento é o perjúrio, feito cicatriz, hei de talvez por desistir, recolher as marcas do meu capricho

24


sem espaço para mais um

no baile de máscaras o homem de cara limpa desistiu. desistiu do elástico preso por detrás da cabeça vazia de respirar a vida pelas fendas dos olhos vazados no simulacro da boca entreaberta prestes ao delito. desistiu de continuar na senda sofrendo máquina de afrontas. naquele dia, o homem de cara limpa soltou pernas pela avenida com a largura de sua estreiteza. resolvera, enfim, contar com quantos passos fugiria de seu sonho - ou pesadelo – até o fim do precipício.

25


já é dia outra vez a voz embargada renuncia concorrer com o pássaro da manhã. ficaram para trás o pesadelo, a escuridão, a insônia, o destino. todas as notícias atrasadas chegam pelos jornais. a aragem escorre de mãos dadas com a luz forte. um motor passa no abismo de quase silêncio. entre as paredes, guardam-se os tesouros e falsos brilhantes. a pulso e vertigem, o insano desejo de desentranhar-me da solidão. na voragem das horas, a hidra que não me deixa olhar para trás. e neste pensar curto, o agravo, a linha vaga do poema que se espraia em dia outra vez.

26


na manhã cinza o pombo arrulha presságios? saúda a manhã ou isto é arfar na secura das horas? o dia seguinte à destruição invade o hábito e o monge. não caberia à insônia modelar a noite nem ao peito esses assaltos repentinos tampouco aos olhos as tochas desse inferno nem às paredes do quarto comprimir-se na escuridão. fato em ânsia, a manhã precisa ergue-se abafando o pombo e seu arrulhar. agora, a sorte lança-se novamente às ondas. inválida. nada mais a fazer, senão viver, que é tudo.

27


retorno sempre ao mesmo lugar diferente idas e vindas são desejo e fantasia. mas para contradizer, voltar é partir, feito o elefante que se arrasta ao seu túmulo. pensar é que nem morrer ou dar-se ao retorno: desiste-se de tantas outras soluções, ou se larga no caminho qualquer desafio. pensar é que nem estar e nunca sonhar. e se esta roda invade meu coração, tonto hei de ficar na emoção do carrossel. penso e desisto de pensar no que será. retorno sempre ao mesmo lugar diferente, feito o elefante que se arrasta ao seu túmulo. até que sem esforço a rima pobre me faça ruir.

28


comum

cena 1: a rede branca, ainda escuridão, os olhos fechados para nada. cena 2: um corpo se desenha no vidro da janela, um zumbido picota o silêncio. cena 3: os dedos se contraem, a testa enruga-se, os olhos se esfarelam na luz nova. cena 4: alfinetes pinicam o corpo na rede; no vidro, o outro se contorce. cena 5: o sábado amanhece, o rosto tenta se fundir à própria imagem. cena 6: o vidro se estilhaça, o duplo desaparece, ressurge a escuridão. cena 7: o homem atravessa a rua sob o chapéu, um motivo de sombra o segue, cabisbaixo.

29


as cores da noite invadem o ruído do silêncio emite A voz do indizível expele O cheiro do ar insinua O toque do saber eu colho o paradoxo e as palavras gritam Unhas no teu rosto tu bebes o meu sangue e Puro é o caminho até a sinestesia das horas o toque do silêncio Invade o cheiro da noite Expele a cor do indizível Insinua o ruído do ar Emite a voz do sabor

30


faz-me sem teto no ato e o que sinto pressinto: o que me doas, doas-me em contrição ou o que me doas, doas-me sem atenção? o que me doas, doas-me sem condição ou o que me doas, doas-me em íntima aflição? creio-me intacto se neste pacto o que me doas, doas-me em pura emoção.

31


antes dessa noite vejo passar a memória mais curta teus espelhos em pedaços e as faces perdidas dentro deste dia vivi a noite sibila mais longa tuas palavras em fúria e os desejos em calafrio mas não penses na dor em revoluções pelo corpo de capricho não sofre o espasmo este eu a memória só das palavras passa como sensação caso tu voltes sofram desejos este espelho em minha face

32


serpenteio pó e fumaça cada passo ferro em calcanhares nem escuro nem noite efeitos tyndall acinzentam alma e carne a lógica do espanto afivelo entredentes entreolhos a casa me desabita em réstias de horas cada passo em peso de capricho nalguma madrugada a espera corpo a volver súdito quarto de ti mesma

33


hoje não escreverei este poema:

o céu implode as estrelas o cheiro da rua sangra vapores as calçadas se esvaziam se teus olhos me descobrissem estilhaços de mim sucumbiriam mas não: tépido o silêncio por aí, vazio me transbordo foice a decepar a rotina esta noite é pó de alumbramento e para sempre nesse caos, escuso de mim, escrevo o monge

34


sob a marquise, a prisão por que não se subtrair à borrasca chapinhando o rio novo do chão vermelho? a leste, o eterno engodo. por que escolher a possibilidade se à distância qualquer sonho cai por terra? na via larga, o embaraço. por que esperar do anjo o aceno se é contrária à ventura toda solidão? sem os teus olhos, o vazio. por que mirar o avesso da multidão se cravos selam a língua emudecida? mero é o desejo: partir são cacos de uma eternidade.

35


a cabeça tonta

o verbo na garganta alguém pode pestanejar delírios: assim se planeja o caos quem dera saber do ofício de colher tempestades domingo em mim o artifício para soprar palavras com aromas o elétrico em algum lugar do mundo pavoneia-se em trilhos aqui não há passos largos nuvens roucas gritam ao sabor das horas o seio invisível em minhas mãos queima a gaiola dos pássaros cegos invade as nuvens neste tormento de pianos abafados o fim é hora de acordar

36


render-se

perder o sol ĂŠ sofrer pra sempre lua

37


temo esta madrugada sob a luz do sol Temo os cegos cruzando a luz do semáforo Temo as mãos-asas estendidas dos seres de rapina Temo a voz guardada em segredo de salas cerradas Temo o mistério declarado pelas ondas invisíveis Temo a atividade dos erguidos passivos contrariados Temo-me - autofobia: Medo de matar, de morrer E embora saiba que este medo de morrer findará por matar-me Temo Esta luz no fim da madrugada

38


aqueles homens de negócios não enxergam o olho do pássaro a não ser como serpentes Aqueles homens de branco bebem bílis e blasfêmias alojados sobre seus altares sem piedade Aqueles homens de escalões fustigam as espadas como se salvassem o reino de suas cruzadas Aqueles homens de capuz destroem vidraças e com elas decepam a cabeça do pássaro branco Aqueles homens desfeitos perdem a voz indigna a lutarem cegos por um punhado de ouro dos tolos à beira de todos os dias

39


há de haver uma cura se é digno curar Há de haver uma paz se é possível pacificar Há de haver um senso se se é capaz de refletir Ó, humanidade desenxabida, porque teimas em seguir nesse caminho destinado?

40


há tantas horas desperto, Eu já confunde o hábito dos passos do ponteiros do relógio analógico com o vagar das ideias Em círculos, o idêntico trajeto já não é o mesmo, tal é a confusa rotina do pensamento na evolução desse tempo implacável E nesse descompasso, trôpego vivente desse labirinto, Eu represa os olhos nos primeiros raios da luz que recicla o som dos bem-ti-vis Será o instante a penas?

41


ampulheta amanhecemos E isto é tão sagrado quanto o afago no colo do invisível Os olhos ainda em busca da nitidez colhem nuvens a escorrer pelo éter Vozes em fragmentos perfuram o silêncio a se recolher amanhecemos E a certeza plena é a dos pássaros no desenho de uma vitória em formação O que se vê por este ínfimo sinal do Universo Um novo dia a escorrer seus grãos prisioneiros

42


os odores flutuam pela sala Os olhos da noite percorrem o fluxo desse mistĂŠrio o corpo em ĂŞxtase desenha um corpo inerte no mĂĄrmore O anjo anuncia A vida se regala

43


poema do voo 3062 sei dos tempos o quanto são torturantes Assim também das encruzilhadas a perpetuar a incerteza A vida tange atrás de si a morte, feito cadelinha sarnenta Ninguém a quer, ninguém a afaga Mas este desejo pela palavra e esta repulsa por Ela escraviza, apesar de tudo Sei dos temas o quanto são torturantes Tal a vida, tal a morte: e como é terrível esse ganido da palavra!

44


feito fotografia um pássaro que se diz joão sob as folhas verdes Mira um céu de fotografia na tela de um computador pela janela, o céu da noite encerra e prediz o dia porvir Valida a hora que se espraia como a sentir o pensamento deste quarto, as luzes a comprimir o tempo Ainda carecem de alegria, mas já se quedam em ondas

45


agosto chove enquanto Eu tateia na manhã ainda o escuro do quarto as palavras envoltas em papel jornal se protegem do pequeno frio lá fora, anônimos e solitários automóveis inauguram ondas sob os pneus e o vento faz rodopiar na manhã o doce papel verde da bala consumida a chuva alteia a voz em uníssono e soa metálica na varanda (...) quanto a se pensar e a dizer das coisas do dia se alteando quanto a se calar nesse percurso de olhar para a vida o sol de espreita e Eu não tem olhos para mirá-lo

46


quase Sísifo o monge tateia as ondas de um silêncio em solidão Quase uma clausura é este morno pensar em recolha de vazios ontem parecia luz o quarto dentro do dia Hoje se afigura a ausência destituída de sombras E o Anjo abraça o triste coração assim serão os dias Mas sob o olhar invisível do Pai ao Filho possa o monge repetir Dele a oração em forma de seu riso

47


a cicatriz na pele das horas faz-se leito ressecado o sal da lรกgrima

48


a pele de um massacre sem vítimas aparentes por que Eu anseia fugir deste agora, acovardando-se das luzes e das trevas havidas? por que Eu quer-se invisível a todos os sentidos e sentimentos, deslimites? por que Eu caminha, um caracol tonto, no labirinto das horas? a resposta na voz da vertigem é autêntica ficção: porque o incerto delírio já se erige nos ossos desse Eu combalido.

