AH - Caderno Especial 192 Colonização Alemã| 06 e 07 de agosto de 2016

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MINISTÉRIO DA CULTURA APRESENTA

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história deixa marcas. Nos 192 anos de imigração alemã, a epopeia, as desventuras, perigos e legado deixado pelos germânicos no Rio Grande do Sul são passados a limpo. A história i tória de quem venceu desafios mortais em uma travessia oceâ-nica suicida para ajudar sobremaneiraa naa construção construçã econômica e social do país. Com dados históricos munidos de ilustrações expressivas, em sequência, é m quadros seq possível compreender como sucedeu a construção das regiões gaúchas.


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A Hora. Agosto de 2016

Editorial

Tempos históricos, tempos atuais

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prender sobre a história da colonização alemã é compreender a miscigenação cultural no Brasil e o rumo tomado pela região sul, ocupada pelos germânicos. Ao pisar em terra firme, na Feitoria do Linho Cânhamo, os alemães trouxeram as profissões, a cultura e a espiritualidade. Venceram aos desafios mortais de uma travessia oceânica a navios de vela e foram fundamentais na construção econômica e social do país. A viagem sem volta, cujos perigos ameaçavam até mesmo a chegada ao destino, haveria de render frutos. Para saber da importância deste caderno, é preciso ver os acontecimentos históricos. No Rio Grande do Sul, os germânicos não foram os primeiros a aportarem na beira dos rios. Enquanto chegavam pelas selvas, se deparavam com civilizações indígenas, refugiadas das primeiras aparições brancas, protagonizadas pelos portugueses. Tiveram de disputar o espaço com os índios que fugiram novamente, para morros mais distantes. Montes estes que haveriam de ser ocupados, mais

tarde, pelos italianos, para o azar dos indígenas. As atrocidades foram muitas. E acometeu a todos. Aos alemães, depois de sobreviverem a uma viagem insalubre, restou a realidade. Nada do que fora prometido era cumprido. Não haviam equipamentos, tampouco ajuda de custo para iniciar o trabalho. As promessas caíam por terra. Eram consideradas infundadas pela Coroa. Então era preciso começar do zero. Os germânicos enfrentaram problemas desde o embarque, na Europa, até o desembarque, no Brasil. Tiveram de ficar meses esperando as medições das terras pelo governo imperial. Viviam a pão e água. Muitos não se contiveram e partiram com barcos fretados por entre rios que levaram a diversas regiões. Diante dos incontáveis perigos enfrentados, o canto era uma forma de refúgio. A partir daí, a cultura do canto coral se tornou essencial. Para alguns historiadores, foi uma medida desesperada, pois não havia nada a não ser o choro das crianças que passavam fome. Era preciso plantar para comer. A valorização do trabalho e, por consequência,

Os germânicos enfrentaram problemas desde o embarque, na Europa, até o desembarque, no Brasil. Tiveram de ficar meses esperando as medições das terras pelo governo imperial. Viviam a pão e água. Muitos não se contiveram e partiram com barcos fretados por entre rios que levaram a diversas regiões.

Fundado em 1º de julho de 2002 Vale do Taquari - Lajeado - RS

Fotos: Divulgação/Arquivo Pessoal

Diretor-geral: Adair Weiss Diretor editorial: Fernando Weiss Diretor administrativo: Fabrício de Almeida

Colaboração: José Alfredo Shierholt e Antonio Telmo Oliveira

Apoio:

das profissões acelerou o crescimento das cidades. Saber como se formaram as colônias germânicas é uma forma de entender a cultura e a identidade local. Os imigrantes seguiram a lógica do cooperativismo. Não havia ninguém que pudesse lhes ajudar, então era preciso cooperação mútua. Eles perceberam, aos poucos, que estavam sendo enganados de todos os lados. Tudo que era enviado pela Coroa, era saqueado no caminho, restando apenas migalhas às famílias. Para que não notassem a falta das mercadorias, eram presenteados com cachaça, um presente grego. O mal atingiu em cheio muitas famílias. Nas histórias em quadrinhos é possível reviver a expressão que leva o leitor àquela época de infortúnios. Em preto e branco, cenas em sequência mostram que a vida não era mesmo colorida. Se naquele tempo, os assolados pela fome e miséria resolveram deixar suas casas, hoje, tal atitude não difere dos refugiados no oriente médio. Com as devidas ressalvas, tanto nas proporções, quanto nos motivos, os desabrigados de seus países seguem

Coordenação e Produção: Anderson Lopes Diagramação e Capa: Fábio Costa Revisão: Viandara Rempel

Realização:

a mesma amargura. O que mudou foi o endereço da crise. Se antes era da Europa que os imigrantes precisavam fugir, hoje é da Faixa de Gaza, da Turquia e demais países do continente africano. São vítimas da falta de humanidade, da falta de planejamento coletivo que deveria pensar no bem social acima das riquezas. Para isso é importante rever o passado. Entender as políticas econômicas dos impérios e pelo que passaram os povos que decidiram deixar suas terras em busca de melhores condições humanas. Saber como se formaram as cidades e de onde vieram as inclinações culturais de cada região é evitar qualquer devaneio discriminatório a cerca do sotaque, da língua ou da cor. Se nos séculos XIX e XX as embarcações era à vela, hoje são em botes de borracha. Se no passado, navios sumiam no oceano, hoje os destroços e corpos que chegam às margens escancaram a crise humana. De uma forma geral, todos os povos pobres e oprimidos foram os principais atingidos pela falta de sensibilidade coletiva de governos e impérios. Demonstra cada vez mais que as fronteias entre os países consiste em algo invisível quando a prioridade é não deixar ninguém passar fome.

Tiragem desta edição: 6.500 exemplares. Disponível para verificação junto ao impressor (ZH Editora Jornalística) Proibida a venda avulsa



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Tempos históricos: há 192 anos, alemães aportavam no sul A onda de emigração da Europa atingiu mais de 60 milhões de pessoas nos séculos 18 e 19. Alemães, italianos, espanhóis, irlandeses e outros povos estavam assolados pela crise política, social e econômica. Para fugir da miséria, da opressão e das guerras, os germânicos se aventuraram no Atlântico, numa ato de desespero em busca de uma vida melhor.

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s motivos de esperança eram tão fortes quanto as promessas de fartura. Isso foi suficiente para convencer milhões de famílias germânicas a deixarem o continente europeu. Muitos queriam mesmo é fugir de impérios que oprimiam e aumentavam a pobreza e miséria humana. No caso dos alemães, emigraram para continentes da África e da América, espalhando-se por países como África do Sul, Brasil, Argentina, Chile e, na maioria, para os Estados Unidos. Para o sociólogo e ex-presidente do IBGE, Simon Schwartzman, 3,6% dos brasileiros entrevistados afirmaram ter ancestralidade alemã. O número parece baixo, mas representa cerca de 7,2 milhões de pessoas. O Brasil foi onde os povos germânicos refugiados conseguiram preservar a cultura, principalmente devido ao isolamento da Região Sul, para onde foram enviados. Mergulhados na selva, criaram colônias no RS, Santa Catarina e Paraná. Os teutos migraram para estados como Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo e Minas Gerais. Muitas foram as causas que levaram os germânicos a viver na América. Até 1871 não existia, de fato, um país alemão. A região era composta por 39 estados como principados, condados, reinados e ducados. Eram formados pela Confederação Germânica, comandada sobremaneira por representantes da Áustria e da Prússia. A industrialização, também chamada de Revolução Industrial, trouxe sobre essas regiões o desenvolvimento econômico

Milhares de famílias precisaram esperar durante meses para embarcar

vros e fotografias eram distribuídos na Europa, através de agências contratadas e com ajuda das companhias de colonização, para estimular a vinda dos imigrantes. A crise era tanta que enfrentar uma viagem sem volta, atravessar um oceano em um barco à vela, sem saber quantos meses duraria, foi preferível. E muitos morreram pelo caminho. As transformações sociais, políticas e econômicas que passava a Europa eram por si só motivos para buscar refú-

Embarcações eram pequenas e insalubres para uma travessia oceânica

e social. Com isso, se criaram as riquezas, o aparecimento das grandes cidades comerciais e das metrópoles. As indústrias cresciam com grande velocidade, exigindo cada vez mais trabalhadores para abarcar a demanda. A população rural foi a principal atingida. Desencadeou fluxos migratórios do campo às grandes cidades. Outros aspectos da industrialização foi o desenvolvimento de infraestrutura, transporte, comunicação, diversos ramos de serviços e com eles, a degradação ambiental. Desta transformação decor-

reram as mazelas humanas, a pobreza, o crescimento desenfreado da população nas cidades, o desemprego. Foi o que desestruturou as famílias, que viviam ainda resquícios do feudalismo. Os mais atingidos foram os camponeses. Para fugir da fome e da miséria, muitos cogitaram a possibilidade de deixar o país. A emigração foi a única saída. No Brasil, que havia sido declarado independente na mesma época, o imperador Dom Pedro I investiu em propagandas para atrair os imigrantes. Cartazes, jornais, folhetos, li-

A crise era tanta que enfrentar uma viagem sem volta, atravessar um oceano em um barco à vela, sem saber quantos meses duraria, foi preferível.

gio em outras nações. Mas as excepcionais condições oferecidas no Brasil eram o fio de esperança para fugir do conflito e do caos europeu. As intenções do imperador não eram humanitárias. Ele queria garantir as fronteiras constantemente ameaçadas pelo império espanhol. Entre tantos outros objetivos, o de ‘branquear’ o Brasil foi o mais estarrecedor. Segundo historiadores, havia o pensamento de que a miscigenação era a degeneração racial. Então, trazer os europeus era garantir o progresso e o desenvolvimento das regiões. Os pioneiros, entretanto, foram os que mais sofreram. Encontraram aqui a selva. Abriram caminho e se depararam com animais selvagens. Ao chegar nas tribos indígenas, tiveram que ir ao confronto. Muitos morreram de ambos os lados. Os indígenas levaram a pior. Por isso, quando as relações foram sendo estabelecidas, os escravos negros eram tratados da melhor forma pelos alemães. E muitos africanos preferiam conviver ao lado dos imigrantes. Isto porque na hora do trabalho, não havia diferença entre sinhô e escravo. Ambos trabalhavam juntos na roça. Os germânicos, eram bons patrões.

Família separada na imigração se reencontra Lothar Schaefer, 83, recebeu uma ligação que mudaria o rumo das pesquisas genealógicas iniciadas há quase 30 anos. Do outro lado da linha, a voz de sotaque alemão, di-


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A Hora. Agosto de 2016 FOTOS ANDERSON LOPES

Uma despedida diferente daquela feita pelos antepassados, na Alemanha

Viagem realizada em 2014 foi um marco na família Schaefer

ferente do dialeto, procurava por descendentes de Christoph Schaefer, seu bisavô. O destino reuniu de novo a família depois de 160 anos. “Tão forte quanto a separação é o reencontro.” Com essas palavras, o pesquisador Lothar Schaefer resumiu o trabalho de quase 30 anos. As mais de mil páginas da árvore genealógica feita por ele ganharão outras mais depois da ida à Alemanha. O reencontro da família separada na imigração ocorreu na região de Hunsrück, sudoeste do país germânico, em novembro de 2014. Nove pessoas deixaram o solo brasileiro. Em Teutônia, parte do grupo foi a Porto Alegre, onde estava o restante dos familiares. Um cineasta da capital foi contratado

para fazer um documentário dessa história. Esta é a segunda vez que o aposentado Hilário Schaefer, 72, vai à Alemanha. A última foi há 32 anos. “Quando fui da outra vez ainda tinha o muro em Berlim”. Também embarcaram as filhas Edith Janeth e Vivian Christini. Por lá, mostrou alguns números de mágica. Os truques que faz em aniversários são um hobby que pensa em compartilhar no solo germânico, com a família. Na cidade de Mengerschied, a outra família deu entrevista para imprensa local e a notícia se espalhou pela região.

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Pesquisador reuniu arquivos que ultrapassam as mil páginas da árvore genealógica da família, elaborada em 30 anos


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FOTOS ANDERSON LOPES

Na cidade de Mengerschied, na região de Hunsrück, tem um livro da imigração desde 1784 Separados a quatro gerações, voltam a se ver depois de 160 anos. Desta vez, com festividade e fartura. A ideia é organizar um encontro também no Brasil.

