4 minute read

Uma missão delicada

Next Article
A autora

A autora

CAPÍTULO I UMA MISSÃO DELICADA

Em 22 de setembro fui consultada pelo The World se poderia me internar em um dos manicômios em Nova York com o objetivo de escrever uma narrativa clara e sem floreios sobre o tratamento dos pacientes, os métodos da direção etc.

Advertisement

Se eu achava que tinha coragem de passar pelas provações que tal missão exigiria? Será que conseguiria assumir as características de insanidade a tal ponto que conseguiria passar pelos doutores, viver por uma semana entre as loucas sem que as autoridades do lugar descobrissem que eu era apenas uma “garota tomando notas”? Respondi que sim, conseguiria. Tinha alguma fé nas minhas habilidades como atriz e achava que poderia assumir a insanidade tempo suficiente para cumprir qualquer missão que me fosse confiada. Se eu conseguiria passar uma

semana na ala das loucas da Ilha de Blackwell? Disse que poderia e que iria. E foi o que fiz.

Minhas instruções foram simplesmente para iniciar o trabalho tão logo me sentisse pronta. Deveria narrar fielmente as experiências pelas quais passasse, e quando tivesse transposto os muros do asilo, descrever seu funcionamento interno, que era sempre tão eficientemente ocultado do conhecimento do público, tanto pelas enfermeiras de touca branca quanto por ferrolhos e trancas. “Não lhe estamos pedindo para ir com o propósito de fazer revelações sensacionalistas. Escreva sobre o que encontrar por lá, seja bom ou mau; elogie ou acuse como achar melhor e diga a verdade o tempo todo. Só tenho medo é desse seu sorriso crônico”, disse o editor. “Não vou sorrir mais”, falei, e saí para executar minha delicada e, como descobri, difícil missão.

Se eu lograsse entrar no asilo, o que eu achava muito difícil, não fazia ideia de que minhas experiências conteriam mais do que um simples relato da vida naquele local. Que tal instituição pudesse ser mal administrada e que crueldades pudessem existir sob seu teto, não julguei ser possível. Eu sempre tive desejo de conhecer a vida em um manicômio mais profundamente, um desejo de constatar se a mais desamparada das criaturas de Deus, o louco, é cuidado de maneira gentil e adequada. Li muitas histórias de abusos em tais instituições, mas as considerava extremamente exageradas ou roman-

ceadas, ainda que houvesse o desejo latente de as conferir por mim mesma.

Estremeci ao pensar como as loucas estavam tão completamente à mercê de seus guardiões, e como alguém poderia chorar e implorar pela liberdade, o que de nada adiantaria, se os guardiões assim o decidisse. Determinada, aceitei a missão de entender o funcionamento interno do Asilo de Insanos da Ilha de Blackwell. — Como vão me tirar de lá — perguntei ao meu editor — depois que eu conseguir entrar? — Não sei ainda — ele respondeu —, só não poderemos fazer isso contando-lhes quem você é e por qual propósito fingiu loucura. Entre e nós veremos como tirá-la de lá.

Tinha pouca confiança na minha habilidade de enganar especialistas em insanidade, e acho que meu editor tinha ainda menos.

Todos os preparativos para minha provação foram deixados por minha conta. Somente uma coisa foi decidida a priori: que eu deveria me passar pelo pseudônimo de Nellie Brown, cujas iniciais eram as mesmas do meu nome1 e estavam nas minhas roupas, de modo que não houvesse dificuldade em manter o controle de meus movimentos e em me ajudar em

1 A autora chamava-se, na verdade, Elizabeth Cochrane. Na época, o costume para as raras mulheres jornalistas era usar um pseudônimo. “Nellie Bly” foi escolhido por seu primeiro editor, a partir de uma canção folclórica dos Estados Unidos.

15

quaisquer dificuldades ou perigos que pudessem me envolver. Havia maneiras de entrar no hospital, mas eu não as conhecia. Poderia adotar um de dois caminhos: simular loucura na casa de amigos e ser internada com a prescrição de dois médicos competentes ou poderia alcançar meu objetivo por meio da polícia e do tribunal.

Refletindo, achei mais sensato não envolver meus amigos ou pedir que médicos de boa índole me ajudassem nesse propósito. Além disso, para chegar à Ilha de Blackwell meus amigos teriam que fingir pobreza e, infelizmente, para os fins que eu tinha em vista, meu conhecimento sobre os pobres, à exceção de eu mesma, era muito superficial. Então resolvi ir em direção ao plano que me levaria ao sucesso da missão. Consegui que me internassem no manicômio da Ilha de Blackwell, onde passei dez dias e dez noites e onde tive uma experiência que nunca será esquecida.

Assumi a tarefa de representar o papel de uma pobre e desgraçada louca, e tomei como um dever não me esquivar de nenhuma das desagradáveis consequências que viriam a seguir. Tornei-me uma das loucas sob a guarda da prefeitura naquele período, passei por muitas experiências, e vi e ouvi mais sobre o tratamento concedido a essa classe indefesa de nossa população e, quando eu já tinha visto e ouvido o suficiente, minha soltura foi prontamente assegurada. Deixei o asilo com prazer e arrependimento — prazer por poder desfrutar mais

uma vez o ar livre; arrependimento por não poder trazer comigo algumas das mulheres infelizes que lá viveram e sofreram comigo, e que, estou convencida, são tão sãs quanto eu era e ainda sou.

Mas, sobre essa questão, permitam-me dizer uma coisa: desde o momento que entrei no manicômio não fiz nenhuma tentativa de manter o papel assumido de insanidade. Conversei e agi exatamente como eu faço na vida habitual. Ainda que seja estranho dizer isso, mas quanto mais sã eu parecia ao conversar e agir, mais louca eu era considerada por todos, exceto por um médico, cujas maneiras bondosas e gentis eu não esquecerei tão cedo.

This article is from: