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Jornal Laboratório da Faculdade de Comunicação da UFBA Foto: Walter Mauro/Labfoto
2019.2
Páginas 26 e 27
Future-se não é o futuro Páginas 17, 18 e 19
Página 32
Repórter embarca na linha de
Linha Azul separa amigos e
Redução de Danos se reinventa
ônibus mais extensa de Salvador
familiares na Baixa dos Frades
e ocupa festas raves
Páginas 12 e 13
Foto: Luisa Calmon/Labfoto
A
primeira década do século XXI chega perto do fim. Muito se especulou sobre o novo ciclo: tecnologia era a esperança para uns; outros, como os Racionais MC’s, esperavam tempos de colheita após tanta luta. “Procure a sua, a minha eu vou atrás. Vamo junto, da fórmula mágica da paz”. Bem, a fórmula ainda não apareceu. Mas a tecnologia avançou e trouxe junto a possibilidade de algumas minorias se fazerem visíveis. Pautar e ser pautado. Novos termos surgiram, um monte de coisa - umas boas, outras nem tanto - aconteceu. Uma das novidades é o tal do “Lugar de Fala”, pregando que para falar de alguma coisa é necessário viver. Ter a experiência. Sentir na pele antes de falar da realidade dos outros. Radicalismo à parte, foi a busca por um lugar de fala que moveu esta 2ª edição do Jornal da Facom. Fomos às ruas porque é do que acontece por lá que vive um repórter. Como é a rotina de quem depende da linha de ônibus com trajeto mais extenso de Salvador? Qual a sensação de ir ao zoológico pela primeira vez? Como lidar com um projeto que eliminou casas e afastou velhos amigos, vizinhos e conhecidos em nome do progresso? O que um grupo de idosas e idosos têm a dizer sobre suas vidas dentro de um asilo? Esta edição fez da experiência pessoal uma técnica de apuração. A partir disso, vieram algumas respostas. E dúvidas. Por que não? Seja muito bem-vindo, experimente! Vivencie! O que é a vida senão um montão de coisa? Vinícius Nascimento
Produção da disciplina Oficina de Jornalismo Impresso Segunda edição, semestre 2019.2 Reitor: João Carlos Salles Diretora da Facom: Suzana Barbosa Coordenação Editorial: Alexandro Mota - DRT/BA 4634 Dezembro 2019 Jornal Laboratório da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia Rua Barão de Geremoabo s/n, Campus de Ondina CEP 40.170-115 Salvador – Bahia - Brasil
Editores: Catarina Carvalho, Éloa Silva, Gleyce Nascimento, Leo Oliveira, Leonardo Lima, Marcio Smith, Rayssa Machado, Sarah Cardoso, Victor Meneses e Vinícius Nascimento. Repórteres (turma 2019.2): Adele Robichez, Alisson Oliveira, Ana Generoso, Carlos Magno, Catarina Carvalho, Fabio de Souza, Felipe Aguiar, Gilberto Barbosa, Gleyce
Nascimento, Gustavo Arcoverde, Gustavo Pimentel, Ian Reis, Icaro Lima, Jamile Freitas, Kizzy Lumumba, Krishna Zarah, Leonardo Lima, Léo Oliveira, Luciana Koeppel, Lula Bonfim, Marcelo Costa, Marcio Smith, Maria Clara Andrade, Nathália Amorim, Cesar Oliveira, Raquel Leal, Rayssa Machado, Romario Almeida, Sarah Cardoso, Victor Meneses, Vinícius Nascimento e Yasmin Santos. Fotográfos Labfoto: Benedito Cirilo, Bianca Dória, Dan Figliuolo, Eloá Silva, Jamil Godinho, Luisa Calmon, Raquel Franco, Thaís Chaves, Vitor Menezes e Walter Mauro. Projeto Gráfico: Amanda Lauton Carilho/EDUFBA Diagramação: Rayssa Machado Distribuição gratuita
Foto: Acervo Pessoal
Status: online
Para trabalhar com o celular de forma saudável, Thays fez ajustes na rotina Alisson Oliveira
“E
u chegava em casa, do trabalho, e ia direto para o computador. Antes de dormir, chegava a ficar duas, três horas passando o dedo na tela do Facebook, só para ver as besteiras que meus amigos postavam. Não acrescentava nada, mas sempre foi uma forma de passar o tempo, fugir do tédio. O problema é que minha esposa já estava esgotada com minha ausência. Separamos depois de sete anos de casamento”. O relato de um gerente de TI de 37 anos, que pediu para não ter seu nome divulgado, reflete uma realidade do país: o brasileiro passa mais de um terço do dia conectado à internet. O senso comum classificaria logo esse perfil como o de “viciado em internet”. Porém, especialistas têm buscado relativizar o tempo na frente da tela para pensar que o mais importante é a qualidade desse acesso e os momentos de desconexão. Eles defendem que o diagnóstico deve ser cuidadoso e a análise é caso a caso. Brasil conectado O brasileiro está no topo dos rankings de acesso às redes sociais. Segundo dados divulgados em 2019 pela We Are Social, em parceria com a Hootsuite, empresas especializadas em marketing digital, o Brasil é o segundo país que mais acessa o Facebook e o terceiro em acesso ao Instagram. Ainda de acordo com a pesquisa, os brasileiros passam em média 9h29min JORNAL LABORATÓRIO | FACOM/UFBA
Brasil é o segundo país que mais acessa o Facebook e o terceiro em acesso ao Instagram conectados, enquanto a média global é de 6h42min, ficando atrás apenas das Filipinas. Desse tempo de conexão dos brasileiros, 03h34min são dedicados às mídias sociais. Apesar dos números sugerirem, o tempo de conexão não necessariamente é um problema. Existem diversas atividades cotidianas que estão inseridas neste uso e não dão indícios de distúrbios psiquiátricos. Atualmente, é possível pedir de comida a transportes por aplicativo, aprender uma nova receita culinária, trocar informações sobre como resolver problemas do dia a dia, assistir aulas da faculdade ou socializar com pessoas distantes. Poderia se afirmar que pessoas que dedicam horas do seu dia a essas atividades, por exemplo, são viciadas em internet? Para a psicóloga Bruna Lantyer, especialista em Análise do Comportamento, a resposta é não. “O tempo não é uma boa variável para avaliar se o comportamento faz parte de algum distúrbio ou não. Outras variáveis devem ser analisadas, como se há comprometimento de outras atividades da rotina do indivíduo”, afirma Bruna. Equilibrar é preciso Para Maurício Moura, psicólogo e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Interação, Tecnologias Digitais e Sociedade (Gits), a utilização da internet e de tecnologias passa a ser prejudicial quando interfere diretamente nas relações pessoais e atividades do cotidiano. “Se está prejudicando o seu relacionamento e o seu viver face a face, então é ruim. Há um juízo de valor em que o real sobrepõe o virtual. Quando o contrário acontece, aí estamos no momento de reduzir o
Os limites entre o uso saudável da internet e a compulsão uso e vivenciar outros contextos”. “Outra avaliação que podemos fazer é se estamos dando prioridade aos relacionamentos temporários encontrados no mundo virtual, em detrimento de relacionamentos duradouros da vida real”, complementa ele A Criadora de Conteúdo Thays Bezerra, 24 anos, afirma que já chegou a ficar cerca de doze horas conectada à internet devido à natureza de sua atividade profissional. Neste período, teve sua saúde comprometida. “Desenvolvi uma enxaqueca. Tive de começar a usar colírio para hidratação, devido ao ressecamento causado pela exposição dos olhos a dispositivos eletrônicos”.
A internet é uma grande arena social e a partir dela é possível estabelecer relações de todos os tipos Bruna Lanthyer, psicóloga e especialista em análise do comportamento Ela conta que, durante este período, passou a recusar convites, por se sentir cansada, e ouvir reclamações de familiares quanto à sua interação nos eventos. “Já tive alguns problemas em momentos de família, quando eu tinha de entregar algum tipo de trabalho e estava no celular. Hoje, até que a maioria já entende que é um trabalho, mas antes ouvia sempre pedidos para sair do celular e aproveitar o momento”, conta Thays. Atualmente, ela controla o tempo de conexão utilizando recursos do próprio celular e reduziu o número de horas à frente do dispositivo para cerca de 05h30min por dia. Ela comemora que está utilizando suas horas de forma mais saudável, dedicando espaço para a vida social e à família e que, muitas vezes, prefere até sair sem o celular.
Opções de aplicativos que auxiliam a controlar o tempo no celular FOREST APP
MOMENT
Controle do uso de forma lúdica. Neste jogo, uma floresta se desenvolve quanto mais tempo o usuário se mantém desconectado. Pode ser baixado no Android e IOS.
O app contabiliza o tempo de utilização de cada aplicativo, como Facebook e Instagram, e gera um relatório ao usuário, possibilitando um controle mais rígido das horas dedicadas ao uso do celular. Disponível apenas no IOS.
FLIPD
SIEMPO
Disponível para Android e IOS, a ferramenta pode bloquear completamente o aparelho e um temporizador é exibido na tela ou um vigilante rodando em segundo plano, enviando alertas ao usuário.
Disponível apenas para Android, quando acionada, a ferramenta bloqueia aplicativos que podem distrair o usuário, como jogos, redes sociais e lojas de aplicativos.
CULTURA E COMPORTAMENTO | PÁGINA 3
João Pedro joga League of Legends há sete an
Gaymer
Foto: Acervo Pessoal
Batalhando contra preconceito, comunidade LGBTQI+ marca presença em jogos online e plataformas de streaming
Gustavo Pimentel
A
pós cair de uma prancha voadora em uma arena, você precisa derrotar 99 adversários. Assim começa a partida de Cyber Hunter, jogo online futurista do gênero Battle Royale. Uma das jogadoras por trás da partida usa uma peruca lilás, maquiagem e barba. A drag queen e streamer Samira Close transmite o jogo ao vivo. “Me diz uma coisa, você está solteiro?”, brinca com um parceiro de equipe pelo microfone. A partida segue entre tiros, barreiras e motos. A drag se assusta com o colega que surge atrás dela no jogo. “Que susto, puta que pariu, quase me mijei”, ri. Após algumas partidas e muitas piadas, ela finaliza a transmissão dançando e cantando “Bomba Kleyton”, da cantora e drag queen Kaya Conky. Desde que surgiu, em meados da década de 70, o nicho dos games é rotulado por ser voltado para um tipo de sujeito: homem, heterossexual, cis. Mas o mundo digital está observando uma ocupação diversa. Atualmente, nota-se a presença marcante da comunidade LGBTQI+ no universo gamer. A afinidade de João Pedro Carvalho com jogos surgiu desde criança, quando jogava Warcraft no computador do pai. Digimon, Spyro e Crash foram os primeiros jogos que zerou. “Depois disso foi só amor”, lembra o estudante de 21 anos. Com sete anos de experiência com o League of Legends, percebeu que jogar com alguns heterossexuais pode ser desagradável. Ele reclama das piadinhas que apenas eles acham graça. “É insuportável”, diz.
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Contudo, o jogo parece ter virado. “Os jogos acompanham o debate da sociedade, de alguma maneira”, avalia André Lemos, professor e pesquisador da Faculdade de Comunicação da UFBA. Jogadores constatam o surgimento de personagens LGBTs dentro dos jogos, aumento do número de streamers da comunidade e até mesmo um clima mais confortável para se expressar abertamente. Representatividade no stream Com 25 anos, a drag queen e streamer cearense Samira Close se tornou um ícone no mundo gamer. Chamada de ‘madrinha’ pelos seus fãs, alcança 10 mil espectadores simultâneos em suas transmissões ao vivo e é vista como referência pela comunidade LGBTQI+. Samira já se comparou a Pabllo Vittar do mundo gamer, pois defende que revolucionou e abriu muitas portas. No início, ela não fazia vídeos montada de peruca e maquiagem. O que a motivou a fazer lives como drag queen foi a falta de streamers com os quais pudesse se identificar.Samira também se junta com a streamer Rebeca Trans, a drag Kaya Conky e a cantora trans Danny Bond para jogar Free Fire. Esse quarteto poderoso rende muitas visualizações e é aclamado pelos fãs. “Rainhas, perfeitas, sem defeitos”, comenta um internauta em um dos vídeos do YouTube. Laio Ribeiro, 18 anos, estudante e membro da atlética de League of Legends da Politécnica, acredita que ainda existe muito preconceito dentro do jogo mas ele é uma exceção entre os games. “É o mais
jogado do mundo e acaba tendo muitas pessoas de todos os tipos. Então, tem muitas pessoas preconceituosas, assim como tem muitas mulheres e LGBTs, o público é bem diverso”, argumenta. O debate tem fomentado eventos sobre a pauta LGBTQI+ nos jogo. Além disso, times incentivam a entrada de mulheres dentro do cenário profissional do jogo.O LoL lançou recentemente sua primeira personagem lésbica, a Neeko. João Pedro conta que a Riot A comuni deixa isso bem claro, tanto nas histórias, quanto nas falas ducomeçou a en rante o jogo. “Ela sempre dá comunidade L uma cantada em algum personagem feminino e isso mostra com mais forç que, mesmo aos poucos, está representativ havendo um progresso”. Cyber Hunter e interatividade
Samira Close, drag qu
Em junho deste ano, a streamer Samira Close transmitiu a primeira live jogando Cyber Hunter, e, desde então, o seus fãs entraram em peso. Para o professor André Lemos, nesse caso, houve uma apropriação do videogame pelo público da drag queen. Segundo ele, o mais interessante é mostrar o cruzamento de plataformas, como uma youtuber fez com que um determinado grupo entrasse de forma mais forte nesse jogo. “Acho que isso faz parte de uma coisa muito positiva que é utilizar essas redes para pluralizar”, opina. Por conta disso, o jogo é conhecido por seu granJORNAL LABORATÓRIO | FACOM/UFBA
Foto: Divulgação
nos
Samira Close, drag queen e streamer
de público LGBT. Ao abrir o chat da plataforma, é comum encontrar convites para entrar num esquadrão (equipe de quatro jogadores), com as seguintes mensagens: “Pocs com microfone” ou “Só viados”. Há quem se sinta acolhido no ambiente digital do jogo. “Estou lá pra me divertir e tem pessoas que têm interesses em comum, então acaba sendo bacana, porque a gente se sente confortável”, conta Bruno Inoshita, 22 anos, estudante. Para ele, não há o medo de ser mal interpretaidade gamer do, como já aconteceu em outros jogos. nxergar a O game, de tema futurista, LGBTQI+ tem uma função curiosa que se ça, com mais chama ‘momentos’, que funciona como um feed, onde os jogadovidade res podem publicar fotos, textos, placares, além de comentar e ueen e streamer curtir os posts dos amigos. Isso aproxima os jogadores, pois, às vezes, rola um interesse pela voz, uma stalkeada, e eles acabam trocando redes sociais, conta Inoshita. “Você conversa, descobre que têm coisas em comum, que gostam de outras coisas além do jogo e às vezes desenvolve uma amizade, um coleguismo. Conheci muita gente lá”, completa. Há grupos que realmente se empenham em garantir a diversão e repudiam comportamentos tóxicos. Na cidade de São Paulo, um grupo de homens gays se reúne quase que diariamente para jogar, principalmente League of Legends. Tiago Vieira, 32 anos, analista de controle de qualidade e administrador do JORNAL LABORATÓRIO | FACOM/UFBA
grupo, está tendo uma experiência gamer positiva. “Pouco tempo atrás, fizemos um encontro, jogamos, comemos pizza e bebemos. Foi super divertido”, relata. As reuniões são tanto online, cada um na sua casa, quanto presenciais. O grupo, formado há cerca de um ano e meio, atualmente é composto por 31 membros. “Não gosto de grupos grandes, pois não acontece de criar afinidades”, opina Tiago. Segundo ele, o intuito do grupo é promover amizades. “A ideia surgiu de um amigo que estava usando um aplicativo de relacionamento gay e lá teve a ideia de formar o grupo”, explica o analista. Ele foi um dos primeiros a entrar devido a quantidade de jogos que possui. “O maior benefício é fazer amigos. Todos somos muito diferentes, mas existe essa paixão por jogos que nos une. Conseguimos nos divertir de forma igual, saudável e pondo de lado o padrão que o povo fala que gamers são anti-sociais”, diz. Preconceito e rota de fuga É comum encontrar homofobia e cyberbullying dentro dos jogos. Os jogadores com um perfil conservador, tendem a enxergar o jogo de forma dissociada de questões sociais que envolvem a cultura, de acordo com Daniel Marques, pesquisador e professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. “É por conta disso que a gente vê muitos casos de atitudes tóxicas em ambientes online relacionados a jogos”, explica. As mulheres também sofrem muito preconceito no ambiente gamer, apesar de dados mostrarem
que elas são maioria entre os jogadores: em 2018, o Pesquisa Game Brasil divulgou que elas representam 58,9% dos gamers do Brasil. Comentários como “lugar de mulher é na cozinha” e assédio como homens pedindo número de telefone e redes sociais são corriqueiros. Enfrentar bullying e piadinhas faz parte da rotina de jovens LGBTs. Por conta disso, muitos encaram os jogos como rota de fuga dessa triste realidade e torcem para que nele os problemas não se repitam.
