Consultório

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CONSULTÓRIO | Joana Lucas (pintura) & Paulo Kellerman (estórias)


Consult贸rio Joana Lucas (pintura)

& Paulo Kellerman (est贸rias)


Consulta # 01

Ă€ escuta


Acrílico sobre tela 108 x 150 cm, 2008

"à escuta"

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Sabe como é, doutor, as coisas morrem e pronto, vão morrendo devagarinho dia após dia; é chato mas paciência, acontece a todos, acontece com tudo o que está vivo, por que motivo não haveria de acontecer com os casamentos? Morrem, e pronto, azar, temos pena; morrem, simplesmente, como tudo o resto. Ok, são as regras, há que aceitá-las. O problema, doutor, e o senhor sabe certamente melhor do que eu qual é o problema, não sabe?, o problema é conseguir perceber que o casamento está morto, isso é que custa; e, logo de seguida, aceitar que o casamento está morto, isso também custa bastante, na verdade é o que custa mais. Aceitar o fracasso, assumir a culpa, lamentar o tempo perdido e etc, tudo isso custa. Custa muito, custa mesmo, mas depois disso, depois de perceber e aceitar, o pior está ultrapassado e basta seguir em frente, seguir em direcção ao futuro, que ele não espera muito tempo. Basta fazer o funeral do casamento, digamos assim, e avançar. Ora muito bem, o problema é passar por lá, passar efectivamente pelo sofrimento, vê-lo no olhar do outro como se estivéssemos a olhar para um espelho. O problema é sofrer. Agora estamos aqui sossegadinhos a conversar, lá fora o sol brilha e os pássaros esvoaçam, os semáforos funcionam sem falhas e as montras das lojas são renovadas (já reparou no carinho com que as raparigas vestem os manequins?, é enternecedor), daqui pouco passamos por um café e comemos uma torrada bem fofa e quente, numa mesa afastada estará alguém que de repente dará um gargalhada monumental, uma gargalhada que contagiará todo o café, porque não há nada como a gargalhada anónima e injustificada de um desconhecido para nos fazer sentir bem; sentimos a felicidade ali mesmo ao lado, a pairar tão perto, e damos por nós a pensar que não há nada que nos impeça de sermos igualmente felizes, de ter gargalhadas iguaizinhas. É assim que funciona, não é, doutor? A imitação tem um papel muito importante nas nossas vidas, na definição dos nossos estados de espírito; tudo é contagiante, começando pela alegria. Não se ria, sabe que é mesmo assim. Mas deixe-me regressar ao que interessa: ao sofrimento, que as torradas ficam para depois. O sofrimento da casa silenciosa. Andarmos de sala em sala, sem vontade de ali estar mas sem outro sítio onde ir, olhar para o outro e não ter nada que lhe dizer, esperar que não faça perguntas porque não apetece nada, mas mesmo

nada, responder-lhe. E que perguntas poderia ela fazer, oh doutor? Depois de se viver um ano ou assim com alguém, não há perguntas novas que se possam fazer, o catálogo está esgotado. Mas deve estar farto de ouvir esta conversa, não é? O quanto custa olhar para alguém que se amou e ser incapaz de perceber porque se amou aquela pessoa, que havia nela para amar. Bom, tudo isto é de uma banalidade atroz. Um dia estamos em casa de uns amigos e rimos que nem desalmados, rimos tanto que somos a inveja de todos os outros (como se estivéssemos a usurpar demasiados risos para nós, cada riso que gastássemos seria um riso a menos disponível para todos os outros), olhamo-nos com ternura e partilhamos um copo, regressamos a casa demasiado cedo porque queremos estar sós, queremos fugir que o mundo está tão cheio de gente, gente que só empata e estorva, e para cada um de nós basta a presença do outro e nada mais, lá vamos os dois no carro escuro e vagaroso, mãos dadas como um par de adolescentes, planeando qual será o nome da primeira criança, entramos em casa abraçados e fodemos devagarinho e fazemos um lanche na varanda e fodemos outra vez e adormecemos e acordamos e sorrimos e pronto, é assim a felicidade. Isto, num dia; porque no outro, tudo se transformou, súbita mas imperceptivelmente, numa memória difusa e um pouco embaraçosa. E quem faz isso, doutor, quem é o responsável? Quem chega junto de nós e pega naquilo que de mais precioso tivemos para o transformar numa irrelevância? Porque alguém tem que o fazer, as coisas não se limitam a acontecer, alguém tem de as fazer acontecer. Ou seremos nós uma espécie de fábrica de irrelevâncias? Andamos pelo mundo colhendo pedaços de felicidade, aqui e ali, aproveitando


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tudo o que podemos, para logo o transformarmos em nada; será isso, doutor? Mas estou a devanear, desculpe lá. Seguindo em frente. O que interessa é que, de repente, deixámos de nos conhecer. Eu ainda a amava mas não a conhecia, tudo o que sempre soubera dela, tudo o que fora aprendendo e descobrindo, parecia subitamente ilusório e irrelevante, acessório. Como se de repente descobrisse que estava a viver com uma pessoa desconhecida, percebe? Olhava-a e não sabia o que estava a pensar, o que estava a sentir. E por que acontecia isto, assim subitamente? Bom, talvez o que estivesse a acontecer fosse algo diferente. Talvez ela não se tivesse tornado desconhecida, talvez a verdade fosse que eu nunca a conhecera, nunca soubera nada dela. Afinal, chegamos realmente a conhecer algo de quem amamos ou apenas aquilo que projectamos nele, aquilo que imaginamos e queremos e precisamos de conhecer? Ou aquilo que nos deixam conhecer, aquilo que permitem que se conheça? Mas estou a complicar. Na verdade, era simples: não fazia ideia do lhe ia pela cabeça. Ou talvez nunca tivesse feito ideia. Talvez as relações sejam muito mais rudimentares do que se imagina; uma pessoa olha para alguém e decide: é isto que estás a sentir; e pronto, está feito: o sentimento está lá, basta agora colhê-lo; dá-se o sentimento e logo depois vai-se buscá-lo, ponto final. Não, ponto final, não; porque quando alguém o vai buscar, surpreende-se por o descobrir lá, delicia-se quando percebe que é o sentimento que lhe dá mesmo jeito, que vem mesmo a calhar, delicia-se tanto que se esquece que o colocou lá, que ele apenas está lá porque imaginou que lá estaria; resumindo: o que conhecemos dos outros é o que lhes impingimos; ou seja: não conhecemos nada dos outros. Estarei enganado, doutor? Sabe, antes de perceber isto, parecia tolinho. Amava-a mas, subitamente, não a conhecia; em que estará a pensar?, perguntavame. Claro que não lhe perguntava a ela, porque isso seria assumir a minha ignorância; era como chegar junto dela e dizer-lhe: olha, ajuda-me lá um bocadinho que eu não sei nada de ti; apesar de te amar, claro. E ela responderia: mas se não sabes nada de mim, como podes dizer que me amas, o que amas em mim? E eu teria de admitir: xeque-mate. Mas, como estava a contar, não fazia ideia do que lhe ia pela cabeça. Que pensaria ela de mim, da nossa relação? Não sabia. E então andava por ali a pairar, a ver se apanhava alguma coisa no ar. Ridículo, não acha? Bom, a única forma de não ser ridículo é estar morto. Já que ela não falava, tentava ouvir os seus pensamentos, tentava escutar o seu silêncio. Está a imaginar? Ela sentada à mesa da cozinha ou assim e eu escondido trás de uma parede, a