Documentário inspirado em filme A inspiração vem do filme Die andere Heimat, que participou do Festival do Rio. A Outra Pátria, de Edgar Reitz, conta as tramas de uma vida difícil, em que havia pouca comida e trabalho, e muitos estavam em dúvida para abandonar a terra natal. O documentário foi acompanhado pelo genro Paulo Ricardo Wolf. Aficionado para descobrir as origens, fez um filme sobre a imigração. Presenciar o encontro emocionou. “Meu filho terá esta ligação direta com seu passado. O que tem por trás destas datas? São histórias, ricas em detalhes que não podemos perder.” Wolf foi junto para testemunhar o encontro. Havia tentado o mesmo com a própria família. Mas naquela vez a ida à Alemanha trouxe poucos resultados históricos. “Temos indícios que ligam nossa família, mas faltam dados e principalmente contato com familiares.”

Coincidências familiares Se de um lado Lothar dedi-

cou 30 anos em busca de esclarecimentos, do outro lado do Atlântico, Hilde fazia o mesmo. Na cidade de Mengerschied, tem um livro que conta a história da imigração desde 1784. A forma como muitos habitantes deixaram a cidade e se espalharam pela Inglaterra, EUA, África do Sul e Brasil está escrita nos detalhes. Inclusive a dificuldade enfrentada para voltar a falar com familiares que vieram para o continente americano. Quem ficou do lado de lá do oceano ou mesmo foi morar com os norte-americanos, voltou a se comunicar. Aos que colonizaram o Brasil, restaram

Com a foto do meu bisavô, quero colocar uma cópia da carta escrita por ele.” Lothar Schafer Bisneto do imigrante

as lembranças. Perderam completamente o contato. A partida era de lágrimas. Sabiam estar se vendo pela última vez e a despedida de pais e filhos, irmãos e amigos era um feito emocionante. Hilde descobriu que dos 50 vindos da pequena cidade dois vieram ao Brasil e um era Schaefer. Tratava-se do irmão de seu bisavô, que deixou o país em 1854. Conforme Lothar, esse momento de separação era feito com a melhor roupa. Ao chegar, logo procuraram exercer a profissão como sapateiros, alfaiates, missionários, professores. Christoph Schaefer veio como costureiro, mas logo assumiu como pastor e professor. Esse era, segundo consta, um sonho de infância que não pôde realizar no país de origem. Lothar reuniu mais de mil páginas em uma pesquisa genealógica que parou no bisavô Christoph. Naquela época, a Europa estava tomada pela fome e pobreza, motivos decisivos para que o bisavô viesse ao Brasil. O histórico compilado em um calhamaço de folhas de ofício nem fora numerado. Sugere, porém, mais de mil folhas. Trata-se de registros de nascimento e óbitos, enfim, documentos enumerados. “Talvez o mais precioso documento vou conseguir na Alemanha. Com a foto do meu bisavô, quero colocar uma cópia da carta escrita por ele.”

Carta salvou-os do esquecimento O mais rico material histórico que comprova a ligação entre as famílias é a carta escrita pelo pastor Christoph Schaefer. Ela foi a única prova que permaneceu intacta, mesmo tendo atravessado o Atlântico. Quando foi embora, ele não conseguiu mais contato com a família. Não havia sistema de correios no Brasil. O primeiro selo conhecido como Olho de Boi foi impresso por determinação do governo imperial só em 1843. Além disso, não havia endereço fixo para os imigrantes. A família que ficou sabia apenas que o jovem havia partido para o sul da América. Nessa carta, Christoph, que virou pastor, descreveu a sua missão, incompreendida na Europa. Conta sobre os desíg-

nios de Deus e sobre a caridade em esclarecer a Bíblia aos incultos. Da pequena cidade de Mengerschied, que hoje tem cerca de 700 habitantes, 50 pessoas emigraram para várias regiões da Europa e América em cem anos. Em tom profético, constam na carta os detalhes de como estava a vida no Brasil, na Comunidade Gabriel. Trata-se da reprodução de um discurso dele como pastor. Em determinado trecho cita: “O que, querida comunidade, devo anunciar a vocês depois que me tornei pastor? Será que me torno um falso que faz do preto o branco e do branco o preto? Vosso amor foi grande comigo. Isto me dá coragem e confiança, de plantar hoje a bandeira do crucificado neste lugar sagrado{…}”

Jornal alemão destaca o encontro No fim do mês de maio de 2014, uma reportagem no jornal Lokales, periódico da cidade alemã de Mengerschied, divulgou a história do encontro inusitado. “Zufall brachte Hunsrücker und Brasilianer zusammen”. Em tradução simples, a frase significa: “Coincidência que reuniu os Hunsrücker e os brasileiros”. A região de Hunsrück ficou conhecida naquele país porque dela milhares partiram rumo ao Brasil. A matéria dá conta do breve encontro ocorrido no RS. Hilde Wittig estava em Igrejinha, procurando por descendentes do irmão do bisavô. Ela chegou até o pesquisador da família, Lothar Schafer. Após o rápido encontro, continuaram a se comunicar por telefone e redes sociais. Quando voltou à Alemanha, Hilde contatou Erni Engelmann, especialista na história dos Hunsrück, e ficou sabendo mais sobre a vida de Christoph Schaefer, que virou pastor Schubert no Brasil.


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A mão que expressa a cena Desenhista conta história da colonização alemã no estado em série sobre os 192 anos de imigração. Diálogos de personagens reais esclarecem com detalhes a epopeia germânica, remetendo o leitor a uma sequência cinematográfica.

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traçado em papel e nanquim deu origem ao cinema e aos desenhos em quadro-sequência que mostram o processo de povoação germânica. Trata-se de uma forma de contar a saga os alemães, com falas e nomes fictícios de uma história real. A Europa enfrentava uma das piores crises econômicas. Não havia emprego nem terras suficientes para abarcar toda a população. Aqui no Brasil, a recente independência sofria fortes influências do governo português e o objetivo era “branquear” o país, visto que 2/3 da população brasileira era de negros, mestiços e mulatos. Outro motivador é que o país não tinha elite militar. Os almirantes dos navios, por exemplo, eram todos estrangeiros.

Era tão necessário fugir que as promessas de mercenários soaram verdadeiras. É possível, por meio da ficção, perceber os meandros que levaram os imigrantes a serem enganados com falsas promessas de terras, equipamentos e isenção de impostos. E o que enfrentaram quando chegaram aqui. Os desenhos em quadrinhos contam com a experiência do professor e historiador José Alfredo Schierholt para elucidar os detalhes desse processo histórico. Entrevistas com descen-

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A maneira como o desenhista fazia os quadrinhos, com cenários e personagens era inspirada na história real


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dentes de alemães escalrecem melhor este processo. E conta com as minúcias dessa história no Vale do Taquari, muitas desconhecidas, estão no caderno.

A história, quadro a quadro Antonio Telmo Oliveira, 73, mais conhecido como “Téio”, desenha desde pequeno. “Na infância, quadrinho era a nossa a televisão.” Na fase adulta, levou a arte como atividade secundária. Trabalhou no Jornal do Comércio, em 1974, como retratista. Fez reproduções de personalidades como os ex-presidentes militares Emilio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel. Sua profissão oficial era a eletrônica. O desenho vinha em segundo plano. Sempre o levou em paralelo. “Trabalhava durante o dia na eletrônica e não via a hora de chegar em casa no fim da tarde e me debruçar nos desenhos noite adentro”. O desenhista trabalhou na Zero Hora e fez encartes infantis. Uma das histórias preferidas do ilustrador foi a do Guilherme o Super Agente. Uma série de quadrinhos que emplacaram na Zero Hora. Ele chegou a trabalhar ainda em uma das maiores agências de publicidade do país, a AMPM, e na Editora Abril. Dessa última, acabou desistindo. “Era muito engessado, tinha que seguir traços pré-determinados.” Uma das passagens que recorda foi do tempo em que Leonel Brizola era governador do RS e do Rio de Janeiro. A extinta Revista o Aba Larga retratou em quatro capítulos parte da história dos gaúchos. As ilustrações em preto e branco que revelam a colonização alemã no estado são verdadeiras cenas de cinema, cujos diálogos expressam a tensão, a persuasão e a eloquência dos personagens. As falas e os silêncios mudam a cada cena, a cada quadro. Mostram com clareza as intenções inescrupulosas dos aliciadores que ganhavam dinheiro a cada imigrante recrutado da Europa. Parecia mesmo esquizofrênica essa dualidade entre eletrônica e desenho, mas em determinados momentos Téio

encontra um ponto em comum. Para ele, a delicadeza e precisão dos movimentos ao lidar com pequenas peças pode ser a mesma a ser empregada nos traços.

Rabiscos que ganham vida Téio extraiu de documentos, livros, jornais e revistas uma pesquisa intensa que durou 45 dias. Conta que o desenho é, para ele, um vício. A tática para a produção em grande quantidade foi semelhante a do cinema. Antes de começar, visualiza a imagem dentro do

“É complicado fugir do estereotipo e dar singularidade a cada semblante.” Antonio Telmo Oliveira desenhista

quadro e se emociona a cada etapa superada. Empolga-se, mas não esconde o quão enfadonho se torna quando precisa construir uma única cena com muitas pessoas. “É complicado fugir do estereotipo e dar singularidade a cada semblante.” A paixão pela história foi um catalisador, tornando o trabalho ainda mais rico em detalhes. Suas referências são arraigadas em artistas renomados como Alex Raymond, desenhista dos Estados Unidos, conhecido por seu virtuosismo e realismo. Foi criador do personagem Flash Gordon, o primeiro herói espacial do gênero. “Posso ex-


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ANDERSON LOPES

pressar minha inspiração em três palavras: papel, nanquim e amor.” O ilustrador canadense-americano Harold Foster conhecido como autor da premiada tira de jornal Príncipe Valente é ou-

tra fonte. Publicada em 1937, em pranchas dominicais, a tira retratava acontecimentos históricos precisos, destacando o realismo muitas vezes bem-humorado. Algo semelhante foi feito na série da saga alemã.

Téio se utilizou de técnicas para expressar os desenhos históricos de forma convincente. Para desenhar as caravelas, por exemplo, com os velames devidamente alinhados, comprava navios em miniatura e os montava para ter possibilidade de explorar os vários ângulos. A partir disso, foi possível dar sequência aos quadros de forma cinematográfica, com exploração de diversos planos. Como se baseia exclusivamente de preto e branco, a expressão fica por conta dos claros e escuros, sombras e luzes. Téio revela um leve daltonismo, mas nada que o impeça de diferenciar o verde do vermelho. “Por isso optei pelo preto e branco.” No ano 2000, o Jornal do Comércio editou a série do Descobrimento do Brasil. O ilustrador tinha pouco tempo, por isso, comprou minicaravelas que se montam em garrafas, para que pudesse aumentar a produtividade no processo de criação. Utilizou, muitas vezes, as pró prias mãos como moldes. Uma das maiores dificuldades, segundo ele, era repetir o mesmo personagem, sem perder as características.

“Não sou artista” As dificuldades aumentam quando não há referência. Por isso, o desenho precisa de modelos. Mesmo que reproduza a realidade em traços, Téio não admite ser chamado de artista. No máximo, artesão. “Artista é considerado quem pinta a Capela Cistina ou a Santa Ceia.” A montagem em quadrinhos, um verdadeiro “story board” (forma de ilustrar todas as cenas do filme, quadro a quadro), para ele, não é arte. Mesmo assim, afirma ter participado da Ospa de Porto Alegre, como tenor solista, na peça 9ª Sinfonia de Beethoven. Foi convidado para estudar na Espanha. Ganhou bolsa para canto e se mudou para lá quando tinha 22 anos. Hoje não canta mais e se arrepende de não ter conhecido o desenhista Jesús Blasco, espanhol que trabalhou extensivamente em quadrinhos britânicos entre as décadas de 1960 e 1970. Téio ainda desenha, mas passou por um susto quando foi acometido por um leve AVC. Os comandos dos pequenos movimentos no traçado nunca mais foram os mesmos, mesmo assim, conseguiu alternativas para seguir adiante. Utiliza-se de instrumentos como canetas inglesas e lápis suíços, tornando a criação mais clara e límpida. Na conversa, entre uma pausa e outra, olha para cima e, sobre os óculos, relembra dos pais. “Trabalhavam na agricultura. Um dia uma safra de trigo foi totalmente perdida. Foi uma das minhas primeiras histórias retratadas em quadrinhos.” Diz que o pai foi um grande incentivador, mas que não considera seu desenho uma arte. “Não sou artista”, reforça de forma irredutível. Depois, sorri e se despede sem sobressaltos.