Glossário Streaming: é o termo que define transmissões de partidas de jogos ao vivo na internet. Sendo possível acompanhar em plataformas específicas como Twitch, CubeTV e Facebook Gaming. MOBA: é um gênero de jogo no qual o jogador controla um personagem em uma batalha entre duas equipes adversárias, com o objetivo de derrotar a base inimiga. Battle Royale: é um gênero de jogo que envolve elementos de exploração e sobrevivência. O jogador deve coletar recursos como equipamentos e armas em uma arena para combater os adversários, com o intuito de ser o último sobrevivente.
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Fotos: Gleyce Nascimento
Vozes que deixamos de ouvir Ana Maria, 86 anos
Dois dedos de prosa com senhoras que vivem em abrigos de Salvador e sentem falta de conversar Gleyce Nascimento
“M
enino! Ouça os mais velhos!”. Na infância e na adolescência é comum não entender bem o significado desta frase. Não ligar. Obedecer ao comando dos pais por uma questão de respeito e para não levar um puxão de orelha ou beliscão, é claro. Mas mesmo na fase adulta em que ampliamos a nossa percepção de mundo, parece que deixamos de ouvir e conversar com pessoas com mais idade que nós: como nossos avós, por exemplo. O que mudou? Para a psicóloga Francilda Lima, 61 anos, a forma de lidar e viver os valores não é mais a mesma e isso alterou a maneira de nos relacionarmos. “A gente vive numa sociedade do espetáculo. Perdemos a capacidade de dar e demonstrar afeto e não precisa estar dentro de um asilo para sentir isso. O asilamento acontece até dentro de casa. Todo mundo conectado e o idoso na cadeirinha com sua companheira: a televisão.” Como isso nos afeta? Podemos pegar emprestado o clichê “o jovem de hoje é o idoso de amanhã”. Dados do Ministério da Saúde apontam que, em 2030, o número de pessoas idosas superará o de crianças e adolescentes de zero a quatorze anos. É! O número de idosos está crescendo. Atualmente, eles compõem um grupo de mais de 28 milhões de pessoas, o equivalente a 13% da população brasileira. Em 2060, serão 58 milhões de idosos, conforme os dados e projeções do IBGE. E como olhamos para essas pessoas? Ao ouvir, nos permitimos conhecer. Passamos a entender como o outro se sente e nessa interação nos vemos no lugar daquele que fala. Embora todas as idades sejam idades da pessoa humana, a lei 10.741/03 define o idoso como a pessoa com idade igual ou superior a 60 anos. Ana Maria, Júlia Ferreira, Cristina Mascarenhas e Diana Silva são as protagonistas desta matéria. Elas vivem nos abrigos Lar Projeto de Deus (no Caminho de Areia) e Lar Frei Lucas de Mourais (no bairro do Bonfim), que ficam na Cidade Baixa, em Salvador. Conheça as aspirações, lutas e conquistas vivas nas vozes dessas quatro mulheres.
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Cristina Mascarenhas, 66 anos “Sinto falta da liberdade, de pisar na areia da praia, ver as ondas, sentir o vento. Mas aí apareceu esse negócio da artrite reumatoide e me jogou na cama. A gente espera pela velhice, eu sei, mas naturalmente, como minha mãe que morreu com 86 anos de idade”. Cristina apresenta o seu diário. Nele, todos que a visitam são intimados a escrever e ler para ela a experiência daquele momento compartilhado. “Quero me sentar e passar batom”, disse ela fitando-me docilmente. Cristina escolheu o batom vermelho e as argolas redondas.
Diana Silva, 73 anos “Amigos para conversar? Eu tenho aqui.” Minutos antes de me aproximar, Diana compartilhava o tempo e o sofá com um casal de amigos. A expressão risonha criava uma atmosfera de intimidade ao seu redor. “Em casa eu ficava só. Tinha uma moça que fazia faxina, preparava a comida e eu só esquentava. Mas ela ficava um dia e depois ia embora”. No abrigo, além dos amigos, Diana gosta de assistir TV para se distrair e de fazer crochê. Entre uma conversa e outra, ela deixou escapar uma conquista recente: “uma moça esteve aqui e pediu para a gente fazer um desenho. Eu não queria, mas fiz. Gostei! Ficou bonito”.
“Estou com um espelho aqui, porque toda hora olho para ver como está essa fisionomia, mas me vejo tão diferente. Diferente do tempo jovem”. Com a mão esquerda, Ana Maria segura um espelho redondo e com a outra toca levemente a face. A testa franzida e o modo como olha a si mesma dizem algo: sua memória busca outra imagem. “Mudou o jeito do corpo. Mudou muita coisa. Uma das coisas é a maneira de apalpar. Sinto uma certa dificuldade nos músculos. Se eu for assinar algo, a assinatura sai diferente. A velhice vai transformando muito a gente, sabe? Ela não incomoda porque todos esperam por ela. Agora, a gente sente muita saudade da juventude. Mas é a sequência da vida, não é? ”
Júlia Ferreira, 80 anos “Quero mesmo é dançar!”. Era hora do almoço na Enfermaria Mãe Rainha, nome do quarto exclusivo de Júlia. Com uma mão na coxa da galinha e a outra no meio do peito, ela tinha acabado de manifestar seu desejo a amiga Débora que prometeu cumpri-lo na próxima visita. A promessa? Um CD de seresta! A energia de Júlia dividiu espaço com um lamento profundo expressado na saudade que sente dos filhos. “A gente cuida deles, faz de tudo e depois que crescem, esquecem da gente. Mas Deus está vendo, não é? Um dia eles vão se dar conta”. JORNAL LABORATÓRIO | FACOM/UFBA
Fotos: Gabriela Nogueira/LabFoto
idosos_n@rede.com Idosos buscam inclusão digital para serem vistos e ouvidos Luciana Koeppel
O
professor Alex Garcia, 43 anos, já está na sala quando os primeiros idosos chegam para a aula de Habilidades Digitais na Faculdade da Felicidade. Em seus rostos marcados pelo tempo, há um misto de expectativa e apreensão por este mundo digital ainda ser um universo novo para eles. Porém, a vontade de se comunicar e inserir-se na sociedade digitalizada é maior e dá, a estes grisalhos marinheiros de primeira viagem na arte da digitação, a coragem para navegar pelo mundo digital. Voltada exclusivamente para o público idoso, a Faculdade da Felicidade possui diversos cursos durante toda semana, mas para esses novos desbravadores do espaço virtual, com idades entre 70 a 80 anos, é nas tardes de terça que seus anseios são atendidos. Com paciência e dedicação, o professor Alex guia cada um dentro de suas especificidades. Ativos, eles vivem JORNAL LABORATÓRIO | FACOM/UFBA
o agora e têm pressa em também usufruir deste universo que se apresenta como uma nova porta para a sua comunicação e sociabilização. Há sete anos incluindo digitalmente este público, Alex notou o quanto adaptar o seu curso aos interesses da turma, respeitando as especificidades de cada aluno, é essencial para motivar esta geração, que se vê entre o fascínio e o temor diante da tecnologia. “O idoso tem uma dificuldade maior porque a tecnologia não faz parte de sua geração. Eles entram aqui meio com medo, mas acham maravilhoso essa facilidade que a internet proporciona”, revela, enfatizando que a paciência e o respeito à experiência de vida destes alunos também são grandes facilitadores no processo de aprendizagem. Pesquisa e família Além da transmissão do conhecimento, Alex faz atividades que estimulam a aplicação das habilidades,
incentivando a socialização e a realização de projetos de alunos. Um exemplo é o jornalzinho “Felicidade News”, criado por Alex, em que cada aluno escreve sobre um assunto que se identifica. A bem humorada servidora pública aposentada Marinalva de Souza, 75 anos, fez questão de participar com a piada. “Isso é um desafio pra mim. Eu, aqui, escrevendo um jornal, a essa altura da vida! É muito bom a gente se sentir útil”, conta, orgulhosa de sua contribuição. Além do noticioso, essa moradora de Brotas também pesquisa música e figurino no Google e Youtube sobre os Novos Baianos para a peça “Tropicália” do seu curso de teatro. O material coletado é partilhado no grupo de Whatsapp do curso, “Felicetes”, e avaliado pela professora. Curiosa, Marinalva encontrou na pesquisa da internet um de seus maiores prazeres. Pelo espaço virtual, ela faz compras, ouve músicas e acompanha receitas, sentindo-se empoderada por ser capaz de encontrar o que quer. Se as mil possibilidades de pesquisa a fascinam
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hoje, foi a saudade de mãe que a levou ao mundo digital. “O que me motivou foi a minha filha, que mora no exterior. As contas de telefone estavam faraônicas. O Skype [aplicativo de chats e chamadas gratuitas] salvou a minha vida”, revela. Sua primeira experiência foi num curso básico de informática padrão e o estímulo do filho, que doou o próprio computador para a sua prática, foi crucial para que ela firmasse a nova linguagem, juntamente com um caderninho em que faz anotações para evitar a troca dos termos. “É como se eu tivesse aprendendo o ABC”, justifica.
Foi justamente os jogos que atraíram Judite Alves, 85 anos, ao curso de Habilidades Digitais. Há mais de 60 anos no Brasil, essa portuguesa prendada na arte do crochê, desde que enviuvou, mudou-se de São Félix para a casa de sua filha em Salvador, para ficar mais próxima de seus três filhos e netas. Sempre muito ativa, ela buscou a faculdade para socializar e fazer novas amizades através das atividades promovidas na instituição. Já a entrada no mundo digital foi estimulada por sua filha. “Ela é médica e sempre me disse que a computação faz bem a memória, por isso eu me dedico mais aos jogos, porque na minha Memória ativa idade eu preciso ter sempre um raciocínio perfeito”, revela diante do Ciente do benefícomputador em que joga caça-pacio neurológico que a lavras, seu jogo preferido. Quem a tecnologia digital pode vê hoje digitando não imagina que, proporcionar, a diretora há dois anos, ela não sabia nada de da Faculdade da Felicicomputador e tinha dificuldade em dade, Lucinha Palmeira, aprender a linguagem digital. “Eu 71 anos, usa a experiêncheguei zerada mesmo e achava Alex Garcia, professor do curso cia que adquiriu em mais que não ia conseguir. Ter aprendide 20 anos na Faculdade do os jogos no computador e tudo Livre da Terceira Idade das Faculdades Integradas isso foi uma surpresa pra mim. Me surpreendi comigo Olga Mettig (Famettig), a primeira do norte-nordeste mesma”, comemora. Além disso, Judite se diz feliz por dirigida à este público, para ajudar Alex com um conmanter-se ativa e consciente. teúdo digital que desperte o interesse por sua familiaridade. Assim, no intuito de exercitar a memória, Abraçando o futuro os clássicos jogos de cartas e palavras cruzadas são apresentados aos idosos na forma digital em sites e Pertencente à geração da datilografia, Carlos aplicativos. “Se eles gostam disso, temos que exploSampaio, 85 anos, médico sanitarista aposentado, rar, apresentar para eles esses jogos, porque essas viu na digitação um prazer a mais na sua vida. “Eu brincadeiras têm um efeito muito positivo na memógosto muito de escrever. Inclusive, estou publicando ria”, afirma Lucinha. meu segundo livro agora!”, anuncia, já convidando
O segredo é você ensinar ao idoso o que ele quer aprender
As particularidades de cada aluno são respeitadas nas aulas para o pré-lançamento de “Crônicas e Poemas do Coronel”, inspirado em um personagem de “Cabaret”, última peça que encenou na Faculdade da Felicidade. Esse filho de Ilhéus criado em Salvador, iniciou-se no mundo digital há 15 anos, num curso de informática padrão. Na época, o computador era como um bicho de sete cabeças, mas ele viu que se não o abraçasse, ficaria pra trás. “O mundo encolheu. Se você não entrar no mundo digital, você não vive o hoje, você vive o tempo passado”, reflete Carlos, que se diz fascinado com o potencial comunicativo da internet ao lembrar do seu tempo de namoro, repleto de cartas com respostas desencontradas. Desde que se incluiu digitalmente, ele já foi blogueiro, publica artigos no Facebook, é ativo no Whatsapp e Messenger, edita fotos e filmes, usa aplicativo bancário, além de exercer o seu lado escritor, iniciado com a autobiografia romanceada “Ela disse sim”, uma homenagem à esposa Sônia. A prática da digitação o fez trocar o computador pelo tablet, mais leve e mais fácil de manusear, segundo ele. Antenado nas novidades da tecnologia e quase um autodidata, Carlos prova o quanto essa nova geração de cidadãos digitais é capaz e faz planos ambiciosos para o futuro, “eu ainda quero implantar um chip na minha cabeça, porque eu sei que isso já existe. Aí a memória vai ficar melhor. Vai ser uma beleza.”
Para Alex Garcia, a paciência e o respeito facilitam a aprendizagem PÁGINA 8 | CULTURA E COMPORTAMENTO
JORNAL LABORATÓRIO | FACOM/UFBA
É como se eu tivesse aprendendo o ABC da tecnologia Marinalva de Souza, servidora pública aposentada
Relevância dos cursos
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JORNAL LABORATÓRIO | FACOM/UFBA
Eu fui do tempo do namoro por carta e hoje, com um aparelhinho [celular], se fala a qualquer hora com quem quiser, então isso é fantástico! Carlos Sampaio, médico aposentado e escritor
Foto: Luciana Koeppel
concepção de envelhecimento ativo, em que idosos buscam a inclusão digital para se reconectarem com a sociedade como cidadãos digitais participativos, é tema em pesquisas recentes dos orientandos da professora Maria Helena Bonilla, vice-líder do Grupo de Educação, Comunicação e Tecnologias (GEC) da Faculdade de Educação da UFBA. A professora frisa que, nessa fase da vida, esse público não está interessado em aprender o conteúdo de um curso de informática voltado para o mercado de trabalho, nem fazer provas e dever de casa como no período escolar. Cursos com metodologias padronizadas, que ignoram os seus interesses individuais e as diversas especificidades entre as faixas etárias, também geram a sua evasão. “Tem que ir atrás deles individualmente, mapeando quem são, o que querem. E isso depende muito da etapa da velhice, das diferentes faixas etárias”, explica. A professora Bonilla relata a importância motivacional da família para o idoso, que busca no potencial comunicativo digital, uma forma de se reconectar com familiares e sair do isolamento social. Quando o estímulo se soma a valorização e a facilidades de acesso que favorecem um melhor aprendizado, o idoso se sente ainda mais impulsionado em atingir o seu objetivo e vencer o desafio tecnológico. “Isso dá a eles uma auto-realização que é fundamental inclusive para saúde psíquica e para saúde física deles”, esclarece Bonilla, acrescentando ainda que as articulações são beneficiadas por se exigir uma motricidade fina mais elaborada. Também há pontos positivos para a memória, pois sempre que o idoso busca algo do seu interesse na internet, seus neurônios são ativados e suas faculdades mentais são exercitadas através de associações, preservando as funções do cérebro que, nessa fase, definham por conta do isolamento social. Diante de um mundo digital cada vez mais interligado à vida real do usuário, a procura de idosos por cursos que os incluam digitalmente apenas reflete o desejo destes indivíduos de continuarem sendo valorizados e participantes na sociedade. Segundo Bonilla, trata-se de uma questão social que carece de mais política pública de âmbito digital para atender a população idosa expressivamente, visualizando todo o seu potencial de cidadão e experiência de vida. E conclui, “é uma troca, pois se nós não valorizarmos os saberes deles, eles não vão valorizar o nosso saber”.
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#poetasnoinstagram Como a poesia tem florescido e se popularizado nas redes sociais Ana Generoso
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@prezadoeu
Poeta há dois anos, a estudante do ensino médio Ana Clara Pinto, 16 anos, publica suas poesias no Instagram há cerca de um mês.