ver se captava alguma coisa. Já imaginou o piadão, se alguém invisível nos tirasse uma fotografia, se um satélite estivesse a seguir os meus movimentos? Um piadão tremendo, melhor do que uma anedota. Não acha? Está aqui a ouvir-me, todo sério e tal, e sei que faz um esforço valente para não sorrir; mas pode rir, se quiser. Afinal, tem piada. A ver se lhe apanhava os pensamentos, já imaginou tal coisa, doutor? Bom, se as conversas que ouvimos nos telemóveis circulam pelo ar, andam por aí às soltas, porque não poderíamos captar os pensamentos daqueles que amamos? Seria uma questão de frequência, de rede. O problema é que, na verdade, não haveria motivo nenhum para os pensamentos lhe saírem da cabeça, não é?, estavam lá bem protegidos, para que haveriam de sair cá para fora? Mas olhe só para a tolice desta conversa, doutor. Enfim, nunca deixamos de ser umas criancinhas, por mais que finjamos; nunca desistimos de acreditar no pai natal, em explicar o óbvio com teorias rebuscadas. De qualquer forma, tudo isto teve a sua importância; porque foi quando tomei consciência da minha figura atarantada, da minha vulnerabilidade e impotência, que percebi que o casamento estava morto, que tinha morrido; e estando morto, não interessava especialmente perceber quem o matara, porque morrera. Morrera, simplesmente; não havia necessidade de chamar a polícia. Havia que seguir em frente e pronto. E foi o que fiz. Mas sabe o que tem piada? É que, afinal, talvez tenha resultado, esta minha inopinada tentativa de prospecção (prospecção, já viu bem?) de pensamentos. Resultou, sim: porque o


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pensamento andava ali pelo ar, pairando ao sabor das nossas respirações, e acabei por o captar. Claro que o doutor dirá que era um pensamento meu, da minha própria mente, dirá que não captei nada, limitando-me a perceber e aceitar algo vindo do meu próprio subconsciente, ou inconsciente ou lá como vocês lhe chamam. Mas e se não fosse assim, tudo racional e lógico? Se tivesse existido mesmo uma transmissão? Se ela tivesse efectivamente difundido silenciosamente, sem recorrer a palavras ou gestos ou olhares, o que pensava e desejava? Terei percebido a mensagem correctamente? E se me enganei, doutor? Se percebi tudo ao contrário? (Comentário escrito pelo psiquiatra no seu caderninho, no final da consulta: Pensava que me ia perguntar: oh doutor, e se foi mesmo uma transmissão? Não haverá maneira de ganhar algum dinheiro com isto? É que deve dar bom dinheiro, esta coisa de adivinhar os pensamentos dos outros. Já imaginou as potencialidades, doutor? Pensava que era isso que me ia perguntar; e se o tivesse feito, ter-lhe-ia respondido: já pois, então não imaginei?)


Consulta # 02

A sereia


Acrílico sobre tela 150 x 100 cm, 2008

"a sereia"

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Foi um descontrolo total, doutor, nunca me tinha acontecido nada parecido; mesmo assustador, nem imagina, uma coisa disruptiva e inibidora, quase vergonhosa, e até um pouco desconsoladora, percebe?; e embaraçante, muito embaraçante. Mas deixe-me começar pelo princípio, que estou para aqui a acumular adjectivos que nem uma poetisa frustrada. Bom, o princípio, então; como sempre acontece, o princípio não teve nada de especial, nada de assinalável, nada que permitisse prever que conduziria a um final inesperado. Mas é sempre assim, não é? Apenas à posteriori conseguimos perceber que determinado fim era inevitável, que estava mais do que anunciado. De certa forma, estamos sempre condenados, não é?, podemos fingir que não mas a verdade é que controlamos e decidimos muito pouco, quase nada. Mas estou a divagar, doutor. Bom. Estava a ser um dia normal, tão vazio e desinteressante como qualquer outro; atraseime um pouco, houve uma pequena discussão com uma colega lá do gabinete, uns silêncios desconfortáveis que me conduziram à decisão de ir almoçar sozinha, sem a companhia da malta do costume; comi um enorme gelado à sobremesa, soube mesmo bem, mas logo de seguida veio o peso na consciência, comecei a sentir-me gorda e feia, já sabe como é, que raio de vida esta, não há um único prazer que não venha com contraindicações, nem um. Adiante. Quando divagava pelo centro comercial, vi um vestido fabuloso numa montra e apaixonei-me por ele, uma daquelas paixões fulminantes; estive ali uns bons dez minutos a olhar, as pessoas que passavam a rirem muito alto, não sei onde desencanta esta gente tantos motivos para rir, não sei que pretendem provar com tantas gargalhadas ruidosas e ostensivas, quase desafiadoras, será que as pessoas também se riem tanto quando estão sozinhas ou apenas o fazem quando há audiência, quando podem exibir a sua felicidade de forma sonora e visível? Deixe lá, doutor, não interessa; voltando ao meu dia: continuava em frente da montra a tentar convencer-me que o preço não era excessivo, que tinha direito àquele mimo, imaginava-me dentro do vestido e sentia-me bem, alegre, se pudesse usá-lo é possível que também desse por mim a rir em público, feliz da vida, como todas as pessoas que passavam mesmo ali ao lado, talvez apenas rissem porque tinham acabado de comprar roupa nova, afinal é para isso que se vai aos

shoppings; os minutos a passarem, empurrandome para o interior da loja, eu a deixar-me ir, devagarinho; entrei e disse: quero o vestido da montra. Estou a falar a sério, foi isso mesmo que disse, sem boas-tardes ou se faz favor, sem nada; a rapariguinha olhou-me de uma maneira que nem lhe digo mas foi buscá-lo, demorando o mais que podia, deleitando-se com a lentidão; e eu a olhar para uma tatuagem horrível que ela tinha ao fundo das costas, a pensar no que levará uma mulher a fazer uma tatuagem daquelas, há coisas que não se percebem; e sabe o que aconteceu, então? O vestido não servia. Decidira comprá-lo mas não servia, era o último exemplar, fins de colecção e mais não sei quê, consegue imaginar a frustração? Despi-o com cuidado, quase com reverência, como se me estivesse a despedir de algo precioso, e quase não consegui evitar chorar quando os olhos passaram pelo reflexo do meu corpo semi-nu no espelho; mas haverá algo mais patético do que uma mulher trancada num gabinete de provas de um pronto-a-vestir começar a chorar, ao som de música foleira e dos comentários desencontrados de mulheres anónimas? Devolvi o vestido à rapariga da tatuagem, que me olhou com um ódio inexplicável; e então, não faço ideia porquê, sem querer, baixei os olhos e confessei: não me serve; quando ela ouviu aquilo, o ódio dissipou-se e transformou-se em regozijo, em contentamento. As pessoas são mesmo mesquinhas, não são, doutor? Enfim. Engoli a frustração e rumei ao gabinete, tentando esquecer o vestido e o gelado e a rapariga da tatuagem, tentando esquecer tudo; o problema é que por mais que se tente esquecer tudo, é impossível não ter algo dentro da cabeça, é impossível esvaziá-la completamente; e esse é que é o verdadeiro problema, parar mesmo de