49


branca as flores gris contrastam com o verde das folhas e o azul do grande teto As roupas de esporte passam com seus corpos e colorem a manhĂŁ se abrindo As janelas se despem por detrĂĄs das cortinas e quase escondem o simulacro de urbano monge Os automĂłveis cumprem suas rotas E os pombos descoloridos brincam com as borboletas amarelas A vida ĂŠ assim neste domingo grave de solitude Branca

50


apenas Eu restou com seus fantasmas As mulheres se foram e o luar ressona na Gália e a noite esfria ao compasso do coração Alguns amanheceres estão por vir Até o sol dos dias poder novamente aquecer os muros do labirinto E que Eu por fim desista dos fantasmas E reste Apenas

51


[ ... ] perdi os barcos para o rio: já não sei se singram mares desde essa deriva mesmo que encalhem em promontórios perdi os barcos para sempre haveria de pensar ter valido a pena a correnteza ou, contra ela, deter-me à margem? em águas, o fluxo é reflexo e nele me repetir dirá o sonho, talvez seja delírio este ser

52


recolhas da erva no outro lado do paralelo o raio de luz desce à terra No raio de luz, Eu escala o cume e o outro lado O fio fluxo flana na encruzilhada No corpo, o planeta de outro reflexo Reflexo torto se dá ao limite Permanecer alinha só a sina Salvar-se não é salvar E viver é uma gente a perder-se Nesse passo, Eu não está mais a fim do planeta

53


Eu proclama diante do Outro, sombra neste alvorecer a palavra muda de hoje protesta Eclipsa Qual o sonho de verdade? Não vale aquele que se quer vencedor da vida, se ninguém sabe o que significa isto Qual o sentido das caras feias sem bons dias nas manhãs das ruas? Não vale andar mais rápido como se logo ali à frente o mundo estivesse por ruir Quem permitiu que a violência gerasse a violência? Não vale apostar em conceitos sociais por dentro dos gabinetes protegidos Por onde caminham os amigos? Não vale sentir-se abandonado pelo silêncio provocado Senhoras e senhores, a palavra muda apenas quer que encontremos os olhos, o senso, o coração e a sede de amar sem condições Antes que tudo se eclipse

54


apenas que seja uma nova manhã quinta de alma fria Chove lá fora O corpo de Cristo a tremer O passarinho trila sons do cerrado umedecido Um outro pássaro, de ferro, estronda na abóbada cinza O que pintar nessas paredes brancas? Um dromedário, sugestão de deserto e sol? Uma cruz, espelho do sacrifício na pela de uma distância? Se não, o andarilho persegue em círculos a vertigem no espaço de nada Até cair Até a nova manhã Não importa se fria Apenas que seja uma nova manhã

55


movimentos de Eu no corpo do domingo viciado Desacato de Eu entre partículas inertes do sistema O monge em agravos desperta Eu por detrás das cortinas se isola da rua da manhã Tapa os ouvidos para espantar o som dos automóveis Eu devora as migalhas do silêncio Tinge de nudez a bolha de si Os olhos deformam os limites do traçado das curvas Logo, invadirá o caos

56


por favor, não pensem que aqui declararei a saudade... Por favor, não me tentem a falar do tema repetido ad nauseam... Por favor, não invoquem a perda como impossibilidade... Por favor, não me façam replicar a infinita ausência. rogo apenas um silêncio devoto cativo incerto a vida é assim meio monstruosa misteriosa sempre e igual por favor, compreendam-me: seja aquele envolto no mistério ou aquele o inválido descrente Este sentir apenas amordaça um instante possível

57


do céu, da terra: pós imaginários

...ainda é o melhor e maior dos segredos

58


eme. esperem pela hora da morte. esperem. alguém se habilita a ela antes da hora? § nunca mais problemas depois da morte. viver, então, é um caminho para o melhor futuro. estamos sempre melhorando, até a plenitude do fim.

59


ene. nenhum dia é arrimo no abismo que somos. todos os dias são dias de nadas! § chegará o momento em que não será mais preciso pedir silêncio, porque não existirá mais voz nem audição. mais nada, mesmo! § o corpo em transe é o que nos resta. sem pé nem cabeça. § a minha liberdade não me deixa ver o voo em que me aprisiono, em fuga... § tanto tempo... o ócio desafia qualquer apelo: não fazer nada é mais que um sintoma, é uma exigência.

60


quê. que importa o sonho, se o milagre é o aborto da inconsciência?

61


epílogo, por fim

a pátria que me causa queima e acusa – apátrida a pátria é-me a escolha de uma letra que morre a pátria é o vínculo em mim sem vício a pátria me desfaz [ acossado ]

62


o pacto de Quasiontem

Dedico, intransitivamente.

63


tenho lido mais palavras que dez gerações e não chego às dálias vermelhas do jardim

Georg A. Schattenmann 64


o dono do prĂłlogo

a minha liberdade nĂŁo me deixa ver o voo em que me aprisiono, em fuga... 65


o dono do prólogo tentou poemas e viveu viveu viveu com garganta olhos fibras e delírios e engoliu goela abaixo a má temática de engenharias a fúria da combustão o degredo alquimista dos laboratórios de pouco mistério e deu-se ao corpo de faquir e sorriu quando pela primeira vez ficou louco e foi perseguido e sentiu o cano frio de uma metralhadora na cintura e aprendeu que a loucura é um sonho de criança e amou amou amou as unhas todas dos dedos roídos e fugiu pelo mundo no trem da morte direto à Santa Cruz de la Sierra pelos gigantes degraus apontando o relógio do sol de Machu Picchu pelos sapos gigantes do Titicaca pelo mojito pelo charuto perseguindo o paraíso de dentro de um Antonov 26 fugiu do êxtase de São Bernardo e do seio de Maria fugiu da Maria Joana na ponte metálica e amargamente adorada nas asas de um disco voador em plena BR-116 fugiu do velho totem e seu cão enorme numa floresta perdida de Kohlscheid fugiu da fome e do frio navalhado no hotel Corona de Lima fugiu do cemitério de Lommel fugiu do delírio ante os túmulos indecisos de Vasco da Gama e de Camões fugiu da Virgem Santa de Urkupiña rodeada de palhaços e metralhadoras fugiu 66


das visões do mosteiro medieval no céu de Jeri em desacordo com a barba rala de um falso Pedro II às margens de um rio de chá fugiu da dança dos esqueletos no centro da Estação da Luz fugiu de Almada de Bug de Buda do fogo-fátuo no meio do mato desbravado nas margens do Banabuiú fugiu do próprio fantasma deitado no chão de um quarto escuro num ermo do Ellery e por isso tentou instâncias: inquisições: escombros & sobrevivências

67


instâncias da invalidez

em algum lugar do mundo encontrarei a nuvem perdida por conta daquele olhar em sua direção. depois encontro você. 68


nacos

violaram o pacto diurno e o sonho se viu traĂ­do: este amor pressinto na madrugada ausente o absinto nesta noite de amor vazio.

libido no sonho, evito låbios: Rosa e ainda roço em teu nome!

um passo sem memĂłria cria o soturno aquilo do que restou de uma vez:

nacos

na dama de vermelho engoli minha verdade.

69


alguém

quando nesse alguém o que se move ainda é víscera

quando quem tarde se serve é pálido

quando o instinto a morte evita o que em vida ainda é sólido

quando nesse alguém a culpa arde

quando da sorte se presta o vício

quando da posse ainda o que vale apenas o pó seja

sei: o inválido me soa nesse alguém

70


caminho de volta

quem a luz segue fluorescente é luz que seduz

conduz girassol ou mariposa a vagar lumes sol a sós

quem rente a tanta luz é mais olhos que reluz toda luz no luxo fluxo ágil e mágico como blues seduz azuis

quem ente a ti ilumina zen a noite amora ao mar imã a lua azula

a luz da luz é ser em ter-te ao sul azul (se és alguém neste caminho 71


este naco ĂŠ de uma vez)

72


leitura para silêncio

mas ninguém ousa quatro vezes vezes vezes vezes sem sofrer impunemente a vida sem dizer cala cala cala e ninguém ousa quatro vezes vezes vezes vezes sem saber assim a vida impunemente é fim

(é norma sobreviver e ver que viver é tão capim! felizmente me iludia morrer morrer e morrer é estar em ti)

73


palavras recortadas sem cumplicidade

até uns poucos loucos girassóis assim alados ainda giram o sol

brio em nós

até uns quantos prantos vozes em silêncio na simples cidade

somos nós

até uns tantos enquanto dois nós atados na musa e cidade

estamos sós

(até que a madrugada ausente sonhe com esta vida tão capim!)

74


daguerre

mas no espaço da água a chama

meus olhos

na velocidade do silêncio o socorro no tempo da memória

seus olhos

a festa na altura do riso o dente na gravidade da veste a nudez na massa da sombra

ausências

o flácido da intensidade na luz

a fotografia

sem mais, o gesto

75


cinzas ao acaso

rente ao milênio a hora da pedra lacrada à chusma de folhas caídas de outono e sobre a cidade a formiga tonta e estranha vai rente ao milênio

na hora da pedra a solidão derrama em cinzas versos: contraído num acaso qualquer o vento agoniza em frestas desejos e a morte lapidada no instante sopra em areias

tácito o prazer formiga e não desalinha folhas tão breves do calendário

(tu ainda estás neste daguerreótipo)

76


unicórnio

o que habitas é um monstro: iceberg de medo: invisível no avesso caiu um naquele

– dia

dentro nenhum gemido foi cínico nessa imersão o monstro é

a felicidade

ainda que paire sobre o mito

77


bendito a lua me dissolveu desisti mesmo assim

ainda que a máquina de soldar o medo flore de uma pele: flandres em toda agonia é mais calar-se morrer

ainda que o minério bruto ao monte seja chuva quando se chora entulhos de já ter sido prenúncio

do sol ferido algo algo ainda soma ao destino de ter, ser-se aos entulhos concebidos

e ainda o que se apascente na vida seja resto ainda é gesto no que me sou banido

o que restou?