Fotos: Divulgação
inco livros de poesia entraram para a lista das 20 obras de ficção mais vendidas no Brasil, em 2018, e pela primeira vez na história da categoria, o livro mais vendido foi uma coletânea de poesia. Desde a criação da lista em 2010 pela PublishNews, só dois haviam conseguido entrar e ambos apenas em 2017. Quatro dos cinco livros de poesia que entraram para a lista de best-seller nacional, inclusive o primeiro lugar, são obras de poetas e coletivos que nasceram de pequenos perfis nas redes sociais. Eles exemplificam o novo fenômeno do mercado literário: os poetas de Instagram. Esta categoria alcançou o mainstream mundial em 2014, na figura da poeta canadense Rupi Kaur, que vendeu mais de 2,5 milhões de cópias de Milk and Honey (Outros jeitos de usar a boca). O coletivo @textoscrueisdemais, com 1,1 milhão de seguidores e mais de 700 postagens no Instagram, conquistou o primeiro lugar na categoria ficção com Textos Cruéis Demais (Globo Alt). Foi através de sua extensa base de leitores, não apenas no Instagram mas também no Facebook e Twitter, que conseguiram chamar a atenção da editora. “#poetry: can instagram make poetry cool again?” é um documentário que explora o crescimento dessa comunidade que produz e aprecia poesia na rede, além de levantar o outro lado da moeda: a resistência, principalmente do meio acadêmico, em levar à sério os ‘poetas de Instagram’ A diretora e roteirista do documentário, Ariel Bissett, questiona por que consideramos o público desses poetas como ‘seguidores’ ao invés de simplesmente leitores de poesia. É essa distinção que gera a maior parte do preconceito e desvalorização do trabalho de quem posta nas redes. “Se as redes sociais tem o poder de influenciar eleições presidenciais”, afirma Bissett em relação à campanha de Trump, “por que acharíamos que não tem o poder de impactar a poesia?”. O documentário está disponível na íntegra no Youtube.
@castelosnoar_
A estudante de Jornalismo Maysa Polcri, 19 anos, escreve poesia há cerca de cinco meses. Para ela, postar poesias na rede é um hobby.
@assintoticos
Lucas Dahia, 20 anos, estuda Engenharia e é poeta nas horas vagas há um ano e meio. Para ele, posts são uma espécie de publicação independente.
PÁGINA 10 | CULTURA E COMPORTAMENTO
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Ilustração: Rayssa Machado
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CULTURA E COMPORTAMENTO | PÁGINA 11
# JF OPINIÃO
Rota 1470 Fotos: Ian Reis
Uma manhã no maior trajeto do transporte público de Salvador Ian Reis
A
zul, verde e amarelo. Cerca de 2.400 ônibus rodam todos os dias as ruas da capital e percorrem milhares de quilômetros. 160 milhões, para ser mais exato, levando 432 milhões de passageiros, em 2018, segundo relatório divulgado pela Secretaria de Mobilidade (Semob). A linha 1470, Fazenda Grande 4/3/2 - Pituba, da concessionária Ótima Transportes (OTTrans), percorre 92,95 km no percurso de ida e volta. Com isso, ela é linha mais extensa da cidade. Saindo da Rua Luis Martins Catharino, Cajazeiras, o primeiro da linha começa a rodar às 4:30 e chega à Rua Território do Guaporé, Pituba, por volta das 6:00. Sem as paradas e as voltas que o ônibus dá, de carro, é possível sair e chegar nos mesmos lugares em 30 minutos. Em 2015, três consórcios começaram a operar o sistema de transporte coletivo em Salvador. As principais empresas de ônibus da cidade se fundiram e formaram os três consórcios que compõem a Integra. A Concessionária Salvador Norte (CSN), dos ônibus azuis, faz os roteiros Centro/Orla; a Plataforma Transporte, dos ônibus amarelos, cumpre os roteiros do Subúrbio; e a Ótima Transportes (OTTrans), dos ônibus verdes, é responsável pelos roteiros do miolo da capital. Segundo o Urbaianos, a linha 1470 foi criada em meados dos anos 2000. Inicialmente, a extinta empresa Capital operava a linha, até 2014. Após isso, a empresa Central operou por 4 meses, até a operação atual dos três consórcios que atuam em Salvador.
As 10 linhas mais extensas de Salvador 1470
Fazenda Grande 4/3/2 - Pituba
92,95 km
1403
Cajazeira 11 – Ribeira
86,61 km
1431
Boca da Mata – Lapa / Barra
85,98 km
N011
Lapa - São Cristóvão
81,72 km
1022
Praia do Flamengo - Lapa
80,90 km
1428
Cajazeira 11- Lapa / Barra
80,50 km
1030
Praia do Flamengo
79,42 km
1475
Águas Claras – Pituba
77,99 km
1439
Fazenda Grande 4/3/2 - Comércio
76,77 km
S011
Praia do Flamengo - Praça da Sé
76,31 km
Chegando no meu ponto final, no Bom Juá PÁGINA 12 | CIDADES
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E
m meu dia-a-dia de usuário de ônibus, a linha Fazenda Grande 4/3/2 - Pituba não passa por mim. Os ônibus que pego, apesar de sempre cheios, não percorrem metade do caminho, então veio a curiosidade sobre essa peculiar linha entre tantas na cidade. No ano de 2019, com o aumento da tarifa para R$4, uma nova frota de ônibus chegou à capital, com ar condicionado. No entanto, a linha 1470 não foi uma das agraciadas, mesmo com seu enorme trajeto. Meu dia começou às 5:00 da manhã. O dia estava nublado, a madrugada tinha sido de chuva, então decidi pegar o ônibus no trajeto de volta, na rua Território do Guaporé, Pituba. Cheguei no ponto às 5:37, chovia fino, a rua ainda estava deserta, não fosse por uma senhora a montar uma barraca e por um morador passeando com seu cachorro. O aplicativo de ônibus informava que o ônibus passaria às 5:45. Às 5:57, o ônibus chegou, não estava cheio. Passei a catraca e sentei numa cadeira do lado esquerdo do ônibus. Em 10 minutos passamos pelo Iguatemi. “Desliga a cigarra aí”, grita Jônei, 42 anos, para o motorista. Cigarra, para minha surpresa, é como chamam a luz que acende, quando se “pede o ponto”. Jônei é cobrador há 13 anos, viveu a fusão das antigas empresas de ônibus nos consórcios atuais. Na Av.Barros Reis, o comércio ainda estava fechado e o trânsito fluía tranquilamente. Às 6:16 estávamos na BR-324, onde as placas indicavam: Simões Filho - 20km; Feira de Santana - 108km, não estávamos mais no meu trajeto usual. Até chegar a um dos finais de linha, são três no total, restavam, no ônibus, apenas eu, Jônei e o motorista, que não era a dupla diária de Jônei. Clóvis, motorista fixo da linha, não tinha ido por questões de saúde. Rotina Intensa Jônei acorda entre 2h45 e 3h da manhã, uma van da empresa vai buscá-lo em casa. O primeiro ônibus sai da garagem, em Campinas de Pirajá, às 4h05, para começar a rodar às 4h30, e é nesse roteiro que Jônei trabalha há 5 anos. A rotina é intensa, só chegamos ao último fim de linha às 7h26. Quase duas horas no trajeto de volta. O ônibus sai de novo às 7h45, são 20 minutos para descansar e tomar café. Algumas pessoas já aguardam no ponto a saída dos 4 ônibus que estão estacionados. Sou convidado a entrar no pequeno “QG” dos motoristas e cobradores. Lá dentro, um armário com os nomes dos funcionários, dois sofás e uma mini televisão ligada no jornal passa o caso de agressão entre um motorista e um passageiro que havia acontecido no dia anterior. Todos olhavam atentos à TV. “Nós nunca temos razão, ninguém procura saber o lado dos rodoviários”,
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reclamou Jônei enquanto tomava seu café. “Nós temos que ficar esperando tomar um murro na cara, sem fazer nada?”, completou. No caso específico, o rodoviário utilizou uma barra de ferro e chegou a quebrar a porta dos fundos do ônibus. Apesar disso, Jônei afirma ser bem tranquilo em seu trabalho. “Eu não esquento muito, para mim está tudo ótimo. Se você me der bom dia, eu retribuo. Se passar com a cara fechada, também” afirmou.
Nós nunca temos razão, ninguém procura saber o lado dos rodoviários Jônei, 42, cobrador Passageiras Após o café, retomamos o trajeto com destino à Pituba, me sentei antes da catraca. Entra no ônibus Joselita, 69 anos, moradora da Fazenda Grande IV há 23 anos que costuma pegar o ônibus uma ou duas vezes na semana, fala da importância dessa linha. “Quando essa linha não existia era muito complicado, agora está mais fácil. Essa linha, e o Ribeira não podem ser retirados nunca, fazem um trajeto muito importante” diz. Apesar dessa linha não ter previsão de ser cancelada, algumas linhas de ônibus foram extintas nos últimos anos. Joselita adverte sobre a distância. “É muito longe, para ir à Pituba, têm que trazer um lanche e uma água, dá fome demais”, afirma entre risos, depois de me questionar se eu já tinha comido alguma coisa. Dona Joselita não foi até a Pituba nesse dia, fi-
cou em Cajazeiras. Enquanto eu conversava com Joselita, Marina, 68, entrou no ônibus. Também moradora da Fazenda Grande IV, está no bairro há 29 anos. Marina afirma que o ônibus costuma ficar cheio, mas diz que para ela tanto faz, já que sempre senta na frente. “Eu pego o ônibus de 7:20, que vem mais vazio, mas hoje eu perdi ele e peguei esse, mas daqui até lá vai encher” brincou. Marina não estava errada. Às 8:31 eu levantei, para as prioridades, e o ônibus já estava lotado. Uma hora se passou e ainda não havíamos saído de Cajazeiras. A BR-324 já estava congestionada, mas Jônei afirmou que costuma ser pior. “Você deu sorte, a gente pega engarrafado de águas Claras até o Iguatemi. Hoje começou depois” disse. Na volta, a Av. Barros Reis já estava bem diferente de mais cedo, cheia e congestionada. Chegamos na Pituba eram quase 10:00, e enquanto Marina descia para ir ao médico, Rosinha, 51, subiu no ônibus. Rosinha estava cansada, moradora de Jaguaribe (na Faz. Grande, não a praia), tinha chegado na Pituba para ir na Defensoria Pública, mas estava fechada, alegando que na sexta (1) seria feriado. Reclamava que tinha gastado 8 reais de passagem à toa, estava sem crédito no Bilhete Avulso, e quando saiu de casa o ponto de recarga estava fechado. Foi em mais uma passagem pela Av. Barros Reis que me dei conta do horário e que precisava saltar do ônibus. Na dúvida de onde desceria para ficar mais próximo de uma estação de metrô, Suzane, 22, me ajudou. Estudante de Fisioterapia, ela pega o ônibus para voltar pra casa todos os dias que têm aula. Mora em Águas Claras e me diz que quando acorda no horário, pega o 1470 para ir a faculdade também, mas não é sempre que acontece. Ao questioná-la se a linha era segura, ela me garantiu que pela manhã sim, mas pela noite costuma ser perigosa e vazia. “Foi em uma noite que meu amigo pegou esse ônibus para ir para casa e foi assaltado. Desde então ele não pega mais essa linha durante à noite, e eu evito também” advertiu. Saltei do ônibus na entrada do Bom Juá. Ao descer, não sabia qual caminho pegar para chegar até estação de metrô. Com o ônibus já saindo do ponto, Suzane apontou para a rua que eu deveria entrar. Cheguei ao metrô. Minha manhã no Faz. Grande 4/3/2 teve saldo positivo. Apesar de faminto, pois quase nenhum ambulante entrou no ônibus para eu comer algo que custasse 1 real, é sempre contagiante conhecer pessoas dispostas a conversar a contar sobre a vida delas.
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O que será do Solar? Sarah Cardoso
Ocupação de prédio histórico com centro de diagnóstico de imagem divide opiniões
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D
o alto do Engenho Velho de Brotas, desponta o Solar Boa Vista. O prédio de arquitetura colonial, em meio à imensa área verde, parece um solitário refúgio do passado. A construção, entretanto, pode se tornar mais um espaço que se curva à modernidade: o governador Rui Costa anunciou, em abril deste ano, que vai transformar o Solar em um centro de diagnóstico de imagem. O projeto, apesar de propor intervenções que não conservam o estilo arquitetônico do imóvel, já foi aprovado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e tem gerado divergências sobre o uso futuro.
Da casa de Castro Alves ao Hospital psiquiátrico Juliano Moreira, o Solar já passou por usos diversos (veja a linha do tempo abaixo), mas, desde que sofreu um incêndio em 2013, quando abrigava a Secretaria Municipal de Educação, o prédio está inutilizado. As paredes estão queimadas, da torre principal, só resta a estrutura e todas entradas estão bloqueadas. A comunidade reclama. “Depois do incêndio, ficou feio aqui, foi uma perda muito significativa para a gente. Era um prédio muito bonito, todo mundo que chegava ia lá olhar. Estamos convivendo com a sujeira e o abandono numa área linda dessas”, lamenta Alberto Guedes, 55, comerciante no Parque Solar Boa Vista há sete anos.
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Embora seja melhor qualquer uso do que não-uso, que é prenúncio de ruína, o mau uso também destrói o edifício ou não o insere no contexto da comunidade Francisco Sena, historiador e arquiteto
Fotos: Vitor Meneses/LabFoto
As pessoas se animam com a perspectiva de revitalização do imóvel, independente do uso. José Carlos Prazeres, 69, joga xadrez no Parque todas as tardes e tem esperança de que o centro de saúde vai trazer mais segurança para o espaço. “Acho espetacular. Pelo menos isso aqui não fica abandonado como está. Vai ter mais movimento e segurança.Tem gente que não vem aqui porque fica com medo dos ‘sacizeiros’ [usuários de drogas]”. O prédio atualmente faz parte do Parque Solar Boa Vista, que conta com uma área de lazer e o Cine Teatro. Para Wilson do Espírito Santo (35), recepcionista do Cine Teatro, a chegada do empreendimento promete dar mais visibilidade às ações do equipamento cultural. “Apesar da ocupação de algumas pessoas, a comunidade ainda tem uma imagem ruim do local, por conta da presença de usuários de drogas, mesmo sabendo que há mais de 10 anos não há qualquer ocorrência de assalto ou violência no Parque. Com a reforma, as pessoas vão passar a vir ao Parque, vão se interessar e ver o que a gente faz aqui. Isso vai trazer a comunidade para mais perto da arte”. Sobre a ausência de ocorrências, reforçada por outros moradores da região, a 6ª Delegacia Territorial, responsável
pela região de Brotas, informou não poder confirmar. O comerciante Alberto Guedes espera ter um aumento nas vendas com a reforma. Nascido e criado no Engenho Velho de Brotas, há sete anos monta diariamente uma banquinha de lanches no Parque e sua clientela é formada pelas pessoas que frequentam o Cine Teatro e o Centro de Atendimento Psicossocial Aristides Novis, adjacente ao terreno. “O movimento caiu devido à presença constante da polícia, que espanta as pessoas, principalmente os usuários. Agora, com esse centro, as coisas vão ficar movimentadas e o comércio vai melhorar”, acredita Alberto. Patrimônio histórico O projeto do centro de diagnóstico de imagem proposto pelo Governo do Estado já foi aprovado pelo Iphan e agora aguarda a abertura da licitação. Apesar de tombado como patrimônio histórico desde 1943, sob o processo de n° 0288-T, a reforma não deve preservar alguns elementos originais da construção que se perderam no incêndio de 2013. O arquiteto da Superintendência do Iphan Bahia Matheus Pessona explica que o projeto propõe reconstruções apenas
em elementos que caracterizam e, sem recomposição, prejudicariam a leitura do imóvel, como a escada para a torre. “Em outros momentos as intervenções propostas são extremamente contemporâneas e destacam-se do imóvel original, como os forros da sala de apresentações e a capela no foyer de entrada, mas estes, apesar de contrastantes na expressão artística, não causam dissonância na harmonia visual do bem”, assume Pessona. Apesar da expectativa que envolve a reforma, questiona-se a adequação de um centro de diagnóstico de imagem a um prédio histórico e às necessidades da comunidade do entorno, que utiliza o Parque sobretudo para lazer. “Embora seja melhor qualquer uso do que não-uso, que é prenúncio de ruína, o mau uso também destrói o edifício ou não o insere no contexto da comunidade”, alerta o historiador e arquiteto Francisco Sena. Ele ressalta a necessidade de espaços de socialização como este no bairro. “O Parque é o único espaço verde livre em Brotas, um bairro enorme, praticamente sem praças, carente desse tipo de ambiente. O Solar Boa Vista, que já tem área de lazer e teatro integradas, é um local com vocação para Educação e Cultura”, sugere Sena.