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pensar só se consegue quando se morre, e mesmo então, sabe-se lá o que nos espera. Mas veja como divago e me distraio, devia receitar-me uns comprimidos para isso. Seguindo. A tarde avançou, telefonemas atrás de telefonemas, um problema no computador que empatou o trabalho, os minutos a arrastarem-se tão devagar; inesperadamente, a colega com quem discutira de manhã veio pedir desculpa, o que me surpreendeu bastante, pois deveria ser eu a pedir-lhe desculpa; apesar disso, permiti que se humilhasse um pouquinho, lá foi falando mais para si própria do que para mim, acho que estava a gostar de se ouvir; fiquei com a sensação de que queria abraçar-me, o que me arrepiou um bocado, a perspectiva do toque daquela mulher pareceu-me subitamente repugnante; ouvia-a e pensava: a carência é uma coisa tão triste. Enfim, desculpe lá doutor, estou a perder demasiado tempo com isto; como lhe disse, foi um dia normal, igual a todos os outros. Mas é extraordinário que mesmo nos dias normais haja tanta coisa que nos marque, tanta coisa que fique. Cheguei a casa e, mal entrei, senti-me atingida pelo silêncio, um silêncio palpável e ostensivo, brutal; ainda não me habituei, doutor, estou sozinha apenas há sete meses, não passou tempo suficiente; chegar e não ouvir alguém perguntar então, que tal foi o teu dia, 'mor? é duro, doutor. Sinto saudades que alguém me chame 'mor; na verdade ele deixara de o fazer há muito, antes do divórcio cheguei a tentar localizar a última ocasião em que ele me chamara 'mor. Já viu? 'Mor. Coisa ridícula, estar-se apaixonado. Mas adiante. Dei uma volta pela cozinha, estanquei à janela a olhar lá para fora, a tentar perceber o avanço das nuvens, a tentar perceber se eram elas que me estavam a levar a felicidade. Não sei se está a ver o estado de espírito, a auto-comiseração é algo muito triste, especialmente quando é consciente. Então, toca o telemóvel; uma mensagem a desmarcar um encontro que tinha para essa noite. A minha primeira tentativa após o divórcio, desmarcada por sms. Desculpa mas não vou poder ir, depois explico. No fim, os dois pontos e o parêntesis, a indicar infelicidade. E eu a perguntar-me: que raio, mas tenho treze anos ou quê? Pensei no que sentiria se por acaso tivesse comprado o vestido, agora que se dissipara o pretexto para o usar; pensei se o vestiria apesar de tudo, apenas para trazer por casa, pensei se não seria divertido ver a telenovela e comer torradas usando um vestido (lindíssimo, doutor, lindíssimo) de trezentos e quarenta e cinco euros. Trezentos e quarenta e cinco, e estava em saldo. Fiquei um bocado com o telemóvel na mão, a ver se acontecia alguma coisa; depois, pousei-o, que mais podia eu fazer? Comi uma maçã e fui pensando na minha colega da discussão e no abraço

que ela desejara, depois pensei na rapariga da tatuagem, que tinha corpo para usar o vestido mas talvez não tivesse dinheiro para o comprar; imaginei-a a desfilar pela loja, após a hora de fecho, experimentando o vestido, sentindo-se bonita, rindo alto (talvez as pessoas afinal também riam quando estão sós), telefonando ao namorado e pedindo vem ter comigo à loja, que está a apetecer-me fazer uma coisa; e rindo, rindo muito (serão os risos públicos substancialmente diferentes dos risos privados, doutor?); e depois, quando o namorado chegasse, perguntar-lhe-ia se gostava do vestido e contaria da gorda que o quisera comprar e depois fariam as coisas que os namorados normalmente fazem. Tudo normalíssimo, como vê. Mais um serão normal, depois de um dia normal. As ansiedades do costume, as decepções do costume, tudo muito previsível mesmo quando não é nada previsível, não sei se me está a entender. Passei roupa a ferro, que é uma coisa desoladora de se fazer; depois, percorri a agenda do telemóvel, à pesca de alguém que pudesse estar com vontade de me ouvir, que não me despachasse mal topasse o meu estado de espírito. Tentei distrair-me no facebook, mas logo me aborreci, com todo aquele catálogo de irrelevâncias; liguei a televisão e fiquei à espera que me distraísse. Na verdade, doutor, tenho que lhe confessar, acho que estava com esperança que o tipo do sms me aparecesse à porta, surpreendendo-me; já se sabe, doutor, é sempre mais fácil esperar milagres do que tomar uma iniciativa, do que fazer qualquer coisa. Então, em vez da campainha da porta, toca o telemóvel;


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pensei um monte de coisas, enquanto me aproximava, alimentei um monte de fantasias; afinal, era a minha mãe, apenas a minha mãe. Fui escutando, com a mesma falta de paciência com que seria escutada por quem me ouvisse se, por acaso, tivesse caído na tentação de telefonar a alguém, a qualquer um dos amigos disponíveis na agenda do telemóvel; na verdade, o problema dela deveria ser muito similar ao meu: solidão. Necessidade de companhia, de diálogo, apenas isso. Foi falando, as mesmas lamentações de sempre, uma após outra, o desfile do costume, é tão triste percebermos que os nossos pais serão incapazes de nos surpreender, de tão previsíveis que se tornaram; mas de repente, sem qualquer aviso prévio, começou a chorar; e mesmo isto não chegou a ser uma surpresa, apesar de ser a primeira vez em que chorava através do telefone, uma sensação tão estranha, doutor, um desconforto muito diferente de quando ela chorava mesmo junto de mim, à minha beira. Foi chorando e eu tive que me esquecer de mim e dos meus problemas, tentar dar-lhe um motivo para sorrir, inventar qualquer coisa. Não consegui e a chamada acabou por cair, certamente que ela tinha ficado sem saldo. E quer que lhe confesse uma coisa terrível, doutor? Quase cedi à tentação de não telefonar, de a ignorar; coisa terrível, não é?, ignóbil. Mas lá telefonei, claro que tinha de telefonar, e continuei a ouvi-la durante uma infinidade de tempo, uma hora ou assim, até que chegou a minha vez de ficar sem saldo. E o silêncio abrupto que se seguiu, forçado e inesperado, pareceu-me estranho e desagradável. Rondei pela casa, pensando na minha mãe e na sua conversa, estranhando que não tivesse falado nem uma única vez do meu pai. Não sei por que pensei nisso, por que me lembrei dele naquele momento, mas foi o que aconteceu. Já lhe contei que o meu pai morreu quase há um ano, não contei? Acidente de carro, despistou-se contra uma árvore; mas houve quem insinuasse que não se tratou bem de um acidente, percebe o que quero dizer? Claro que percebe. Mas não vou falar disso agora, doutor; ainda é demasiado cedo. Ainda não; por enquanto, falemos apenas das coisas normais. E, como pode ver pelo que tenho estado a contar, todo o dia foi normal, doutor, normalíssimo; apenas com alguns ténues desvios, algumas nuances dentro do espectro de normalidade a que estou habituada. Olhe, está quase a sorrir, doutor, não está?; gostou desta do espectro da normalidade, não foi? Sabe, se alguma vez o fizer rir é porque ainda há esperança para mim. Mas adiante, que estou quase a chegar à parte que não é bem normal, a parte assustadora. Fiquei por ali a pensar na minha mãe e depois, de repente, no meu pai; comecei a pensar no meu pai,

