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Para aprofundar
Lima Barreto foi um dos cronistas mais argutos e perspicazes sobre os primeiros anos da Belle Époque brasileira e Triste fim de Policarpo Quaresma é tida como sua obra de maior fôlego. Primeiramente foi publicado em folhetins na edição vespertina do Jornal do Commercio entre 11 de gosto e 19 de outubro de 1911 e depois foi lançado como livro em 1915, publicado pela Revista dos Tribunais. Era seu segundo romance, seguido de Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909). Neste período o autor já ganhava fama de “do contra” nos círculos literários, seja pelos princípios defendidos, seja pelo propósito de compor sua ironia ferina. Provocador nato, era contra políticos afetados, intelectuais retraídos e aristocratas recém-consolidados. Sua vocação era de profundo crítico dos bovarismos da nova ordem social produzida pela Nova República e suas manias de elogiar e tomar como modelo todas as referências europeias e americanas e envergonhar-se do que é próprio da cultura local.
De origem afrodescendente e profundamente consciente das discriminações e limites que uma sociedade ainda marcada pelo escravismo recém-abolido lhe impunha, desenvolveu uma sensibilidade rara entre os literatos da época para as questões sobre desigualdades sociais e as diversas injustiças colocadas em prática pelas muitas guinadas políticas e revoltas testemunhadas pelo autor ao longo do final do século XIX e começo do XX. No entanto, era filho de seu tempo e, portanto, era permeado de contradições. Oscilou entre o evolucionismo positivista e o pensamento liberal, as duas grandes doutrinas filosóficas das gerações formadas após as aspirações modernizantes da geração de 1870, antes de tornar-se profundo crítico do darwinismo social e flertar com o anarquismo e as novas visões de mundo sobre igualdade e luta social que passam a circular após a Revolução Russa, de 1917.
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Em Policarpo Quaresma, no entanto, estamos diante do Lima Barreto frustrado e melancólico sobre as promessas de futuro que gerações anteriores a sua nutriam sobre a possibilidade da Nova República, a abolição da escravatura e as reformas urbanas e científicas colocadas em prática na capital. O advento da nova ordem republicana foi marcado por uma série contínua de crises políticas, sociais e econômicas, trazendo consigo grandes ondas intermináveis de deposições, degolas, exílios, deportações, fechamentos do congresso e suspensão de eleições. Eram perseguidos tanto membros das elites tradicionais do Império como também grupos comprometidos com anseios populares das correntes mais radicais do republicanismo. Eram perseguidos e executados tanto os distantes quanto os próximos aos ideais republicanos, conformando um processo convulsivo de seleção política.
Diante da nova paisagem cultural carioca, formada por novos ricos oriundos das substituições das antigas elites por uma nova classe financista adaptada à situação pós-crise do encilhamento, o novo arrivismo sondolidou um novo modelo de “burguês bem-sucedido”. A esta nova mentalidade econômica das elites, soma-se o rescaldo do “jacobinismo” florianista, o qual nutria um nacionalismo militarista raivoso que passa a ditar as tendências dos debates públicos ao longo da virada do século. É neste período que Lima Barreto se forma e ganha fama como escritor e cronista de olhar agudo sobre as transformações diversas vividas no dia-a-dia da nova realidade carioca. Também é neste período que Euclides da Cunha tomará parte em sua expedição a Canudos escrevendo para o jornal Estado de S. Paulo, levando-o a escrever Os Sertões, Olavo Bilac consolidará seu prestígio parnasiano, João Ribeiro publicará algumas de suas principais reflexões estéticas e Graça Aranha conceberá o seu Canaã, para se ter em mente seus contemporâneos de maior prestígio.