Meu lar está deserto. . . Um velho cão de guarda Veio saltando á custo rogar-me a testa parda Lamber-me após os dedos, porém, á sós comigo Rusgando com o direito, que teem um velho amigo... Como tudo mudou-se! . . . O jardim ’stá inculto As roseiras morreram do vento ao rijo insulto. . . Oh! jardim solitario! Reliquia do passado! Minha’alma, como tu, é um parque arruinado! Castro Alves, escritor e antigo morador do Solar Boa Vista JORNAL LABORATÓRIO | FACOM/UFBA
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A Bahia no cenário do cárcere Dados mais recentes do Ministério da Justiça posicionam a Bahia no contexto prisional do Nordeste Leonardo Lima
Relação entre pessoas privadas de liberdade e vagas nos presídios
Com a terceira maior população carcerária do mundo, existem mais de 726 mil pessoas presas no Brasil. Somente na Bahia são cerca de 15 mil presidiários, encabeçando a 5ª posição do País. A partir dos dados mais recentes do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), de junho de 2016, conheça como o estado baiano se posiciona no contexto nordestino em indicadores como taxa de ocupação, oportunidade de renda e mortalidade.
O perfil de quem está preso AL
Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen, Junho/2016. Secretaria Nacional de Segurança Pública
BA Remuneração das pessoas privadas de liberdade que trabalham
CE MA PB PE PI RN SE
Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen, Junho/2016. Secretaria Nacional de Segurança Pública. / Jovens: entre 18 e 29 anos, segundo o IBGE.
% de presos em presídios com módulos de saúde Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen, Junho/2016. Secretaria Nacional de Segurança Pública
Causas da mortalidade nos presídios do Nordeste
Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen, Junho/2016 Secretaria Nacional de Segurança Pública
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Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen, Junho/2016. Secretaria Nacional de Segurança Pública.
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Desapropriação para construção da Linha Azul rompe laços comunitários na Baixa dos Frades César Oliveira
“A
gora a obra já está quase pronta, mas pergunta se alguém lembra à custa da destruição do sonho de quantas famílias é que ela foi feita”. O questionamento, feito por Elzineide Souza Moreira, 43 anos, técnica de enfermagem e esteticista, expressa a indignação de moradores do loteamento Jardim Lobato que tiveram os imóveis demolidos para a construção de um dos trechos da chamada Linha Azul (Sistema Integrado de Transporte da Região Metropolitana de Salvador). O corredor viário, que ligará a orla Atlântica ao Subúrbio Ferroviário, impactou diretamente na vida das pessoas que residiam há mais de 50 anos na chamada Baixa dos Frades – loteamento situado entre a Boa Vista de São Caetano e a Boa Vista do Lobato. Cerca de 186 famílias, cujos imóveis estavam construídos nos terrenos adquiridos no final da década de 1960 do século passado, tiveram que deixar suas moradias após o decreto de utilidade pública da área pelo estado, assinado pelo então governador Jaques JORNAL LABORATÓRIO | FACOM/UFBA
Wagner em 24 de julho de 2013. Amparado pelo dispositivo legal que regula a desapropriação de áreas para execução de obras públicas, o governo da Bahia expropriou os imóveis, que, em seguida, foram demolidos sob o argumento de que a obra atendia ao interesse da maioria da população. A desapropriação na Baixa dos Frades foi facilitada pelo fato da maioria absoluta dos moradores não possuir registro de posse dos terrenos. O Estado não é obrigado a reconhecer a posse de terras sem escritura pública. Dessa forma, os moradores da Travessa Nunes e São Francisco, das ruas Nova e Nova do Meio, que tiveram os imóveis demolidos, foram indenizados apenas pelas edificações e benfeitorias. A obra está sendo executada pelo Consórcio Transoceânico de Salvador (CTS), mas o processo de contato com as famílias é feito com intermediação da Conder, orgão da Superintendência de Desenvolvimento Urbano da Bahia (Sedur), que não comenta os valores pagos e nem publiciza os protocolos de indenização. Os moradores ouvidos pela reportagem contam que pelo fato de não terem as escrituras dos imóveis
fez com que eles fossem tratadas como invasores dos terrenos, mesmo com os documentos de compra e venda registrados em cartório. Um contrato de compra e venda datado de maio de 1970, com firma reconhecida no Tabelionato do 5º Ofício, informa que os lotes da área desapropriada são fruto do desdobramento da Gleba 10 da Zona XX do loteamento Jardim Lobato, adquiridos junto a Francisco Bastos da Silva. Além disso, os moradores reclamam que os valores das indenizações foram muito abaixo dos praticados pelo mercado. A opinião de Josenilton da Conceição, 47 anos, aposentado, que junto com a mãe teve que deixar a Travessa São Francisco, é de que eles foram lesados. “É sempre assim, pobre não tem direito. O valor pago na casa onde meus pais criaram toda a família foi muito baixo. A gente morava em uma casa grande de três quartos e com um quintal. Agora a gente mora aqui, nem metade do tamanho da nossa casa. É muito apertado. Mas o dinheiro que pagaram à minha mãe só deu para comprar isso aqui. Ela aceitou, fazer o quê?”, lamenta.
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Foto: Jamil Godinho/LabFoto
DESALINHADOS
Foto: César Oliveira
Não era só o fruto do meu trabalho, era a prova de que tudo que eu havia passado tinha valido a pena. Tudo tinha um valor sentimental. Minha mãe conta que ali era barro puro, meu pai construiu aquilo ali escavando do barranco no braço. Era uma vida inteira de trabalho de meu pai e meu trabalho também. Quem paga?
Foto: Jamil Godinho/LabFoto
Elzineide, ex-moradora da Baixa dos Frades, mostra os documentos do antigo imóvel
Demolição de sonhos
Foto: Jamil Godinho/LabFoto
Sem conseguir especificar o quanto gastou na sua construção, Elzineide afirma ter empregado muitos salários e indenização que recebera das empresas nas quais trabalhou dos 20 aos 40 anos. Erguida na laje do primeiro andar da casa de seus pais, onde morava sua mãe, a Sra. Marinalva, já viúva; no térreo morava a irmã mais velha – a casa era uma espécie de atestado de que os muitos plantões hospitalares valiam a pena. Ela afirma que eram dois quartos grandes, uma cozinha e um banheiro. Tudo com piso de cerâmica e pintado. Pensava em colocar uma laje, mas isso seria para o futuro. Estava satisfeita, pois tinha conseguido realizar seu sonho: uma casa razoavelmente grande, confortável, sem preocupação com aluguel ou condomínio. Elzineide conta que, do meio para o final de 2013, surgiram rumores de que haveria desapropriação no bairro. Àquela altura, funcionários da Conder começaram a visitar e fazer reuniões com as famílias. “Eu tinha uma vida toda naquele local, tinha conhecidos, amigos de infância que eu não vejo mais, nem onde minha madrinha mora eu sei mais. O que você espera é que pelo menos o governo pague o que você gastou. Mas nem isso aconteceu”, denuncia Elzineide. Quem compartilha do mesmo sentimento é Fabiana Souza, 39 anos, que residia na rua Nova. Para ela, as pessoas e seus sentimentos foram desprezados no processo. Da Conder ouviam apenas que teriam que sair quando o valor fosse pago e logo em seguida ocorreria desocupação e demolição. “Morei lá por 37 anos e eu não queria sair porque eu fui nascida e criada lá. Tinha lá meus amigos, meus vizinhos, e cada um foi obrigado a ir pra um canto. Hoje em dia, pra gente ter contato é muito difícil. Eu sofro muito com isso”, argumenta Fabiana.. Se eu pudesse, eu colocava minha casa lá de novo, pena que eu não posso”, completa.
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Caminhos de formiga “Eu cheguei aqui em 1971, era tudo um brejo e a outra parte o dique, que hoje praticamente nem existe mais. Quando chovia alagava tudo, era um melero danado. A gente saía para trabalhar andando até o São Caetano com o sapato na mão, lá em cima lavava os pés e calçava o sapato. Era duro! Todo mundo passava por uns caminhos estreitos, do lado das encostas que ainda não tinham sido cavadas. Era igual a caminho de formiga. Depois veio o ônibus até o largo da Boa Vista, e no tempo da prefeita Lídice da Mata é que o final de linha chegou pra aqui para os Frades”, narra Aidil Araujo Santos, 77 anos, cozinheira aposentada, ex-moradora da Travessa São Francisco. Natural de São Félix, no Recôncavo baiano, Aidil é mãe de 7 filhos, cinco nascidos quando ela já morava na Baixa dos Frades. Ela conta que os terrenos foram pagos com muito sacrifício. A maioria das notas promissórias foram resgatadas com atraso. Por isso o terreno, adquirido em 1971, para ser pago em 30 parcelas, só teve o documento de quitação autorizando fazer o registro em cartório em 26 de setembro de 1978. O loteamento começou com todas as casa de taipa e, ao longo dos anos, é que foram sendo substituídas por construções de alvenaria e bloco. Ao longo dos anos, as famílias foram construindo sólidos laços de amizade, a ponto de muitas das crianças nascidas na localidade terem como padrinhos e madrinhas os próprios vizinhos. “Aniversários, batizados, casamentos, jogo do Brasil, São João, forrobodó e lambadas, a gente fazia era festa. Ali eu fui muito feliz. Mas eu não reclamo não, Deus sabe o que faz. Eles me ofereceram um apartamento, mas eu não gostei do lugar. Preferi o valor, mesmo pequeno”, conta Aidil. Famílias e amigos no caminho
Foto: César Oliveira
A região onde os imóveis foram demolidos compreende parte da rua Nova e das travessas Nunes e São Francisco. O trecho corresponde a parte final da Linha Azul e, segundo os defensores do projeto, deve melhorar a mobilidade urbana da cidade. Mas, segun-
Edite Ramos teve a casa demolida na travessa Nunes JORNAL LABORATÓRIO | FACOM/UFBA
do Deraldo Santana, 55 anos, técnico em telefonia, para uma obra que tinha como objetivo melhorar a vida das pessoas, ela causou um impacto negativo muito grande, sobretudo aos primeiros moradores da comunidade. “Ninguém seria contra, até porque a construção de novas avenidas na cidade traz benefícios. Mas não foi pensado o impacto negativo sobre as pessoas que residiam na localidade há muitos anos. Tem gente mais velha aí que morreu depois que isso tudo começou, e outras que não estão legal da cabeça”, aponta Deraldo. Uma das pessoas que não digeriram bem a forma como as desapropriações foram conduzidas é a mãe de Deraldo, Diva Maria de Santana, 87 anos, que adquiriu o terreno em meados da década de 70. “Eram seis casas contando com a dela. Morávamos praticamente todos juntos, filhos, netos, genros e nora. Todo mundo ali com ela, qualquer coisa que ela precisava, estávamos ali. Agora ela fica praticamente trancada o tempo todo dentro da casa que comprou. Isso acabou contribuindo para o acidente que ela sofreu recentemente,” lamenta Deraldo. D. Diva sofreu uma queda em sua casa durante a noite, quando tentava ir ao banheiro, e bateu o rosto no chão. Ela foi levada para o Hospital Roberto Santos, onde ficou internada com suspeita de fratura no malar. Até o fechamento da reportagem, Dona Diva continuava internada, aguardando avaliação médica para saber se será submetida a uma cirurgia. Pior para os que ficaram Sempre presente nas poucas manifestações e reuniões que foram feitas junto à Conder, Creuza de Jesus, 56 anos, classifica todo o processo como um desastre, mesmo sendo uma das moradoras que não teve o imóvel demolido. Agora só lhe restaram duas vizinhas, depois que as outras residências da Travessa São Francisco foram demolidas. “Minha casa, que já não estava boa, ficou pior; aumentaram as rachaduras, e eles ainda dizem que a movimentação das máquinas não influenciou em nada. Para completar, botou essa montanha de terra
bem do lado da minha casa. Quero saber como minha casa, frágil, vai aguentar o movimento de uma pista movimentada. Quando passam os caminhões agora já treme tudo dentro de casa, imagine depois”, indaga Creuza.. Dos mais de 40 lotes da travessa Nunes restaram apenas oito, com cerca 20 casas. “Tinha meio mundo de gente que morava aqui, mas a pista levou a casa de todo mundo e só ficou esse pouquinho. Esse terreno foi comprado por meu pai, que já é falecido. Aqui moram três dos cinco filhos do casamento dele com minha mãe.. Depois minha mãe foi morar com minha irmã Edinice em Berimbau; também não mora mais aqui meu irmão Adailton [é casado com Fabiana, de quem falamos no início da reportagem]”, enumera o repositor Ailton Meneses, 48 anos. “Sorte que a coroa já tinha ido embora daqui, se não ia ter problemas, ela teria sentido muito. Ficamos aqui sem uma parte dos antigos moradores. Imagine aí? Gente que me viu guri. Meus amigos de infância foram todos embora”, completa Ailton. Um dano que não poderá mais ser reparado O processo de desapropriação trouxe inúmeros problemas. Segundo os depoimentos, as desapropriações foram realizadas com acordos firmados com a intermediação da Conder; nenhuma foi fruto de intervenção judicial, mas o processo gerou muitas insatisfações. Dona Edite Ramos, 85, habitava uma casa térrea de número 26-E, na Travessa Nunes, enquanto no primeiro andar ficava a residência da família de seu filho José Augusto. Para ela o valor da indenização não levou em conta o fato de que na parte não construída de seu terreno ela poderia no futuro construir uma casa para alugar, gerando uma complementação da sua única fonte de renda, uma pensão por morte de uma salário mínimo. Ela alega que perdeu muita coisa. “Agora não tem mais meu quintal onde eu criava galinha, tinha minhas plantinhas, meus coentros da Índia, as plantas que eu fazia chá. Acabou tudo. Agora tô aqui nessa casa que nem fundos tem”, reclama. Segundo Inivanildes Nascimento, 49 anos, secretária, tudo foi muito rápido. De maneira direta, foram informados das duas possibilidades: o recebimento do valor estipulado ou ser deslocados para uma unidade do Minha Casa, Minha Vida. “Não havia alternativa, ou era Cajazeiras ou pegava o valor que eles queriam dar”. A filha de Inivanildes, Adriele Araújo, técnica de enfermagem, nasceu na comunidade. Hoje com 30 anos, ela lamenta que tenha perdido, além dos amigos e das coisas de sua antiga casa que tinham o seu jeito, a autonomia. Segundo ela, sua vida era outra quando morava na Baixa dos Frades (travessa Nunes, 26-E), e agora tem que passar por várias situações desconfortáveis, principalmente em relação ao transporte público. “Moro distante do ponto de ônibus, que está a meia hora daqui, e eu não conheço ninguém no trajeto que tenho que andar. Isso mudou meu horário de sair e chegar. Eu já não tenho liberdade para sair sozinha. Na maioria das vezes, minha mãe tem que me acompanhar, porque a distância é grande, e eu não vou confiar de sair tão cedo ou chegar tarde aqui, né?”, lamenta Adriele. Procurada pela reportagem a Conder não respondeu aos pedidos de esclarecimentos sobre o processo de desapropriação da localidade.