78


fortuna

se carregas a palavra sacra e ficas no rumor dessa sombra, morte ao cotidiano exercício

e se não te quero por amor te quero estilhaçar a sombra sobre o ombro que a veste se quer ultraje

e se te resignas pela gana de viver serás única por desígnios ultimada

por isso beijo-te anônima e teu ocaso me consumirá a sorte

79


pranto

a pedra é pranto memória fossilizada de outrora lágrimas a pedra é silêncio frente à cena do espanto

nostalgia da água a pedra não se masca templo de todos os rudes ou fortaleza dos medos

a pedra são prisões de qualquer homem sem grito desse é o destino do pó a solidão de ostra pedra tão preciosa

(serás a minha fortuna)

80


ácido

se o ácido alimento das nuvens me corrói quando agora delas bebo o chumbo que se é cor sobre o azul azula o céu

se pensar que devo a brahman ao tao esse nada de sobreviver ou desistir em raiz no inteiro vácuo do olho no centro onde não me atinjo penso

se cabe na língua a pestana e o silêncio na despedida do trovão o chão por esses dias de areia e só findo e dá-se o pássaro por bicar o invisível

sei agora se esse mistério por onde os olhos de voejar chorarão

81


mágico

olhos catam o naufrágio de um bêbado em canoa de gim um proscrito de astro pela voz de babel

ombros murchos no rabisco: prosas em papelão, talho de cega lâmina, a memória, olho o deserto na ampulheta ávida, areia metáfora inútil, o homem dá-se com a terra, o verme nele serpenteia, e a lua por um fio que se raia, teia pela esquina a grande aranha

ressonante em fímbrias, o cortejo em seu corpo de tal o trôpego em desuso sonha-se o mágico

82


gnomo

mas no vulgar pretérito de salvar morcegos e amar este inferno sou rapina de angústia e folia em pinheiro sem resinas num caule de rústica aflição estou húmus em floresta de carne

a matriz da solidão está nas vísceras do amor

mas se uma fera de deus nas entranhas encontro entre nuvens e o véu despido dádiva de tudo árvore e diáspora tatuadas no coração escolho o útero para ser eterno e pertencer ao lugar de plástico na face maquiada

do clown secreto vazio onde gnomo

(mágico e ácido)

83


alinhavo

aquilo que insiste na cara pela sua grandeza bem ou mal se franze e óbvio e descortinado nos mágicos o pensamento é mais ágil e o homem que passa com os seus sustentáculos oculares insiste na captura do mito em fúria e em expansão se desfia ao abrir a escrita de sua lógica – não se injeta vida pela veia do pulso sedutor do imprevisível tudo o que passa é colapso – e o rapto do poema é a paga sem desejo e é a pele do coração roído ou doloroso quando em ser tal como um símbolo vadio ao delírio destino é a rota desprotegida nas entrelinhas da razão

84


balada da inocência perdida, i

tenho das balas atiradas contra o sábio o esboço das trajetórias a pólvora alvoroçada pelo indicador iconoclasta a súbita inglória teu fígado mastigo de abutre tu, assassina, a que me prometeste a palavra roubaste-a para quê? de que te serve esse fel se não percebes o açúcar dos delírios?

foges agora de mim o rumor da sombra te oculta saúda-te embora invisível o teu fim te vejo parábola dos projetos asfixiados com a tatuagem na íris sonho peso das balas estampidas contra ti ave, sorte! ave morta! profano-te

85


balada da inocência perdida, ii

um corte todo olho em sangue e abuso do teu seio não esqueço o sol eclipsado de virgem a fúria do receio e do fogo e pó nas asas de borboleta

me vigio entre a figa e a sorte um segredo é a metamorfose de uma lâmina em desuso pelos em teu lençol bordado com a honra da morte será amor o que amordaço de gemido?

desgraçaste o anjo com teu púbis voraz semente a culpa resta a pira incandescente deu-se a palavra a um deus

silencioso: selaste os vazios com os fios de adaga

86


primeira lição do abutre

nada mais vi ver-t’imóvel

este alma te possui nada mais vês entrego-te para chamá-los estes

pó de gêmeos almas dentre entrego-t’estes olhos

sobras

87


segunda lição do abutre

carrego a mancha do sangue no olho e vi não a morte ou o instante da definição ou o seco e abafado ruído no chão ou a curiosidade infinita do homem

vi o morto

não o orifício a mala da bala o escarlate convexo do coágulo na margem do corpo foi um dois de um de dois

o fim daquele

foram vários e mais o sofrimento fui e ainda não era o que nem sei o que sou carregando esta mancha do sangue

no olho

88


quem

quem me quer – para isso – me quer bem quem me sente

quem me consome quem me é dolente quer

que me tente bem que me quer quem me consente

quem sempre sente quer-me também

bem me envolve ente quem me faz de repente

inocente e perdido neste alinhavo de um voo

para isso – abutre

89


piazzola

se gosto de funerais gosto com o meu amor

gosto de funerais à lua que sobra deles

no peito sei que temes os sons que te rodeiam

às margens das marcas o bandoneon

mas infeliz essa dor:

se gosto de funerais a morte da fanfarra dos obesos

é a alegoria da alegria e o que sobra em meu peito

é amor um funeral se gosto e não basto enquanto é tarde

deito-me sob a terra se gosto de funerais 90


(por fim)

91


escola da morte - a experiência destrutiva

primeiro foi o vazio e minha mártir-mãe ainda sofre e chora, vendo-me sangrar pelos olhos. louco, a escrever, arrancando a goela para não salvar a humanidade... uma pulsão. e eu repito de ti: Pedro, "na minha bagagem de morto, não irei!”

então dou primeiro passo:

a noite esquina de velório cena de fendas o que reluz

(vê o poeta a luz no fosso, mas a alma proscrita impede tenciona o poeta dizer que a noite é trágica - dirá a morte anda pelas esquinas é isso que exprime o que se tenta o que não se explica é poesia)

de pronto:

a espera passos no precipício cenas de espreita o que seduz

(d'espera o poeta vê o quê nenhuns as sombras e o que dizem é silêncio um assassino é sempre! o que não se explica é poesia) 92


último passo:

alquimia catálise cena dos vapores o que EXPLODE

FIM

o trágico não trai desde primeiro passo

(o limite é a morte do poeta quando não a morte da poesia em quem o que se desfaz não é o espaço ou a vida o que não se explica ainda é poesia)

na noite

93


antes do fim, inquisições...

o maior sábio é o que explora a própria ignorância e se apaixona por ela. 94


ativos descobridores da panaceia literária, ou delas cobaias, o aprendizado pela palavra é a busca eterna e infinda da perfeição. criadores e criaturas somos os seres mais imperfeitos. relato essas insinuações, apenas para fragmentar o maisque-imperfeito

*

...e escrevemos quase sempre em miúdo por que miúdas são as origens. mas, sobretudo, porque assim é neste lugar

*

poesia não é só uma tragédia

*

poeta é quem engole luz e se bronha.

*

estamos na idade do fragmento. era nociva ou denunciante. isto é um recomeço

*

é saboroso não chegar ao fim. de onde vem o começo? aonde leva o fim?

*

95


se as estruturas são rígidas ou frouxas como na aleatoriedade da vida, cabe a cada um escolher a sua forma de (im)perfeição. realidade e virtualidade simbolizam apenas: que é mais real, o homem ou a sua representação? que é mais virtual: a perfeição ou a impureza de ser?

*

a literatura é a disciplina comum de todas as coisas. e a melhor maneira de esfregar o nosso cérebro é sofrê-lo no dos outros...

*

e palavra, por mais especial que seja, é sempre um punhal que nos busca o coração como alvo, enquanto somos cúmplices

*

pergunto. em qual pássaro voo azul; a noite é um cão rosnando; das janelas, os edifícios estão em seus quadradinhos abafados; o céu enegrecido abocanha estrelas; e a vida é um osso ancestral prestes a romper? em saudade legítima, isso são presságios de guerra e sabedoria. mas em rosto de tristeza não cabe só um dilúvio. há outras certezas. digo. meu medo é o de escolher um paraíso falsificado. se descobrir, algum dia, certamente terei vencido a melancolia dos espaços vazios.

*

acalentamos o sacrifício por uma dose de clarividência. o que buscamos é a novidade? a intromissão da glória? uma estética? o espírito que nos emudece se derrete em chumbos... 96


possivelmente, desconfiamos de quaisquer parâmetros cartesianos na (i)lógica poética. mesmo abstraindo-nos de todas as convenções, sequer alcançamos o teor sagrado do espírito que borbulha, que ousa ramificar nervosamente a servidão da nossa mente. a natureza humana é pródiga na incerteza. esse é o precipício da escritura. e a razão desse escrutínio de entranhas se estabelece muito anteriormente à própria ação. o que se passa em certas linhas invisíveis, só alguns percebem. porque não há mais que uns a resistir nesse universo milimétrico do imaginário. outros são apenas os que descobrem os instintos, as obviedades, os anelídeos do jardim... a vocação do pássaro não está na gênese do voo, mas no bicar da casca do ovo.

*

há que se considerar o fragmento como o aperitivo que precede as grandes transpirações. insólito, o fragmento aniquila a unidade comum apropriada pelo senso. em contrapartida, elastece o imaginário, e as concepções se desvinculam da cadeia formal do pensamento. a liberdade é uma frase mantida em sua própria consistência. essa abertura de infinito é que pode/deve negar, ou não, as estruturas de uma vida. o fragmento, pois, é a unidade simbólica do processo da inteligência, onde vivemos exilados. o que se escreve é um contrassenso diante de uma tumultuada ilusão. isto garante uma efemeridade ou o desabrigo da imortalidade. um relato, talvez. ou a ausência de palavras que se despedaçam oníricas.

bendito é o lugar onde não somos...