Pouco antes do processo de publicação dos folhetins que já teriam como título definitivo Triste fim de Policarpo Quaresma, entre 1909 e 1910 Lima Barreto se engaja na campanha presidencial que representava os desdobramentos destas regressões ideológicas apontadas: o marechal Hermes da Fonseca, que representava o retorno do militarismo florianista ao poder depois dos primeiros presidentes civis com mandatos que não deram conta dos desdobramentos da crise do encilhamento, e Rui Barbosa, famoso jurista, político e diplomata, ex-ministro da Fazenda de discurso civilista e legalista, que fez uma campanha baseada no respeito ás leis, a cultura, a educação e da moralidade pública. Anti-hermista, aderiu a Rui Barbosa, mas não é difícil entrever sua percepção crítica aos dois lados em contenda por trás do idealismo de Policarpo Quaresma e a corrupção da sociedade que lhe faz escárnio.
Ao longo das décadas de 1890 e 1910, convencionou-se destacar a ausência de obras verdadeiramente inovadoras em relação às tradições literárias consolidadas em períodos anteriores, ainda que obras e autores marcantes não faltassem (tanto Os Sertões como Canaã são de 1902, por exemplo). Será preciso esperar até o ano de 1922 para que um sentido de ruptura reaparecesse na literatura como evento irradiador de mudanças de pensamento e de formas de conceber a experiência cultural brasileira como um todo. É neste sentido que se emprega o termo “pré-modernismo”, que não deixa de ser um termo vago, pois serve mais como anteparo para conceber uma periodização (“tudo anterior à semana de 22”) do que para descrever o conteúdo e substância artística de obras colocadas sob um crivo crítico consistente.
No entanto, será predominante nos artistas da época o desrecalque sobre a miséria pasmosa que assolava a maior parte do país e a tomada de consciência sobre os sentidos de uma sociedade de economia dependente e que não conseguiu superar as marcas da
ordem escravocrata e colonial supostamente recém-abolidas com a nova ordem republicana. Será marca maior das obras pertencentes ao chamado pré-modernismo, portanto, a problematização da realidade social e cultural da vida brasileira. Usando a crônica social, a crítica política e a caricatura de costumes e convenções sociais do Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX, antecipavam a explosão de experimentações que dimanará da paulista Semana de 22. É neste sentido que Lima Barreto será tido pela crítica especializada como um dos maiores autores do pré-modernismo brasileiro.
Não serão poucas as críticas contra a obra de Lima Barreto, tanto no calor da hora de sua recepção quanto em momentos diversos de seu desdobramento crítico ao longo do tempo. Foi avaliado como mais preocupado com a crítica social e menos com o rebuscamento e sofisticação da expressão artística e literária, muito mais comprometido com sua realidade imediata e os desdobramentos do meio que o cercava do que com o aprofundamento de suas capacidades criativas na escrita. No entanto, com o passar dos anos, é sua originalidade, sensibilidade, olhar único para as contradições culturais e lucidez de difícil comparação que se tornaram as marcas do reconhecimento de sua obra. Hoje é tido como portador de uma escrita tão viva quanto de Machado de Assis e Joaquim Nabuco em termos de atualidade e percepção de permanência. Entre os requisitos de sua escrita engajada, estava o imperativo da sinceridade, de modo que a prosa transmita diretamente os sentimentos e as ideias do escritor, presando a simplicidade e a clareza. Em seu modo de entender, há um propósito na literatura e o escritor é portador de uma missão: contribuir para a construção da liberdade no convívio entre os homens.
Será um exemplar misturador de problemas pessoais com as questões sociais, sendo possível encontrar diversos elementos da biografia de Lima Barreto em suas obras (a insanidade de seu pai e a própria internação num hospício e a insânia e internações dos personagens em Triste fim de Policarpo Quaresma; os bairros e paisagens urbanas que presenciava e os cenários de seus romances; quase todos os livros citados como parte da biblioteca de Quaresma eram títulos na biblioteca pessoal de Lima Barreto). Na trajetória trágica de Policarpo Quaresma encontramos o máximo da capacidade expressiva de Barreto como ficcionista, cumprindo com a junção de questões particulares da época com o espírito geral do tempo histórico que se desdobrava. Forjou, assim, um romance histórico brasileiro estranho e singular, em que os traços negativos das derrotas sobre esperanças por outro país que ainda não se formou, mais justo e mais sensibilizado com as várias desigualdades e iniquidades que o conforma, pudessem ser configuradas artisticamente.