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Ícaro Lima
Q
uem passa no bairro da Barra, em Salvador, percebe facilmente os elementos que compõem o trânsito da região: motoristas, motoqueiros e ciclistas. Essa última classe ganhou um novo subgrupo, os entregadores de aplicativos. Com uma rotina pesada e atrelada às dificuldades de locomoção típicas da capital, esses entregadores fazem parte dos 38,8 milhões de trabalhadores informais atualmente no Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV). O lucro depende totalmente das suas capacidades físicas e mentais para aguentar horas de pedaladas que geram algo em torno de um salário mínimo (R$998) por mês - o que não é o caso de todos. Rotina pesada Elias Sapucaia, 44 anos, trabalha apenas para o aplicativo colombiano Rappi. Ele geralmente espera os pedidos em um bicicletário do Shopping Barra e cumpre uma rotina puxada de entregas. Para ele, a presença de muitas ladeiras é a maior dificuldade do serviço.“A gente tem que fazer um pouco mais de esforço e cansar um pouco mais, mas é o que tem pra fazer. O desemprego está grande [e o serviço por apps] não deixa de ser uma opção de trabalho”, conta o entregador. Apesar do ponto negativo, Elias considera vantajoso o fato da ocupação tratar todos os entregadores igualmente. “É o tipo da profissão que iguala todo mundo. O cara pode ter um nível de quinta série, mas o aplicativo faz com que todos nós sejamos iguais”, diz. Entre as ladeiras íngremes, ruas desconhecidas e “dribles” entre os carros nos horários de pico, Elias conta que o esforço diário para ser entregador de aplicativo pode não ser totalmente satisfatório, mas é o suficiente para cobrir seus gastos básicos. “O aplicativo me dá pelo menos o pão. É ruim, um pouco, mas tem que fazer. Tem que correr atrás”, avalia. Elias relata que há uma série de variáveis para determinar o valor do seu ganho. Uma delas é a quantidade de aplicativos para os quais o entregador presta serviço: quanto mais plataformas, mais chances de lucro. “Tem colegas aqui que trabalham para a Rappi, Uber [Eats] e iFood, por exemplo. Talvez, eles consigam um salário mínimo no mês. Mas se você trabalhar para uma plataforma só e trabalhar sério, você consegue tirar uns 600 ‘conto’”, explica. Enquanto contava mais alguns detalhes sobre a sua rotina, Elias interrompe a conversa para verificar a notificação do celular que o alertava: novo pedido.
A gente faz nosso dinheirinho. Às vezes não é muito, mas dá uma oportunidade do cara chegar em casa e dizer: ‘Comprei meu pão hoje’ Rodrigo Lopes, entregador
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No celular e no pedal Entre ladeiras e avenidas, rotina dos entregadores de aplicativos que usam bike exige conhecimento das ruas e muita resistência física Dessa vez, teve que partir para o McDonald’s dentro do shopping para buscar uma produto que só saberia onde vai entregar quando retirar no caixa do fast-food. Gratificações Baseado no histórico de entregas do entregador, todas as empresas possuem algoritmos que avaliam o seu rendimento em alguns quesitos e transforma isso num escore que altera até mesmo a regularidade de chegada de pedidos. Rodrigo Lopes, 23 anos, está há 3 meses como entregador da Rappi e afirma que, mesmo com os algoritmos, os aplicativos sempre acabam distribuindo bem as entregas para todos. Mas ele tem consciência sobre a existência de entregadores que recebem mais pedidos que outros. Em seu grupo, essa categoria é chamada de “batedeira”. “São aquelas pessoas que você está aqui há umas duas horas, aí aquela pessoa [de fora] chega e bate o pedido. Então a gente fala: ‘porra, tá batedeira’”, explica. Ao relembrar como foi o início nessa profissão,
Rodrigo explica que entrou sem entender muito como funcionava, nem mesmo o processo de cadastro na plataforma. “No meu caso, eu não sabia. Eu baixei, cheguei aqui e um camarada me ajudou”, recorda. Sobre quanto consegue retirar das entregas mensalmente, Rodrigo também considera que é um dinheiro que serve para, pelo menos, garantir o básico de suas necessidades. “A gente faz nosso dinheirinho. Às vezes não é muito, mas dá uma oportunidade do cara chegar em casa e dizer: ‘Comprei meu pão hoje. Amanhã vou sair, tem meu pão, tenho minha merenda pra botar na minha bag e ir trabalhar’. Dá opção do cara não estar de mente vazia”, afirma. Desgaste Wellington Morais, 33 anos, está na capital baiana há 6 meses, vindo da cidade de São Paulo, onde também já fazia entregas. Por ter trabalhado nas duas capitais, consegue diferenciar as experiências. Wellington é outro a considerar o trabalho cansaJORNAL LABORATÓRIO | FACOM/UFBA
A sensação de insegurança não importa se você tá no Alto da Pombas, no Calabar ou na Pituba
Fotos: Vitor Meneses/LabFoto
Além de entregador, Wellington Morais trabalha com revisão de livros didáticos com a sua esposa e com produção de eventos
tivo. Ele ressalta que há muitas incertezas presentes na profissão, por ser uma atividade sem regulamentações e garantias de benefícios. “Quando você não é CLT, não tem férias, nem nada garantido, se pegar uma gripe forte e ficar um mês parado, você não vai ganhar nada. Então todo dia você tem que acordar e fazer aquilo ali acontecer”, conta. As primeiras diferenças que Wellington percebeu em comparação a quando entregava em São Paulo são as ladeiras de Salvador. “É um cansaço que tem que saber administrar. Se você quiser correr muito de bike, logo no começo, chegar a quarta, quinta entrega, você está morto”, alerta. Wellington já tinha vindo a Salvador com a esposa antes de se mudar, com o objetivo de conhecer a cidade. Mesmo com pouco tempo que tem trabalhando aqui, garante que já tem um bom conhecimento das ruas soteropolitanas. “Depois de duas semanas, quando vinha entrega, eu já tinha noção que certas ruas têm um cruzamento muito ruim e outras sequer têm. Então às vezes você dá uma volta um pouco maior, mas você tem menos JORNAL LABORATÓRIO | FACOM/UFBA
desgaste e até leva menos tempo”, conta Wellington, que trabalha de cinco a seis dias por semana, priorizando os horários de almoço e entre 17h e 22h. Outro ponto que chamou a atenção dele logo nos seus primeiros dias aqui foi sensação de segurança enquanto realizam as entregas, podendo inclusive deixar as bikes sem corrente. Ele percebeu que, diferentemente de São Paulo, a situação em Salvador é mais favorável quanto a isso. “A bicicleta, quando você ia entregar em qualquer lugar, tanto na Paulista como na periferia, você colocava trancada ou entregava [o produto] para o cliente e ficava de olho, mesmo com ela trancada com o cadeado, porque a chance de ter furto era grande. Aqui cheguei com a mesma preocupação, querendo colocar alarme, tudo o que podia [risos]. Aí o pessoal já falou ‘calma, fica tranquilo’. Eu fui vendo que tem uma tranquilidade muito maior. A sensação de segurança não importa se você tá no Alto da Pombas, no Calabar ou na Pituba. O povo lá é muito desconfiado, aqui não”. Wellington conta que aqui há um clima de união entre os entregadores, até mesmo na hora de alertarem uns aos outros sobre as promoções que os aplicativos realizam para eles, oferecendo recompensas em
dinheiro para quem atingir certo número de entregas em um período específico de tempo. “Teve um dia que teve uma promoção e passou uma pessoa de bicicleta e falou ‘oh, tá tendo promoção na Uber Eats’”, relembra. A condição climática de Salvador oferece mais resistência em relação a São Paulo na hora de pedalar para fazer as entregas. Quem afirma é o próprio Wellington, creditando a facilidade ao ar limpo e clima úmido da capital baiana. “Aqui o ar é limpo, lá é seco e tem muita diferença de temperatura. Uma manhã com 20ºC, a tarde com 32ºC e a noite com 18ºC. Costumo dizer que para cada 10 km que eu pedalava lá, posso pedalar 50 km aqui e ter o mesmo desgaste”, avalia. Além dessa diferença climática, outro fator se destacou para Wellington: o contato mais próximo com os clientes e colegas no dia a dia. “Aqui você vê mais as pessoas, lá não tem contato com outros entregadores, por conta dessa correria mesmo”. Tem bairro lá que dá o tamanho de Ondina e Barra juntos e o número de rua é 10 vezes maior. Então a chance de eu encontrar a mesma pessoa no mesmo trajeto era 1 ou 2 vezes por mês. Aqui, a cada dois dias você se encontra com a pessoa”, conta.
Entregadores por aplicativo no Brasil Têm, em média, 29 anos; 97,4% se identificam com o gênero masculino; 74,3% terminaram o Ensino Médio e 11,7% concluíram o Ensino Superior ou uma pós-graduação; 88% são responsáveis pela principal renda da casa; 96% indica a flexibilidade de horário como um dos principais atrativos para o trabalho; De acordo com as plataformas, ficam, em média, 4 horas por dia conectados aos aplicativos. Fonte: pesquisa realizada pela Fundação Instituto de Administração (FIA), encomendada pela Associação Brasileira Online To Offline (ABO2O). O levantamento foi feito entre fevereiro e março de 2019, com 1,5 mil entregadores brasileiros
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Trabalho de terreiro Projetos sociais que marcam a presença de casas de Candomblé em suas comunidades Catarina Carvalho
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irajá, São Gonçalo do Retiro e Garcia. O que esses bairros têm em comum? Além de estarem situados em Salvador, algo os conecta ainda mais: projetos sociais criados por terreiros de candomblé. Seja no Instituto Oyá em Pirajá ou no Terreiro Unzó Maiala no Garcia, essas iniciativas têm impacto nas comunidades em que estão inseridas. Herança religiosa e cultural afro-brasileira, os terreiros de Candomblé da cidade também são espaços de transformação social através de projetos educacionais, proporcionando para moradores do entorno dos terreiros acesso à educação, ao estímulo do protagonismo feminino e o autoconhecimento a partir do resgate à ancestralidade nagô.
A arte é uma mola Foi no bairro de Pirajá que Anízia da Rocha Pitta e Silva, a Mãe Santinha, fundou o Terreiro Ilê Axé Oyá na década de 1980. A Casa, que leva, em seu nome, a
orixá guerreira Oyá, tem forte representação feminina. Em 2015, após a passagem de Mãe Santinha para o Orun - mundo espiritual, em Iorubá -, sua neta, Nívia Luz, 35 anos, foi escolhida no jogo de búzios para ser a Ialorixá do terreiro. A família de Santinha também herdou seu instituto de arte-educação, fundado em 1998, que surgiu do desejo dela em contribuir na educação dos jovens de Pirajá. Seu filho, o artista plástico Alberto Pitta, 58 anos, lembra que antes de criar o espaço, a mãe já promovia ações para a comunidade. “Minha mãe sempre teve essa preocupação com a educação. Eu me lembro claramente de crianças e adolescentes que viviam em situação de rua, fora da escola, fora da família e fora da comunidade e ela, preocupada, acolhia”, disse Alberto. O Oyá trabalha com a comunidade, principalmente de Pirajá, através da arte-educação. “Arte é educação. A forma de libertação da gente, do povo, dos jovens dos bairros populares, das periferias, é trabalhar com arte”, diz Alberto. Até mesmo o bloco de carnaval Cortejo Afro, fundado por Alberto, conta com alguns
músicos que já passaram por lá. A aula de percussão oferecida pelo Oyá despertou o interesse do estudante João Henrique Andrade, 15 anos. Morador de Pirajá e adventista, ele soube das inscrições através de amigos. “As aulas fluíram bastante e eu gostei muito. Depois de um tempo, me inscrevi como aluno de lá”, conta. Lá também são oferecidas turmas de grafite, teatro e, em breve, dança. Além disso, os alunos também participam de uma rádio comunitária, a rádio Oyá, criada por eles e com pautas sobre a comunidade. São incontáveis os aprendizados de João no Instituto, mas um ele guarda com carinho e considera o mais importante. “Lá eu aprendi a dialogar melhor com as pessoas. Escutar mais.” Iniciativas como essa possibilitam outras experiências para jovens de comunidade. “Tenho a oportunidade de ter aulas que em escolas públicas não têm, que só redes particulares oferecem”, finaliza o estudante. Para Alberto, o saldo de 21 anos de Instituto Oyá é positivo. Impulsionar o desenvolvimento de jovens e adolescentes é gratificante e cumpre o propósito de sua mãe. “A arte é uma mola. É através dela Alberto Pitta, art que você consegue seduzir os jovens para ver o mundo Instituto Oyá de forma diferente.”
A forma da gente, do jovens dos populares, é trabalhar
O poder das Yabás
Fotos: Catarina Carvalho
Em datas comemorativas, como o Dia das Crianças, São João e Natal, o Terreiro Unzó Maiala recebe a comunidade do Garcia para confraternizar. Não tem diferença religiosa ou estranhamento. O Unzó já é parte essencial do bairro. Isso porque, há 53 anos, a líder religiosa Mameto Laura Mercês abriu as portas da casa. No início, não havia nem água encanada no espaço, o que era resolvido com a ajuda de moradores do bairro e também através do chafariz do largo do Garcia. Lá, a construção foi coletiva desde sua fundação. A sua sucessora e neta, Mameto Laura Borges, 42 anos, faz questão de dar continuidade a tradição da avó, fortalecendo a comunidade e acolhendo cada um. “Receber o abraço e saber o que é estar em uma comunidade é muito bom. Se sentir acolhido, saber que você pode dialogar, ouvir e expressar o que sente”, afirma. Desde 2003 o Unzó abre as portas para projetos voltados à comunidade. Neste ano, o terreiro buscou focar em mulheres negras, cis e trans, fazendo um paralelo com as Yabás, orixás femininas. Oficina de
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maquiagem e turbante, roda de conversa sobre o poder das ervas e palestras sobre a saúde sexual e psicológica de mulheres transsexuais. Tudo isso faz parte da programação do projeto Matriarcalidade, apoiado pelo Fundo ELAS. “A nossa comunidade precisava saber o que é ser mulher, conhecer a si mesma. Foi um casamento perfeito e começamos a desenvolver o projeto. Também foi o momento em que paramos para pensar nas matriarcas”, conta Laura. A temática é tão ampla e interessante que contou até com um workshop de terapia menstrual, ministrado por Caroline Amanda, 25 anos, do portal Yoni das Pretas. Mais de vinte mulheres negras escutavam atentas às palavras da palestrante, que explicou um pouco sobre os benefícios do autoconhecimento aliados ao ciclo menstrual. “Trabalho a visibilização do sistema reprodutivo, os desafios de ser e estar mulher negra buscando um resgate ancestral mas também trazendo para a contemporaneidade. A visibilidade desse corpo como um corpo que se humaniza na medida em que se reconecta com seu eixo mais cíclico, mais natural”, explica. A Mameto Laura ficou surpresa com a procura. Na abertura do projeto, foram cerca de 300 pessoas e nos próximos ciclos as inscrições tiveram que ser limitadas pela falta de espaço. “A gente não pensou que a divulgação seria tão grande, mas tivemos muita procura por ser de um projeto que nunca aconteceu dentro de um terreiro em Salvador. Não pensamos só em atender a comunidade, mas sim mulheres de todas as idades.” O Unzó Maiala conseguiu atrair mulheres de diversas idades e localidades para compartilhar essa experiência. ”As pessoas que vieram te-educador do são completamente diferentes. De um ciclo para outro varia muito o público. A diversidade que faz a felicidade, né?”. Falando em diversidade, a preocupação em atender também mulheres trans deu espaço para uma programação sobre transições e transformações representadas por Oxumaré, o orixá que traz a dualidade entre as energias feminina e masculina.
a de libertação o povo, dos bairros das periferias, r com arte
Caminho de alegria Formar crianças autônomas, independentes e solidárias. Esse é o objetivo do projeto político-pedagógico da Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos, que funciona no Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, no bairro de São Gonçalo do Retiro. Chamado Irê Ayó, que significa Caminho de Alegria, em Iorubá, o projeto foi criado pela professora Vanda Machado e pauta a identidade cultural afro-brasileira. Iraildes Nascimento, diretora da escola, acredita que a instituição consegue trazer também a religiosidade para a educação das crianças, já que o espaço está inserido em um terreiro religioso de matriz africana. “O que vem a ser religiosidade para a gente? A prática de cuidado com a natureza, com o outro, o respeito pelo mais velho, a solidariedade, a forma de JORNAL LABORATÓRIO | FACOM/UFBA
acolher a todos”, explica Nascimento. Fundada em 1968 inicialmente como Mini Comunidade Obá Biyi pela Ialorixá Maria Stella de Azevedo Santos, a Mãe Stella de Oxóssi, a creche cuidava dos filhos de frequentadores do terreiro para que suas mães pudessem trabalhar e estudar. Quando elas chegavam aos 6 anos e tinham que mudar de escola, os pais começavam a expressar a vontade de manter seus filhos naquele espaço. Percebendo isso, Mãe Stella entrou em contato com órgãos públicos que ajudaram a creche a se tornar Escola Eugênia Anna dos Santos, em 1978 e, em 1998, uma das primeiras escolas municipalizadas no Brasil. A escola tem, em sua maioria, crianças moradoras de São Gonçalo. Para Iraildes, embora os alunos estejam familiarizados com o espaço, é importante que o educador tenha um olhar diferente para cada criança. “A criança tem que se sentir parte desse lugar e se identificar enquanto negro e negra nesse espaço para que possa transcender outros espaços.” Com seu olhar atento, Carmem Santos, 61 anos, cuida dos alunos como se fossem filhos. Há 8 anos como funcionária do espaço, ela acha que o cuidado e a atenção com cada criança é o diferencial da escola. “As mães dizem que essa escola é a melhor que tem porque os funcionários se dedicam às crianças. Ficamos atrás para evitar de cair, se cortar. Um olha aqui, outro lá dentro”, conta. Apesar de não ter religião específica, o fato do seu espaço de trabalho ser dentro de um terreiro de candomblé não a incomoda. “O importante é ser alegre e ter fé em Deus”, diz com um sorriso no rosto. Se para Carmem não é um problema a localização da escola, para muitas mães de São Gonçalo é um impedimento para matrícula de seus filhos. No bairro tem três escolas e muitas vezes os pais só matriculam
A criança tem que se sentir parte desse lugar e se identificar enquanto negro e negra aqui para que possa transcender outros espaços Iraildes Nascimento, diretora da Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos seus filhos na Eugênia Anna por não ter vaga nas outras duas. “No início existe essa resistência que às vezes é dissolvida ao decorrer do tempo, como também tem umas que estão aqui porque não tem outra opção e se surge uma vaga em outro lugar, a criança vai embora”, conta Iraildes. Com turmas de 6 a 14 anos, a gestão da escola não pensa em ampliar o espaço. Funcionando onde a fundadora do Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá - Eugênia Anna dos Santos, mãe Aninha - morava, o espaço não tem estrutura para atender mais alunos, mas pode passar por reformas. “O terreiro é tombado, teríamos que pedir autorização do IPHAN para ampliar, aumentar também o número de professores… Então é toda uma conjuntura que talvez até hoje, para a própria secretaria [Municipal da Educação], seja melhor um espaço já pronto e que precise reformar do que ampliação.” Além disso, não era um desejo de Mãe Stella, que nunca quis que a instituição funcionasse a noite e nem para crianças maiores.
