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Mergulhando na obra

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Carta ao professor

Carta ao professor

Aprofundamento

Ao chegar ao Ensino Médio, é necessário que os estudantes se aprofundem na compreensão das múltiplas linguagens e, sobretudo, da linguagem literária. Em relação à literatura, a BNCC traz as seguintes considerações:

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Em relação à literatura, a leitura do texto literário, que ocupa o centro do trabalho no Ensino Fundamental, deve permanecer nuclear também no Ensino Médio. Por força de certa simplificação didática, as biografias de autores, as características de épocas, os resumos e outros gêneros artísticos substitutivos, como o cinema e as HQs, têm relegado o texto literário a um plano secundário do ensino. Assim, é importante não só (re)colocá-lo como ponto de partida para o trabalho com a literatura, como intensificar seu convívio com os estudantes.

Como linguagem artisticamente organizada, a literatura enriquece nossa percepção e nossa visão de mundo. Mediante arranjos especiais das palavras, ela cria um universo que nos permite aumentar nossa capacidade de ver e sentir. Nesse sentido, a literatura possibilita uma ampliação da nossa visão do mundo, ajuda-nos não só a ver mais, mas a colocar em questão muito do que estamos vendo e vivenciando.

Em comparação com o Ensino Fundamental, a BNCC de Língua Portuguesa para o Ensino Médio define a progressão das aprendizagens e habilidades levando em conta: • a complexidade das práticas de linguagens e dos fenômenos sociais que repercutem nos usos da linguagem (como a pós--verdade e o efeito bolha); • a consolidação do domínio de gêneros do discurso/gêneros textuais já contemplados anteriormente e a ampliação do repertório de gêneros, sobretudo dos que supõem um grau maior de análise, síntese e reflexão;

• o aumento da complexidade dos textos lidos e produzidos em termos de temática, estruturação sintática, vocabulário, recursos estilísticos, orquestração de vozes e semioses; • o foco maior nas habilidades envolvidas na reflexão sobre textos

e práticas (análise, avaliação, apreciação ética, estética e política, valoração, validação crítica, demonstração etc.), já que as habilidades requeridas por processos de recuperação de informação (identificação, reconhecimento, organização) e por processos de compreensão (comparação, distinção, estabelecimento de relações e inferência) já foram desenvolvidas no Ensino Fundamental.

(BNCC – versão completa. p. 499)

Nesta seção, desenvolvemos um trabalho de aprofundamento que, em diálogo com a formação continuada de professores, oferece subsídios para a abordagem do texto literário.

A trajetória de Mário de Andrade

Em agosto de 1917, quando a Primeira Guerra Mundial tornava-se mais violenta e o Brasil acabava de mandar seus soldados para a Europa, é lançado em São Paulo um livro de poemas de sentido pacifista, assinado por um autor que se confessava medroso e humilde. O livro: Há uma gota de sangue em cada poema; o autor: Mário Sobral. Mais tarde, a revelação: o autor daqueles poemas, ainda presos à estética do final do século XIX, era, na verdade, o tímido Mário de Andrade. Mas 1917 seria um ano decisivo para as origens do modernismo brasileiro por dois outros fatos. Em novembro, no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo acontece uma palestra do Secretário da Justiça de São Paulo, para tratar da guerra, e a apresentação do orador é feita por Mário de Andrade, então professor do Conservatório; Oswald de Andrade, jornalista, vai cobrir o evento, entusiasma-se com o discurso de Mário e resolve publicá-lo; daí nasce a amizade entre os dois Andrades que, durante dez anos, foram o corpo e a alma do movimento moder-

nista de São Paulo; duas figuras de personalidades opostas, mas complementares. No mês seguinte, outro acontecimento fundamental: era inaugurada a exposição de arte moderna da jovem pintora Anita Malfatti; as telas de tendência expressionista encantaram os jovens que buscavam novas orientações artísticas e formou-se um grupo com Mário, Oswald, Di Cavalcanti, Guilherme de Almeida, entre outros. Nos anos que se seguiram os jovens modernistas intensificaram suas críticas ao parnasianismo, que, nas primeiras décadas do século XX, era o estilo dominante na poética brasileira.