*

97


jamais haveria agonia poética, caso a natureza humana fosse exemplarmente reconhecida pelo poder memorial de seus escolhidos. conhecer e recriar sem limites o óbvio é a melhor forma de descobrir o ninho dos dragões ou de perpetuar o estreluzir após seu autoapocalipse ou de repassar a sagração dos antigos sinos da catedral de todas as emoções universais. escolher a fortuna da poesia é debulhar o acaso. é nessa esfera que a ausência invalida a exatidão. por isso mesmo é que investir nos segredos é perpetuar a própria vida naquilo que se repete cotidianamente. revelar é reinventar a natureza e suas obviedades...

* o destino reconhece que o homem vive suas circunstâncias entre o afogamento neurótico da busca e o deslumbramento delirante da lua sob os pés. em ambos os casos, os motivos são paradoxalmente suficientes para transformarem qualquer vida em resquícios. o meio termo de uma existência apenas transpira em eventualidades. atento, ponho-me no equilíbrio de um salto. e o que represento ou admito representar é o júbilo do pretérito; é o misterioso segredo do acaso; a corda de náilon azul do insucesso; a pedra milenar... as visões que escolho são possibilidades de voo diante do abismo perseguido.

*

porque ninguém foi chamado a entender da criação; porque ninguém deve se desesperar ante a causa aflita da incompreensão do mundo e de suas idiossincrasias; porque tudo estará resolvido independentemente do programado apocalipse... porque desconhecer é a prática viva da descoberta, a tarefa de nosso tempo é abusar da linguagem, é lançar a enigmática garrafa de s.o.s. no oceano igual ao azul e à profundeza, é desordenar o senso comum, em benefício de todas as dúvidas. diante de uma hecatombe, o compromisso de babel. a intenção de um arauto, antes de gargalhar frente à vítima arrependida. 98


é esconder a lâmina da arma na carne do anjo da guarda. assim seja o irracional!

*

entre a vida e a morte, o fragmento do tempo. uma folha dá-se ao mormaço da solidão em alvoroço. este sacrifício contínuo de palavras e imagens regam pomares de acaso. relato: o grande tempo... até que a oscilação do pêndulo dê-se ao enguiço das engrenagens... quando será que todos os segredos se proclamarão? quando um oceano aliviar a sede? desistir o deserto de suas miragens? fugir o fogo das águas? ser eterno é muito longo, sem repouso. convém aos cucos emudecerem.

*

...pois a vida se calibra com a morte.

*

uma linha a mais nas mãos de cada dia, enquanto a noite não destoa de suas estrelas. mesmo com esse palco desarmado, a vida é uma vítima sublime. quem desconhece o lugar? quem não é uma frenética aparição com dúvidas eternas? a marca desses poderes é uma pedra verde. não somos mais que humanos. há kryptonitas em nossas algemas. apesar de tudo.

* 99


a reflexão é a empresa do mistério. a algaravia do silêncio. a esperança é o corte no primeiro umbigo. o modelo especular da divindade ante a descrença e a possibilidade do voo diante do abismo. como corromper a ordem das divindades? a minha gana é de silêncio enfeitado como um duende nômade e perverso... a tua presença me desfaz de árvores. o que pode acontecer quando a mortalha do corpo se despede e acorda a imortalidade do espírito. essa melodia do diabo amoroso... de eras o refúgio no torso do vácuo... o espelho de olhos obtusos: o amor selva dos galhos e mar onde se findam os afetos de fato... na hora do eterno a confissão do réu por supor o abcesso ou decerto o segredo.

*

não existe conflito: o belo é um diamante perdido. se há ilusão de encontrá-lo, o desejo representa a verdade mais íntima. o que está inscrito na caverna mais abissal. o amor é uma estrela de ficção, um lume emprestado. afinal, tudo não é ficção, até a nossa súbita morte? todas as visões atingem o improvável do belo e do amor. conto isso, para desafiar o célebre e o obscuro. reconto o próprio conflito...

*

ainda relato: cansei das mortes premeditadas pelos deuses. o azedo ou o mel não são apenas obstáculos passageiros à viagem ao zinco final dos futuros. como uma flor na pele, descobri a necessidade do breu na faísca dos seixos. agora, só preciso escolher o elemento vital das vertigens para tornar-me abismo...

*

100


o invisível crepita. que outra afirmação permite-se diante de rumores? há um mercado de sombras em burburinho dentro de cada nós. e jamais poderemos expulsar essas sombras. um dia, seremos parte dessa multidão. e a perda da inocência reviverá o prazer nessa cópula com o inusitado. qual desses dias, o justo?

*

todo homem devia colecionar ninhos vazios. neles, sacrificados pelo abandono, revela-se o aprendizado do voo. a primeira queda, a glória. assim como o silêncio interrompido pela visão, ninhos vazios recuperam a inocência dos segredos. é quando se descobre que o destino é suave e voa, corpo seguro que inventa precipícios...

101


epílogo sem triunfo, sem futuro

no livro, o fim não fora tão forte quanto a realidade. o louco chorou naquele dia. para ele, seu delírio estava morto.

102


desisto. há poesia na poeira. por mim, renuncio a fala. prego o corpo na água que nunca escorre da goteira. banho de mim como castigo, banho de fogo. estas entranhas desmentem. por pouco, um perdão.

por esse poema ancestral travado na última vértebra e que lá esteja para sempre. que nunca mais saia antes de asa. fique lá. pelo menos uma esperança anuncie ao poeta. chega de ânsia. os gritos soam mesmo entre brechas. perdão. pena. aquele nada de onde irrompiam a fúria e a firula anunciam o primeiro fim.

sou eu quero assim. basta de vida! por que tamanha imprecisão? quero um poema, simplesmente um poema sem nadas precisos. um poema descontente com a virtude de qualquer poeta. um simplinho. só. mas dificílimo cortar esse acabo de aço. onde a lâmina, meu deus? no ranço pensado ou na quasitura das coisas improváveis? 103


na mentira ou no vesúvio da lavra? no corpo ou no torto ou no morto? dificílimo sem o seio em minha mão. ou assim desisto? há tanto tempo amordaço a luz! como escapar da sombra que só sobra? meto um poema no bolso. falo dele. meto o poema muito longe de mim e de ti. e entre nós os cegos. entender é parcial: satanás roubando porcos do abismo.

se tu andas por aí, como desencontrar-me? peso que não sou poeta, só ético, antitético. tu me dizes para não desistir. e eu não sei de quê.

Quasiontem saiu por um lado e desistiu. hoje está aqui. perplexo ante as janelas tantas que o céu emoldura edificante. criança, repito frações, mas não são as mesmas de Quasiontem. ele tem em mim o delírio. eu nele o lírio em nada lírico. por isso insisto: não sou fácil ser ágil.

e por não poder menos que desistir, o poema se é suicida. pele de poeta em mim a reboque. finda. 104


e eu que quis fazer valer a história me engasgo de palavras. só consigo a convulsão mal dita de uma desistência.

nem errar eu sei.

105


umbigo de ebderelis

106


Aos poetas Floriano Martins, Pedro Henrique Saraiva LeĂŁo e JosĂŠ Alcides Pinto (in memoriam).

107


palavra crua aqui reúno vísceras. não gozo ânsias. são tantas inserções, que o deserto é apenas uma matéria para delírios ou a pele depilada do umbigo do mundo.

se ouso interferir com essas palavras a grande náusea, a impotência diante do sacrifício, estou servindo apenas como reprodutor da grande voz do Tempo.

pensei em esconder na gruta do silêncio essas algaravias. se não o fiz, foi por mais uma desobediência, tão própria da ancestralidade que carrego.

finjo que maculo o próprio coração com a maldade da palavra; sei, no entanto, que apenas finjo engolir estrelas para não salvar a humanidade.

A. de Ebderelis

108


capítulos da coisa incorpórea

Aqui premedito a minha essência tirana. Jörg Rotberg 109


princípio Dá-me o amor qualquer lapso de martírio e de esplendor e com essas palavras a carne líquida te deleita sobre um corpo em mim de retalhos.

Espero tocar-te lépida ilusão quando és o sacrifício da planície dentro de nenhum abismo e te adoto recolha de fantasia

ou o quanto vale de amálgama entre o silêncio íntimo de vértebras pois seio em mim infeliz nunca te tenho feito água na garganta. ... És meu pesadelo fruto de um paraíso desencantado ou assim seria a morte roubando açúcares de asas em liberdade.

Para te amar soprei um hálito de pinho e restaurei o segredo dos dedos ao te tocar a carne (se o silêncio é

uma carne de nada). A morte me distraiu com palavras de alguma vida - sílabas ofídicas e cristais do inferno.

110


primeira confirmação

Há horas de nascer nesse tempo parido de veneno ensopando novos destinos... Dizes: a vida é sempre terna e meu deus sem passaporte, o tímido que nunca vês.

E te respondo só vida não é a eternidade e me espancas com a renúncia do ser descoberto. A hora te traspassa. Piolhos de máquinas obsoletas. Tu te manifestas...

A cara de soluço de um anjo tingido pelo hábito das palavras. Ainda não és quem pode morrer. E resistes na tarde.

Te escondes dentro de teu deus. Uma fúria sagrada arte em teu ventre. Almas violadas somos o esboço da mentira divina.

segunda confirmação

Eis o exemplo: a escolha dos homens primeiros, uma leviana tentação. Qual de nós retém a certeza ao extrair pérolas da impiedosa filosofia? Uma negra virtude das entranhas...