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Fotos: Eloá Silva/LabFoto
‘Se o Brasil não precisa de ciência, fiquem com as enxadas’ Sarah Cardoso
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m uma segunda à tarde do mês de setembro, na abertura da Semana de Biologia da UFBA, Charbel já parecia antever a notícia do dia seguinte. Para a plateia de cientistas, bradou: “Não podemos nos calar!”. No dia seguinte, a CAPES anunciou o corte de 5.613 bolsas de mestrado, doutorado e pós-doutorado, que se somaram às 4.500 bolsas congeladas, em agosto, pelo CNPq. Charbel El-Hani é o coordenador do INCT (Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia) em Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares em Ecologia e Evolução (IN-TREE), um dos maiores núcleos de pesquisa do país, que reúne cerca de 250 pesquisadores de 13 instituições brasileiras e 30 instituições estrangeiras. O Centro tem a proposta de colocar o conhecimento ecológico de conservação em contato com a sociedade, expandindo para a modelagem computacional, matemática e estatística, com a geração de modelos preditivos. Numa abordagem mais humana, o INCT se aproxima mais da comunidade com os chamados projetos de ciência cidadã, como os Guardiões da Chapada, que planeja criar mosaico de unidade de conservação do estuário do Itapicuru e conservação da cultura pesqueira a partir de um ecomuseu, com geração de renda para a comunidade local, além dos trabalhos nas agroflorestas em assentamentos do MST. Professor Titular do Instituto de Biologia da UFBA, Charbel também é responsável pelo Café Científico, o evento de popularização da ciência mais longevo do estado. Em meio ao caos na ciência, como sobrevive o pesquisador brasileiro? Nessa entrevista, Charbel El-Hani revela, em números, os efeitos de uma política profundamente negacionista e constrói um panorama realista do que resta da ciência e da educação no Brasil.
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Entrevista com Charbel El-Hani: a situação real da pesquisa brasileira a partir da visão de quem está dentro do problema
JORNAL LABORATÓRIO | FACOM/UFBA
Sua formação é pautada na Educação e na Transdisciplinaridade, incluindo mestrado e doutorado em Educação. Como cientista e educador, já chegou à conclusão de como tornar o conhecimento das hard sciences menos endurecido e atrativo para o público? Temos trabalhado bastante com isso aqui no Laboratório Ensino, Filosofia e História da Biologia (LEFHBio) da UFBA. Há dois caminhos em que a gente aposta: primeiro é preciso frear esse trem desgovernado de conteúdo, para ter mais tempo para trabalhar cada assunto e trabalhar bem. Segundo, devemos ensinar modos de raciocínio que estão focados em um certo ceticismo organizado que caracteriza a ciência: como um cientista trata um problema e como um cientista se mantém aberto às alternativas. Mas, para citar Albert Russel, não tão aberto que o cérebro caia, que é o caso dos terraplanistas. Além disso, devemos trabalhar como funciona a relação da ciência com outros setores da sociedade, qual é o papel dela com a tecnologia, com o meio ambiente e quais são suas bases filosóficas e metodológicas. Também apostamos em questões sociocientíficas. Tratamos uma questão polêmica e a ‘didatizamos’. O procedimento é tirar um pouco da complexidade, formular as questões norteadoras e usar essas questões para resolver certos tipos de problemas. Utilizamos as questões sociocientíficas para discutir os modos de raciocínio, as relações entre ciência e tecnologia, sociedade e ambiente e as bases filosóficas e metodológicas da ciência. Atuamos dentro de uma questão concreta, mas chegando a uma tomada de decisão, de modo que o conhecimento é mobilizado até chegar ao uso e, se possível, a uma ação sociopolítica.
De 2010 para cá, a quantidade de pessoas que se dizem otimistas quanto à nossa ciência caiu de 83% para 73%, segundo pesquisa do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE). O brasileiro deixou de confiar na ciência? Não é só o brasileiro. Isso é um problema mundial. Essas coisas não são por acaso. Acho que existe uma campanha orquestrada de desinformação usando as redes sociais como ferramenta. Quando a internet se popularizou, as pessoas fizeram várias ilações, acreditavam que todos teriam uma “voz”. Isso é ingenuidade. A internet foi rapidamente dominada por grupos econômicos e ela está destruindo a democracia. Antigamente, se uma pessoa falasse algo completamente estúpido, ela recebia um monte de críticas e se sentia inibida. Agora, ela encontra mil pessoas que pensam a mesma coisa, acreditam até que a Terra é plana. A ciência e todos os movimentos que promovem o pensar estão sendo desmoralizados. Se as pessoas fossem realmente bem educadas, elas não seriam solo fértil para isso. A gente errou na educação. O erro é achar que quantidade de informação resolve. Se a gente achar que, para uma pessoa aprender ciência, ela tem que saber o nome de todas as fases da meiose ou o nome de cada pedacinho de uma planta, não vai funcionar. O que se precisa aprender é como se raciocina cientificamente, por que se deve confiar em evidências, como é um método que produz evidências confiáveis, entender, por exemplo, porque se JORNAL LABORATÓRIO | FACOM/UFBA
As pessoas que não sabem nada de ciência querem ensinar aos cientistas o que é ciência de qualidade. Que tipo de racionalidade é essa? deve acreditar no IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, da sigla em inglês) e não no Twitter de Fulano. Que tipo de pessoa genial é essa que vê um meme no Whatsapp e concluí coisas importantíssimas sobre o aquecimento global, melhores que os 300 pesquisadores que compõem o IPCC ou os especialistas em climatologia do INPE? As pessoas que não sabem nada de ciência querem ensinar aos cientistas o que é ciência de qualidade. Querem ensinar ao Papa como interpretar a bíblia. Querem ensinar ao Roger Waters a letra que ele escreveu. Que tipo de racionalidade é essa?
Na área de Biologia e Agricultura (BioAgro), ficamos em 4o lugar no mundo, em quantidade de trabalhos produzidos em 2015, mas na 43o posição no quesito citações por artigos (ranking CPP, “citations per paper”), entre os 44 países que publicaram pelo menos mil trabalhos nessa área – ou seja, penúltimo lugar. A que você atribui essa disparidade? Esse dado restringe uma área. A estatística que eu conheço é que o Brasil é o 13o país que mais publica artigos e o 17o mais citado. Citação tem um efeito geopolítico imenso. Em uma das áreas que eu trabalho, Filosofia da Biologia, só é possível aumentar seu número de citações entrando no clubinho norte-americano. No congresso, tem 500 pessoas da área e são 300 americanos. Eles têm uma tendência de citar-se a si mesmos. Quando alguém que é da Europa ou da América Latina começa a trabalhar com eles, aí sim começa a ser citado. Um país como o Brasil, que é periférico na ciência, estar em 17° em citações é um tremendo sucesso. Os brasileiros têm expectativas irreais de quase tudo, mas sobretudo da ciência. Se você perguntar ao brasileiro qual a porcentagem de gravidez na adolescência, eles têm uma estimativa de 35%, quando a média é 7%. Os brasileiros não são muito afeitos a analisar dados. Eles tomam decisões com base em dados nada confiáveis. Os brasileiros questionam que, se a ciência brasileira é tão importante, porque nunca ganhou um Nobel? Parece que, se a gente ganhasse um Nobel, acabaria a desigualdade social no país, todos os problemas seriam resolvidos. A ciência brasileira tem uma contribuição muito maior a dar. O Brasil tem apenas 15 anos de financiamento consistente da ciência, ou seja, de dinheiro contínuo. Como é que um país com apenas 15 anos de financiamento consistente pensa em Nobel? Quem tem senso de realidade pensa nisso em um século.
O contexto atual da ciência é assustador. 42% do orçamento do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicação foi
cortado em abril e 2,7 mil de bolsas de mestrado foram cortadas. Seu programa, o INCT em Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares em Ecologia e Evolução (IN-TREE), é financiado pela CNPQ. Ele já foi afetado? O financiamento dos INCT’s está muito problemático. A gente tem um financiamento descentralizado, que é uma dor de cabeça. Metade dos recursos vem da FAPESB e a outra metade se divide entre CAPES e CNPq. O dinheiro da FAPESB nunca apareceu. Dizem que vai aparecer esse ano. A CAPES disponibilizou metade das bolsas prometidas e o CPNPq, metade dos recursos. Estamos operando com isso há dois anos e meio. Tenho 30 colaboradores estrangeiros. Não tenho como trazê-los aqui, a não ser que eles mesmos paguem as passagens. Há muitos problemas de execução. Agora, eu tenho quatro projetos aprovados e nenhum dinheiro. O INCT já não tem mais da metade dos recursos. Ganhei o projeto no CNPq. Pedi R$120 mil. Deram R$43 mil e até agora só depositaram R$3,8 mil, menos de 10% e nunca mais nada. Em duas viagens de campo o dinheiro acabou. Felizmente, aprovamos um projeto na União Europeia. A União Europeia está mais interessada na pesquisa que eu faço do que o Brasil. Hoje em dia, se me contam que vão mandar um projeto para o CNPq, eu falo: “ vai perder tempo com isso?”. Eu não vou perder, vou concorrer em outros lugares. Em relação ao financiamento da comunidade científica, a gente entregou muito. A comunidade científica mostrou que tem mérito. O governo não está cortando os investimentos porque acha que a ciência não tem mérito, mas porque são negacionistas científicos, pensam que ciência não serve para nada. Do jeito que vai, todo o sistema de produção de ciência e tecnologia desse país vai ser destruído numa faixa de 2 a 4 anos.
Do jeito que vai, todo o sistema de produção de ciência e tecnologia desse país vai ser destruído numa faixa de 2 a 4 anos Mesmo economicamente, é uma burrice. Se investiu durante 15 anos, se montou laboratórios cujos equipamentos vão se estragar. Se financiou pesquisadores. Eu virei doutor e fiz pós-doutorado financiado pelo dinheiro público brasileiro. Eu voltei e devolvi esse investimento. Esse laboratório é o terceiro que mais formou gente que pesquisa o ensino de Biologia na história do Brasil. Considero que eu paguei a conta. Estava num congresso em Madagascar, com um monte de biólogos e conservacionistas que trabalham ambientes tropicais de altíssima qualidades. Tinham 50 brasileiros lá. 3 em cada 4 não estavam no Brasil. Todos viraram doutores com o dinheiro brasileiro. Vai culpar que eles não voltam? Vai voltar como se não tem emprego? A Alemanha agradece, o Japão agradece. Vão ser recebidos de braços abertos. Só brasileiro não valoriza pesquisador brasileiro. Então vamos dar nossos pesquisadores para o mundo. O mundo agradece. Vai ficar super feliz se exportarmos cérebros. Se o Brasil não precisa, fiquem com as enxadas.
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Foto: Eloá Silva/LabFoto
Futur
Entenda os pont projeto e os mot
Em meio aos cortes de verba, públicos foram às rua
Carlos Magno
L
ançado em 17 de julho pelo Ministério da Educação (MEC), o Future-se levanta um debate sobre o financiamento do ensino superior público a partir da proposta de criação de um fundo de investimento, incentivos fiscais e participação de verbas privadas nas instituições. O argumento do governo é o aumento da autonomia dos Institutos Federais de Ensino Superior (IFES) na captação de recursos, fomento do empreendedorismo nas universidades e promoção da internacionalização dos institutos. Mas parte das universidades rejeitam a adesão ao projeto, alegando que para aderir ao Future-se é preciso renunciar à autonomia universitária. Segundo pesquisa realizada pela Apub Sindicato (Sindicato dos professores das Instituições Federais de Ensino Superior da Bahia), 36 instituições desaprovam o Future-se, dentre elas a Universidade Federal da Bahia (UFBA). O projeto elaborado pelo ministro da educação, Abraham Weintraub estabelecia que, ao aderir ao Future-se, as IFES se compromete a utilizar uma Organização Social (OS) para dar suporte à execução das atividades relacionadas aos quatro eixos do projeto – pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação; empreendedorismo; e internacionalização. Na segunda minuta, apresentada em outubro, não é mencionado essa obrigatoriedade, mas a OS integra o projeto com as mesmas finalidades. Mesmo dentro das universidades há divergências. Há aqueles que rejeitam o projeto como um todo, alegando que o Future-se representa o fim da autonomia das universidades, a privatização do ensino superior, o sufocamento dos cursos que não se inserem
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na lógica do mercado. Há quem veja alguns pontos do projeto com bons olhos, como Simon Schwartzman, pesquisador do Instituto de Estudos de Política Econômica, que acha positivo uma aproximação dessas instituições com a iniciativa privada. Porém, mesmos pessoas com opinião similar a de Schwartzman, ressaltam alguns pontos problemáticos no projeto. O Jornal da Facom apresenta os três principais pontos que estão em debate: a autonomia universitária, o modelo de financiamento e as alternativas ao Future-se. Entre centenas de páginas de projetos de leis, pareceres e outros documentos, nosso esforço foi o de simplificar o entendimento da problemática.
Organização social pode tirar autonomia da universidade Em 2014, uma lei regulamentou as entidades que pretendam assumir parcerias entre o poder público e
O Future-se levanta um debate sobre o financiamento do ensino superior público a partir da proposta de criação de um fundo de investimento, incentivos fiscais e participação de verbas privadas
entidades privadas sem fins lucrativos. Essas entidades receberam o nome de Organizações Sociais (OS) e devem ser, necessariamente, pessoas jurídicas de direito privado e sem fins lucrativos. A primeira minuta do Future-se, apresentada em julho, trazia a obrigatoriedade da contratação de uma Organização Social. Já na segunda não há mais a obrigação, mas existe a possibilidade de se firmar um contrato de gestão com uma OS para dar suporte à execução de atividades relacionadas aos eixos do projeto. Segundo o parecer elaborado pela Comissão de docentes da Congregação da Faculdade de Direito da UFBA, os vícios em relação à contratação de OS persistem segundo o relator da comissão, Miguel Calmon. Calmon argumenta no parecer que as atividades de que a OS será incumbida não são de mero suporte. O projeto prevê que compete à organização contratada apoiar planos de ensino, extensão e pesquisa; gerir recursos relativos a investimentos em empreendedorismo, desenvolvimento e inovação. Caberá à OS interferir na gestão de pessoal e direcionamento das pesquisas, contrariando o artigo 207 da Constituição Federal de 1988, onde se institui a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira das universidades. De acordo com o relator, se o projeto for aprovado, tal como foi apresentado para consulta pública, será materialmente inconstitucional. Além disso, a nova minuta traz a possibilidade da contratação de fundações de apoio para dar suporte à execução dos eixos do projeto. O parecer diz que, a princípio, não há impedimento para a celebração de contratos com as fundações, algo que já ocorre nas universidades. O problema, segundo Calmon, é que tal celebração está ‘maculada’ pelo contrato de desempenho firmado entre a IFES participante do proJORNAL LABORATÓRIO | FACOM/UFBA
Foto: Raquel Franco/LabFoto
re-se?
tos mais polêmicos do tivos da sua rejeição
, estudantes, professores e funcionários as de Salvador rejeitar o projeto
grama e o MEC. “Se a autonomia constitucional conferida pelo art. 207 abriga a autonomia didático-científica, administrativa, de gestão financeira e patrimonial, resta evidenciado que não pode a lei dispor sobre quais seriam as metas de desempenho da instituição, o que representaria uma indevida intervenção, sendo matéria que não pode ser decidida senão no exercício da gestão universitária pela própria universidade” diz Calmon no parecer.