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Brasil antes de 1824

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ntes de 1824, houve várias imigrações de germânicos no Brasil, além da Imperatriz Leopoldina e seus acompanhantes cientistas. Em 1818, a cidade de Nova Friburgo (RJ) recebeu 1,6 mil colonos suíços do cantão Friburgo, na Suíça. Em Ilhéus (BA), 165 famílias alemãs vieram cultivar fumo, cacau e cereais. Um ano depois, São Jorge dos Ilhéus (BA) teve a presença de mais 200 famílias de colonos alemães. O mesmo ocorreu em Inhomirim, fundo da Baía da Guanabara, no caminho novo da subida da serra, no Rio de Janeiro. Nesse território, Georg Heinrich von Langsdorf tinha a Fazenda da Mandioca, para a qual contratou 96 imigrantes para cultivo de novas espécies com tecnologia moderna. Não havendo unanimidade entre os pesquisadores quanto às datas, é nesse período que devemos mencionar a fundação da Colônia Leopoldina (BA), formada por três fazendas: Riacho d’Ouro, Pombal e Helvécia, onde predominavam famílias suíças. Foi uma homenagem à Princesa Leopoldina. Trata-se da junção de duas sesmarias, na parte sul do Rio Geral, denominado Rio Peruípe; uma no chamado Riacho do Ouro; e outra, no chamado Pombal. Na Colônia Leopoldina, foram assentadas famílias alemãs e suíças. O major Antonio Schaeffer trouxe soldados mercenários da Alemanha, para formar o Corpo de Tropas Estrangeiras, no Exército brasileiro. Os tenentes Halfeld e Koeler foram fundadores de Juiz de Fora (MG) e de Petrópolis (RJ). No Morro de Queimados (RJ), 264 colonos evangélicos foram trazidos pelo mesmo major Schaeffer. Em novembro de 1819, mais 26 suíços chegaram a Nova Friburgo. Em 1822, o major Schaeffer fundou Frankenthal, na margem do Rio Jacarandá, afluente do Rio Peruípe, na Bahia, onde instalou 20 imigrantes e lá morreu. Só em 25 de julho de 1824 inicia a imigração alemã em São Leopoldo.

Os navios transatlânticos eram movidos à vela. Só a partir de 1838 aportaram em Lisboa os primeiros cinco navios a vapor

Como se contrava o Vale do Taquari neste ano Foi em um domingo do dia 25 de julho de 1824 que aportou em São Leopoldo a primeira leva de imigrantes alemães. Repercutiram também no Vale do Taquari os efeitos políticos e administrativos da transferência forçada da Família Real Portuguesa ao Brasil, em 1808. A principal consequência foi a subdivisão do estado, que tinha no total apenas 36.721 almas (nomenclatura para habitantes utilizada na época), em grandes municípios: Porto Alegre, Rio Grande, Rio Pardo e Santo Antônio da Patrulha. Assim, foi criado o município de Rio Pardo pela Provisão do dia 7 de outubro de 1809, que incluía também as capelas filiais de Santo Amaro e de São José do Taquari. Dez anos antes da chegada dos imigrantes alemães, em 1814, o Censo de Taquari dava o total de 1,7 mil pessoas, das quais 1.092 brancos, 433 escravos, 42 índios, 67 livres e 80 recém-nascidos. Quando os primeiros imigrantes alemães desembarcaram

José Inácio Teixeira Júnior

Somente os escravos produziam riquezas em benefício dos donatários e dos cofres de Portugal.

em São Leopoldo, a paróquia de Taquari tinha uma história com mais de 60 anos, fundada por casais imigrantes das ilhas de Açores, território português. Desde o início, o Brasil foi Colônia de Portugal. Apesar de os portugueses terem povoado territórios no país, não eram considerados de fato colonizadores. Somente os escravos produziam riquezas em benefício dos donatários e dos cofres de Portugal. A vinda dos açorianos foi uma tentativa para melhorar a organização colonial portuguesa. Para isso, os donatários deviam subdividir suas imensas terras em sesmarias (terrenos maiores) e datas (terras menores). Cabia aos proprietários promover o povoamento. No Vale do Taquari, uma dezena desses sesmeiros (donos das sesmarias) recebeu grandes extensões, tidas devolutas (público), de 1794 a 1815, comprometendo-se a abrir estradas, estivas e portos fluviais. Aqui havia alguns remanescentes indígenas nas imensas florestas, habitadas também por grande variedade de animais selvagens. Entre os dez

sesmeiros no Vale do Taquari, se destacaram os irmãos João e José Inácio Teixeira, donos de terras na Serra de Taquari. Ambos moravam em Porto Alegre, onde tinham muitas casas e terrenos. Em 1794, formaram uma sociedade imobiliária a fim de melhor administrar as sesmarias, subdivididas em fazendas. É a origem das Fazendas dos Conventos, Carneiros ou Lajeado, São Caetano, São Bento, São Gabriel. E no outro lado, as mais conhecidas, na margem direita do Rio Taquari: Fazenda de Estrela, Beija-Flor, Ouro e Vilanova. Para administrar seus bens, os irmãos Teixeira tinham cerca de 300 escravos, muitos peões e administradores. Exploravam especialmente madeira de lei e erva-mate. Em cada fazenda, construíram uma sede própria, com galpões e estalagens, onde também plantavam, criavam animais para carga e alimento, além de terem embarcações próprias. Após 30 anos, em 1824, os irmãos Teixeira repartiram seus bens. Foi quando chegaram os primeiros imigrantes a São Leopoldo.


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Imperador busca imigrantes

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s diversos tratados de cunho político e econômico eram, quase sempre, selados por algum casamento entre os filhos dos monarcas. A partir de 1815, o imperador do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, Dom João VI, selou os compromissos bilaterais de casamento do filho Dom Pedro. A noiva de nome comprido era arquiduquesa da Áustria. Carolina Josefa Leopoldina Francisca Fernanda de Habsburgo-Lorena, mais conhecida como princesa Leopoldina. Foi a terceira filha do imperador da Áustria e da Alemanha Franz Joseph I. O casamento civil se deu por procuração, em Viena, em 29 de novembro de 1816. Quando a mãe de Dom Pedro, Dona Maria I, a ‘rainha Louca’, morreu em 1816, Dom João VI assumiu como rei e prometeu retornar a Lisboa, mas só voltou seis anos depois. Em 1811, o rei Dom João simplesmente anexou o território do Uruguai ao Brasil, com o nome de Província Cisplatina, oficializado em 1817. O Exército português tinha poucos soldados para manter o domínio sobre o Uruguai, especialmente com a restauração dos bourbons na Espanha. Por isso, era preciso se defender de constantes surtos de revoluções emancipacionistas que eclodiam por toda a parte nas colônias espanholas. Dom João planejou buscar reforços nos estados germânicos, por meio da imigração de soldados e colonos. Para isso, prometia pagar viagem, dar terras e outras vantagens aos imigrantes. O major Jorge Antônio Schaeffer, por volta de 1818, trouxe as primeiras quatro famílias (20 pessoas) para o Brasil, fundando a Colônia Leopoldina (hoje Nova Viçosa), na Bahia.

Os casamentos da época eram tratados políticos entre líderes que ligavam e fortaleciam as nações

nalista do Porto. O Imperador Dom João VI havia raspado os cofres no Brasil e levado junto as reservas metálicas do Banco do Brasil. Deixou aqui o filho Dom Pedro, na condição de príncipe regente. Sonhava Dom João que, após sua morte, pudesse Dom Pedro herdar o trono de Portugal e manter a união dos reinos, apesar de já se esboçarem movimentos para a independência do Brasil. A princesa Leopoldina desembarcou no Rio de Janeiro em 6 de novembro de 1817, sendo a primeira imigrante germânica do

Brasil. Trouxe na comitiva vários cientistas. Após a recepção dos noivos no porto do Rio de Janeiro, a comitiva se dirigiu à Igreja Catedral, onde se repetiu o Ato do Sacramento do Matrimônio. Nascida em 22 de fevereiro de 1797, era um ano e oito meses mais velha que Dom Pedro. Não foi fácil a vida do novo lar imperial, pois Leopoldina sabia pouco falar português. Falavam em francês. Dom João VI e Joaquina Carlota brigavam e viviam separados e, mesmo assim, tiveram nove filhos. Em consequência, a educação rece-

Imperatriz Leopoldina A princesa Leopoldina foi a primeira imigrante no Brasil em uma esquadra de 11 navios, o rei desembarcou em Lisboa em 3 de julho de 1821. A intenção era que a cidade voltasse a ser a capital do reino, ameaçada pela Revolução Constitucio-

Dom Pedro I e imperatriz Leopoldina. Herdaram cofres vazios

bida por Dom Pedro foi péssima. A vida conjugal foi um suplício para Leopoldina, com um filho a cada ano, em um total de sete: Maria da Glória (depois rainha de Portugal), Miguel, João Carlos, Januária, Paula, Francisca, Pedro II e um aborto, que lhe causou a morte. E Dom Pedro I teve mais 11 filhos com outras mulheres. As cortes portuguesas exigiam a volta imediata a Portugal da família de Dom Pedro I, que se encontrava em São Paulo. Por isso, Leopoldina assumiu como imperatriz para presidir o Conselho de Estado e assinar o Decreto da Independência, em 2 de setembro 1822. José Bonifácio a aconselhou a deixar essa assinatura para Dom Pedro I, por ela ser austríaca. Ela fez isso cinco dias depois, proclamando a Independência. Em cartas à irmã mais velha Maria Luíza (viúva de Napoleão Bonaparte), Leopoldina revelou ter sido agredida muitas vezes por Dom Pedro. Por efeitos da última agressão, antes do marido viajar a Porto Alegre, Leopoldina abortou seu oitavo filho, vindo a morrer dias depois, em 11 de dezembro de 1826, no Palácio de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Em 1954, o corpo dela foi transladado para a Capela Imperial, sob o Monumento do Ipiranga, em São Paulo.

Guerras repercutem Conforme relatos de Nilo Ruschel, em publicação do Jornal Correio do Povo em 3 de junho de 1966, a origem da Fazenda da Estrela decorre de um desmembramento de terras que pertenciam ao marechal de campo Antonio Manuel Silveira Sampaio. O marechal havia recebido o território do governo português como gratificação por serviços prestados. A Fazenda de Estrela era a maior parte das terras que pertencia à localidade de São José do Taquari. Uma das filhas de Sampaio, Ana Emília de Sampaio, casou-se com o coronel José Luís Mena Barreto, que participou das lutas cisplatinas. Morreu aos 27 anos, no combate Rincón de las Gallinas, no Rio Negro, onde as armas brasileiras foram derrotadas pelas uruguaias, em 24 de setembro de 1825. Esse combate ocorreu na Guerra da Independência, quando Uruguai lutou pela sua independência, auxiliado pelas forças argentinas e proclamada pelo líder político uruguaio Juan Antonio Lavalleja, em 1825. Entretanto, da Guerra Cisplatina não houve vencedores. Somente pelo Tratado de Montevidéu foi reconhecida a Independência do Uruguai, em 1828. Do matrimônio entre José Luís Mena Barreto e Ana Emília do Sampaio nasceu (Antônio) Vítor de Sampaio Mena Barreto, o qual foi engajado nas forças brasileiras e conquistou no Paraguai o posto de coronel. Foi o fundador da Cidade de Estrela, como está no livro de José Alfredo Schierholt Estrela Ontem e Hoje.