Existem uns seios à mostra ante o teu deus e ele não participa da nossa sensação, ou o que venera é tão sublime que impossível é a carne.

111


Amar é uma cerimônia parecida com a gula ou a vergonha de extrair cinzas das labaredas de um amanhecer.

terceira confirmação

Desse, o encanto dos sonhos quadrados, a diretriz dos volumes e a necessidade de estar prenhe de luz. Pela magia das cores, pelas orgias das vítimas os nossos desejos.

Tu, que instigas os arcabouços e a agonia dos homens, serás a pérola perdida. Se deus desistisse da solidão, com que encantos romperia o instinto? De pesadelos e guardiães?

És tamanha sombra quanto a incerteza de toda a existência. Entre os pergaminhos mais raros te escondes, no segredo da nossa inviolável paixão. Tu és a sombra maldita que me repele por nunca te alcançar.

quarta confirmação

Nunca! Esta palavra devoradora de infinitos, um soluço eterno de nenhum acaso, o que resta de uma pálida linguagem de cera? O último vestígio? Que não seja um jamais de espera o alimento da solidão rendido

Ao mais intenso desejo de experimentar a coragem ou a covardia suprema da morte. 112


La vida no vale nada se existo e logo sou contrário ao que dela resta. Nada.

última confirmação

O ventre resiste ao fruto. Nunca estivemos tão paridos de vazios! Remodelo a minha cara com cicatrizes. Gesto por jamais.

– Oh! vocábulo de eterna labareda – ter conseguido te moldar neste barro sem vida... Agora reacendo o intestino dos vulcões com a minha ira construída

nos cadafalsos do paraíso. E, por amar estes diabos invisíveis, amei apenas o delírio.

Ou a morte.

epílogo

Grávida lógica dos conflitos de deus, o ardor de tua palavra sagrada de desejos:

te amar semeia de fantasmas o labirinto.

113


fragmentos do assassino

do outro lado o ponto negro da mĂŁo espelha a mancha do crime Georg Schattenmann 114


...1 entro no labirinto da história rendido em soluço e nunca mais quero esse vermelho sabor de veneno acariciado em profana pélvis – momento de agora é senhora que ora pro nobis ...2 vermelho respinga pela sala quarto vadio espanto é apenas uma toalha pendurada no cabide esse ritmo primeiro ato da vertigem: dentro o espantalho da ilusão resta hoje o que há por hoje nunca é tarde demais para um mistério agora é agora: o sol no rosto a veste vazia o silêncio entre lábios e frágil a conclusão de uma dor perdendo o fôlego. ...3 o adereço da lástima a implosão do sacrifício e a dor: o quarto esmaga a formiga que sacode a pata que jogo sobre mim

115


...4 a sorte escolhe envolver-me prenhe de ânsia suspiro e repouso a língua por baixo da mina vida agourando o sucesso enlaço a dobra de um silêncio respeito: o salitre da parede o ocaso dos maribondos a perplexidade da fantasia diante de um vulcão dentro de ti escondo meu sangue pedaço desconstruído de mim sob a impossibilidade do acaso ...5 em andrajos a veste vazia da alma em espasmos o pavor os olhos: desisto da sombra do espelho refeito nesse monstro por tentativa ...6 por vezes descubro a mentira do mito outro acaso de esconder o brilhante entre as pernas enquanto o vaga-lume vigia a noite e dentro dela o pecado é remorso consumado ...7 te mato criança de nunca te mato antes de te adorar o sacrifício te mato para nunca continuar insistindo sempre te mato prevenindo ausência de uma dor 116


não consentida ...8 a blusa no armário um rosto amarrotado esta hora de epifania descubram-se olhos por toda a parte estou vestido para medo quem deveria afugentou-se por entranhas de martírio e longe veste-se de punhal antes das costas e dentro o resguardo e a mágoa ...9 sabes por quanto beijo teu corpo? sabes em que horas amo tua vida? sabes quando sonho antes de sofrer? criança em fuga para desfiladeiro de azuis espanto de minhas horas hoje recebo escuros de caverna e morcegos rendidos de solidão não quero o teu perdão, criança, deixa que a estrada acalente seus bichos invisíveis e comigo a dor seja espanto deixa-me, criança, sem que fujas para sempre aonde não exista memória. pois assim construo o inferno ...10 tenho a cidade dentro das luzes do sol objeto simples de consolo e a veia inflamada rei dos martírios sofro a palidez de uma mulher não te consentes mais o passo ereto e os olhos de mercúrio onde deixaste os apetrechos do capricho? foste cúmplice: 117


bebeste o veneno malograste a vida que mais temes agora senão o olho invicto da luz? ...11 viajante do esmo na cidade essa prisão a céu aberto onde o sangue é tão gelado que não alcança a face por detrás dela ferida como oferecer o crime à lei se não repetindo o diabo? ...12 alfinetes despedaçam o sono o grilo em algum lugar a noite inteira ela vive ainda ao lado do diabo uma palavra para fruto de carne indesejada a pele deserta, o macio, e contrai desejos a vez é de morrer também ...13 alegoria e o homem desprega a lei do rosto a face desfigurada, alma dela aflita por detrás o copo de chá vazio sobre a escrivaninha evola o silêncio e um incenso se esvai prestes ao pó vê-se, ele, ao chão estendido e molusco e a luz desalinha os cabelos dela maria plena de seios, escurecendo ela estende a mão a ninguém no avesso sobressalto da vida interrompida: que a rua devolva o céu da catástrofe! por que não mais é pálido o olhar de mateus? deus esconde-se antes de voltar quem o reconhecerá? mateus não mais responde. 118


é a lei maria, arrependida, detém-se sobre o corpo e cavalga-o sem ansiedade. ali será para sempre ...14 boustrophedon e este é o boi que serpenteia arando a terra o homem que por uma prenda a glória expele que sabem desta vida tais seres de deus ditos por mal e bem a espalhar por primeiro ao silêncio o seu pânico? que sabem eles quando mugem ao mundo o desespero co’a trêmula lida enfraquecida? um boi volteia arando a terra sem fim e descomeço ao homem resta aniquilá-lo como sempre reprimido quis-se ...15 das palavras que antecipam a morte escuto a sátira do homem solitário está perdido entre as curvas da letra obcecado pelo estrídulo do vazio preciso que fazer? ouvir da própria voz a agonia ou a exaltação de schiller? arejar o coração com a nulidade do pensamento ou mergulhar na impossibilidade desse nada pensar? encontro o homem aborrecido, engolindo o vento o bobo, sem vida, quer saber mais que seu próprio poder impossível que sustenta essa ausência prolongada ...16 fosse minúsculo, ali seria a caverna e outros bichos 119


os que habitariam esse lugar se a traça existisse seria eterno entre vida e morte, cajado e abismo. homem, porém, são muitos esses abismos, e não mais que furos e provações de um acaso em destruição e tão próxima é a semelhança entre nós: o gigante e a distante que em nada a outros seremos homúnculos de cavernas ou apenas bichos delirantes que a ela retornam. ...17 mancha inválida espelho derivada de mim a sombra desde o coito dos relâmpagos apascento a febre com a agulha na pústula entre o rosário e a agonia válida é a cruz de porcelana no umbigo marcando na pele sob o sol apenas o desejo de matar a morte que se sacia no fogo da sombra ausente ...18 inteiro assassino vejo em mim o corpo soterrado do milagre desterro o pecado obra limite da absolvição e sem meu deus resisto morrendo em mim apascento o crime do mundo inteiro assassino em que corpo meu rosto detona a fantasia? em que corpo estou usando a morte? tomei nas mãos o seio efervescente a glória de deus tomou-o de capricho sem sacrifício em teimoso celeiro vivo morrendo 120


o coração na vagina, denso em brasa dos delitos. pouco é o segredo, o que falta, o laço da alegoria a mordaça e o gemido desabrochado nas entranhas ...19 salva a palavra, amara: no mais que passado da memória a fala e, se atara à marca dessa a última letra, a ignara porque jamais era o que havia e não ousara, às claras a felicidade era uma hera e nessa cara a minha tara que nunca, por mais que tentara na hora se abafara ...20 há o grito: garanto o sonho dentro de cada nó há a morte: deslustro a vida de quem a vive há o desejo: sucumbo com a morte da sorte. há a última palavra: desisto de existir sem silêncio ...21 é enquanto ferra o ferro na mancha da pele o obscuro de dor e interfere o som de vazios havido na palavra não dita enquanto a estrada é entranha e o som não mais que um nunca 121


...22 criança sem vida para sempre: guardo-te comigo perdida onde não pude viver-te. guardo-te para desmorrer em mim segredo que te perpetua guardo-te com zelo fendida no risco da porcelana. guardo-te para a morte por dentro atada e frågil 23... nosso fim

122


serpente com fendas

quantas vezes amar é solidão... Jeronymo Ávila 123


nessa'lva a hora mito do meu tempo de serpente

canto e o motor resvala o seu gás nocivo e o osso do avatar se poreja e enquanto postas as mãos sobre o peito o valente poeta educa sua dor – lago e logo o monstro caduca a sua infância enternecida

canto este silêncio de tua ira por nenhum deus e esta chave da entranha vaginal auxílio viscoso de sangue a tempos

tenho horas em que canto a fruta das brechas nos monturos e a proibida saliência de um púbis enquanto sorrio perverso de desejos (e a sós mergulho no âmbito e anônimo)

estás escondida na saliva úmida no entanto e por isso

canto quero o manto, cobrir-te em mim essa fogueira país das gralhas, onde ruído e o medonho e o que exponho canto quero abafar-te embora ao nervo exposto à dor ninguém te é sombra maior que o medo quero o rouxinol, a mancha de uma sonoridade viva 124


eterna e gázea, entre as mãos a fronte grávida mas só por não podê-la querer-te é assim, um canto de memória presentemente eterno estás aqui o corpo te participo (embora dele um jamais fui tido) o teu seio a tua flor a tua anjura diabólica

oh querida minha sobre todos os agravos e pelejas e sacrifícios carne que te expõe virgem nunca mais de meus dias onde morrer o coração de morte e pulsante vai ouvindo teu passado e silêncio do pântano atos no que nele és escombros de passado e vertigem

estás aqui em todos os ecos alvura de gemidos braços genitais centúrias de agravo

oh infantil desafiante entre as prendas da volúpia e palavra de nenhum sobejo entre as pernas tuas o mar mais negro e o abismo de um monstro o maior do maior perigo de amor que alço e amargo como fel do que já não ouso por deixar-te à nua roubas-me de mim escravo o mudo ao derredor