pensar a sério, e acho que foi isso que me descontrolou um pouco, que me impeliu a despistar-me momentaneamente do trilho da normalidade. Porque o meu pai, doutor, sempre foi uma pessoa especial, que me tratou de um modo muito peculiar. Quando eu era criança, e assim. Sempre foi o meu aliado, o meu suporte. As coisas corriam mal, porque havia sempre qualquer coisa a correr mal, e ele ensinava-me a refugiarme dentro de mim própria e a proteger-me do mundo (proteger-me do mundo, doutor, e não fugir dele), encontrando força e ânimo e paz em mim; ensinava-me que, de certa forma, as coisas eram simples e lineares, que não havia grande necessidade de complicar, que a arte de viver não era nada de muito complexo. E era em tudo isso que eu pensava, enquanto vadiava da cozinha para a sala e da sala para a cozinha, sem objectivo nenhum, apenas para não estar quieta, porque quando estamos quietos o desânimo apanha-nos mais facilmente; recordava os seus ensinamentos, e a forma como me amparava e protegia e amava, a forma simples como contextualizava as nossas vidas, e os seus problemazinhos, no emaranhado de complexidades que compõem o mundo. Recordava, também as suas gargalhadas, espontâneas e contagiosas, simultaneamente profilácticas e curativas. E enquanto recordava a forma simples e genuína como ele atenuava os meus sofrimentos, sentia crescer dentro de mim uma profunda nostalgia desse tempo irrepetível, uma saudade súbita e brutal das tardes que passava a brincar com bonecas ou a experimentar as roupas da minha mãe ou a ler


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histórias de princesas ou a tentar fazer um bolo que toda a família pudesse elogiar, uma saudade dolorosa da forma natural como o meu pai chegava e pegava numa das minhas bonecas para lhe elogiar o vestido ou dizia que aquela blusa da minha mãe me ficava mesmo bem e me fazia muito adulta ou me explicava por que motivo eram as pessoas tão más para as princesas ou devorava com um sorriso duas fatias do meu intragável bolo. A casa silenciosa e escura, e eu lá dentro, sozinha com as minhas memórias, sentindo-me regredir ao passado, sentindo-me prisioneira desse passado. Memórias a saltarem de todos os lados, doutor. Aquele dia em que quase o apanhei a chorar de alegria porque conseguira finalmente ensinar-me a andar de bicicleta; e logo depois, nós os dois a pedalar no meio dos pinhais, o vento a bater-nos com força nos rostos e as rodas a zumbirem ao pisarem o chão. Ou a recordação das bandas desenhadas toscas que criava para mim e que, depois, líamos juntos nas manhãs de sábados; há quantos anos não me lembrava eu dessas bandas desenhadas, doutor? E que lhe teria acontecido, teriam sobrevivido à passagem dos anos? Deveria estar a pensar no choro e na solidão da minha mãe mas era na jovialidade do meu pai que pensava, doutor; pensava na alegria com que planeava armadilhas mirabolantes com o objectivo de me ajudar a surpreender o pai natal, quando ele viesse deixar-me os presentes que sempre me decepcionavam; pensava nas histórias absurdas que ele inventava para me convencer a comer legumes, histórias que me faziam rir e em que apenas não acreditava porque tinha vergonha de admitir a minha credulidade; pensava nas vezes em que me dizia para plantar os caroços de laranja num vaso porque poderiam transformar-se em berlindes, uns berlindes especiais que certamente os meus colegas de escola me comprariam, ou nas vezes em que dizia para arrumar os chinelos e lavar os pés numa bacia de água fresquinha e explicava que se eu desejasse com muita, muita força quem sabe se não me transformaria temporariamente numa pequena sereia (e se fosses uma sereia, poderias viver num mundo especial, filha, num mundo mesmo especial; dizia ele) ou nas vezes em que me oferecia peixinhos ou pássaros ou ratinhos e explicava que apesar de parecerem peixinhos e pássaros e ratinhos eram, na realidade, velhos guerreiros orientais que ele trouxera para me fazerem companhia e protegerem.

Enfim, doutor. Está a ver o filme, não é? Descontrolei-me, pensando no meu pai; e percebi que estava a descontrolar-me, percebi que seguia um caminho perigoso; queria voltar a pensar no vestido que não servira e na colega que me pedira desculpa por eu a ter irritado e nos gelado que se estava a acumular nas minhas coxas, e já que se falava de coxas, queria pensar no tempo que passara desde que alguém as beijara, queria pensar no sms que me estragara os planos, queria pensar nas pessoas que divagam pelos shoppings rindo muito alto, queria pensar em coisinhas normais e um pouco perturbadoras mas, na verdade, inofensivas; era isso que eu queria, doutor; e depois, tomar um banho e deitarme. Mas o que aconteceu, doutor, foi que continuei a pensar no meu pai, no pai que acabara por contrariar todos os ensinamentos que tentara transmitir-me espetando-se contra uma árvore, assumindo assim que estava errado em tudo o que defendera em relação à simplicidade da vida e à inevitabilidade da felicidade. E de repente quis provar, a mim mesma e ao meu pai e ao mundo inteiro, que ele afinal estava certo, certo em tudo menos na desistência, certo na certeza de que a felicidade era possível e a magia existia. Sabe o que fiz, doutor? Enchi uma taça de água e arregacei as mangas das calças, enfiei lá os pés e deixei-me estar, a olhar para a água e para o passado, a ver se dali nascia uma sereia. Foi isso que fiz, doutor. Haverá certamente um termo médico para este tipo de comportamento, uma racionalização qualquer; mas assustei-me, assustei-me mesmo. Senti-me ceder, como se estivesse a desistir de alguma coisa importante, como se me estivesse a render. Foi tão esquisito, doutor. Até me lembrei de deitar sal à água, não sei se está a ver o meu estado de irracionalidade,


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porque as sereias são bichos de água salgada, fiquei para ali a pensar em quanto sal deveria deitar à água; mas acabei por não o fazer, limitei-me a ir à cozinha preparar um chá. Oh doutor, o descontrolo da mente é uma coisa tão assustadora. Fiz um chazinho e regressei à água, lá fiquei de chávena na mão e pés na água. Percebe porque comecei a falar de descontrolo total? Porque foi o que aconteceu, descontrolei-me totalmente. E se voltar a acontecer, doutor? Se volta a acontecer? Parece-lhe normal, isto? Porque estou assustada, mesmo assustada. Diga-me uma coisa, doutor: estou a enlouquecer? Diga-me a verdade, por favor. (Comentário escrito pelo psiquiatra no seu caderninho, no final da consulta: O que deveria dizer: oh mulher, vá comprar a porra do vestido, que isso passa logo. O que vou fazer: prescrever uns comprimidinhos, quinhentos miligramas. Nota: se as pessoas deixassem de ter pena de si próprias, eu deixava de ter trabalho.)