Novo modelo de captação com a iniciativa privada pode dar brecha para cortes nos repasses federais As IFES são financiadas com recursos do Fundo Público Federal (FPF), que contém os impostos, taxas e contribuições pagas pela população brasileira. O financiamento público está estabelecido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), na Constituição Federal (CF)/88 e no Plano Nacional de Educação (PNE). O Future-se propõe a criação de outros dois Fundos para captação de recursos. O Fundo Soberano do Conhecimento (FSC) e o Fundo Patrimonial do Future-se. O projeto ainda prevê que a existência desse Fundo não impede a criação de fundos patrimoniais por cada universidade e instituto federal. A professora Raquel Nery, presidente da Apub sindicato, receia que o estímulo à captação de recursos desvinculados ao orçamento da União possa incentivar o poder Executivo a acionar os dispositivos legais que impedem os repasses para as IFES, como os contingenciamentos. Isso ocorre devido a falta de uma definição concreta de como seria o cumprimento do financiamento público previstas na Constituição, na LDB e no PNE. JORNAL LABORATÓRIO | FACOM/UFBA
“O Estado provê o recurso através de uma lei que não tem garantia de cumprimento”, diz Raquel. Para o coordenador da Superintendência de Meio Ambiente e Infra-estrutura da UFBA, José Antonio Lobo dos Santos, o maior problema financeiro das IFES é o déficit orçamentário. “De 2016 a 2019 os recursos destinados para a educação foram reduzidos e o orçamento das universidades sofreu muito com reduções, cortes e contingenciamentos. Isso contribui muito para essa crise atual”, afirma.
Criar regra para repasse de verba para as universidades é alternativa Desde setembro está em andamento na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei (PL) 4992/2019 do deputado federal Gastão Vieira (PROS - MA), que propõe a regulamentação do artigo que estabelece a autonomia universitária na Constituição Federal. Diante do temor das universidades, o PL visa, além da regulamentação, impedir que os ataques à universidade se intensifiquem e enfraqueçam as instituições. O objetivo é assegurar, com a regulamentação, a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão patrimonial e financeira das IFES. Vieira argumenta que compete às IFES remanejar recursos próprios e advindos de recursos públicos, propor e executar seu orçamento em conformidade com os limites estabelecidos pelo Poder Público competente, realizar a gestão de pessoal, elaborar e reformar seus estatutos e regulamentos, fixar os currículos de seus programas e cursos, dentre outros pontos. Não há menção à Organização Social ou fundação de apoio. Além disso, no artigo terceiro, estabelece que a autonomia didático-científica está relacionada à autonomia administrativa e de gestão financeira e patrimonial, sem as quais não seria possível assegurar as finalidades da universidade.
Segundo a presidente da Apub, um projeto que vise a mudança no modelo de financiamento das IFES precisa vincular o orçamento a algum imposto específico. “Há uma dependência dos orçamentos das universidades à Lei Orçamentária Anual (LOA) e a execução dessa lei orçamentária depende do poder executivo”, explica. Em seminário promovido pela Apub em outubro sobre autonomia e financiamento universitário, o reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Marcelo Knobel, apresentou o exemplo do modelo de financiamento das universidades estaduais de São Paulo. Segundo o reitor, em São Paulo as universidades estaduais possuem financiamento com vinculação orçamentária, o que quer dizer que o repasse do orçamento pelo estado respeita o percentual 9,57% da arrecadação do ICMS . “Por mais que tenhamos críticas aos governos que foram passando, esse valor foi repassado integralmente às universidades”, disse Knobel.
Há uma dependência dos orçamentos das universidades à Lei Orçamentária Anual (LOA) e a execução dessa lei orçamentária depende do poder executivo Raquel Nery, presidente da Apub UNIVERSIDADES | PÁGINA 27
Foto: Divulgção
De meninas a mulheres EXTRAORDINÁRIAS Mulheres destaques nas ciências são exemplo de representatividade para as garotas do projeto Meninas na Ciência de Dados
Visita a Escola Politécnica da UFBA inspira as meninas Fabio de Souza
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o universo estatístico, o valor médio representa os demais números de uma sequência, assim como o desvio padrão indica o grau de discordância nesse conjunto de dados. É também desviando dos padrões em um meio majoritariamente masculino que a iniciativa Meninas na Ciência de Dados aproxima jovens do ensino fundamental de Salvador ao mundo das ciências exatas. Dentre as atividades, uma chama atenção. Com o nome de “Mulheres extraordinárias”, a tarefa consiste em pesquisar e escrever semanalmente redações sobre mulheres que foram protagonistas de seu tempo, para que as alunas possam se enxergar como capazes de mudar a realidade que as cerca. Para a líder do projeto e professora da Escola Politécnica da UFBA Karla Esquerre, as alunas precisam se reconhecer como protagonistas, já que na sociedade, e na mídia, são poucos os exemplos de mulheres reconhecidas por transformarem o país ou que são premiadas. “Depois que começamos essa atividade é impressionante a forma com que elas se veem. É possível, se elas fizeram isso naquela época hoje em dia eu posso fazer também, elas dizem”. Maria Firmina dos Reis, escritora e primeira mulher a publicar um romance no Brasil. Chiquinha Gonzaga, compositora, musicista e maestrina e primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil. Georgina de Albuquerque, pintora, desenhista e professora, uma das primeiras mulheres brasileiras a conseguir reconhecimento internacional como artista. Essas foram as mulheres escolhidas como referência em um dos encontros de outubro. Apesar de serem de áreas distintas da abordada no projeto, todas têm em comum o protagonismo e o pioneirismo em suas épocas. Esquerre afirma ser importante que as estudantes
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percebam a força que possuem, mas discorda do discurso de empoderamento. “Para mim, toda vez que se fala em empoderamento há um enfraquecimento do outro e não é verdade isso. Na verdade é para que elas se sintam fortalecidas mediante todas as dificuldades que têm hoje”, acredita. As atividades trabalham com a busca de representação feminina na sociedade mas sem fugir da sua base estatística. A ideia é que ao final elas possam construir gráficos com as características dessas mulheres com ajuda das colaboradoras, entre bolsistas, voluntárias e professoras. Todo o conteúdo pesquisado sobre essas mulheres são transformados em podcasts e disponibilizados no Youtube. O simples cálculo de uma média aritmética, em que elas somam e dividem números em uma sequência, ou então quando buscam pelo dado mais frequente em um conjunto numérico, calculando a moda, são formas como as meninas desenvolvem o raciocínio matemático e aprendem a lidar com dados estatísticos. Em uma roda de conversa, Luana, Ana Clara e Jaqueline, estudantes do Colégio Estadual Evaristo da Veiga e outras três do Colégio Estadual Henriqueta Martins Catharino, Julia, Anciele e Sofia, colocaram várias problemáticas em discussão todas com uma visão crítica da realidade social que estão inseridas. O fato de suas escolas não oferecerem nenhum tipo de iniciativa parecida com a que fazem parte na universidade foi uma das questões levantadas. Através da iniciativa as meninas entram em contato com conteúdos voltados à ciência de dados, e a partir disso analisam situações, compreendem problemas através do levantamento de dados, constroem e interpretam gráficos e modelagem. As atividades que são realizadas usam exemplos que vêm da realidade soteropolitana. “Elas são levadas a tentar entender o que é essa cidade do ponto de vista de educação, de ciência e
tecnologia, saúde e mobilidade. São questões que elas nunca levantaram. Passam a perceber que a cidade vai muito além daquela comunidade ou do bairro em que elas vivem” aponta Esquerre. Para se ter ideia do contraste de gênero no mundo científico, que tem origem em uma sociedade de princípios machistas, basta tomarmos como exemplo as premiações do Nobel de Física, Química e Medicina, que contemplou apenas 17 mulheres para um total de 572 homens ao longo de sua história. Todas as meninas que participaram da conversa apontam a importância de integrar o projeto e reconhecem seu papel social. “Os homens têm mais oportunidade”. “As mulheres sofrem discriminação”. “Acham que mulher tem que ficar limpando a casa, cozinhando mas não é assim”, foram alguns destaques do diálogo . O projeto Segundo Esquerre, a ideia surgiu a partir de seu outro projeto, chamado GAMMA -Growing with Applied Modeling and Multivariate Analysis- que também trabalha com métodos estatísticos e ciência de dados a mais de dez anos. Mas ganhou força após uma experiência na viagem para seu pós-doutorado nos EUA, em 2015. “Eles desenvolveram um projeto de pesquisa com toda metodologia científica que discutimos aqui na universidade e tínhamos o anseio de trabalhar com escolas públicas, relembra. Neste ano foram contempladas 500 garotas da faixa etária dos 11 aos 15 anos de cinco escolas em Salvador: Cidade de Jequié (municipal), Evaristo da Veiga, Henriqueta Martins Catharino, Mario Costa Neto e Colégio Estadual Ypiranga (estaduais). A ação tem o fomento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). JORNAL LABORATÓRIO | FACOM/UFBA
Foto: Acervo do CBFD
Controle no baba Futebol digital se populariza e ganha espaços físicos em Salvador Léo Oliveira
“N
ão vi Pelé, mas vi Allejo”. Quem cresceu jogando futebol nos videogames conhece o icônico jogador do universo virtual. As tecnologias evoluíram trazendo gráficos cada vez mais realistas e os jogos de futebol se tornaram verdadeiros simuladores. As pessoas que passam pela Estação da Lapa já devem ter percebido um campo com os jogos de futebol virtual. Esse esporte digital se tornou algo para além da diversão, com jogadores e ligas profissionais, além de premiações. Na Bahia não foi diferente e hoje existem organizações e torneios que preparam atletas e dão vagas para competições nacionais. Exemplo disso é o CBFD (Campeonato Baiano de Futebol Digital) no qual Pedro Amon, 32 anos, é organizador. “A ideia de fazer o campeonato foi porque eu tinha uma liga chamado Sifus Liga e ela acontecia uma vez no mês. Foi crescendo e a partir daí fizemos um campeonato fora de casa. Primeiro começou na sala, depois passou para um playground”. Amon e sua organização sofreram com dificuldades de patrocínio, até encontrar um espaço. “Nós conseguimos um espaço em um curso de Inglês em Brotas. A partir daí um restaurante fast food gostou do nosso trabalho. Desde então fechamos parceria com o restaurante, conhecemos algumas pessoas do cenário do futebol digital e vimos a oportunidade de fazer ligas iguais a minha virarem clubes dentro do campeonato, surgindo o Campeonato Baiano de Futebol Digital (CBFD). Hoje já existe em torno de 18 ligas participando”. Além disso, eles possuem o espaço na Estação da Lapa, onde também realizam torneios mensais. A organização abre as portas para novos entusiastas que querem mostrar suas habilidades com o controle nas mãos, nas duas modalidades do futebol digital atual, o PES (Pro Evolution Soccer da Konami) e o FIFA (EA Sports). “Se inscrevendo em uma liga, a gente apresenta os presidentes.Você tem a possibilidade de escolher, adquirir a camisa da liga e essa camisa é o passaporte, abrindo o espaço para participar das etapas mensais. Não precisa pagar nada, pois a liga já é filiada ao campeonato baiano”. Estes ocorrem mensalmente e oferecem premiações em dinheiro, além de participação em seletivas de competições regionais e nacional. Além do CBFD, existem outras organizações que
JORNAL LABORATÓRIO | FACOM/UFBA
Atletas participando do torneio do CBFD fazem campeonatos, inclusive online. É o caso de Luciano, conhecido como Careca, presidente da liga Boleiros de Futebol Digital e vice-presidente da Associação Baiana de Futebol Digital. A liga foi fundada em 9 de agosto de 2013 e é uma das mais velhas na modalidade online. “Hoje tem mais de 1.600 campeonatos finalizados pelo site Arena17, onde registramos nossos jogos. Temos também a liga offline que participa de campeonatos presenciais”. Dificuldades no cenário atual Careca possui uma visão crítica a respeito do cenário atual. “A falta de patrocínio é poque as ligas não tem um padrão de organização, registro, CNPJ, nenhum documento. Quem vai investir sua marca no escuro sem ligas ou uma associação portfólio?”. Segundo ele, os campeonatos no sul possuem mais organização com premiações e investimentos maiores, existindo uma disparidade com jogadores patrocinados por clubes de futebol e grandes empresas, “aqui é levado apenas como diversão”. No entanto, Careca vê com bons olhos o futuro do cenário baiano, sobretudo com a oficialização da Associação. “O futebol digital tem muito a crescer. O que precisamos é nos organizar para que os patrocinadores vejam ele como algo sério, colocar a marca deles e fazer o investimento. A Associação Baiana de Futebol Digital já foi fundada, tem seus representantes, já temos um advogado na frente disso”. “A Bahia ainda não fez um campeão baiano ser campeão brasileiro, porém esse trabalho que a gente faz não é fácil, é um trabalho de formiguinha, é com a tentativa de que a partir do momento que a gente tem o campeonato a cada mês, forçamos os atletas a estarem treinando, participando e estimulando para que, quando cheguem em uma competição nacional, estejam em um nível melhor”, conta Pedro Amon. Representação feminina
Com 22 anos, Gabriela Albuquerque é uma das entusiastas desse cenário. Sua paixão por futebol surgiu muito cedo. “Eu jogo desde quando era criança, lembro muito de jogar no Playstation com os famosos Bomba patchs”. O seu contato com o CBFD surgiu esporadicamente. “Meu primeiro contato foi na Lapa. Estava eu e meu irmão e a gente teve a curiosidade de ir jogar. A partir daí Pedro me contou sobre a existência do campeonato e achei interessante. Perguntei quando acontecia e ele me falou que era mensalmente. Então eu fui e não perdi tempo”. Por ser um ambiente ainda machista, Gabriela busca quebrar essa barreira. “Quando Pedro me falou que precisava de mais representação feminina, eu vi que posso ser uma voz a mais. Nenhum espaço é só masculino, existe lugar para os dois, basta ter respeito”. Dados da Pesquisa Game Brasil do ano passado revelaram que mulheres representam a maioria (58,9%) dos gamers brasileiros. Ao redor do mundo, as estatísticas por gênero são equilibradas, mas ainda assim um estudo de 2014 da Entertainment Software Association colocou as mulheres adultas no topo da demografia de toda a indústria dos jogos. “O regulamento é bem rigoroso em caso de algum desrespeito. A gente sabe que muitas vezes quando se trata de jogo há um comportamento de querer inferiorizar, mas eu torço que isso não deva acontecer. Existe lugar para que todos possam participar. Independente do gênero, a habilidade está com o controle nas mãos”, conta Gabriela. “Tivemos mulheres em nossa liga online e na liga offline e foram super bem tratadas, nenhum momento houve falta de respeito ou indiferença. A gente interpreta apenas como jogadores. Nunca teve nenhum tipo de resistência ou preconceito”, afirma Careca. Ver jogadoras ocupando os espaços nos esportes eletrônicos promove a abertura de portas para que mais mulheres entrem no ramo.