125


beijo o visgo do medo minhas mãos de roubar roubam poros túrgidos a face – felina a ofegante – a rija pena mais invisível pelugem o lábiolábil pedinte uma ressequidura túmida a cova do arrepio o medo beijei

(andamos por essas paredes maciças, o corpo horizontal, um sobre o dorso ou dois bichos que pensando somos luas grávidas entre um assobio e a serenata uivosa de um lobo e percorremos nos espantos um dois gemidos e suamos e folheamos todas as palavras ígneas com o sangue em borbulhas e o coração latejando de amplidão um ferro um fogo uma vertigem e um suspiro)

língua é o canhão bombardeante em tua palavra de silêncio contra a correnteza singular de ouro em penugem contra o rocio dela selva e abismo contra o âmbar da metáfora mais voluptuosa das fendas oh o silvo no que te transformaste serpente a me devolver o néctar de uma sagrada peçonha enrodilhada a escrava da contorção num grito de münch para dentro daquele mais dentro cósmico e umbilical desespero a teta loba me é avara quando a distância é silêncio quando o milagre é proibido a teta loba me é avara

destevejo dentro de nós desmevejo

(fortaleza conduzida em procissão pelo traçado de tuas esquinas um braço aqui outro ali essa distância de um mar pelo olho direito um comprido pela galáxia daqui àquela aldebarã estás diante da ponta desse compasso pelo estreito pelo 126


triângulo pela saliência os edifícios engolem os sons de meusteus gemidos e soluços)

mulher cavalgada no mar com feitiço cavala-marinha serei a tua pele por aí pelas pedras, por onde andaste, por aí? no fim de onde se finca o lago a fonte a nervura do cordão o umbigo dessa teia dorso ar?

destevejo dentro de nós desmevejo

pelo sinal da cruz em teu peito os sinais milhares que eu beijo sob a tua febre pelo caminho obscuro dos labirintos de schoonemborch ou rente aos martírios das almas aprisionadas nas catacumbas salitradas do quadrilátero final no chão de porangaba

louvai pelo nosso pecado!

pela corrida pelos céus de um abril de mil águas na vida ensopada e o rijo do cérebro confuso no alfinetar de teus mamilos nas costas de adão dentro das curvas e perigos de um rio que chora a ingratidão como o gozo 127


por último no fim da rua nunca mais

louvai pelo nosso pecado!

pelo dente adormecido sobre a tua vulva e o sabor de mel no alvoroço dos cabelos de terror entre as paredes de sangue e esperma correndo pelos altares do alto de santa terezinha ao fim do novo mundo ao largo passo de uma avenida do inferno

louvai pelo nosso pecado! oro e choro osso e gozo o alçapão no ângulo do teu infinito pouso morrer a glória

amai o vosso pecado!

128


nunquidĂŁo (amor te nego)

com quantos medos se dĂĄ uma coragem? Sandro Dalpino 129


Antes do seu amor era o princípio um verbo sem nexo. Cordilheira devassada pelos faquires de botinas. Antes do seu amor o diabo cozia sal sem nabos.

Vez única não te possuí, mulher encantada de suores, entre os garranchos da indiscutível memória dos anões. E engoli a garganta de deus entre um sobressalto congelado.

Eras a negra. A pasta da melhor carne dos delírios. Ou se te pudesses reconhecer, a hemorragia dos instintos. Ruidosa febre entre lençóis de estrelas e asas de um destino.

I

A carta Uma denúncia dos ventos foi a possibilidade do vício O desejo de sobrevir Ser traído Por ti um amor – ar / prazeres – o ter poder A letra Purpurina das algas Reconheci as entranhas dos pelos Alvo portal do penúltimo sonho A catedral Catarina Rima dorsal A sorte Contração de absurdos destruiu a fome Hansum Nocaute Nunca o quanto que se esvai e finca Passiva ao espadachim se arrebata II Vida em uma cor sem espectro. O amoroso tem a gula das águias. Em tua pele a noite varre os espelhos do meu rosto sem cicatrizes risíveis. Sob as tuas penas o espanto de gauleses ante a terra fogo e luxuriosa panaplo ancestral. Tenho esses relatos em voz de silêncio. Precipício de nenhum lugar no quarto escuro de tua janela fecunda a cor no espírito dos anjos. Agora que as roupas se desvanecem neste hálito de aço e morango o hábil dessa sorte entrecruza os solares dos meus desencantos... 130


III Andei já por luas. Dunas e futuras combinações. Queria fugir da sempreviva desluz que te acompanha. Maleito-me. O frio mais profundo nas rugas da mão. O lábio ávido dos grilos tiritando no gelo grávido dentro do mais dentro dos abismos. Em mente e meia a minha confusa. E por estar-se a se desfazer o senso, negra é a cor me aprisionando. Até não mais a fuga se eternar. IV Estou pálido de horas. Amo-te esgrima de uma farsa touché A que me comprimes entre as transfusões sonoras Quarto assoalho com passos de elefantes e trêmulos de trem Embora despida estejas perante o altar reverso da luxúria Um trago em mim que Em mim trago da luxúria Estou hábito de horas Armo-te com o retoque de oferendas No quarto despido roubas a sombra trêmula se te me oferto O que passa por mim tem a memória ferina do pavor Isso me comprime e ao sangue o tremor do gelo com paixão V Clandestino. A força dos espasmos entoando salmos. A negra fortaleza desacorrenta o diabólico portal. A passagem entre as tuas pernas só brio de prazer se jamais fora verdadeira a vida. Impune é o silêncio. Tato faz o grito na ordem das menarcas. O sol da tragédia – Ícaro de cera – pigmenta o pesadelo. Clandestino. Nua sultana agourando meu sexo. VI Os olhos atingem o calidoscópio Os fantasmas desabitam a luz Nenhum milagre irá rondar peixes Iscariotes amanhece sobrado de vinha Tumulto 131


Mascarado destino o alçam voláteis sonhos A minha cara nesgar de outra fantasia O me resta se nega de súbita flor brochada Negra a megera laça Se doma ao ser Amor teço VII As pálpebras da divina melodia no desvão da lama interrompe a alma de sua oração. O pássaro incolor rouxinopia. Ele desexiste. É a lâmina do assobio. O último que anuncia. Quando serei a coragem da ausência dentro de ti. Me em mim. O assalto do escombro na tua sombra infalível. Eu que te alvoroço e tu não te resistes. Ameaça-me enquanto te espreito e atropelo. Nunca. A nunquidão da tua suprema presença ao me embalsamar de ininterrupto coito. O que me aproximo de ti será esperança? A fuligem dos caídos? Ainda a fresta de uma colheita? Tu, mulher, pássara, passará, lúcida e corvo, corvalho, abro-te sésama e vou? VIII Já mirei a ousadia de um salto A vertigem O vagalhão de nada Cachoeira de vazios A vaca perplexa na silhueta do sol O cerebelo engravidado pelo êxtase infame Já mirei

Calígula no vácuo de um dromedário

IX

Armou-se de amor a princesa de água. Abriu-me os braços. Molhou-me de seios. Acariciei aquela farta abundância de abissal estupor. Bebi-a. O amor se umedece à secura dos infames. Amei. Pertenci a qualquer reino. Namor doce. 132


Um turbilhão. Garranchos de mim fendi fendas. A dor na mente. Deste-me o vazio do fôlego em teu galope. Golpe. Mas só te amei, princesa, por não saber te amar. E deslizei os olhos de peixe denso sem saber por quem o anzol a traía.

X

De Vênus o delta Retalho de Dioniso Ágora de corpos inconclusos Saudade é quase morrer pensando Coxas de macias tuas Fronde do espasmo A pálida linguagem dos médios Medo que suporta um grilhão

Longe de tão infinito O amor pela lâmina Espinhos de aço pelos prantos Pensar é quase morrer voando

XI

Foi o último dele o meu pesadelo da mancha forçando a saída. Não era ela a negra, a nigramante. Era dela o amante? O invólucro de sucumbir os sãos? Quantos se amaram entre as pálpebras! Dentro deles o espesso volume dos plexos. Eu vi! Eu senti! Não era ela a da minha ilusão a paixão maior parte dos infinitos. Ele, ele, o ente amante, cruel vingador, vilão imigo. Eu vi! Foi o último dele o meu pesadelo. Eu senti! Ele chamando. Estava ali indefeso o rival. Eu também era o que se ia rival da nigramante...

XII

Entre meus mortos os cabelos da sinistra amante Mulher de um panapleu

Estou na cama cova deles alcova Um serei tal qual o dia

133


Dentro em ti nas trevas

XIII

A morte distraí com fantasia. Entremeios de duas palavras. Tu, a negra, concepção de todas as dores e a fúria. A letal. Te concebi e te amei. Minha Morte minha. Agora a febre tem medo de mirar teu rosto. Nunca viver será tarde. Pois enquanto arregaço as penas dos desejos, não ouso deflorar-te, por fim. Amor te nego. Pois sei dos meus limites. Serás agora a sempre. A flor de luto. Nunquidão.