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As promessas do major Schaeffer

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presença da princesa Leopoldina na Família Real foi decisiva para a vinda dos imigrantes ao Brasil. O propagandista contratado para percorrer os estados germânicos buscando imigrantes foi o médico e militar major Antônio Schaeffer. Ele era conhecido em meio aos empresários, políticos e militares. Schaeffer nasceu em Münnerstadt, na Baviera, estado da Alemanha, em janeiro de 1779. Morreu em Jacarandá (Brasil), em 1836. Recebeu promessa de recompensa financeira por cada imigrante recrutado. Para obter maior lucro, montou uma rede de subagentes espalhados pela Alemanha a fim de angariar colonos e soldados para a emigração. Como o fluxo da emigração para a América do Norte já era comum, bastou que o “Agent d’Affaires Politiques” de dom Pedro I se utilizasse do conhecimento e da disponibilidade de agentes como Johann Wenzeslau Neumann, Joachim David Hinsch e Johann Müller para facilitar a ação. Eles trabalhavam em Hamburgo. Luiz Kalmann atuava em Bremen e Dr. Jacob Kretzschmar, em Frankfurt. Em seus primeiros anos de trabalho, Schaeffer convocou soldados e alguns colonos, mas, à medida que o império brasileiro se estabilizava, Dom Pedro I se preocupava em povoar o RS com pessoas que soubessem trabalhar com a terra. Schaeffer foi orientado a levar mais colonos e para isso fez diversas promessas infundadas. Os alemães achavam que receberiam 50 hectares de terra, vacas, bois e cavalos, auxílio de um franco por pessoa no primeiro ano e de 50 cêntimos no segundo. Além de isenção de impostos nos primeiros dez anos, liberação do serviço militar, nacionalização imediata e liberdade de culto. Daquilo que foi oferecido, ao menos a primeira promessa superou as expectativas, ao invés de 50 hectares, os colonos receberam no início 77 hectares. Entretanto, no decorrer dos anos, vários

Dom João VI assumiu o reinado quando a mãe Maria I foi declarada louca

Antônio Schaeffer era um procurador oficial do império

desses compromissos nunca foram cumpridos.

rência de templo, ou seja, não podiam ter o símbolo da cruz, sino ou algo que as caracterizassem como igrejas. Então, os protestantes, como eram identificados os não católicos, praticamente tinham seus cultos em galpões. Depois, construíram escolas onde tinham cultos, mas sem uma torre com crucifixo, nem campanário com sino.

Engodo aos alemães O descumprimento do que foi dito por Schaeffer nos seus discursos deixou-o desacreditado em várias partes na Alemanha. Os dois últimos compromissos: nacionalização imediata e liberdade de culto nunca poderiam ser cumpridos, pois contrariavam a própria Constituição no império. O catolicismo era religião oficial. Os imigrantes trouxeram para o Brasil uma nova língua, cultura, tradição e uma nova religião: a evangélica luterana. Logo se depararam com a falta de escolas. Precisavam construir uma escola que servisse também para a realização de seus cultos dominicais. Não trabalhavam aos domingos. Era o Dia do Senhor, dedicado para se encontrar em comunidade, rezar, cantar e festejar as tradições. A promessa de liberdade religiosa foi quebrada, mas a Constituição em seu artigo quinto dizia que outras religiões seriam toleradas, desde que praticadas em casas que não tivessem apa-

Então, os protestantes, como eram identificados os não católicos, praticamente tinham seus cultos em galpões. Depois, construíram escolas onde tinham cultos, mas sem uma torre com crucifixo, nem campanário com sino.

Imigração planejada um século antes Fica evidente que a vinda dos povos germânicos às terras tupiniquins foi bem planejada. Portugal precisava garantir a posse da colônia, especialmente nas áreas litigiosas da fronteira. Era preciso povoar para fortalecer. O reino sabia sobre a vantagem espanhola nas colônias da América do Norte, das Missões no Paraguai, Argentina e Capitania do RS. Por isso, os lusos fundaram a Colônia do Sacramento, bem defronte a Buenos Aires, como posto avançado do território português. Colonizar, entretanto, seria impossível apenas com o povo migrante, já

estabelecido no Brasil. Então, em 1729, saiu um despacho do Conselho Ultramarino (órgão que servia para tratar de assuntos ligados aos territórios conquistados): “Conveniente que, se não instalando no sul, nas povoações da colônia e outras, casais de ilhéus, e quando estes forem insuficientes, se podia conseguir casais estrangeiros, sendo alemães ou italianos e de outras nações que não sejam castelhanos, ingleses, holandeses e franceses.” Conselho Ultramarino – 19/6/1729. Ou seja, era grande a preocupação do governo português em relação às investidas espanholas. Como já foi dito, o Brasil ganhou com a elevação de colônia para reino e sua sede, em 1808. A abertura dos portos, em janeiro daquele ano, facilitou a entrada de estrangeiros. Dez meses depois, Dom João VI concedeu também territórios aos estrangeiros residentes no Brasil, por meio das sesmarias. Antes, eles só podiam comprar terras para eles mesmos colonizarem, sem escravos. Uma década depois, o plano se concretizou e chegaram os primeiros imigrantes.


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serviços de abertura de estradas de ferro. Havia ainda a opção de viver como clérigo em seminários ou ser professor.

O primeiro casamento de imigrante alemão

Na Ilha das Flores, Rio de Janeiro, onde a maioria dos navios repletos de imigrantes aportava

A odisseia oceânica

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s transatlânticos levavam de três a quatro meses para atravessar o oceano. Dependiam muito das condições meteorológicas. Os navios eram fretados, portanto, cobravam passagem. Muitos foram enganados que não pagariam nada e embarcaram sem dinheiro. Em algumas situações, os alemães tiveram de esperar pelo embarque por mais de dois meses, no porto de Hamburg. Durante esse período, as péssimas condições de estadia, a falta de alimentos e de tratamentos médicos causaram óbitos. Muitas viagens foram feitas com excesso de passageiros. As pessoas viajavam espremidas. Se os ventos dificultassem, a travessia do Atlântico aumentava para até seis meses. A falta de alimentos e de higiene gerava epidemias que atingiam dezenas. Muitas mortes ocorriam e os corpos eram jogados ao mar. Outros mais morriam ao chegar no Brasil, devido às doenças tropicais. De vários relatos dessas odisseias enfrentadas por milhares de imigrantes em veleiros transatlânticos, talvez, o Diário de Mathias Schmitz, vindo ao Brasil em 1846, seja um dos mais significativos. Mathias Schmitz tinha 20 anos. Ele descreveu os detalhes da viagem que fazia com os pais e parentes. Quando ele veio, havia no veleiro 11 famílias. A despedida foi traumática. De carroça, foram de Hunsrück até o Rio

maioria adulta. De algumas famílias, morreram pai e mãe, sobrando de quatro a cinco filhos órfãos. O capitão racionava alimento e água potável. Quando chegaram ao porto do Rio de Janeiro, um médico subiu a bordo para tratar dos doentes e obrigar o comandante a oferecer alimento e frutas. Só depois de dez dias, os passageiros conseguiram pisar em terra firme. José Feliciano Fernandes Pinheiro, 1º Visconde de São Leopoldo, recebeu 39 pioneiros imigrantes na província do Rio Grande do Sul, em 18 de julho de 1824.

Reno, para navegar em um navio a vapor até a cidade de Colônia. Na catedral, pediram a proteção de Deus e prosseguiram a viagem de trem, chegando até o Estreito de Calais, na França, em 10 de outubro de 1846. Lá estavam de 40 a 50 famílias à espera do embarque. O governo brasileiro prometeu pagar a viagem na chegada ao Brasil. O armador do navio não aceitava embarcar os imigrantes mediante essa promessa. Ninguém tinha esse dinheiro, nem como retornar mais para Hunsrück. Conforme o relato, nove dias depois, o navio levantou âncoras e rumou ao Brasil, com 220 imigrantes. Logo no início, além de enjoos, a disenteria atacou a todos, até mesmo a tripulação. Em seis semanas de viagem, morreram 27 pessoas, a

As listagens dos navios, imigrantes e soldados, destinados ao centro do país e ao RS, são confusas, incompletas e mesmo contraditórias. Mesmo assim, consta que o veleiro Anna Louise, com 326 passageiros, zarpou do porto de Hamburg em abril de 1824, chegando ao Brasil dois meses depois. Entre os imigrantes, estava o médico de bordo, Carl Gottfried von Ende, evangélico, nascido em 1797, na Saxônia. Batizou-se na Igreja Nossa Senhora Mãe de Deus, em Porto Alegre, e se casou em maio de 1828 com Narcisa Inácia Teixeira, filha de José Ignácio Teixeira – antigo proprietário de terras de Lajeado e Estrela. Essa família chegou a ser proprietária da fazenda Sant’ Ana do Rio dos Sinos. Carl e Narcisa tiveram, no mínimo, cinco filhos. Talvez esse tenha sido o primeiro ca-

samento entre imigrante alemão e uma brasileira. O médico morreu em 16 de fevereiro de 1850. Dos 326 passageiros do transatlântico Anna Louise embarcaram no Rio de Janeiro os 39 pioneiros no bergantim Protector, embarcação a vela e a remo. Rumaram a Porto Alegre, via Lagoa dos Patos, chegando em 18 de julho de 1824. Os 39 pioneiros foram recebidos no porto pelo presidente da Província do RS, José Feliciano Fernandes Pinheiro, há pouco tempo nomeado ministro da recém-fundada Secretaria de Estado dos Negócios do Império. Em 1827, José Feliciano foi nomeado ministro da Justiça e criou as faculdades de Direito de São Paulo, de Olinda e Recife. Foi escritor e historiador. Recebeu o título de 1º Visconde de São Leopoldo. Sendo fundador e presidente perpétuo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1839. O destino dos imigrantes era São Leopoldo. Mas o local para sua hospedagem, na Real Feitoria do Linho Cânhamo, ainda não estava pronto. Além disso, precisavam demarcar os lotes onde os pioneiros teriam que se estabelecer.

Famílias separadas pela imigração Depois de passarem meses recrutando germânicos, o major Schaeffer, Johann Wenceslau Neumann e outros agentes espalharam por toda a Alemanha a notícia sobre o paraíso na América. Milhares de famílias decidiram deixar o país e atravessar o oceano rumo ao desconhecido para fugir da miséria. O último adeus foi uma comoção geral na região pobre de Hunsrücker. Era preciso abandonar o país para não morrer de fome. A imigração separou pais de filhos, irmãos e amigos. Quem ficou na Alemanha tinha a consciência que perderiam totalmente o contato. Não havia endereço definido para quem partia. Pelo sistema de morgado, o irmão mais velho assumia a responsabilidade da família, então, era obrigado a ficar. Quem não se submetesse a isso tinha que sair de casa e servir como soldado, operário nos

Hospedaria na Ilha das Flores, onde constavam dados dos imigrantes

Quadro representa o embarque de imigrantes em busca de nova vida


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Oito fuzilamentos no navio Germânia

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dramática jornada do pequeno veleiro hamburguês Germânia, de três mastros, iniciou no porto de Glückstadt, ao norte de Hamburgo, em 3 de junho de 1824, sob o comando do capitão Hans Voss. Carlos Henrique Hunsche, no livro Biênio 1824/1825 da Imigração e Colonização Alemã no Rio Grande do Sul, lançado em 1975, detalha a viagem. O veleiro tinha apenas 367 metros cúbicos, ou seja, não ultrapassava sete metros de comprimento. Nessa verdadeira “casca de noz” ao sabor dos ventos, mais de 300 pessoas a bordo se perderam por cem dias na imensidão do Atlântico. “Cada uma com suas desgraças e suas esperanças, seus rancores e seus amores”, como descreve Hunsche. Havia no Germânia 277 soldados, para os quatro batalhões alemães no Rio de Janeiro, todos arrebanhados pelo major Schaeffer. Dos 124 colonos, 66 rumaram para São Leopoldo, onde chegaram em 6 de novembro de 1924. Entre esses imigrantes, destacou-se o jovem médico hamburguês João Daniel Hillebrand, diretor da Colônia de São Leopoldo. Outro foi o primeiro pastor evangélico, João Jorge Ehlers, que chegou viúvo e com três filhos pequenos, de 11, 7 e 3 anos. O que é realmente estarrecedor entre os imigrantes é a listagem de 24 presos que o major Schaeffer deixou embarcar no veleiro Germânia. Dos removidos da cadeia de Hamburgo, 13 cumpriam pena por furto, oito por deserção (fuga do serviço militar), dois por homicídio e um por embuste (ludibriar alguém). Os dois mais jovens tinham 18 anos e o mais velho, 41. A maior pena na época era de seis anos e a menor, de seis meses. Parte desses marginais criou problemas entre os passageiros. Liderados por Johann Carl Rasch, queriam liquidar com o capitão do navio e atirá-lo ao mar. Foram presos, mas em seguida se soltaram. Quan-

Quadro de espera dos imigrantes em portos brasileiros

Depois do genocídio da Guerra Guaranítica, em 1768, restaram as ruínas

São João das Missões foi uma colônia germânica fracassada

São João Batista das Missões foi fundada pelo padre Antonio

Sepp, missionário jesuíta, um polímata que dominava áreas como música, arquitetura, urbanismo, relojoaria, pintura e escultura. Depois de catequizar 2.832 índios oriundos da redução de São Miguel, padre Sepp iniciou a construção da igreja em 1708. Essa redução mostrou alto nível de atividade cultural. Depois do genocídio da Guerra Guaranítica, desde 1768 tudo ficou em ruínas. As terras se localizam hoje no interior de Entre-Ijuís, região de Santo Ângelo, noroeste do estado.