Consulta # 03

Princesas


Acrílico sobre tela 120 x 140 cm, 2008

"princesas"

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Oh doutor, há quanto tempo é que eu ando a caminhar para aqui? Mais de um ano, não é?, bem mais. No outro dia, dei por mim a pensar: mas que raio ainda terei eu para lhe dizer? E não me lembrei de nada, a verdade é que não me lembrei de nada novo; se calhar, devia comprar um daqueles caderninhos pretos que toda a gente usa, assim como esses que o doutor aí tem, e, ao longo da semana, ir apontado as coisas de que poderia falar quando aqui chegasse. Tem clientes que fazem isso, não tem? Desculpe lá, estou a brincar consigo. Mas agora a sério: haverá alguma coisa que não saiba de mim, doutor? Por esta altura, deve saber mais de mim do que eu própria. Já ouviu falar daquelas pessoas que têm uma vida tão monótona que quando chegam ao sofá do psiquiatra, põem-se a inventar, vão fantasiando o que calha, a ver se o homem não se enfada demasiado? Porque o que querem é falar, que alguém as escute; é para isso que pagam, para serem ouvidas. Bom, doutor, eu nunca precisei de inventar. Contei-lhe tudo. Estou farta de lhe falar do meu casamento, da prisão em que estou, e de como não consigo libertar-me, por mais que pareça simples e fácil, não consigo. Todas as semanas lhe falo disso, não é? Mais detalhe, menos detalhe, mas a história não tem evoluído muito, há coisas que estão destinadas a mudarem muito. E também lhe falei do casamento dos meus pais, não foi?, falei-lhe abundantemente disso; de como discutiam, de como a minha mãe chorava e o meu pai gritava, de como bebiam e atiravam coisas, de como se olhavam com fúria e ódio, falei-lhe de tudo isso. Falei de como eu fugia, sempre que sentia uma discussão aproximar-se; de como me escondia nos armários, debaixo da cama, na varanda. Falei-lhe muito da varanda, não foi?, e até parecia uma daquelas histórias inventadas que as pessoas contam. Lembra-se, doutor? Pendurava-me na varanda e ficava à espera que a tempestade passasse, enquanto pensava em coisas de criança; pensava, por exemplo, que num daqueles dias talvez aparecesse por ali um príncipe que me levasse, salvando-me de tudo aquilo; um príncipe que andasse perdido pela cidade, em busca de meninas que pudesse salvar. Porque fantasiam tanto as crianças com príncipes, doutor? Falámos disso mas não chegámos a nenhuma conclusão, desculpe lá que lhe diga mas nunca se chegam a muitas conclusões, aqui. E como não bastasse estar triste por causa das

discussões dos meus pais, vinha aquela nova tristeza de esperar por um príncipe que nunca chegava. E se os príncipes apenas salvam princesas?, perguntava-me eu. Mas sentia-me uma princesa, apesar de não o ser; e, por isso, julgavame no direito de ser salva por um príncipe. Criancices, doutor. Criancices. Contei-lhe tudo isto, como lhe contei que num momento mais desesperante e confuso da minha vida de adulta, cedi à tentação de repetir os comportamentos que tinha quando era miúda. Confessei-lhe como, certo dia, me pendurei na varanda e lá me deixei ficar, sentadinha e de pernas a abanar, calçada com os meus melhores sapatos de princesa que não é princesa a sério, à espera que viesse um príncipe que me salvasse daquele casamento miserável, que eu não me conseguia salvar sozinha; que viesse um príncipe e matasse o dragão. Uma mulher de trinta e dois anos sentada na varanda à espera de príncipes. Tem piada, não tem? Já agora, uma curiosidade: por estes dias, neste nosso século de internets e carros que estacionam sozinhos, de que forma se deslocam os príncipes? Será que ainda andam a cavalo? Deixe lá, doutor, não ligue, como vê, hoje estou um pouco alterada. Deve ser do calor. O que importa é que lhe contei tudo isto, não tenho segredos para si, e, já que aqui estamos e ainda temos muito tempo, aproveito para lhe contar mais uma coisinha. Voltei a ir à varanda. É verdade, doutor, voltei. E lá estava eu, se é que consegue imaginar tal coisa; foi terça-feira, lembra-se como estava um dia magnífico? Pois foi o dia em que voltei a perder o juízo. Tinha uns sapatos novos, lindíssimos, que comprei num impulso, vítima de um capricho, e que ainda não usara, porque por estes dias não há na minha vida qualquer pretexto que justifique usar uns sapatos


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daqueles. Vermelhos, doutor, uns sapatos vermelhos. Pois calcei-os e segui para a varanda; esperava príncipes mas apenas passavam autocarros, repletos de velhinhos e de estudantes, deitando fumo; autocarros, que de certa forma são a antítese dos príncipes: previsíveis e regulares, monótonos. Foram passando e eu fui esperando. Como imagina, não esperava nada de especial, a partir de certa altura esperamos apenas por hábito, da mesma forma que respiramos ou sorrimos, apenas por hábito, sabemos que não vai chegar nada, sabemos que atingimos o plafond, e apesar disso insistimos em esperar. Fui esperando, portanto. E sabe o que aconteceu, doutor? Afinal, sempre tenho qualquer coisa nova para lhe contar, porque o que aconteceu foi algo inesperado. Gostava de lhe dizer que o que aconteceu foi cair-me um dos sapatos novos do pé e acertar na cabeça de um moço que na altura fosse a passar, e calhar o moço olhar e surpreender o meu olhar, e ficarmos para ali a olhar, o sapato no chão e um alto a crescer-lhe na cabeça, o tempo a passar, os autocarros também, e de repente, pimba, percebíamos apenas através do olhar que nos amávamos e que iríamos ser felizes para sempre, ou ainda por mais tempo. Gostava de lhe contar uma historieta destas, sabe porquê, doutor, porque gostava mesmo que me acontecesse uma historieta destas. Mas, infelizmente, o sapato não me caiu do pé, azar. O que realmente aconteceu foi menos extraordinário. Sabe o que foi, doutor? Eu conto, como lhe contei tudo o resto. De repente, percebi que não viria príncipe nenhum. Quer dizer, não percebi, porque isso já eu tinha percebido há muito tempo. Não, o que aconteceu foi que aceitei que não vinha príncipe nenhum, que apenas continuariam a passar autocarros e nada mais; por muito bonitos que fossem os sapatos, doutor. Não viriam príncipes. E essa consciencialização súbita foi libertadora. Porque o que eu pensei foi isto: não virão príncipes e ainda bem porque eu não preciso de ser salva. Está a perceber, doutor, o alcance disto? Uma verdadeira revolução na minha vida. Um break-trough dos valentes. Pela primeira vez na minha vida percebi que não preciso de ser salva por ninguém, que não preciso de príncipes nenhuns para nada; quero lá eu saber de príncipes, foi o que pensei, ainda pendurada na varanda. Percebi, assim de repente, como se tivesse sido atingida por um raio, que não existem por aí príncipes nem princesas, doutor; apenas gente que vai fazendo pela vinda; e os outros. Desculpe lá o simplismo das minhas teorias mas é mesmo assim, não consigo explicar melhor. Princesas só as da televisão e já se sabe que essas acabam sempre mal; foi o que eu compreendi lá no poleiro da varanda. Levantei-me

e regressei ao interior e… bem, doutor, sabe o que fiz? Tratei de pôr a minha vida em ordem, foi o que fiz. Comecei logo ali e ainda não parei. Mas isso agora não interessa, doutor, porque o que eu queria dizer-lhe é que sinto que não preciso mesmo de príncipes para nada. Nem de príncipes nem de psiquiatras, como já deve ter percebido, tenha paciência mas é mesmo assim, doutor. Tenho pena. (Comentário escrito pelo psiquiatra no seu caderninho, no final da consulta: Ora foda-se.)


