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“E EU NÃO SOU UMA MULHER?” A NARRATIVA DE SOJOURNER TRUTH

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A AUTORA, A OBRA E SEU CONTEXTO

[Domínio público. Wikimedia.]

Sojourner Truth, nascida Isabella Bomefree, provavelmente entre os anos de 1797 e 1800, foi uma abolicionista americana e defensora dos direitos das mulheres. Seus pais foram escravos e ela mesma foi vendida à escravidão aos 9 anos de idade. Seu “proprietário” havia lhe prometido a liberdade em 1826, mas não cumpriu sua palavra e Sojourner resolveu se alforriar por conta própria. No ano seguinte, a escravidão foi oficialmente abolida no estado de Nova York, o primeiro dos Estados Unidos a reconhecer a liberdade dos negros.

Para reaver um dos seus filhos, Peter, na altura com cinco anos, que havia sido vendido pelo senhor Dumont e enviado para o Alabama, Sojourner iniciou uma disputa judicial. Com a ajuda dos abolicionistas quakers, levou a questão ao tribunal e após meses de procedimentos legais, conseguiu recuperar seu filho. Ela se tornou, assim, uma das primeiras mulheres negras a ir ao tribunal e vencer uma causa contra um homem branco.

Podemos ver ao longo da narrativa a transformação de Sojourner e dos seus diferentes pontos de vista, passando de sujeito passivo, — ela chegava a pensar que o senhor dela era um Deus, onisciente e onipresente — para uma mulher pioneira na luta pela abolição. Impulsionada por sua fé, tornou-

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34 -se abolicionista e pregadora itinerante, e entendeu a importância de lutar pela liberdade, adotando o nome de Sojourner Truth (“Verdade Peregrina”). Este novo nome refletia uma nova missão de divulgar a palavra de Deus e falar contra a escravidão.

Sua biografia, ditada à amiga Olive Gilbert, foi publicada em 1850, como um manifesto abolicionista, e a converteu em líder do movimento pela libertação dos escravos no resto do país, o que só aconteceria após a Guerra Civil (1865).

Em um discurso proferido na Convenção dos Direitos da Mulher em Akron, Ohio, em 1851, Truth proclamou que: “Se a primeira mulher que Deus fez foi forte o suficiente para virar sozinha o mundo de cabeça para baixo, estas mulheres juntas [e contemplou a plateia] devem ser capazes de trazê-lo de volta, e colocá-lo na posição certa novamente!”. Foi assim que Truth proferiu de improviso seu discurso mais famoso, “E eu não sou uma mulher”, repreendendo severamente aqueles que consideravam as mulheres e os negros inferiores.

Sojourner tornou-se uma líder dos movimentos anti-escravidão e colaborou com a chamada “Ferrovia Subterrânea”, que ajudava os negros a fugirem do Sul escravocrata para a liberdade no norte.

Assim como Sojourner, alguns ex-escravizados também lançaram suas biografias, e aqueles que já eram letrados a escreveram de próprio punho, como Frederick Douglas, Harriet Ann Jacobs, William Wells Brown. Uma das mais conhecidas é a de Solomon Northup, “Doze anos de escravidão”, adaptada para o cinema em 2013, sobre a vida desse homem que, nascido livre, foi raptado em Washington, D.C., e vendido como escravo para as plantações do sul dos Estados Unidos. No Brasil, também ficou conhecida a biografia de Mahommah Gardo Baquaqua, que havia recebido educação em árabe, na sua terra natal, em Benim, e trazido como escravo para o Brasil, de onde fugiria para os Estados Unidos e para o Haiti, antes de morrer, homem livre, no Canadá.

No século 19 a escravidão negra foi oficialmente extinta no mundo ocidental — sendo o Brasil a última nação a fazê-lo. Apesar disso, os negros continuaram a ter, muitas vezes, menos direitos que os brancos. No sul dos Estados Unidos e na África do Sul houve sistemas legais de segregação, como as leis Jim Crow e o apartheid, que definiam e restringiam espaços para negros e brancos.

Por outro lado, algumas histórias de resistência também ficaram bastante conhecidas, como a de Rosa Parks, que, em primeiro de dezembro de 1955, recusou-se a ceder o seu lugar no ônibus a um branco, tornando-se assim um símbolo da luta antissegregacionista.

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35 Começaram assim a surgir, em fins do século 19 e início do século 20, movimentos sociais negros em defesa da igualdade de direitos. Nos Estados Unidos foram encabeçados por Ida B. Wells, Martin Luther King e Malcolm X, por exemplo, e, posteriormente, por nomes do feminismo negro como Angela Davis e Bell Hooks, entre outros; na África do Sul, por Nelson Mandela e Desmond Tutu. No Brasil, o movimento contou com atuações importantes como Abdias do Nascimento e Lélia Gonzales, que contribuíram para o debate e pela luta contra preconceitos e práticas raciais discriminatórias.

O GÊNERO RELATO

A narrativa de Sojourner Truth é um exemplo de texto narrativo do gênero

“biografia” ou “relato biográfico”. Em outras palavras, é a história de vida de uma pessoa.