Dr. Johann Daniel Hillebrand

José Feliciano Fernandes Pinheiro, Visconde de São Leopoldo

do capturados novamente, foram julgados por uma comissão que os condenou à morte por fuzilamento. Os corpos foram atirados ao mar. Tais fatos ocorridos em 5 de julho de 1824 se sucederam no Golfo de Biscaia, na costa norte da Espanha. Treze dias depois, chegariam mais 39 pioneiros em Porto Alegre.

Colônias fracassadas em São João das Missões

Nos primeiros meses de colonização, dezenas de famílias de imigrantes alemães se integraram na abertura de caminhos e coivaras (técnica agrícola utilizada em comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas. A construção das casas, plantação e colheita eram feitas por grupos em forma de sociedade. Alguns grupos não se sujeitaram ao trabalho e insistiram na rebeldia nas diversas linhas coloniais. Tornavam-se indesejáveis e foram expulsos da região de São Leopoldo. Com a inclusão de apenados de Hamburgo e Meck-Lenburg-Schwerin, Dom Pedro I encontrou ali uma solução para colonização da região missioneira do estado.

O grupo de 163 imigrantes foi levado de barco até Rio Pardo, em 26 de novembro de 1824, sob o comando do capitão Alexandre José Bernardes. Seguiram de carroça até Santiago do Boqueirão e dali à nova Colônia de São João das Missões. Apesar de terem recebido uma ajuda financeira, não quiseram trabalhar nas terras oferecidas. Poucos retornaram à região de São Leopoldo. As famílias de João Frederico Schmidt e Cristiano Frederico Schmidt migraram para Torres. Difícil acesso, falta de comunicação, de autoridades e de meios de comercialização de produtos rurais abortaram o projeto de colonização das missões. Só 50 anos depois ele foi cumprido.

Feitoria do Linho Cânhamo O jovem imperador Dom Pedro I estava muito preocupado e assustado com os surtos separatistas das antigas colônias espanholas na América do Sul, especialmente na longa e indefinida fronteira. Estava atemorizado com as revoltas da Independência em províncias brasileiras, como a Guerra Cisplatina, que durou 500 dias. Não queria perder o Uruguai, com mais de 176 mil quilômetros quadrados, e sentia falta de um Exército. A solução foi recrutar soldados e colonos estrangeiros, pois a mera distribuição de sesmarias e datas não resolvia a ocupação e posse do território brasileiro. Os imigrantes estavam a caminho do local conhecido por Feitoria do Cânhamo. Era preciso medir as terras em lotes coloniais com urgência. Para não ferir os direitos adquiridos pelos donos de sesmarias e datas, Dom Pedro encarregou o primeiro visconde de São Leopoldo e presidente José Feliciano Fernandes Pinheiro de realizar o serviço. Cinco dias depois de assinada a portaria, o navio Hamburgo levantou âncora com os 39 pioneiros para São Leopoldo, onde chegou em 18 de julho de 1824.


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Imigrantes chegam à Feitoria do Linho Cânhamo

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epois de uma semana hospedados em Porto Alegre, na sexta-feira de 25 de julho de 1824, os 39 primeiros imigrantes foram levados em pequenas embarcações para o antigo galpão da Real Feitoria do Linho Cânhamo. Desses, seis eram católicos (das famílias Krämer e Hammel) e 33 eram evangélicos (das famílias Pfingsten, Rust, Timm, Bentzen, Gross, Jaacks e Höpper, cujo bebê João Ludovico nasceu na viagem). A Real Feitoria do Linho Cânhamo foi uma empresa estatal portuguesa dedicada à grande produção da planta derivada da cannabis. Criada em 1783 pelo primeiro-ministro de Portugal Marquês de Pombal e instalada em Canguçu Velho, abastecia a navegação de Pelotas, Rio Grande, São José do Norte, Lagoa dos Patos e Porto Alegre. A planta, conhecida também como maconha, foi introduzida no Brasil tanto pelos portugueses quanto pelos escravos africanos vindos de Angola. Era matéria-prima na confecção de cordas para velas de navios e demais cordéis de amarração, papel, óleo para combustível e tinta. Os angolanos também usavam da planta para recreação, em cordas de fumo. A distância da Feitoria localizada em Canguçu Velho obrigou a mudança dessa indústria, cinco anos depois, em 14 de outubro de 1788, para a Faxinal da Courita, hoje Vale dos Sinos. Antes da transferência da estatal, os escravos curtiam e enfaixavam couros ali. Essas instalações, bem como a casa do feitor e capitão-do-mato e a senzala dos escravos, foram desativadas em 1824 e adaptadas às famílias dos imigrantes. Anos depois, foram agregadas à arquitetura portuguesa e às características germânicas em estilo bávaro. Afinal, entre os pioneiros, ha-

Refúgio utilizado por escravos serviram para abrigar os imigrantes

Germânicos chegam famintos à Feitoria do Linho Cânhamo

da história leopoldense e suas famílias, inclusive lápides históricas. Ao sul do bairro Feitoria, está o bairro Quilombo, onde os escravos se refugiavam.

Pioneiros ganham mais terras que o esperado Ao chegar ao Brasil, os imigrantes alemães sofreram para se adaptar ao clima brasileiro, ao idioma, à legislação precária e às condições de vida primitiva, superadas em seu país de origem. Dias depois, mais quatro imigrantes alemães e dois açorianos se agregaram ao primeiro grupo. Em novembro de 1824, mais 81 imigrantes chegaram. Só então boa parte dos lotes estava medida. O governo ampliou de 50 para 77 hectares de terra oferecidos aos alemães, o que os agradou muito. Na maioria dos casos, os imigrantes chegavam ao Brasil sem que suas terras estivessem demarcadas e assim ficavam alojados em prédios ocupados antes por escravos, aguardando durante meses o assentamento em seus lotes. Também por problemas na demarcação de terras muitas brigas surgiam. Funcionários do governo encarregaram e pagaram alguns luso-brasileiros para fornecer mantimentos e alimentação aos imigrantes, mas o que mais entregavam era cachaça para que parassem de reclamar com o governo. Demorou ao imigrante entender e falar um pouco em português. Assim que recebia o documento de posse das terras, deveria seguir às próprias custas. Não havia estradas nem pontes. Cabia derrubar o mato, construir uma barraca provisória, fazer a coivara, preparar a roça e plantar. Enquanto esperava crescer a plantação, o colono montava algum galpão ou estrebaria. O isolamento das colônias atrapalhava a adaptação do imigrante. A falta de tratamento médico dificultava inclusive os partos. Os doentes mais graves morriam a caminho das cidades. O trajeto era feito por tração animal. As promessas de que iriam para o “paraíso” foram decepcionantes. Tiveram que adentrar nas selvas e sobreviverem. A espera pelo cumprimento de promessas ferramentas, sementes, gado, material de construção foi em vão. Tal promessa de subsídio não foi cumprida na maior parte das colônias alemãs.

No distrito de Taquari, havia o total de 1.714 habitantes, dos quais 63% eram brancos, 25,2% escravos, 3,9% miscigenados, 2,4% índios e 4,6% recém-nascidos. Durante 30 anos, os irmãos João e José Inácio Teixeira mantiveram uma sociedade com 300 escravos. Em 1824, a sociedade foi desfeita. Boa parte desses escravos colheu as primeiras toras de madeira e a erva-mate das fazendas. O transporte era feito pelo Rio

Taquari até Porto Alegre. Em 1846, o distrito de Taquari já tinha 3,7 mil habitantes. Os registros dão conta que no distrito de Santo Amaro, que pertencia às fazendas da margem direita do rio, incluindo Lajeado, Mariante e Venâncio Aires, havia o total de 1.285 brancos (50%) e 982 escravos (38,3%). Como se vê, cada branco tinha a média de 1,3 escravo. Os libertos e índios viviam como peões ou biscateiros.

Irmãos Teixeira e os 300 escravos

Família alemã na selva

via os marceneiros João Cristian Rust e Paulo Hammel. Hoje, o espaço foi transformado para abrigar o Museu da Casa do Imigrante, acolhendo utensílios

Conforme estatística antiga, só uma década antes de chegarem os primeiros imigrantes, o estado tinha mais de 70 mil habitantes, dos quais 45,7% eram brancos, 29,1% escravos, 12.2% índios, 7,6% miscigenados e 5,2% recém-nascidos. Ao chegar, os alemães tiveram uma grande surpresa ao ver os negros, até então conhecidos só por ouvir falar.

Na região, 38,3% da população era formada de escravos negros


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Feitoria passa para São Leopoldo

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eses depois de a fabriqueta de cordas e cordéis da Real Feitoria do Linho Cânhamo ter sido desativada, parte das plantas cannabis – matéria-prima na produção de filamentos e fibras – continuou preservada pelos escravos nas lavouras açorianas. Com a chegada dos imigrantes, os poucos moradores do vilarejo tiveram um novo alento devido aos investimentos do governo provincial na produção de alimentos para os imigrantes. A demora na medição e distribuição dos lotes coloniais e o racionamento de alimento – muitas vezes desviado por atravessadores e donos de botecos – repercutiram nas cartas enviadas aos parentes da Alemanha, chegando até a embaixada e imprensa alemã. O governo imperial sentia o clima desconfortável de seu agente, major Jorge Antônio von Schaeffer, em diversos estados germânicos. Dom Pedro precisava de mais soldados para o Exército imperial e por isso tratou de fortalecer a função exercida pelo seu representante na Alemanha. Para não sofrer represálias do governo alemão, major Schaeffer anotava nas listas de passageiros imigrantes a profissão de “colono” para muitos soldados e jovens desempregados na Alemanha. Schaeffer garantia um futuro promissor à juventude desassistida alemã aos que preferis- sem vir para o Brasil. Uma das dificuldades enfrentadas pelos imigrantes, além do desconhecimento da língua portuguesa, era informar aos parentes o endereço onde estavam morando. A Feitoria do Linho Cânhamo complicava devido a lugares com nomes semelhantes. Os pioneiros pediram ao governo a mudança do nome para Colônia São Leopoldo, em homenagem à princesa Leopoldina, mulher austríaca do imperador Dom Pedro I. São Leopoldo era padroeiro da Áustria.

São Leopoldo, em 1860. O quadro está na Enciclopédia Rio-Grandense, publicado em 1956

Casa do Imigrante foi construída enquanto eram medidos os lotes

Jovens açorianos entre imigrantes alemães

O governo imperial sentia o clima desconfortável de seu agente, major Jorge Antônio von Schaeffer, em diversos estados germânicos.