Consulta # 04

Eu e a minha namorada


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"eu e minha namorada (avarandado, c. veloso)" Acrílico sobre tela 150 x 170 cm, 2007


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Hoje queria falar-lhe de um vizinho lá do prédio; pode ser, doutor? Deixe-me contar a história, que depois já percebe onde quero chegar. Está bem? É uma pessoa normalíssima, este vizinho; diz boa tarde ou boa noite conforme a hora, como todos os outros, quase sempre sem olhar para a pessoa a quem se está a dirigir, mas isso também é normal; sossegado e silencioso, muito vagaroso, sempre muito vagaroso, como se não tivesse pressa de nada, como se nunca fosse esperado por ninguém, algures; o que é um pouco estranho, num homem assim novo, mas enfim, até sabe bem uma pessoa cruzar-se com alguém que não age permanentemente como se o mundo estivesse para acabar, alguém que parece dizer-nos, assim com um sorriso e tal, eh pá, tem lá calma que ainda há morte que chegue para todos. Sempre sozinho, o que também não é lá muito normal, mas paciência. Lá anda ele metido na sua vida, que não deve ser muito diferente da vida dos outros todos, entra no elevador e sai do elevador, abre as portas quando há uma senhora por perto, queixa-se da merda que os cães de alguns vizinhos deixam plantada nos passeios do condomínio, enfim, distrai-se com a vida, que é o melhor que temos a fazer; e isto é o que vemos, porque do resto da vida do homem nada sabemos, como é óbvio. Até aqui, tudo normal. Certo? O que tem piada, doutor, é o saco que ele usa. Não sei se está a ver, aqueles sacos que agora as pessoas usam para tudo, em substituição dos velhinhos sacos de plástico, para transportar as compras do supermercado e assim. Ele anda sempre com o mesmo, não falha. E nem é um saco que dê muito nas vistas, reproduz o rosto de uma mulher e nada mais, uma mulher normal, percebe?, e não uma actriz ou assim, apenas o grande plano do rosto de uma mulher normal, igual às mulheres que todos conhecemos, e pronto, é apenas isso. Mas que tem então o saco de especial?, pergunta o doutor. Bom, o que acontece é que o homem usa o diabo do saco desde que veio viver para o prédio, portanto para aí há uns dois anos; sempre o mesmo, nunca ninguém lhe viu outra coisa nas mãos; mas há mais: é que o saco está sempre impecável, como se fosse novinho; até parece que ele tem lá um stock infindável de sacos iguais em casa e vai renovando. Admita lá, doutor, é uma coisa uma bocado esquisita, não? Quero dizer, não daquele esquisito assustador e perigoso mas do esquisito engraçado. E sabe como é, as pessoas não têm nada

melhor para fazer do que comentar a vida alheia, é sempre melhor rir dos outros do que lamentarmo-nos de nós próprios; resumindo: a malta topou aquilo dos sacos e começou a falar, tornouse uma espécie de pretexto para especulações variadas e geralmente maldosas; mas coisas inofensivas, claro. E é isto que se tem passado nos últimos dois anos. Até que, esta semana, o mistério se resolve. Ou melhor: não se resolveu, na verdade até complicou um bocado, mas lá se deu um passo em frente, e por isso é que estou aqui a contar-lhe a história. Descobrimos o significado dos sacos, doutor. E garanto-lhe que vai achar piada a isto. Então é assim: a foto que ele pôs nos sacos é o retrato da namorada. Parece que, certo dia, a mulher desapareceu, sem despedidas nem explicações; evaporou-se, doutor. Não se sabe se o abandonou, se foi raptada, se morreu algures, se foi levada por extraterrestres. Desapareceu e o homem nunca mais foi o mesmo, ia dando cabo da vida mas lá acabou por se recompor, à força dos remédios que o doutor bem conhece; mudou de emprego e de cidade, foi então que lá apareceu no prédio. Sempre com os sacos da mulher atrás, como se aquilo fosse um pedido de ajuda ambulante, um pedido de ajuda não muito ostensivo mas, ainda assim, um pedido de ajuda. Tipo anúncio de pessoa desaparecida, percebe?, como os americanos põem fotos de meninos desaparecidos nas caixas de cereais e nos pacotes de leite, não tanto para os encontrarem mas, isto é o que eu penso, mais para arruinar os pequenos-almoços das outras pessoas todas, do género já que eu estou miserável, tu também não hás-de estar feliz, olha lá para o pacote e vê o que te pode acontecer. Ou então é uma despedida ou uma forma de mostrar ao mundo que foi feliz com aquela mulher ou um


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estratagema para ela perceber, caso o veja na rua, que ele não a esqueceu. Sabe-se lá o que vai pela cabeça do homem; porque, motivações, não deu nenhuma; limitou-se a clarificar o significado do saco mas não avançou justificações, confessou apenas que era a namorada e acrescentou alguns dos pormenores que acabei de lhe contar. Está a ver, doutor? Que lhe parece uma coisa destas? Parece coisa de filme. Bom, a verdade é que estou aqui a falar disto com jovialidade e tal mas aquilo mexeu um bocado comigo, tirou-me uns minutos de sono. E, doutor, a verdade completa é que tenho andado a pensar na história do homem, a pensar nele e na sua namorada de plástico. A extrapolar, por assim dizer. É que, e veja lá se me percebe, comecei a pensar que ele talvez quisesse andar com o saco para se sentir acompanhado. Acompanhado pela namorada, para não desfilar pela rua sozinho, para sentir de alguma forma a sua presença, a sua companhia; para andar de mão dada com ela, pelo menos metaforicamente. Isto parece-lhe muito estapafúrdio, doutor? Talvez seja, mas se todos pensássemos apenas coisas inteligentes, estava o mundo cheio de Einsteins, ou não era? Sabe o que mais pensei? Eu digo-lhe. Pensei isto: se calhar, o homem não é assim tão diferente de todos os outros. Ele vive com uma fotografia emplastrada num saco de plástico; mas, e os outros? Por vezes, vivemos com a memória de alguém que amámos, com o fantasma da pessoa que amámos. Ou não é verdade? Quantos casamentos não subsistem apenas à custa da recordação de momentos passados de felicidade absoluta, e da ingénua crença na possibilidade de repetição dessas recordações? Como já adivinhou, estou a referir-me ao meu caso pessoal. Ali estava ao lado da minha mulher, ouvindo-a ressonar muito ligeiramente, encolhidinha no seu canto da cama para não haver o risco dos nossos corpos se tocarem, tão misteriosa para mim com uma das luas de Júpiter, é esse que tem as luas, não é?, e ia pensando assim: há relações em que as pessoas apenas se mantêm porque tem que ser, porque um dos elementos agarra-se ao outro e não larga, um dos elementos arrasta o outro para o casamento, ou, de certa forma, arrasta o casamento às costas, tal e qual o meu vizinho arrasta o seu saco e uma relação que já não o é. Foi o que pensei, a noite passada, enquanto ouvia a minha mulher respirar alto, é deselegante afirmar que uma mulher ressona, e a pensar qual dos dois arrasta mais o casamento às costas, qual dos dois é o Júpiter que atrai a lua e não a deixa partir pelo espaço fora em busca de melhor órbita, livre. E depois, lá adormeci; tive um pesadelo do caraças, acordei tarde, atraseime; e de manhã, lá desço no elevador com o vizinho mais o seu saco, há

coincidências que até arrepiam, e eu a pensar porra, que isto só pode ser um sinal. Será um sinal, doutor? Dê-me lá a sua opinião. (Comentário escrito pelo psiquiatra no seu caderninho, no final da consulta: Talvez o apego do homem ao seu saco represente, afinal, uma forma simultaneamente subliminar mas incisiva de desprezo, uma forma cruel de anunciar ao mundo a mensagem de ódio e despeito que dirige à ex-companheira, algo do género antes servias para cozinhar e foder, agora serves para transportar arroz e papel higiénico. Uma forma algo ingénua, pouco sincera, de publicitar que está só e feliz com isso?)