Esse gênero tem por característica a apresentação de um conjunto da vida de alguém, geralmente na ordem em que os fatos aconteceram e marcando os períodos (infância, adolescência etc…). Como se está contando o que aconteceu com alguém, o tempo verbal predominante é o pretérito.

No caso de nosso livro, há uma especificidade. Ele pode ser compreendido como uma autobiografia, isso é, quando a pessoa conta a própria história, mas, a rigor, quem escreveu o livro não foi Sojourner, mas sua amiga abolicionista Olive Gilbert. Isso se deu porque Sojourner, embora grande oradora, nunca aprendeu a escrever, então contou a sua história (ou talvez a tenha ditado), para que Olive registrasse no papel. É interessante notar em alguns trechos como Olive preservou as características de relato oral (como inflexões e expressão corporal) conforme transformava o que ouvia de Sojourner nessa narrativa.

Autobiografias escritas por uma pessoa que não o biografado não são tão raras. Na verdade, há uma categoria de escritor profissional, chamada de “ghost writer” (escritor fantasma) que ouve o que o biografado tem para contar e a transforma em narrativa autobiográfica, na primeira pessoa. Muitas biografias de celebridades são escritas assim.

É sempre bom lembrar que as biografias podem contar os fatos do ponto de vista de quem os viveu, mas alguns biografados por vezes deixam de seguir outra das características da narrativa biográfica, que é o compromisso com os fatos tais como aconteceram. Isso é, eles “enfeitam” a história com coisas que não aconteceram. Existe até um gênero para as autobiografias inventadas, quando o autor escreve na primeira pessoa mas nada (ou quase nada) do que é narrado aconteceu de verdade, a esse gênero chamamos de “autoficção.” Mas isso já é, literalmente, outra história…

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36 ARTICULAÇÕES COM PRODUÇÕES CONTEMPORÂNEAS E OUTRAS EXPRESSÕES

No século 21, diversos ativistas e intelectuais negros têm se destacado na luta antiracista no Brasil, como Sueli Carneiro, Djamila Ribeiro, Conceição Evaristo, Silvio Almeida, além de inúmeros artistas, escritores e diversas personalidades da sociedade civil.

A luta contra a discriminação racial vem tomando conta dos jornais, revistas e das mídias sociais, impulsionados também pelo resgate memorialístico de relatos e narrativas como Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus; Eu sei porque o pássaro canta na gaiola, de Maya Angelou; Água de barrela, de Eliana Alves Cruz, entre outras. Além de filmes, vídeos, podcasts, como o “Vidas negras importam” (que se encontra nas sugestões de referências).

Entre os músicos contemporâneos que tratam da situação dos descendentes de africanos no Brasil estão Criolo, Emicida e Chico César, este último autor de “Mama África” e “Respeitem meus cabelos, brancos”. Cabe destaque a Elza Soares na música manifesto “A carne (mais barata do mercado é a carne negra)” (composição de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti).

O cinema tem retratado a vida de alguns escravizados, como em 12 anos de escravidão (2013, com direção de Steve McQueen), a partir do relato de Solomon Northup e Harriet (2019, direção de Kasi Lemmons) sobre a trajetória da escravizada e abolocionista Harriet Taubman. Os traillers em português podem ser assistidos neste link e neste link, respectivamente.

Devemos mencionar ainda o trabalho de Lázaro Ramos, tanto como escritor (Na minha pele), intérprete (Madame Satã e Mister Brau) quando como entrevistador, na série Espelho).

Emicida. Foto Bruno Figueiredo/Área de Serviço. CC BY-SA 4.0 Lázaro Ramos e a professa Diva no programa “Espelho”. Foto de divulgação. CC BY-SA 4.0 Elza Soares. Foto de Patricia Lino. CC BY-SA 4.0

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Bibliografia comentada

Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, volume I.

Laurentino Gomes. Rio de Janeiro : Globo, 2019. O primeiro volume de um longo trabalho de pesquisa sobre a história do comércio escravagista transatlântico, abordando os aspectos históricos e econômicos.

Lugar de fala.

Djamila Ribeiro. São Paulo: Editora Jandaíra, 2019. Uma reflexão sobre a relevância e a legitimidade do discurso a partir do emissor, considerando um ambiente normativo definido pelos brancos.

E eu não sou uma mulher?

bell hooks. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos : 2019. A partir do discurso de Truth, hooks discute o racismo e sexismo presentes no movimento pelos direitos civis e no feminista até os anos 1970. Examina o impacto do sexismo nas mulheres negras durante a escravidão, a desvalorização da mulheridade negra, o sexismo dos homens, o racismo entre as feministas e o envolvimento da mulher negra com o feminismo.

Quarto de despejo.

Carolina Maria de Jesus. São Paulo: Editora Ática, 1960. O diário da catadora de papel Carolina Maria de Jesus, relatando o cotidiano triste e cruel da vida na favela. A linguagem simples, mas contundente, comove o leitor pelo realismo e pelo olhar sensível na hora de contar o que viu, viveu e sentiu nos anos em que morou na comunidade do Canindé, em São Paulo, com três filhos.

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Autor Julio Silveira Pesquisa Ímã Editorial Revisão Carla Monteiro

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