O presidente da província, José Feliciano Fernandes Pinheiro, em 12 de agosto de 1824, mandou um ofício ao inspetor da Colônia de São Leopoldo, José Tomás de Lima, com instruções aos agrimensores e juiz de paz, acompanhando a segunda turma de imigrantes. Talvez seja apressada a conclusão de considerar insignificante a vinda de apenas seis novos imigrantes nessa segunda leva. Entretanto, a importância desse grupo diminuto se dá na inclusão de dois imigrantes das ilhas dos Açores: João Antônio, 35, e a Hiacintha (Jacinta), 29. O casamento deles estava previsto na primeira visita pastoral a ser feita por um sacerdote, vindo de Porto Alegre. Esse contato direto entre os açorianos e alemães facilitava a comunicação entre os fornece-

dores de alimentos e os colonos e a aprendizagem das primeiras palavras em língua portuguesa básica para se comunicarem. Assim, os preços abusivos e os mantimentos enviados pelo governo passaram a ser melhor fiscalizados. Além dos açorianos, vieram também mais quatro alemães solteiros: João Daniel Gottfried Kümmel, ferreiro, 36; Joaquim Frederico Guilherme Jäger, lavrador, 45; André Cristóvão Meyer, lavrador, 22; eram todos evangélicos, e Ignácio Rasch, pedreiro, 24, católico. Esses quatro solteiros vieram 18 dias depois da chegada dos pioneiros por terem permanecido no Hospital Militar em Porto Alegre, pois tinham sido maltratados pelo capitão da sumaca São Francisco de Paula. Vale informar que esse Ignácio Rasch (veio na segunda leva) recebeu o lote no 1 do plano diretor do núcleo urbano de São Leopoldo, quase defronte à igreja. Nascido na Baviera em 1790, Rasch foi o primeiro a abrir um armazém de secos e molhados em São Leopoldo e o primeiro barqueiro no Rio dos Sinos, quando ainda não havia ponte. Não demorou muito, também instalou a primeira fabriqueta de cerveja para alegrar o povo nas festas de Kerb. Casado com Gertudes Heinz, foi pioneiro empresário no comércio, indústria e serviços em São Leopoldo, onde morreu em 1835.

Sem liberdade na manifestação religiosa Entre os 39 primeiros imigrantes, em torno de 15 crianças estavam em idade escolar. O grupo seguinte tinha o mesmo número. Além dos pais, quem se preocuparia com essas crianças? E quais as medidas e a solução? A propaganda feita pelos agentes da colonização no Brasil escondia a verdade quanto à religião. Prometia a liberdade religiosa, pois, de fato, ao ser proclamada a Independência no Brasil, não se sabia ao certo como ficaria. A Constituição do Império, outorgada por Dom Pedro I a 25 de março de 1824, firmou em seu artigo 5° o princípio constitucional da religião do estado e institucionalizou a religião católica como sendo oficial do Império. Embora existissem essas atribuições ao Estado, o casamento era quase que totalmente regido pelo direito canônico, o que causava uma posição incerta e desagradável àqueles que não eram católicos, pois estava o país ainda ligado à antiga e intolerante legislação portuguesa que exigia como prova de estado civil a certidão do pároco católico. A liberdade de culto de religião, apesar de declarada, era somente tolerada, pois ia contra a Constituição brasileira. Para tanto, os imigrantes protestantes não poderiam construir prédios que tivessem a aparência de igreja, usando sinos e cruzes. Por isso, construíam escolas, onde os professores faziam o papel de pastor itinerante para presidir o culto, cantar nas festas e mesmo nos sepultamentos. Os pastores itinerantes passaram a fazer registros de seus atos, como livro de batismo, casamentos e óbitos. Tais atribuições eram próprias dos párocos no Brasil Império. Também as famílias católicas não tiveram a assistência religiosa a contento. Só depois de 25 anos da imigração, em 1849, chegavam a São Leopoldo os primeiros jesuítas que falavam alemão.


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Alemães trazem profissões ao Brasil

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ajor Schaeffer recrutou muitos colonos, mas também soldados disfarçados como colonos. Esse fato repercutiu na imprensa alemã. Por isso atraiu também alguns imigrantes que cumpriam pena em prisões portuguesas. A terceira leva de 81 imigrantes desembarcou em São Leopoldo em 6 de novembro de 1824. Tratava-se de 16 famílias, sendo 68 pessoas casadas e 13 solteiras. Nesse terceiro grupo, havia pessoas consideradas muito importantes e que, de certa, forma, consolidaram a nova Colônia de Alemães de São Leopoldo, como no início foi denominada. Com elas, vieram profissões como médico, sapateiro, alfaiate, pedreiro, carpinteiro, entre outras. O Brasil precisava desses profissionais, pois não existiam até então. Alguns assumiram no início. O primeiro foi João Daniel Hillebrand, médico e primeiro diretor da Colônia de São Leopoldo. Em 1815, o estudante participou da batalha de Waterloo e oito anos depois formou-se em Medicina na Universidade de Göttingen. Trabalhou em Hamburg e lá se inscreveu para emigrar ao Brasil, como médico de bordo. Hillebrand foi passageiro do navio Germânia, no qual foram fuzilados oito mercenários rebeldes. Como médico, combateu a cólera. Durante a Guerra Cisplatina, se empenhou em angariar 120 voluntários que lutaram pelo império. Na Guerra dos Farrapos, defendeu os interesses do império, mesmo contra alguns imigrantes que foram a favor dos farroupilhas. Na política, Hillebrand foi eleito vereador e presidente da câmara, em 1856-1861. Morreu em julho de 1880. Na terceira leva, chegaram Carlos Godofredo von Ende e Carlos Niethammer – o boticário – primeiro farmacêutico de São Leopoldo. Notável também foi o primeiro pastor evangélico, Carlos Godofredo Ehlers. Nascido em

1768, estava casado com Maria Margaretha Tiedmann. Depois que ela morreu, veio para o Brasil com os filhos Maria Regina, Augusta Francisca e Alexander Constantin. Iniciou como pastor em junho de 1824. Fora passageiro do navio Germânia, no porto do Rio Elba, em Hamburg. O cooperador foi o pastor Carl Leopold Voges, que aos 22 anos chegou a São Leopoldo, em fevereiro de 1825. Dois meses depois, os dois se desentenderam. Ehlers se mudou para Dois Irmãos e, mais tarde, para Três Forquilhas, morrendo em Porto Alegre, em 1850.

Primeiros imigrantes em Taquari Segundo Carlos H. Hunsche, em O Ano 1826 da Imigração e Colonização Alemã no Rio Grande do Sul, a menção mais antiga de imigrantes alemães em Taquari é de 5 de fevereiro de 1833 (23 anos antes do que presumem os pesquisadores), quando nasceu Maria Luíza Schreiner.

Era filha de João Frederico Schreiner e Madalena Stumph. Seu avô Frederico Schreiner era alfaiate na Alemanha, de onde veio a São Leopoldo em abril de 1826. Segundo o professor Rodolpho W. Schreiner, 90 anos, seu avô Friedrich Schreiner tinha uma casa comercial em Taquari que foi duas vezes assaltada. Na primeira vez, pelos farrapos, e na segunda vez, na retomada da vila pelos legalistas, em 3 de maio de 1840. Em 25 de abril de 1836, no início da Revolução Farroupilha, Carlos Frederico Oto Heise oficiava ao juiz de Paz de Taquari para impedir a passagem de alemães sem passaporte pelo distrito. Este texto pode ser encontrado no semanário O Taquaryense, de 24 de junho de 1939. Era início da Revo lução Farroupilha. O major Heise ajudava o major Jorge Antônio de Schaeffer a recrutar soldados imigrantes alemães nas primeiras levas, em 1824. Na Revolução Farroupilha,

Praça da capela do Espírito Santo, no ano de 1884

Igreja Matriz, em 1789 - 44 anos antes dos primeiros imigrantes

Mapa da colônia de São Leopoldo, em 1824

foi a favor dos revolucionários. O que é de estranhar muito é o desconhecimento de pesquisadores da região quanto a esses fatos e dão como início da imigração teuto-brasileira na região 1854, com a chegada dos primeiros compradores de lotes coloniais na Colônia dos Conventos, com sede no atual bairro de Carneiros, em Lajeado. O Instituto Histórico e Geográfico do Vale do Taquari vem alertando os pesquisadores para que busquem os dados em fontes primárias e procurem olhar mais além de Forquetinha, Con ventos e Lajeado. Os primeiros imigrantes alemães já estavam na região um século antes da instalação da paróquia de São José. Tendo ouvido falar que havia um processo de criação de novo município, alguns imigrantes vieram se fixar no povoado. Criado em 4 de julho, foi instalado já em 3 de dezembro de 1849 o novo município de Taquari. Uma lista de 1863 aponta quem foram os primeiros eleitores alemães, entre eles, Carlos Frederico Matte, vendedor; Fernando Augusto Maximiliano Kersting, negociante; Floriano Ivorask, agrimensor (medidor de território); Guilherme Lautert, curtidor; Adão Elli, lavrador; Cristiano Schmitt, sapateiro; Carlos Lampert Primi, ourives; e Cristiano Barth, ferreiro. João Barth comprou a chácara de Manuel de Souza. A primeira colonização alemã em Taquari foi a Colônia de Mor-

ro Azul. Localizava-se no primeiro e no terceiro distrito. Um dos imigrantes deu o nome ao lugar. É o caso do Arroio Carlos Kussler. Ele foi tributário do Arroio Morro Azul. Picada Dreher também é outro nome dado no século passado à cidade. Frederico Lautert abriu em Taquari uma fabriqueta de botas, sapatos e chinelos e esperava vender com a possibilidade de emancipação. Não tinha matéria-prima, então abriu um cur tume na Pedreira, subúrbios da vila. Para isso, solicitou licença à câmara de vereadores, petição apreciada em 10 de agosto de 1854. O despacho foi favorável desde que cuidasse para não arruinar a água de que se serve o público, diz a ata. Merece inclusão na listagem dos pioneiros Pedro Michel. Tinha muitos filhos. Comprou terras em Taquari e Teutônia. Como os imigrantes alemães eram minoria, logo se adaptaram à vida comunitária. Uma das características foi sua rápida aculturação. Logo aprenderam a falar e a escrever a língua portuguesa. Enxergaram nos descendentes açorianos e portugueses a procedência europeia, tidos por eles como cultos, honestos e trabalhadores. Casaram-se entre si. Estefânia Lautert casou-se com Antônio Israel Ribeiro, delegado de polícia de Taquari. Talvez com menos intensidade, o mesmo fenômeno étnico ocorreu em Bom Retiro do Sul.