Consulta # 05

A lista


Acrílico sobre tela 120 x 150 cm, 2008

"a lista"

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Então, o que fiz foi isto: pintei a cara. Ou melhor: escrevi na cara. Meti-me em frente do espelho e, cuidadosamente, escrevi na face uma lista de compras. Parece-lhe esquisito, isto? Pois foi o que fiz. Bolachas, iogurtes, tomates, champô, chocolates. Tudo muito bem escrito, com letrinha legível. Logo depois, segui para a rua e fui andando pelos passeios, sem pressas nem hesitações, a desfilar um pouco, a ver o que acontecia; como um adolescente com uma tatuagem nova ou assim; e sabe que aconteceu, doutor? Nada. Nadinha. Ninguém ligou a mínima atenção; não houve olhares ou sorrisos ou comentários, abanos de cabeça incrédulos, expressões pesarosas de quem acabou de surpreender um sintoma inequívoco de doidice. Apenas indiferença e desinteresse ou, nalguns casos, suspeito que não muitos, um esforço consciente em fingir que não se reparou e seguir em frente, não vá o disparate ser contagioso. A maioria não olhou, e é um pouco desconsolador perceber como as pessoas se julgam tão interessantes e singulares e importantes que se concentram exclusivamente em si mesmas, ignorando tudo, todos; como se se julgassem auto-suficientes. Não lhe parece uma grande arrogância que alguém marche pelo mundo sem sequer olhar as pessoas com que se cruza? Pois eu gosto de olhar, gosto de tentar perceber algo delas, adivinhar um pouco delas, fantasiá-las também; decifrá-las um pouco. Como estar a ver um filme na televisão mas sem ligar ao som, às legendas; olhar, simplesmente, e tentar perceber um pedaço da história. Mas estou a devanear, doutor, não ligue. Como estava a dizer, quase ninguém olhou; e os que olharam, ignoraram o que viam; suponho que ninguém perguntou a si próprio: por que anda este gajo com palavras escritas no rosto? Nada disso, doutor, quem olhou, aceitou de imediato aquilo que viu como legítimo, como aceitável, como normal. E agora, pergunto-lhe: o que é o normal? O que é a normalidade? Suponho que, na perspectiva desta gente, seja tudo aquilo que não a incomode, não a perturbe, não a force a reagir. Normal é tudo o que não me chateia, dirão. É uma questão interessante, esta; não acha? Para que serve a normalidade, afinal? Será, talvez, uma simples questão de número, de quantidade. Se toda a gente escreve a lista de compras na cara, passa certamente a ser normal, ou não é? E já viu o papel que se pouparia, doutor? Enfim, estou a brincar consigo. Lá vou eu

com o rosto escrito e nem um olhar curioso, perscrutador; tão difícil que é quebrar a monotonia dos outros, de toda essa gente focalizada em si própria, tão difícil que é provocar uma reacção; e se nem um olhar se consegue provocar, como desencadear um sorriso? Pessoas que não olham são pessoas que não sorriem, pessoas que não sorriem são pessoas não se interessam; e se não se interessam, não olham; se não olham, não sorriem; e etc, doutor, etc. Bom, adiante. Deixe-me contar-lhe como prosseguiu o meu exercíciozito. Lá cheguei ao supermercado; deslizei pelos corredores empurrando um carrinho daqueles gigantes, para onde fui colocando as poucas compras que tinha rabiscado na cara; um pacote de bolachas, quatro iogurtes, três tomates dentro de um saco de plástico, um frasco de champô, uma embalagem de chocolate. Andei por ali, desfilando entre donas de casa enfadadas e reformados semi-adormecidos, observando os gestos desconsolados das raparigas que repunham o leite e o bacalhau; por ali andei, à espera não sei de quê, à procura não sei de quê. A fazer o mesmo que todos os outros, suponho: gastar tempo. Depois, tive uma ideia súbita: peguei no chocolate e fui devolvê-lo à prateleira, onde o arrumei cuidadosamente. O plano, doutor, era este: ver se a moça da caixa repararia que um dos itens da lista, neste caso o chocolate, estava em falta; e se reagiria. Aproximei-me e depositei as compras, ela carregou num botão e aquele mini tapete rolante começou a deslizar; a moça, que tinha o rosto apático e uma expressão distante, disse bom dia sem me olhar, perguntou se eu tinha cartão de cliente mas não aguardou resposta, agarrou o saco de tomates e logo depois o resto das coisas, disse quanto tinha de pagar. Poderia ter dito: olhe que se esqueceu do


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chocolate; e sorrir. Não disse, não sorriu. Dei-lhe o dinheiro, os nossos dedos tocaram-se; mas a reacção dela ao toque do meus dedos foi exactamente a mesma que a reacção ao contacto das moedas: nenhuma. Não acha triste, doutor, que o facto de duas pessoas se tocarem não tenha consequência absolutamente nenhuma? Eu acho, muito triste. Adiante. Lá segui, com o saco das compras. E fui pensando no que teria sido diferente se a rapariga tivesse falado do chocolate, tivesse sorrido; que significariam esses gestos, que consequências desencadeariam? Representaria o estabelecimento de alguma espécie de empatia entre nós? E que essa empatia simbolizaria algo para ambos, um denominador comum, como se costuma dizer?; talvez até um ponto de partida para qualquer coisa, para… Enfim, desculpe lá, doutor. Estou a disparatar. Se a moça tivesse dito qualquer coisa, por que raio, só pelo facto de se ter estabelecido essa momentânea cumplicidade, haveria de acontecer mais qualquer coisa? Que mais poderia acontecer, afinal? Deduzir (ou pior: desejar) que, apenas por isso, começaríamos a conversar, e inevitavelmente apreciaríamos essa conversa, e que daí a combinarmos qualquer coisa seria um pequeno passo, talvez fosse um exagero da minha parte, não? Mas já vê que não ando bom do juízo, doutor. Contudo, há que admitir: os doidos nem sempre falham de todo. Porque, afinal, há aqui algum motivo para reflexão; não me refiro à questão da moça do supermercado propriamente dita mas à dúvida filosófica, digamos assim, subjacente. Já percebeu a que me estou a referir, certamente. Como cativar o interesse de alguém? Essa é que é a questão, e de certeza que ninguém descobriu a resposta, porque se houvesse resposta (se alguém tivesse descoberto qual o princípio activo do interesse, se me permite a ironia) também já teriam inventado os comprimidos correspondentes, e o doutor já mos teria prescrito. Como fazer para que alguém nos olhe e, mais importante, muito mais importante, doutor, mantenha o olhar fixo em nós durante um momento, durante o tempo suficiente para perceber que valeu a pena ter olhado? Comprimidos facilitadores de interesse, isso é que dava jeito que alguém inventasse, e não telemóveis com gps ou gelados com sabor a couve. Mas regressando à minha historieta. Lá segui pelos mesmos passeios de antes, cara escrevinhada e saco de compras a balouçar na mão, cruzando-me com gente que se não era a mesma de antes, parecia. Imaginava que se fosse eu que encontrasse alguém com o rosto rabiscado, por certo não resistiria a fazer perguntas: quem escreveu isso e como reagiu quando lhe pediste para o fazer?; que tipo de caneta usou?; magoa?; é difícil escrever na