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Fotos: Thaís Chave/LabFoto
Sobre fantasias e vitrines de animais Repórter defensora da causa animal relata sua primeira visita ao zoológico
E
u cresci no interior da Bahia e não tenho lembranças de visitas a zoológicos. Uma experiência ruim de minha mãe é uma das causas disso. Ela conta que um rinoceronte se soltou e correu atrás das pessoas, espalhando cocô e água por onde passava. Mas, se você cresceu em Salvador, provavelmente já visitou o Parque Zoobotânico Getúlio Vargas em algum momento da sua vida. Como pessoa que nunca visitou um zoo e ativista da causa animal, me interessei pelo parque desde que ingressei na UFBA, em 2018. Comecei a questionar sobre a influência do zoológico na sociedade e na vida dos animais, se ele cumpre o que se propõe a ser. No site do Zoológico já podemos perceber que uma das propostas é ser um santuário de animais. “O Zoológico tem papel da mais alta importância na preservação de animais”, li na página dedicada ao zoo da capital. Também é claro o objetivo de ser um espaço de lazer educativo, em que os animais são bem cuidados e sadios. Contudo, tudo aquilo me parece muito romantizado. As crianças realmente se divertem em zoos? O zoo é realmente um santuário? Há alguma problemática em considerar zoológicos uma ‘opção de lazer’? Esses questionamentos me inspiraram a apurar, pesquisar e conhecer melhor esse espaço, e visitar ele no dia das crianças me pareceu instigador. Sábado, 12 de outubro de 2019, Parque Zoobotânico Getúlio Vargas. Cheguei lá por volta das 14h30, quando a catraca de entrada marcava aproximadamente 40 mil. Segundo o segurança da bilheteria o número indicava o total de visitantes desde o início da semana até aquele momento. Logo no início da trilha o tempo fechou e uma chuva de verão caiu. Não havia cobertura, então as pessoas se concentram nos banheiros para se proteger. Percebi que a maioria das crianças ali tinha por volta dos 7 anos. Havia poucos pré-adolescentes/adolescentes, e estes em maioria estavam acompanhados de famílias com crianças menores. O zoológico era basicamente uma trilha em espiral com animais presos em viveiros, celas, canteiros e/ou piscinas em volta. Ao longo do passeio sempre tinham crianças estressadas, JORNAL LABORATÓRIO | FACOM/UFBA
inquietas, querendo correr, reclamando ou querendo interagir com os animais de algum jeito. Foi ilustrativo quando um pai tentava convencer um garotinho de uns 5 anos a olhar os macacos, enquanto ele estava mais interessado no velotrol que levou. A caminhada, o subir e descer ladeira, os sons dos animais desconfortáveis ao ouvido - principalmente das aves, o odor desagradável provavelmente vindo das rações. Tudo isso parecia incomodar muitos dos pequenos e em consequência estressar alguns pais. Conversei com algumas crianças mais velhas para saber o que elas estavam achando do passeio, e entre as respostas diversas e inocentes a de Jeane, de 11 anos, foi a mais expressiva. “Eu sei que os animais ficaram muito felizes por eu ter vindo tirar foto deles”, ela declarou, rindo. As crianças queriam ser ativas no passeio, e isso ficou evidente nas atividades interativas como pintura de rosto, brinquedos e pessoas fantasiadas. Elas concentram grande público e proporcionaram mais diversão às crianças que a observação dos animais e a caminhada. Conclui que as pessoas, principalmente crianças, podem aprender mais sobre animais selvagens assistindo a documentários que mostram os mesmos nos seus habitats naturais ou realizando expedições específicas para observar esses animais na natureza. Senti que os animais estavam numa vitrine, para serem vistos como num museu. A educação viria a partir da observação de como eles se comportam na natureza. Os animais, simplesmente por estarem em cativeiro, já se comportam de forma diferente do que quando na natureza. Notei que uma onça pintada andava inquieta de um lado para o outro acompanhando o vidro de exposição. Ela divide cela com duas onças pretas, em uma área que, ao meu ver, media aproximadamente 50m². Onças na natureza vivem em áreas com 100 a 1.000 km² em média, segundo estudos da UNESP. Em pesquisas posteriores, descobri que ela poderia estar passando pelo chamado pancing, ato repetitivo de ir e vir sem sentido algum, sinal de estresse causado pelo cativeiro em espécies de mamíferos que percorrem grandes distâncias na natureza em busca de presas. O bem-estar de um animal não é somente bem-estar físico, mas também o psicológico. Depressão, tédio e psicose são conse-
quências comuns de um encarceramento inadequado. Consultei estudos que mostram que animais criados em cativeiro têm “pobres histórias sociais” e são significativamente menos propensos a se relacionar com outros da mesma espécie. O objetivo maior dos zoológicos deveria ser a preservação da fauna (santuário que não permite visita). O zoo não é educativo a partir do momento em que os animais não se comportam de modo natural pelo simples fato de estarem confinados. Tentei entrevistar seguranças e cuidadores, mas há uma regra de que entrevistas só podem ser feitas com a permissão do coordenador geral do zoo. Enviei e-mails, fiz ligações, enviei um ofício de solicitação, visitei o local duas vezes até conseguir permissão para uma conversa, e mesmo assim não pude fazer entrevista. Quando estava na sala de espera para a conversa, notei um quadro sobre as missões, visões e valores do zoo. O quadro não mencionava animais, nada sobre o bem estar deles ou sequer sobre preservação e/ou educação ambiental. Foto: Rayssa Machado
Rayssa Machado
O quadro não menciona animais, nada sobre o bem estar deles ou sequer sobre preservação e/ou educação ambiental OPINIÃO | PÁGINA 30
Arte sobre imagem do Google Street View/Alexandro Mota
GuetoNet
Operadoras locais de internet atendem demandas de consumo nas periferias Victor Meneses
“C
aro cliente, no momento, seu endereço não conta com a cobertura do nosso serviço”. Seja por mensagem de voz ou texto, essa é a frase mais ouvida por moradores das periferias de Salvador que planejam contratar um serviço de internet. As grandes empresas de comunicação não chegam até suas casas ou, quando chegam, só oferecem os planos mais básicos e com preços nada convidativos. A falta de interesse das grandes operadoras em atingir municípios mais isolados e bairros periféricos das grandes metrópoles abriu o caminho para a popularização e o crescimento dos provedores locais. As empresas regionais de internet registraram um crescimento de 104% somente no Nordeste em relação ao ano anterior, com mais de 380 mil novos acessos. Os dados são da Anatel, sobre o balanço de fluxo de acessos no ano de 2018. A JD Telecom, provedora situada na região do Santo Antônio Além do Carmo, no centro de Salvador, atende às comunidades locais e, mesmo competindo com grandes operadoras, defende sair na vantagem em relação às concorrentes. Com planos a partir de R$ 39,90 e garantia de tecnologia de fibra ótica, a empresa atende em média 1.000 clientes no centro da cidade. “A gente faz um trabalho de inclusão social. Atendemos clientes de baixa renda, tem cliente que paga a mensalidade com auxílios que recebem do governo. Nosso diferencial está no preço baixo, qualidade do serviço, bom atendimento e a agilidade na hora de resolver os problemas. Além de não fazermos consulta ao SPC e Serasa”, argumenta Divanildo Lopes, repre-
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sentante da empresa. Pedro Vieira, engenheiro elétrico e especialista em rede, analisa as diferenças do sistema de operação das pequenas empresas. “Grandes empresas são holdings e concessionárias. Em última análise, a diferença entre as empresas maiores e as locais é o dinheiro envolvido. As soluções mudam de acordo com o valor disponível. Quando é uma solução parecida, os equipamentos compõem basicamente a mesma tipologia, o que mudam são as marcas, alguma são mais baratas, geralmente as chinesas”. Pedro ainda conta como muitas das grandes empresas alugam suas fibras que estão em desuso para provedores menores, que somente administram o serviço, sem gastos com os elementos de rede. Essa modalidade é conhecida como Fibra Escura ou Fibra Apagada. “As concessionárias vendem um link comparativamente atraente com uma banda considerável, comparável a uma compra em atacado. Daí os pequenos provedores, conhecidas como MVNOs [Operador móvel virtual, da sigla em inglês], fazem o gerenciamento e a administração dos links, muitas vezes entregando um serviço com mais valor agregado e mais qualidade que as próprias operadoras. A GVT, antigamente, quando era uma pequena MVNO, comprava fibra da Oi (fibra escura ou fibra apagada), gerenciava o tráfego e subdividia melhor a banda para os clientes, vendendo o produto com uma qualidade superior e com organização”, lembra Pedro. Outra dessas MVNOs que opera em salvador é a Speed Wireless, provedor do Engenho Velho da Federação. Ela atende em média 2.000 clientes na área da Federação, Eng. Velho de Brotas, Garcia, Vasco da Gama e Ogunjá. Defende que a importância do seu serviço está em trazer a inclusão digital a uma área
onde as grandes empresas não atendem. “Nosso grande trunfo é realmente o pós-venda, o suporte diferenciado e rápido. Além da facilidade de saber a real necessidade do consumidor por estar próximo a ele. Alguns anos atrás haviam mais lugares que as empresas maiores não tinham cobertura, mas como atendo no centro, eles já possuem uma cobertura maior.” Rodrigo Silva, morador do bairro do Saboeiro, é cliente da Oi e da Messias Net, operadora do bairro. “A maior parte das grandes operadoras não chegam aqui, e a que chega, a Oi, traz internet de qualidade inferior por preços mais altos. Estava pagando 200 a 220 reais numa internet de cabo metálico de 15 megas”. Após assinar o serviço da Messias Net de 7 megas por 60 reais, Rodrigo reduziu o pacote da Oi e agora paga 54 reais em 15 megas de internet. “A Oi tem telefone fixo, mas a Messias, não. A Oi é instável, cai com frequência, Messias é mais estável. Meus pais são professores e precisam de uma internet segura para trabalhar, especialmente minha mãe, que trabalha com EAD. O pessoal aqui em casa ainda não confia muito na internet do Messias, mas temos ela como um backup”, comenta Rodrigo. O crescimento dessas empresas tem chamado a atenção dos fundos de investimento, que enxergam uma oportunidade na participação dos provedores regionais no mercado de banda larga. Entre os dias 26 e 27 de Setembro, Salvador recebeu o INOVTic Nordeste & ISP Business, que reuniu mais de 300 participantes, incluindo os principais executivos das maiores operadoras de telecomunicações, ISPs (Fornecedor de Acesso à Internet) da região, dirigentes de empresas Over The Top e representantes das gigantes internacionais para discutir soluções de tecnologia e administração. JORNAL LABORATÓRIO | FACOM/UFBA
Os ‘salva bad’
tendo alguma ‘bad trip’, algum desconforto, um mal estar ou que às vezes não está se sentindo bem mesmo,” esclarece Jade. Nas festas em que atua, Jade conta que sempre faz amizades com as pessoas que procuram pela RD. Caian Santos, 19, é uma dessas pessoas. O jovem que diz frequentar raves há mais ou menos três anos, precisou ser atendido pela equipe de Redução de Danos em uma festa e se surpreendeu com toda a atenção que recebeu. “Minha experiência na Redução de Danos foi algo inesperado. Não sabia que era tão ‘da hora’ o lugar, me peguei numa situação muito sentimental, estava sob efeito de MD [ecstasy], então precisava muito conversar com alguém. [...] apareceram as meninas, Jade e Camila, super atenciosas, dando muito atenção às pessoas que ali estavam, incluindo a mim, ajudando com toda boa vontade com alimentação, água”, relata Caian. A experiência foi tão marcante que ele afirmou, desde esse dia em diante, sempre ir nos espaços de Redução de Danos para cumprimentar os redutores. “É importante a Lorena Marques, estudante de redução nas raves porque lá existem pessopsicologia e fundadora da Lótus as que como eu, precisavam conversar e se informar sobre tais substâncias, precisavam Redução de Danos de uma atenção. O trabalho das meninas é sem dúvidas sensacional”, complementou Caian. Esse entendimento de Redução de Danos enquanto difusor de informação é essencial para a comas questões que são complicadas de pessoas que não preensão da RD como uma política não de abstinência, se informam e acabam fazendo um uso exagerado e mas de conscientização. equivocado de várias substâncias, mas no geral, eu acho que se a pessoa sabe o que ela está fazendo, ela Políticas Públicas nas RDs vai curtir muito a festa”, acrescenta a estudante. Na contramão das políticas antiproibicionistas, Participação coletiva em Redução de Danos o presidente Bolsonaro aposta na abstinência como principal meio de tratamento para usuários de drogas. Atualmente com 20 anos e em contato com a cena Luana Malheiro, fundadora da Rede de Feministas Aneletrônica desde os 15, Lorena Marques coleciona extiproibicionistas (RENFA), explica como ao longo dos periências diversas quando o assunto é rave, drogas e anos, a Redução de Danos foi sofrendo cada vez mais “bad”. A jovem, que não tem costume de fazer uso de desmonte e sucateamento. “A Redução de Danos, ela drogas sintéticas, conta que estava sempre consciente começa no Programa Nacional de DST e HIV como uma vendo os amigos “em outro mundo” e que isso proporestratégia de conter a contaminação de HIV por uso de cionou nela uma visão ampliada do funcionamento da cocaína injetável. Com o fortalecimento da Redução festa. “De muitas festas que eu fui não existia um grude Danos, ela vai para a saúde mental. Só que ela vai po de RD para aquele evento ou o grupo que existia era para a saúde mental como uma ‘perfumaria’ mesmo, muito precário. Precário não no sentido financeiro, mas um conceito solto. Você não tem criação de orçamento, em termos de manejo, como você acessar aquela pesvocê não tem um orçamento que financie uma equipe soa, como você disponibilizar uma redução que esteja de Redução de Danos,” explica Luana. adequada para o que ela precisa”, relata a estudante Nesse contexto, a Redução de Danos em si se ende psicologia. contra em um momento de resistência. O Programa É justamente por essa experiência enquanto freCorra pro Abraço, ativo desde 2013, pela Secretaria de quentadora de raves que, junto com outros amigos, Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social, Lorena decidiu criar o Coletivo Lótus de Redução de se mantêm em funcionamento através de convênios Danos. Em três meses, o coletivo atuou em um evento, feitos com o governo do estado. Frank Ribeiro, superpara além das discussões nos espaços universitários visor de equipe no Corra, explica que o programa está e escolares. “Essa perspectiva da Redução de Danos submetido a convênios que duram dois anos e podem veio justamente dessa visão panorâmica que eu tinha ser renovados ou não. nas festas e que eu tenho até hoje, porque eu ainda O Corra pro Abraço trabalha não apenas com frequento, na qual existe uma vulnerabilidade muito usuários de drogas, mas com quaisquer pessoas em grande, as pessoas ficam muito expostas,” explica Losituação de vulnerabilidade. Para Frank, sociólogo de rena. A também estudante de psicologia, Jade Maia, é formação, a Redução de Danos representa o direito à membro do Coletivo Se Plante e, assim como Lorena, cidadania. “Hoje a gente pode falar que Redução de se interessou pela prática de Redução de Danos a partir Danos é uma política que extrapola a questão do condo que já havia vivido em raves. Ambas se viam no lutrole só do uso de substância, do controle biológico. É gar de cuidadoras dos amigos na “bad”. “A Redução de o sujeito ter acesso a direitos. É redução de danos estar Danos em contexto de festa é justamente para a gente com a sua documentação, exercer sua cidadania é represtar esse atendimento para as pessoas que chegam dução de danos,” enfatiza Frank.
Foto: Divulgção
Voluntários levam informação e apoio a quem usa drogas em raves
Existe uma vulnerabilidade muito grande, as pessoas ficam muito expostas
Maria Clara Andrade
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os anos 80, a juventude se rebelava seguindo o lema sexo, drogas e rock´n roll. Agora, a moda é o uso consciente das substâncias psicoativas, sem deixar de lado “o barato”, mas com o bem-estar físico e psíquico em primeiro lugar. É a partir desse princípio que os Coletivos de Redução de Danos (RD) têm invadido festas raves para levar informação, atendimento e cuidado para os jovens que gostam de “fritar” ao som da música eletrônica. As práticas de Redução de Danos foram difundidas pela primeira vez na Inglaterra após a 1ª Guerra Mundial, para diminuir os danos provocados pelo uso do ópio por ex combatentes. No Brasil, a política surge muito tempo depois, no início dos anos 90, em combate à disseminação de HIV através de seringas compartilhadas. Em 2019, ano de comemoração dos seus 30 anos de existência no país, o presidente Jair Bolsonaro retirou as práticas de Redução de Danos do Plano Nacional de Drogas. A vivência das raves A estudante de 19 anos Luísa Ventin descreve raves como festas completamente diferentes das outras e é isso que a atrai. “Quando você vivencia a rave, você vê que as pessoas têm outra energia, é uma felicidade que contagia. Se tiver alguém precisando de ajuda, vão ajudar na hora, as pessoas trocam elogios de graça. Na minha visão, é uma festa só amor”, relata Luísa. Mesmo em um país com forte política proibicionista, o uso de drogas sempre foi difundido entre os jovens, havendo recorte de classe social que interfere na qualidade, no tipo de substância utilizada e a forma de punição para quem for pego com entorpecentes. Luísa, que frequenta raves há aproximadamente dois anos, afirma também sentir receio por aqueles que fazem uso indiscriminado de drogas. “Obviamente tem
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