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Germânicos chegam ao Vale em 1855

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o iniciar a colonização alemã em Estrela, em outubro de 1855, já existia no vilarejo um povoamento de afro-luso-brasileiro. Na região de São Leopoldo, entretanto, em 30 anos, já tinham desembarcado em torno de 7,5 mil imigrantes alemães. Os pioneiros em Estrela se estabelecerem na Picada Grande (hoje Novo Paraíso). Eles vieram de Paraíso, antigo 5o distrito de São Leopoldo. Depois, a linha foi denominada Doppelschneis ou Doppelpikade (doppel em alemão é duplo). Isso para distingui-la da Einfachpikade ou Einfacheschneis (einfach é simples), hoje bairro Boa União. De fato, a picada também é dupla. Havia a área onde predominavam os evangélicos e aquela onde prevaleciam os católicos, que escolheram São Vítor como padroeiro. Terminada a Guerra do Prata, a disputa do Brasil contra o ditador argentino Juan Manoel Rosas pelo solo uruguaio e pela hegemonia do Rio da Prata, em 1852, a maioria dos 1,8 mil soldados de um exército profissional, mercenários contratados pelo governo imperial brasileiro, preferiu permanecer no Brasil em vez de retornar à Alemanha. O contrato previa o pagamento em soldo, mas o governo também oferecia terras. Os soldados sabiam que os estados alemães continuavam em guerra pela sua unificação, concluída com a guerra franco-prussiana, em 1870, custando milhares de vidas. Um pequeno contingente de imigrantes, em Estrela, foi o dos “brummer”. Entre eles, se destacaram: Julius Georg Schnack, Gustav Heinrich Göllner e Wilhelm Heydt. Depois vieram outros. O apelido “brummer” se deve ao soldo muito baixo que os militares recebiam, fazendo zunir sobre o balcão das bodegas as moedas de bronze, de pouco valor. Por reclamarem e resmungarem, foram apelidados por brummer, termo depreciativo, naquela época. Depois, foi mo-

depois, em 1929, traduzido para o português com o título Quadros Alternados (impressões do Brasil de Dom Pedro I). Alguns trechos merecem destaque especial. Logo ao embarcar, Bösche sente certa hesitação em emigrar para o Brasil, e dá algumas características de seus companheiros de viagem. Talvez, o principal depoimento dele possa ser resumido neste quadro:

Chegada dos imigrantes em Estrela começaram pelo interior, nas localidades de Novo Paraíso e Linha Delfina

Carreteiros na Várzea de Porto Alegre mostram a dificuldade da época

tivo de orgulho e de identificação. Um registro no Livro de Atas da Câmara de Vereadores de Taquari, em reunião extraordinária em agosto de 1856, relata uma petição do tenente-coronel Vitorino José Ribeiro. Ele pede para que se ateste a colonização da Fazenda de Estrela que teria a distribuição de 42 lotes e terra:

“Depois do que, passou-se a ler uma petição do Tte. Cel. Vitorino José Ribeiro, pedindo para que se ateste a colonização em sua Fazenda denominada da Estrela, em outubro do ano passado, é ou não verdade ter já distribuído quarenta e duas colônias, e se tem proporções e a necessária.” (LIVRO DE ATAS-CÂMARA DE VEREADORES, 1856)

Relato mostra um povo maltrapilho e desesperado Da Alemanha partiram milhares em busca de novos caminhos em todos os continentes, especialmente o americano. Foi em 1608 que emigraram para os Estados Unidos os primeiros alemães. A Pennsylvania se tornou o destino preferido dos germânicos entre 1725 e 1775, com 30% da população do estado. Na Virgínia, Massachusetts e Carolina do Norte, chegaram muitos protestantes, menonitas, amish e outras minorias religiosas. Entre 1848 e 1918, na I Guerra Mundial, entraram perto de seis milhões de alemães no país, em maior quantidade nos estados de Chicago, Detroit e Nova Iorque.

O Brasil como destino de muito imigrantes nos portos europeus era mero detalhe, visto que isso ocorrera quase dois séculos depois dos USA. De vários navios fretados pelo major Schaeffer, destaca-se a sétima leva de imigrantes, que veio pelo veleiro Wilhelmine. Ele partiu de Hamburg em 12 de dezembro de 1824 e chegou ao Rio de Janeiro em 22 de abril de 1825. O imperador e a imperatriz receberam os 900 passageiros, cujos solteiros se destinavam ao Exército, e outros foram a São Leopoldo. Um dos imigrantes foi Eduard Theodor Bösche. Durante seus dez anos no Brasil, Bösche escreveu e publicou o livro de memórias Wechselbilde, editado na Alemanha e, um século

“Tremi ao avistar aquela gentalha rota, de que muitos mal logravam encobrir a nudez, e cuja atitude trazia o cunho da rudeza e da bestialidade animais. Estava bêbada a maior parte destes maltrapilhos e vagabundos. Contudo estes homens pertenciam ainda à melhor classe de passageiros, pois muitos deles traziam o coração incorrupto e bem formado de natureza, cujos melhores impulsos só o desespero de sua situação os levara a adormecerem por meio de excessos de toda ordem. Estava-me reservado fazer o conhecimento de súcia muito pior, composta de criminosos de Macklemburg, que Schaeffer ele gera para concidadãos de sua nova pátria. Assassinos e ladrões levados presos e algemados para bordo.” (WECHSELBILDE, 1929)

Livro de Bösche relatava as dificuldades da colonização do país


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Demora na entrega dos lotes gera incômodo

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ntre os 124 imigrantes dos três primeiros grupos que chegaram, em 1824, o único casal de açorianos foi João Antônio da Cunha e Jacinta Rosa. Esse contato facilitou muito a comunicação dos colonizadores, pois aprenderam um pouco de português. No primeiro semestre de 1825, vieram mais quatro grupos, totalizando 352 pessoas. Ao completar um ano de imigração no RS, o número de alemães chegava a 476. Passaram-se vários meses até as primeiras terras da antiga Fazenda de Tristão José Monteiro serem divididas em lotes coloniais e distribuídas aos colonos. A sede da fazenda era conhecida por Stein Haus ou Casa de Pedra, que antes alojava escravos. Ela precisou de reformas e ampliação, feitas pelos próprios imigrantes. Enquanto os homens reformavam, as mulheres plantavam milho, batata, feijão e hortaliças. Era a garantia da comida. Em novembro e dezembro de 1825, vieram mais quatro levas de imigrantes. O ano terminou com 1.027 imigrantes, divididos em 182 famílias. Não havia escola para os 201 solteiros. Além da demora na medição de lotes e sua entrega, todos enfrentavam graves problemas quanto à alimentação, que chegava em pouca quantidade. Uma comissão de imigrantes procurou alertar o inspetor Lima do clima de revolta. Havia boatos de que alguns procuravam se armar. Por isso, o inspetor se dirigiu ao governo da Província. O general Bento Correa da Câmara decidiu instalar em São Leopoldo um Destacamento Militar, para acabar com a especulação dos comerciantes desonestos. Com a chegada de novos contingentes de imigrantes, alguns deles decidiram abrir seus próprios caminhos. Como se vê, já naquele tempo não se cumpria as promessas dos representantes públicos, o que gerava sofrimento aos mais necessitados.

Origem germânica de Estrela O fenômeno da colonização alemã em Estrela iniciou em 1855. Lothar Hessel, no livro O Município de Estrela, distingue duas categorias de “alemães”: “De um lado, os pequenos burgueses – industriais, seus funcionários mais graduados, bancários, hoteleiros, religiosos, professores etc.; de outro, os colonos. Aqueles, com algum sentimentozinho de elite. Integrava o quadro de sócios da Sociedade Ginástica de Estrela quase só gente daquele primeiro grupo (ou só), ao passo que os colonos, misturados com gente de variada espécie, iam rodopiar no salão do bairro Oriental, por várias décadas o único bairro no Alto-Taquari.” A elite dos teuto-brasileiros falava melhor o hochdeutsch, uma maneira mais culta de falar o alemão. Afinal, tinha frequentado mais aulas da língua em sua terra pátria, com melhores professores. Tinha até biblioteca, quer comunitária, quer doméstica. Lia mais livros, jornais e revistas em língua alemã, sabendo ler e interpretar o que lia, bem mais que os

Em 1925, concentração de povos germânicos no RS alcançou 1.027 pessoas

Visão do centro de Porto Alegre nos anos da chegada dos imigrantes

Palácio do governo provincial em Porto Alegre, por volta de 1855

colonos. A maioria dos camponeses falava o dialeto hunsrück, westfälischeplatt ou sapato de pau – média menor de aulas primárias, ministradas em língua alemã por professores de menos preparo. Os filhos de colonos, em grande maioria, cursavam até o terceiro ano, alguns ainda o quarto ano, quando faltavam à aula para se dedicar mais à lavoura, nas épocas do plantio e colheita. Dizia-se “terceiro livro” ou “quarto livro”, para identificar as séries. Filhos da elite cursavam todas as aulas da localidade, procurando uma complementação fora. A elite não deixava notar nenhum apreço nem desapreço maior pelos colonos. Nem sempre sobrava tempo ao colono para um banho

mais completo, depois de ordenhar vacas ou tratar porcos, antes de ir à missa nos domingos e dias santos de guarda. A elite sentia o cheiro da roça e torcia o nariz, mas aceitava a realidade. Os colonos amarravam os cavalos nas proximidades da igreja. Diante das lojas e armazém, havia um espaço, em varas de madeira estendidas, onde prendiam os animais. Os “citadinos” viam nos colonos gente da mesma raça – observa Hessel em seu estudo – e, sobre isso, úteis à economia da região e do país. Mas, curiosamente, não ocultavam de todo certo menosprezo por quem entre eles fosse pobre e não fosse dono nem da casa. Muitas vezes, depois da missa e do culto, havia ocasião de

bons negócios, e mesmo compras nos armazéns. Se as portas da frente das “vendas” estivessem fechadas aos domingos, podiam os colonos entrar pela porta dos fundos, onde os comerciantes e seus familiares atendiam a freguesia, sob as vistas grossas da fiscalização. As duas raças, entre si, também mantinham certas características próprias. Os “brasileiros” tinham apreço maior para quem tivesse alguma educação social, boas maneiras, etc., o que em geral ocorria com os bem ou medianamente abastados. Por outro lado, considerava-os desconfiados, cabeçudos e orgulhosos, o que rendia aos menos capazes o apelido de “alemão batata”. As relações e diferenças entre as raças ficavam mais tensas quando se tratava de casamentos. Os pais previam conflitos e aconselhavam as amizades e casamentos, intervindo na relação dos filhos na escola, igreja e sociedade. Evitavam as consequências em uma relação entre pessoas de raças distintas, origem, estudos, posses, meio social e, principalmente, religião. “Não se sabe de casamento que tenha ocorrido naquelas décadas – 1910-1930 – escreve Lothar Hessel – entre negro e branca ou entre negra e branco.” Não alimentavam preconceitos raciais, apenas cuidavam das diferenças entre si, evitando possíveis casamentos. Para isso e por isso, as sociedades dos brancos não admitiam negros como sócios na Soges, nem em outras sociedades. Não sendo sócios, também não podiam frequentar os bailes. Os negros, por sua vez, também não estimulavam o casamento com brancos. Os negros tinham o seu salão de festas e bailes. Assim, havia o Salão dos Morenos, na esquina da rua Borges de Medeiros com a rua Coronel Müssnich, aos cuidados de Aristides Viana e Silva, mais conhecido por “Seu Velho Aristides”. Em 1977, mais de um século depois, ainda havia distinção de raças para entrar em espaços festivos. Em 20 de fevereiro daquele ano, foi inaugurado o Salão dos Morenos, que também serviu de sede à Associação Atlética Municipal.


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Sofrimento no decênio farrapo

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mistura dos imigrantes com um pequeno grupo de presidiários de Mecklenburg trouxe a São Leopoldo problemas de ordem pública e comunitária. Uma das soluções encontradas era transferir os indesejados para uma região distante, desabitada e abandonada. Nos primeiros dez anos de imigração, o império estava envolvido com as revoluções internas nas províncias que não apoiavam a independência e detestavam Dom Pedro I. Preferiam defender os interesses de Portugal para não perder cargos e demais privilégios. No sul, a Província Cisplatina aproveitou o clima da Independência para conseguir a separação e se constituir o novo país do Uruguai. Muitos imigrantes, especialmente jovens, acabaram defendendo os interesses brasileiros. Acabada a primeira década, estourou a Revolução Farroupilha, em 20 de setembro de 1835. A colônia de São Leopoldo ficou dividida entre os imperialistas liderados pelo doutor Daniel Hillebrand e os revolucionários chefiados por Hermann von Salisch. No decênio farrapo, a colônia prestou suporte em produtos agrícolas e pequenas indústrias alimentícias para Porto Alegre sitiada, provendo a capital com suprimentos transportados em pequenas barcas pelo Rio dos Sinos. A colônia se estendia por mais de mil quilômetros quadrados, de Esteio até o Campo dos Bugres (hoje Caxias do Sul). Em direção leste-oeste, de Taquara até o Porto dos Guimarães, no Rio Caí (hoje São Sebastião do Caí). Mesmo em Taquari, desde 1833, já havia imigrante alemão. Durante a guerra, as antigas fazendas no Vale do Taquari foram invadidas por ambas as forças para abrigar feridos, desertores e foragidos. Uma das mais atingidas foi a Fazenda de Pinheiros (próximo a Taquari), onde nasceu David Canabarro. Aos poucos, mais levas de imigrantes ocuparam os vales

Pelo Rio Taquari, imigrantes chegaram à região. Também escolheram áreas próximas aos mananciais

dos rios dos Sinos, Cadeia e Caí, lançando o progresso por meio da dedicação ao trabalho, o que ensejou que a colônia alemã se emancipasse de Porto Alegre em 24 de julho de 1846, apenas 22 anos depois de fundada. Concorreu para esse fato serem os alemães, além de landmänner (agricultores), também handwerker (artesãos). Daí, uma variada produção foi o embrião industrial do Vale do Rio dos Sinos. É em homenagem a esses imigrantes que o dia 25 de julho é feriado municipal. Em 1865, a colônia recebeu a visita do imperador Dom Pedro II. Em 1874, foi inaugurada a estrada de ferro ligando a cidade a Porto Alegre, facilitando o escoamento dos produtos da colônia. Em diversos pontos, surgiram núcleos de desenvolvimento que depois se emanciparam, tornando-se cidades prósperas. Ao todo, foram oito novos municípios. São Leopoldo, portanto, deu origem a toda a região hoje denominada Vale do Rio dos Sinos.