pele?; e por aí, infindáveis dúvidas sem importância nenhuma. E como quando se está sozinho não há mesmo nada a fazer além de nos distrairmos connosco próprios, fui pensando o que poderia acontecer se, em vez da lista de compras, escrevesse o número de telefone ou o endereço de email no rosto; alguém os registaria? Alguém se daria ao trabalho de telefonar, de escrever? E que diria? Ainda me entusiasmei com a ideia durante uns três ou quatro segundos mas logo admiti que não teria coragem para o fazer; está a imaginar porquê, não está, doutor? Seria correr um risco enorme, e se ninguém interagisse comigo (odeio esta palavra mas paciência), se ninguém reagisse? Teria que assumir isso como um fracasso, um tremendo fracasso. E, depois, teríamos aqui trabalho para uns três anos, doutor. Por isso, apressei-me a chegar a casa; lavei a cara e comi as bolachas que tinha comprado enquanto ia navegando pelo facebook, que é um sítio que me faz bem porque me recorda que não sou a única pessoa do mundo com uma vida completamente vazia, longe disso, doutor, muito longe disso, o que mais se vê por lá é gente como eu. Por falar nisso, não somos amigos no facebook, pois não? Tenho que lhe mandar um convite. Adiante. Ia-me distraindo um pouco mas a questão é que esta coisa de escrever na cara ainda não estava esquecida; o que me estava mesmo a causar confusão é que ninguém tivesse sorrido, absolutamente ninguém. Porque é que as pessoas deixaram de sorrir, doutor? À noite, toda a gente anda a rir mas é porque estão bêbados ou porque sabem que vão fazer sexo, mas se andar


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pela rua às três e meia da tarde não encontra uma única pessoa sorridente. Sabe o que acho? Que devia haver uma espécie de serviço público do sorriso; assim como há polícias que passam multas e enfermeiras que dão injecções, deveria haver gente que andasse por aí a desencadear sorrisos. Principalmente às três e meia da tarde, que é o momento mais triste do dia. Um serviço público a que se pudesse recorrer, como se recorre aos hospitais e tal. Mas algo que não fosse apenas um direito, como a saúde, deveria ser também uma obrigação, como pagar impostos; como uma espécie de tolice por decreto, para aliviar o stress dos dias (o stress do vazio, como escreveu alguém no Correio da Manhã). Já imaginou se o Diário da República começasse a publicar uma secção de anedotas? Não vejo nenhum partido a propor uma coisa destas, e é pena. É pena, doutor. Ou então, podia ser feito de um modo mais informal. Imagine que as pessoas se organizavam de maneira a que em cada família, ou em cada grupo de amigos, existisse alguma espécie de rotatividade entre os seus elementos, uma escala de turnos, para que todos os dias houvesse sempre alguém com a responsabilidade de fazer um disparate qualquer que desencadeasse o sorriso dos outros, algo que quebrasse a cinzentude dos dias e atenuasse o desânimo das três e meia da tarde. O senhor, que é psiquiatra e deve perceber destas coisas, diga-me lá: porque sorriem as pessoas tão pouco? Sempre que alguém pergunta como estamos (e é raro, doutor, ninguém quer saber; ou melhor, até se pergunta mas ninguém quer realmente saber), respondemos que estamos bem; mas se estivéssemos efectivamente bem, teríamos sorrido mal víssemos a pessoa e, consequentemente, a pergunta teria sido desnecessária, não chegaria a ser formulada. Talvez não queiramos, simplesmente, demonstrar fraqueza e vulnerabilidade, talvez não queiramos denunciar-nos; ou, pelo contrário, seremos todos boas pessoas, que se retraem para que a nossa tristeza não contagie as pessoas de quem gostamos, que não têm culpa nenhuma? Como vê, não me canso de devanear; e nunca chego a conclusão nenhuma, naturalmente. Mas vou fazendo perguntas, isso vou, doutor, nunca me canso de fazer perguntas. Por exemplo. Já reparou neste paradoxo? Tendemos a guardar a nossa tristeza para nós próprios, de certa maneira apenas nos permitimos estar tristes quando estamos sozinhos, para nos protegermos, para protegermos os outros; mas, afinal, de que serve estar triste se não temos com quem partilhar essa tristeza? É uma boa pergunta, não é, doutor? Por isso é que gostamos tanto do facebook, que é um sítio onde toda a gente parece bela e feliz e inteligente, mesmo as

pessoas que na verdade têm vidas tristíssimas acreditam que são pessoas belas e felizes e inteligentes, porque se assim não fosse como poderiam ter mil setecentos e oitenta e nove amigos? Não partilhamos a nossa tristeza com quem amamos (talvez porque não amamos quem amamos o suficiente, talvez porque suspeitemos que aqueles que amamos não nos amem o suficiente) mas já não nos custa nada dissimular essa tristeza entre tristezas anónimas. Enfim, doutor, paradoxos. Mas voltando à lista de compras, que se faz tarde e ali a sala de espera deve estar a abarrotar. A verdade, acabei por perceber, é afinal banalíssima, não há mistério nenhum: ninguém ligou aos meus rabiscos no rosto porque, naturalmente, quem se deu ao trabalho de os olhar, logo deduziu que se tratava de uma tatuagem, uma simples e banal tatuagem. E já ninguém liga a tatuagens, que não se sabe bem se servem para atrair o olhar ou desviar a atenção. Ninguém percebeu a minha intenção, que era a de provocar um sorriso aqui, outro ali; intenção bem modesta, parece-me; e benigna. E já agora, entre os sorrisos, lançar pela rua uma pequena provocação, uma interrogação silenciosa: se nos esforçamos tanto para que os rostos não transmitam expressões e sentimentos, porque não usá-los para qualquer coisa útil? Para compensar e assim. Transmitir recados, por exemplo; ser lista de compras sempre é ter alguma utilidade prática, não acha, doutor?; já se serviu para alguma coisa, não ficou o dia completamente desaproveitado. Até se podia usar a cara para fazer recados às pessoas, para


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transmitir avisos ou informações ou pedidos; alugar o espaço, fornecer um serviço. Não se ria, doutor. E olhe lá, já que estamos a falar nisto, que tal passar a receita desta semana aqui no meu rosto? Que me diz, doutor? Gostava de ver a expressão da moça da farmácia, já estou a imaginar; pior é que o selo pode descolar-se com a transpiração e depois ela não me avia. Mas valia a pena tentar, doutor. Vale sempre a pena tentar. (Comentário escrito pelo psiquiatra no seu caderninho, no final da consulta: Foda-se… Bem te avisaram para escolher dermatologia mas tinha que ser psiquiatria, agora atura-os.)


Ep铆logo

No consult贸rio


"no consultório"

Acrílico sobre tela 110 x 170 cm, 2007

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O que faz um psiquiatra quando termina as consultas do dia? Arruma o gabinete, senta-se a olhar pela janela, fuma um cigarro, faz chamadas telefónicas, consulta o facebook, prepara o dia seguinte? Ou limita-se a contemplar o vazio, à espera do que tiver que acontecer? Mais intrigante: que faz um psiquiatra quando precisa de ajuda? Consulta outro psiquiatra? Ou talvez se limite a olhar-se ao espelho (porque tem ele um espelho tão grande no gabinete?, perguntam-se sempre os pacientes) e se consulte a si próprio.


consultório joana lucas (pintura) e paulo kellerman (estórias) todos os contos são inéditos, sendo escritos a partir das pinturas

agosto de 2011 ebook gratuito [ sem editora ] todos os direitos reservados, etc e tal informações: http://www.joanalucas.com/ (jl) http://agavetadopaulo.blogspot.com/ (pk) http://www.derivaeditores.pt/ (pk)



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