134


calada de AntĂ´nio

a minha liberdade nĂŁo me deixa ver o voo em que me aprisiono em fuga... J. Landwirt

135


meu, uma balada

enquanto a erva ferra de abstração o quadril desse fecundo coração, o meu deus panapleu uiva lobos a um são dragão na lua órfica e a pele dos espelhos se encontra com os teus olhos de dentro em si de uma canção pequenina: miro em ti me amar e o sei, sei-o, menor a vida, isto é nascer!

enquanto pálida a hora, derroto o viço por debaixo dos escombros e alimento a dor; um tecido de aranhas na pele do sonho a hegemonia do fio e o caminho subterrâneo sobre a febre dos insetos por debaixo de uma canção pequenina: miro em ti me amar e ao seio igual à vida, isto é viver!

enquanto sonho com a última paz a temer o que recolho entrecortado de vazios pela gula de abraçar, tecendo o mal no corpo e coração de meu deus, teus olhos de dentro desafiam o caminho de uma canção pequenina: miro em ti me amar e o sei, seio! maior que a vida, isto é morrer!

136


nunca, novamente

esta palavra devoradora de instintos, um soluço terno sem algum acaso. acaso, o que resta da pálida linguagem de cera? o vestígio?

que não seja um mais de espera o alimento da solidão perdida ao mais intenso desejo de representar a coragem ou a covardia suprema da morte. la vida no vale nada se desisto e logo sou contrário ao que dela resto.

nada

137


pedra da canção

te revestes em pálpebra ao espelho – sereia muda – e cabes na alma dessa ágil visão em voo por seres extrema em mim sem ti no seio me sou: aflito

rósea dormes na flor minha do umbigo: neste exílio lavrado de pergaminhos e serva a voz do desejo se vai

– sol em mim, o pranto na palavra pedra para sempre alívio nesta canção

138


exílios

este é pedra de ângulos postados na algibeira de menino este é pedra perdida no relógio dessa vida se esvaindo este é pedra esculpindo o vento no ventre desse sono este é pedra de Davi no chão abandonada antes da têmpora este é pedra soluçando nos pés do caminho indefeso este é pedra contando segredos em seu dialeto de silêncio este é pedra calculada para a dor animal nas entranhas este é pedra que falseia Aquiles sobre seu fracasso este é pedra do frade e orações e templos com paciência este é pedra que ao pó será com meu corpo este outro que é pedra

139


cinzas de amor adormecido

corpo de água e desespero, o amor sobre os olhos em bicos de águia existes por ontens repleta de feitiço e pele extintos dentro de mim no arco de volts lírico em torno de um coração

no dilúvio este perfil de relâmpago em disformes miragens vez de quando te amei com poções de extermínio e doçura leite morno em teu seio de punhais sem mordaça sonho este limite é o teu compasso de raio infinito

proibido para a língua doce de beija-flores

restará o cabelo a fio no sino dessa estranha catedral a fórceps da magia pela imaginação de um sono como bela inesquecida entre todos os dedos do grito? onde estás, poeira dos suspiros em qual ave ou feitiço em qual nave de arlequim o perfume da vertigem solitária cor de um mar afogado de avestruzes?

moves-te dentro de mim como uma acrobata antes de cair

eu te espero todos os dias o corpo 140


sabes que a existência é uma fatia de impossibilidades a poeira é um lago acomodado no cume do abismo estimo a vida que já deixou de esperar o enigma escreves nesse caderno sei a última estrada foi para além dos poucos passos dentro dessa cabana roubo-te a paz.

feiticeira de tantas verdades, acrescento a luz dos escombros. dentro de mim reparaste o delírio.

lembras o tapete e a varanda e o parque infantil por detrás de todos os muros e da flor que brotava do coração nos monturos? ali ensaiei te amar e abrir os oceanos e sorver a língua do pássaro mas o pássaro noturno beijou o aviso e foi para sempre o súbito.

mesmo assim, ontem te amo, nesse amanhã.

141


prata no olho do rio que jaguaribo (sem homenagem)

no olho do rio tem o rio. importa saber da água cadela enraivecida com espumas. escorre e chora a mordida no afogado. deste lado da margem meu corpo é o soluço daquele que acena por borbulhas. nosso corpo tem argila e ferida por dentro. nele vai pelos meus olhos de rio dupla enchente se anunciando. não é aquele o que abocanha meu sonho. tivesse medo mergulharia fantasiado de Netuno. mas uma rosa no coração diz – não vá! não vá! – fico no seio da minha senhora Incerteza. pleno de agulhas. rochedo picado por fagulhas de vagalumes. nulo. um que daria pelo corpo um abraço. na prata de todas as rebeldias causo a dor. e cão sem ossos multiplico um arremesso de Narciso contra a rosa e a Incerteza mito de um rito

142


fragma devida

experimenta o dente: estampido na espoleta. intragável, desdenha-se de rabiscos, só.

colhe o punhal com a raiz dos seios. jorra o leite apenas, e o rio cicatriza montanhas.

descerra os últimos lábios no ácido. o ventre engole-se de lagartas tocadas.

a bela desfigura – monstra-se! – e dos seus sussurros a ira grotesca-se de víbora.

abre a janela. o sol indo-se. soluça. aonde aquele sangue desvia.

pensa pelos telhados. flores de nabucodonosor nas derradeiras páginas do livro.

desde anseia voar-se. experimentar sem chuva luas inteiras suas. escolhe ao êxtase colher-se.

143


de uns

ainda – como quis – não beijei o corpo do fantasma não recebi a benção do Tao surgida à margem do silêncio no ato enquanto plantava o deserto

ainda – como quis – não tombei do corpo o espasmo com a negra, esse amor que levaste ao cúmulo feito um acaso de sons calados e desfeitos

ainda – como quis – não tenho mais nada revogado com a morta! e o que me valida:

ainda – essa tristeza de arame vincando a pele, por ela

144


a um que amou a pedra mais oca a greta antes do abismo a calada dos antônimos

a um outro deus dedico

1m Escutai agora a canção dos besouros: zilidos siluosos, uns truídos, as sussúrias. Entre, era uma delas a palavra fluida da fêmea primeva. Os devaneios de um trem rachando as paredes do mal construído. Todos os flocos se larvaram de gosmas, um espetáculo de reversas repugnâncias. Estava ali um de besouro, gratulíssimo pela honra da criação. Deus, mais de um em mim era eus.

2ois Existi em um, primeiro. Quase descri que seria mil, trezentos mil repetido. Desde o quanto é medo o que abisma o simples do inorgânico sentimento! Tivera eu que cobrir de máscaras o rosto bisonho. Pois só com um assim, rompi aldravas e amei.

3rês Tratei de fúrias. Me embalei e sangrei pela primeira vez como uma virgem, outra maria. Terror de nunca mais. Seria ela uma assassina da natureza com os seus machos, fim seria esse o meu, apenas o objeto fértil para mil eus repetidos e nada mais?

4uatro Outras e tantoutras, que amar é mesmo que se almar, 145


nunca desisti. Morrer é um abismo para asas.

5inco Dissestes que o silêncio era trágico, a honra a deserção do labirinto, a glória o modelo. Mal previsto. Diante dela, o amor se transtorna. Os passos dos homens são esteiras fabris, os pássaros átomos livres das órbitas, os camaleões o arco-íris ou o caos multifacetado. Me enganastes. Mas não vos preocupeis. Os trezentos e mais que tantos mil agora sendo não vos atormentarei.

6eis Escutai... Ícones sonoros de uma antiga solidão, o que ouvis.

Estamos diante de um palco. O que vedes? O insólito espelho da memória, a regra imprópria dos neurônios, o fervor de partículas prestes a explodir em besouríons?

7ete Derrotai vossas recusas mais íntimas! Arrebatai os laços desses tremores de desejos! Revirai os escombros à cata dos antepassados! A hora da morte é que nos torna completos...

8ito Anjos na planície dos sonhos. Amo meus tremores de fugas. Ainda amarei um dilúvio sobre a pele da catástrofe.

9ove 146


Entre o bálsamo e a ferida, a dor. Vós sabeis. Escolhei o mistério e a fresta e sereis o besouro mais puro das trevas!

(...) Adorai agora o meu silêncio de Deus...

147


sacrifício entre os presentes ancestrais

mastigou pedras para tentar o açúcar dos grãos. deitou-se de rato para a lua – era dia! – e invalidou-se de olhos no cego do sol. pinçou cada pelo da barba no mês de abril e enfeitou as microvilosidades das vísceras. tinha um instinto de poeta ou dinossauro! perdeu o destino e as linhas de Maria na máquina de cortar mãos. avolumou-se de ferrugem entre os automóveis. ferrou-se na testa com a marca de Salomão. tinha um cenário despótico para um louco motivo! esmagou os dias e as noite com um crucifixo. insistiu em mastigar todas as pedras do deserto. mas já não havia açúcar naqueles corpos queridos. pedras sem motivos... pois a cidade virou cinza com o seu gosto de cinzento. findou por jejuar feito um fracassado poeta sem algibeiras e guardanapos! e as salmonelas com suas urdiduras roeram nele os últimos registros de ternura. palavra que se diz é absurdo dentro do poeta!

148


nonononono

na frente daqueles pássaros o destino da espécie. Vogel, o alemão, ciciava enquanto pendia de suas agarradas unhas um lagarto esverdeado. ele não devia pensar. só existir é que é existir. o segundo líder, o que atendia por Bacon, aproximou-se de Vogel e pensou mais forte que todos. tarde, porém. ele tornou-se a máquina de destruir sonhos. o que o tornava inanimado, pássaro sem alma, seguidor daquele bando em V. enroscou-se Bacon na direção de Vogel, oh que algo se desprendeu!, e Vogel perdeu o rumo, o sentimento das unhas. e bicaram-se ante o bando desgovernado. Pandora, então, deixou que Vogel e Bacon repetissem suas façanhas desgraçadamente e reuniu o bando, levando a outros rumos os pássaros desesperados desesperados...