Em dezembro de 1920, Mário de Andrade inicia a escrita dos poemas que formariam Pauliceia desvairada e os declama para um pequeno grupo de amigos. Em maio de 1921, Oswald de Andrade, ainda atuando na imprensa, publica um artigo com o título “O meu poeta futurista” e fala, sem citar o nome, de um jovem poeta, professor do Conservatório, que escrevia poemas na linha futurista de Marinetti; foi um escândalo. Mário de Andrade responde, assinando com pseudônimo, que o jovem poeta citado não era “futurista”. Mas, meses depois, Mário de Andrade publica uma série de artigos com o título de “Mestres do passado”, em que critica os principais poetas do parnasianismo, entre eles, o consagrado Olavo Bilac.

Ao findar o ano de 1921, o clima já estava criado para explodir no evento que foi a Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, considerado o marco inicial do modernismo brasileiro, sempre tendo Mário e Oswald como principais representantes. No meio do ano, Mário lança Pauliceia desvairada, com seus poemas revolucionários e um prefácio que era um verdadeiro manifesto modernista. Ainda em 1922, é lançada em São Paulo a revista Klaxon.

As ideias sobre a estética modernista, já manifestadas nos artigos sobre os mestres do passado e em sua fala durante a Semana de Arte Moderna, aparecem sistematizadas em 1925 no livro de ensaios A escrava que não é Isaura. Sua produção literária intensifica-se com a publicação de livros de poesia, de contos e os romances Amar, verbo intransitivo, em 1927, e Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, em 1928.

Ao lado de sua produção literária, Mário de Andrade se dedicou à pesquisa da música e do folclore brasileiros, foi diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo e participou da organização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Em sua estada no Rio de Janeiro, lecionou estética na Universidade do Distrito Federal.

Lira paulistana foi sua última obra, sendo publicada postumamente.

Mário e a cidade de São Paulo

Para entendermos a Semana de Arte Moderna e o modernismo dos anos 1920, um bom caminho é pensar em três fatos: o melhor palco para a Semana, indiscutivelmente, era a cidade de São Paulo; dentro da cidade, o melhor local era o Theatro Municipal, e o evento não poderia acontecer nem em 1921, nem em 1923 – necessariamente teria de ser em 1922.

O ano é fácil de entender: comemorava-se o primeiro centenário da Independência; uma independência política e não econômica e muito menos cultural. O Theatro Municipal, inaugurado em 1911, idealizado para as grandes apresentações de óperas, era o orgulho da elite paulistana. E por que São Paulo?

Mário de Andrade, na conferência “O movimento modernista”, pronunciada em 1942, explicava que só mesmo São Paulo, uma cidade grande e provinciana, reunia as condições para fazer o movimento modernista e objetivá-lo na Semana. Dizia ainda:

São Paulo era espiritualmente muito mais moderna, porém, fruto necessário da economia do café e do industrialismo consequente. São Paulo estava, ao mesmo tempo, pela sua atualidade comercial e sua industrialização, em contato mais espiritual e mais técnico com a atualidade do mundo.

ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1942. p. 27.

De fato, a cidade era constituída de tipos muito diversos; nem mesmo o operariado formava um grupo completamente homogêneo. A São Paulo do início do século XX era uma cidade multifacetada, fruto da industrialização, da eletricidade, da modernidade e da imigração. Assim, poderíamos encontrar pela cidade, andando na mesma calçada do bairro dos Campos Elíseos, um “barão do café”, um operário anarquista, um padre, um burguês, um nordestino, um professor, um negro, um comerciante, um advogado, um militar... realmente, uma “pauliceia desvairada”, palco ideal para a realização de um evento que mostrasse uma arte inovadora, rompendo com velhas estruturas.

Se em Pauliceia desvairada a relação do poeta com a sua cidade é mais neurótica, nervosa, por vezes agressiva, em Lira paulistana, com o distanciamento de vinte anos de uma obra para outra, o eu lírico tem uma identificação maior com a sua cidade, em uma relação mais afetuosa, embora às vezes com tons melancólicos.