149


o fantasma dos mortos de propércio

há séculos recolho ossos e mulheres. este fêmur pertenceu à rainha de Sardanápalo, este a Nefertiti, este perônio à concubina de Josuel, vassalo de certo rei Licurgo e estes fragmentos de maxilar a Calíope. sou O-Sem-Nome e tenho medo da única certeza do meu coração: sobrevivi a tudo e a todos, fizeram-se três séculos. e ainda escuto as vozes dessas preciosas damas – O-Sem-Nome! trance meus cabelos! O-Sem-Nome! beija-me com ardor! OSem-Nome! lava-me os pés com tuas lágrimas! temo, pois, acender (e seja!) a vaga lembrança de como foram as mulheres que revestiram esses ossos. lembrar é corroer a memória, pousar os olhos na grande sombra. amanhã, porém, será um grande dia. fogueira imensa. já não consigo escalar essa montanha de ossos. amanhã tocarei fogo nessas mulheres. pois sei que ali amontoam-se as que me amaram e as que odiei por amá-las demasiadamente. amanhã direi: vês este fogo? a crosta amarela do ar, as fagulhas riscando aleatoriamente os estalidos dos seus orbitais? vês a pureza do elemento secreto arder? amanhã, as mulheres serão esta chama. depois, verás cinzas. e eu, O-Sem Nome, ingresso na fogueira, inferno meu, faço arder esta solidão em últimos instantes de pó. mecum eris et mixtis ossibus ossa teram!mastigou pedras para tentar o açúcar dos grãos. deitou-se de rato para a lua – era dia! – e invalidou-se de olhos no cego do sol. pinçou cada pelo da barba no mês de abril e enfeitou as microvilosidades das vísceras.

150


tinha um instinto de poeta ou dinossauro!

perdeu o destino e as linhas de Maria na máquina de cortar mãos. avolumou-se de ferrugem entre os automóveis. ferrou-se na testa com a marca de Salomão. tinha um cenário despótico para um louco motivo! esmagou os dias e as noite com um crucifixo. insistiu em mastigar todas as pedras do deserto. mas já não havia açúcar naqueles corpos queridos. pedras sem motivos... pois a cidade virou cinza com o seu gosto de cinzento. findou por jejuar feito um fracassado poeta sem algibeiras e guardanapos! e as salmonelas com suas urdiduras roeram nele os últimos registros de ternura. palavra que se diz é absurdo dentro do poeta!

151


nonononono

na frente daqueles pássaros o destino da espécie. Vogel, o alemão, ciciava enquanto pendia de suas agarradas unhas um lagarto esverdeado. ele não devia pensar. só existir é que é existir. o segundo líder, o que atendia por Bacon, aproximou-se de Vogel e pensou mais forte que todos. tarde, porém. ele tornou-se a máquina de destruir sonhos. o que o tornava inanimado, pássaro sem alma, seguidor daquele bando em V. enroscou-se Bacon na direção de Vogel, oh que algo se desprendeu!, e Vogel perdeu o rumo, o sentimento das unhas. e bicaram-se ante o bando desgovernado. Pandora, então, deixou que Vogel e Bacon repetissem suas façanhas desgraçadamente e reuniu o bando, levando a outros rumos os pássaros desesperados desesperados...

152


pedra vida

haveria em panaplo uma grande empresa. dela, participariam todos os homens aptos à leitura. uns, dados aos milagres da escritura, recarregariam o silêncio de outros. saberiam todos das exigências que permeariam aquele jogo de troca de influências. durante muito tempo, a empresa acompanharia a vida com a sua visão imparcial, porém, atada aos princípios de seus realizadores. certo dia, um dos principais homens da empresa, imbuído da missão de revelar-se perante todos os outros, resolveria instituir um cargo de sacrifício, o do sacrifício da verdade escolhida. e convidaria aqueles meticulosos guardiães da sensatez para cumprir o ritual, um de cada vez. e, assim, a ação apontaria o escolhido a destinar-se ao mito. Sísifo condenado a carregar a pedra ao alto da montanha, vê-la despencar e torná-la ao cume de todas as atenções, indefinidamente...

153


borboleta

martírio: sofrer sem asas, desnuda de voar deixar de resumir salto em abismo – completo circuito de vento assim Gabriela sorri sofrimento escolhe dor por aliada ante holofote, rasga tecido enfeite de amarelo e brilho arma-se de foice arranjada por delírio decepa-se.

nenhum sangue em suas primeiras asas já nenhum mistério a jorrar corta asas, desistência de voo verdadeiro para tentar salto vazio borboleta perplexa, Gabriela salta e vai arrastada por olhos de amante, tento acompanhá-la. frágil demais, difícil de desistir espeto-me de condenação, segundo e segundo, por saber: voar nunca é costume do meu povo.

154


pálido

dor de letra é mais mistério: selo de bruxa em pacote

tenta dilacerar vagalhões moribundos corpos trêmulos escrúpulos senóides salmonelas volumes pústulas delírios este poeta

como sói acontecer só se identifica com aquele morto de futuro

155


átrio

dentro a bolha por dentro a outra ninguém nunca viu o olho do olho

corpo de ouro soluço no meio da escolha

dentro o sangue por dentro o outro ninguém nunca viu a manha da sanha

musa de nada pressinto e a fúria se encanta

156


olhos

quantas vezes e ainda eras quantas: vi por dentro a ilha

tu

157


fúria cão

desde quando percebi a morte engolindo meus olhos desde quando sonhei amar uma gleba de desejos desde quando me espedacei no marfim do silêncio desde quando mergulhei no vácuo e flutuei invisível desde quando senti a dor de uma alma impassível desde quando lamentei o tédio das esquinas desde quando esperei o templo ruir antes da noite desde quando sofri por não esperar o próprio fim

desde então conservo essa fúria de deus entre meus sonhos desde então

e sei que morrer é apenas Borges um costume que sabe ter toda a gente para sempre e eternamente desde quando

158


alice não viu

cego nesse tempó de chorar a dor é ingratidão e teu castigo

159


mergulho

§ entre dedos impúbere a alma me anuncia § plantas me insetam de erva curtidas § palavras em ti pecar-te ciciam § espaço em flor de ira de lótus uiva § entre sóis pisco lágrimas em busca § no escuro hálito o retrato em que táctil § me escuso de mergulho no abecedário § estás em mim como a pílula afogada no seio § tão instante porém daquele que se faz distante § entre as fúrias o rebanho de tantos dias § entre dedos a alma em lótus me anuncia § plantas me insetam em ti pecar-te ciciam § palavras de ervas curtidas anseio § espaço em flor delírio que me acaricia

160


dialógica

porque o louco afirma ser jesus o louco pode – riem dele – ser jesus e ele é louco por jesus e quem sabe? – se a culpa não é de jesus? porque o louco tudo – ou quase – pode ser tão diferente como jesus e ele sabe – ou não insiste em – que tudo pode fazer – até milagre por que se não fosse louco seria o tal um outro átrio de soluços querendo explicar dos céus o símbolo? por que se não fosse por ser jesus seria o mesmo crucificar-se no medo de nada mais poder ser – nem poeta?

161


ainda tenho

as mãos os pés o intestino a bílis a enxaqueca e a farta lição de casa os artefatos as cinzas da inquisição as aleivosias o ciúme a crise o torso do acrobata de um livro antigo a pedir desculpas e a continuar caindo no céu da pátria que a chão se abriu o latifúndio do joão medido a palmos a bananeira os abutres e a colina a amargura o gim e a conquista o pus e a cisão mas também a alegoria a fantasia e o carnaval infestado de selenitas a coorte dos antigos e dos amigos o lapso e a mácula a pereba o estrume da raça e o anseio nefelibata cage a fé o demônio e a imensa satisfação de sobreviver digamos aprisionado nos espelhos a cura e a fúria mas enfim tenho ainda o fim em minhas mãos a arma ainda tenho o grilo no automóvel passou por mim passageiro feito a infância e eu não vi a rua molhada de passos tristes passos da gente sem face pois não vi o sol crestando a face dessa gente a quarenta graus à sombra ou ao gelo de trinta negativos no breu branco do silêncio isso eu não vi por isso não tenho mas ainda tenho no entanto desses como a que perdi só não vejo a cabeça que encorpa incorpora e poreja mas seja assim assimilar com a verdade a verossimilhança a imensa pureza de ainda ter o cravo na pele incrustado do que dói como a ausência por fim no que ainda tenho as mãos com essa arma que retribuirá o fel por nada mesmo que essas cabeças insistam de avestruz esconder a febre o olho o bafo das narinas a cicatriz o espelho e a alma a ruga o sestro a dor a careta e o riso o privilégio do esgar a varíola a pele ressequida a madeira da cara o óleo a penumbra a sombra e a silhueta o cocar das alucinações ou o que se perpetua na longevidade das tartarugas dos ratos de gaveta dos axiomas falsos nas mentiras nas vestes seculares por fim nas falsas visões e insensatez por mais que risível e veloz costumo apontar com as minhas mãos que ainda tenho

162


esboço

desejo esta parede blindada: sem violência teu corpo parede dobrada silenciosa o maior vazio escorrendo filigranas dentro ela muro alto adiante em mim.

teu corpo acoita a cara da noite contrai mistérios de penitenciária ou catedral.

a mesma noite o mesmo desejo toda noite

163


ruína

ou vi frutas secando ao sol e a tarde engolindo criancinhas ou talvez peixes bebendo luz? quem sabe o anseio das bombas entregues ao som de fogueiras invisíveis?

– desde que o amor é o paradoxo do sono sinal da cruz descrito em silêncio na garganta repre)z(ando o fogo efêmero –

à tarde: ou vi frutas revelando a frescura de sabores ou talvez o corte no lábio intumescido o sal, quem sabe, do ocaso ardendo sobre os açúcares da pele nesse esboço de cachalote no corpo do que era

(feminino)

164


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.