O subjetivismo de Pauliceia desvairada

O gênero lírico é caracterizado por centrar-se na subjetividade e, por esse critério, se opõe ao gênero épico, centrado na objetividade. Se a poesia épica é uma narrativa em que o enunciador mantém distância do fato narrado, a lírica é a manifestação do mundo interior, que, para os antigos, se fazia pelo canto suave e era mais do que expressar emoções, era uma possibilidade de despertá-las, com um menor distanciamento entre o enunciador e o objeto cantado.

Assim, segundo o crítico Yves Stalloni:

No sentido moderno do termo, o lirismo será definido como a expressão pessoal de uma emoção demonstrada por vias ritmadas e musicais. [...] Mas convém acrescentar a essa particularidade uma outra: o lirismo é a emanação de um eu – que o romantismo gostava de confundir com a pessoa do poeta, mas que pode se apagar por detrás de uma de suas personagens.

STALLONI, Yves. Os gêneros literários. Rio de Janeiro: Difel, 2001. p. 151.

Por isso, reafirmamos uma ideia básica: não podemos confundir o enunciador de um poema (o eu poético, ser ficcional) com o próprio poeta (o autor, ser empírico). Há casos evidentes em que a voz do enunciador não mantém ponto de contato com o poeta, como ocorre, por exemplo, na tradição lusitana das cantigas de amigo em que a autoria é masculina mas o eu lírico é feminino (no caso da MPB, por exemplo, há várias canções de Chico Buarque que seguem o modelo das cantigas de amigo, como “Tatuagem”, “Atrás da porta”, “Com açúcar e com afeto”).

Na poética de Mário de Andrade, no entanto, o eu lírico é, na maior parte de seus poemas, uma projeção do poeta, com o emprego excessivo da primeira pessoa, seja nas formas verbais, seja nos pronomes possessivos, eliminando o distanciamento entre o objeto poético e o enunciador

A intertextualidade

O círculo que envolve a interação pela linguagem se constrói apoiado no já dito, no já lido e no já conhecido, podendo reiterá-los, reafirmá-los, reformulá-los, refutá-los.

É muito difícil pensar na produção de um texto totalmente inédito, criado a partir do nada. É como se todo texto fosse um hipertexto que possui links explícitos ou implícitos com outros. O termo intertextualidade foi cunhado, na década de 1960, no âmbito da teoria literária por Julia Kristeva e, nessa concepção, trata do universo dos textos literários e do diálogo entre esses textos ao longo da história da literatura. Quando a intertextualidade se dá entre dois textos literários efetivamente escritos e se manifesta de forma direta, clara, explícita, podemos dizer que se trata de intertextualidade em sentido mais restrito. Na literatura brasileira temos um exemplo significativo. O poeta romântico Gonçalves Dias escreveu, em meados do século XIX, a famosa Canção do exílio; desde então, vários outros poetas produziram intertextos, ou por simples imitação, ou para repensá-la.

O conhecimento das relações entre os textos – e dos textos utilizados como intertexto – é um poderoso recurso de produção e apreensão de significados. Quando um determinado autor recorre a vários textos para compor os próprios, certamente tem um motivo muito claro – por exemplo fazer uma crítica, uma reflexão ou uma releitura desses textos. Percorrer o caminho inverso, ou seja, buscar esse motivo e reconstruir o processo de produção leva a desvendar os significados específicos do texto produzido, já que os textos se completam, lançam luz uns sobre os outros.

Esse conhecimento, porém, não se dá por acaso nem por obra da intuição, mas por meio de um trabalho bastante específico: o exercício da leitura. Quanto mais experiente for o leitor (entenda-se como leitor experiente aquele que leu muito e bem) mais possibilidades terá de compreender os caminhos percorridos (e os textos visitados) por um outro autor em sua produção e de percorrer o próprio caminho em suas criações.

Portanto, nossos processos de leitura podem ser mais proveitosos quanto mais caminhos de leitura tivermos percorrido. Nossas produções podem aprimorar-se na medida em que incorporamos essas leituras a nossos textos. E não é exagero dizer que esses procedimentos ampliam-se de tal forma que atingem uma outra área, bem mais ampla – a que diz respeito à própria leitura do mundo.

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