Alemães desembarcam em Lajeado Antônio Fialho de Vargas foi um dos vários investidores imobiliários que tinha relações com Taquari e conhecia o potencial para uma colonização, como um prolongamento das colônias

O militar David Canabarro nasceu na Fazenda Pinheiros em Taquari

de São Leopoldo. O governo procurava áreas para promover a colonização oficial ou para estimular o setor privado. No Livro de Atas da Câmara Municipal de Taquari, consta, na sessão de 10 de julho de 1852, a aprovação da resposta a um ofício do governo, solicitando informações sobre a existência de terrenos devolutos no Vale do Taquari muito próprios para colônias agrícolas. Os vereadores alertaram sobre os obstáculos de trânsito, dificultado por 14 quedas d’água. “Se o governo comprar

a Fazenda dos Conventos (hoje bairro Carneiros) e Lajeado, juntamente, será um terreno de superior qualidade para a agricultura.” Essa informação foi repassada para Antônio Fialho de Vargas, que se associou a João Batista Soares da Silveira e Souza e Manuel Fialho de Vargas para formar a empresa imobiliária, denominada Batista & Fialho e Cia. Sob a gerência de Fialho de Vargas, com 50% das ações, em 1853, essa sociedade comprou as fazendas dos Conventos e Lajeado.

Logo contratou agrimensores para medi-las em lotes coloniais, iniciando as vendas. Ultrapassava 148 colônias, de 150 mil braças quadradas cada uma, em um total de 22.275 mil braças quadradas. De imediato, o fundador Antônio Fialho de Vargas vendeu propriedades em Gravataí, trouxe em seu barco próprio peões, escravos e material de construção para erguer o seu sobrado em cima do paredão, na antiga sede da Fazenda dos Conventos, hoje bairro Carneiros. Terminado o prédio e as instalações anexas, foi buscar sua esposa Maria Inácia da Conceição Dutra, filhos e escravas domésticas e inaugurou a moradia em 20 de março de 1855, considerada a data oficial de fundação da Colônia dos Conventos. Em 1861, Fialho de Vargas mandou ao governo provincial um mapa estatístico da Fazenda dos Conventos, informando os nomes dos 68 imigrantes pioneiros, sendo o primeiro João Luís Krämer, com 50 anos de idade, com sete filhos homens (desceram em vários pontos em Lajeado) . Em seis anos de colonização, havia em Lajeado 309 habitantes, dos quais 159 homens e 150 mulheres. Havia 59 crianças de até 5 anos. Em idade escolar, de 6 a 14, havia 78, sendo 27 meninos e 51 meninas. Quanto à nacionalidade: 44 eram da Prússia, oito do Brasil e os restantes, 16, deixou de indicar. Quanto à religião: 18 católicos, 15 protestantes e 33 sem identificação. Quanto à profissão: três alfaiates, quatro pedreiros, dois sapateiros, um ferreiro, um armeiro e dois marceneiros. A média era de uns 60 ha para cada um e apenas em torno de 15% estava sendo cultivada, permanecendo, em 1861, quase 85% em mata virgem. Das 68 famílias, nenhuma era luso-brasileira, nem a dele. Também não forneceu ao governo o número de escravos, mas não chegava a 30.


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Disputa com índios

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primeira tentativa de colonização de terras gaúchas por casais açorianos, os poucos indígenas recuaram floresta adentro. Quando os imigrantes alemães vieram para uma nova tentativa de colonização, não foram avisados do perigo de invadir áreas indígenas. Essa agressão se tornou mais visível quando grupos de imigrantes de Mecklenburg foram levados para São João das Missões, onde acabaram abandonados pelo império. A mesma sorte tiveram imigrantes pioneiros mais distantes de São Leopoldo e que abriram diversas frentes em picadas e colônias pelas florestas nas encostas da serra. Índios caingangues, coroados e outros habitavam essas regiões como tribos nômades, desde sempre, como primeiros donos. Já tiveram que se deslocar quando sesmeiros vieram tomar posse de extensas terras, explorando-as para retirada de madeira e erva-mate. Alguns escravos que não se submetiam ao rigor de seus senhores e foram caçados por capitães-do-mato pelas florestas foram se mesclando com indígenas dando origem aos caboclos. Os primeiros imigrantes denominavam os silvícolas de buger ou bugres. Depois de abrir piques e trilhos, os imigrantes cortaram parte das matas para construir suas cabanas provisórias e lançar as primeiras sementes à terra. Além de se defender de animais ferozes como cobras, tigres, onças e outros, sentiram a presença dos índios que os consideravam como invasores. Os germânicos lutaram pelo direito das terras prometidas pelo governo imperial, enquanto os nativos se sentiram lesados, uma vez que foram seus os ocupantes naturais. Assim, os índios invadiram as propriedades dos imigrantes e roubaram os produtos. Os colonos se uniram para repelir os ataques dos indígenas. A situação se agravou em 1848, quando, em uma emboscada, os colonos alvejaram um índio de 11 ou 12

anos de idade, na Picada Feliz. Ferido na perna, o índio coroado foi adotado pelo colono Mathias Rodrigues da Fonseca. No batismo, recebeu o nome de Luís Antônio da Silva Lima, que ficou conhecido por Luís Bugre. Depois de mais crescido, Luís ficava dias e semanas na floresta em busca de caça e mantinha contato com índios. Sua história foi escrita pelo padre Mathias José Gansweidt, no livro As Vítimas do Bugre, em 1946, e publicado em almanaques alemães.

A saga dos germânicos Se há um termo de difícil definição é a germanidade, devido a abrangência, conotação e dubiedade. Em língua alemã, pode ser traduzido por deutschtum, quando se quer ressaltar uma irmandade e caráter relacionado à língua, costumes e tradições dos alemães. Para melhor entender o alcance, é preciso observar um aspecto humano essencial: a vida em grupo, a sociabilidade. O corte do cordão umbilical

não torna o homem um ser isolado, mas seus laços de família se estendem aos demais que convivem com ele no grande grupo. Ora, o grande grupo tem um conjunto imensurável de valores, riquezas e vivências, sem as quais o indivíduo isolado dificilmente consegue sobreviver. Ora, se o ato de emigrar constitui, de certa forma, um corte umbilical desse conjunto, fica fácil entender por que em um grupo de imigrantes se estreitam ainda mais os laços dos que devem enfrentar uma situação totalmente inesperada. Isolados num ambiente novo, estranho, às vezes hostil, imigrantes procuram se reagru-

Herbert Bergmann desenhou a construção da moradia em Bornbach, dando início ao Hunsrück

par, se adaptar, reunir valores e formar um novo grande grupo, com novas vivências. Conforme o professor e historiador José Alfredo Schierholt, é preciso buscar no passado os exemplos que fizeram a construção do estado e da região. As fortes razões que os forçaram a deixar a terra natal, colegas de escola e trabalho, a separação dos pais, irmãos, filhos, parentes e amigos, tudo isso foi apenas uma parte do sofrimento. A saga ultrapassa os percalços de atravessar o oceano, desembarcar em um porto desconhecido ao sul da América, perseguindo uma chance única de sair da miséria. Encontraram aqui pessoas de aspectos diferentes falando línguas estranhas. Ao chegar no sul, tiveram de seguir em pequenas embarcações, rio acima, em busca das terras que nunca tinham sido delimitadas. As selvas inóspitas davam o clima de medo e o pavor tomava conta, principalmente no início, quando ainda não tinham casa e moravam em barracos, em clareiras abertas a facão. Com o tempo, o contato com os nativos os ensinaria uma nova língua, novos conhecimentos sobre a agricultura, comércio, indústria, bem como outros hábitos, alguns nocivos, como o alcoolismo. O alerta aos filhos para que não fossem marginalizados se confundia com o sentimento de repressão ao uso da nossa língua, a interferência na vida familiar, social e religiosa. A união entre os conterrâneos era uma questão de sobrevivência para manutenção da cultura. Foi o que os imigrantes germânicos fizeram. Ficaram unidos. Permaneceram fiéis à índole alemã, língua e dialetos, ensinamentos e costumes, mas aprenderam também o português. Fundaram jornais e livros desde 1832 e lutaram em defesa da nova pátria. Marcaram presença e se interessaram pela política, colonizaram e fundaram vilas e cidades, empresas industriais, comerciais e prestadoras de serviços. Se houve desvios e exageros, mormente insuflados por inimigos do Brasil, os teuto-brasileiros se integraram totalmente na construção e defesa da pátria brasileira.


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A origem da arquitetura enxaimel

Rota do Enxaimel

ANDERSON LOPES

Parque Histórico de Lajeado adapta área pública ao estilo de edificações trazidos pelas famílias germânicas

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atendimento do governo para assentar os primeiros imigrantes alemães em São Leopoldo foi muito demorado. Os lotes coloniais não estavam medidos. Faltavam abrir piques e estradas, entregar instrumentos rurais, sementes e alimento às famílias. O governo imperial estava muito mais preocupado em salvar o território da Província Cisplatina por falta de soldados no seu exército. Por isso, aguardava mais jovens da Alemanha. No decorrer do tempo, os imigrantes começaram a construir suas casas e escolas. O estilo enxaimel (fachwerk em alemão) foi o que mais se destacou. O prefixo fach significa preenchimento. Uma técnica de construção que consiste em paredes montadas com hastes de madeira encaixadas entre si em posições horizontais, verticais ou inclinadas, cujos espaços são preenchidos em geral

O historiador José Schierholt morou em uma casa de esquina durante uma década (de 8 de dezembro de 1971 a 20 de outubro de 1982 ) no atual Centro Histórico de Lajeado. O início da vida comercial de Lajeado se deu nesse lugar. Um prédio na esquina em frente à antiga sede da Companhia de Navegação Arnt, na rua Osvaldo Aranha, esquina com a rua General Osório, chamou atenção. “Este foi o mais antigo prédio enxaimel existente da cidade.” Quando Jacó Felipe Hexsel comprou o Engenho/Serraria de Antônio Fialho de Vargas, em 1872, o vendedor cumpriu a promessa de ampliar o porto de Lajeado, pois as lajes e pedras na foz do Arroio Lajeado (hoje Arroio do Engenho) impediam a subida de barcos maiores pelo Rio Taquari, que precisavam rumar ao sobrado de Fialho de Vargas, no paredão em Conventos Velho, hoje bairro Carneiros. Por isso, contratou o engenheiro Luís Jaeger a construir no início de 1873 este prédio na esquina do antigo centro comercial. Em 7 de outubro daquele ano, uma enorme enchente cobriu os fundamentos do prédio. Jaeger aumentou a altura do alicerce, colocando as famosas janelas ovais para ventilação do porão. O assoalho ficou acima da marca da enchente, uma das maiores de todos os tempos. O prédio ficou pronto no ano seguinte. Conrado Frederico Sudbrack, nascido em 1825, em Bielefeld, Alemanha, foi o primeiro a morar nele. Chegou como imigrante brummer ao Brasil, em 1851, para comandar o barco de Antônio Fialho de Vargas. Comerciante por vários anos, casou-se com Elisabeta Dhein e morreu em 1898. Um ano antes de sua morte, o prédio foi escriturado por Félix Kuhl, empresário comercial vindo de Cruzeiro do Sul. Logo depois, Feliz Kuhl vendeu o prédio para a Companhia de Navegação Arnt. Ele passou a abrigar a família da empresária. Em 2000, o historiador Wolfgang Hans Collischonn, auxiliado por Günther Heinz Richter, publicou o livro Arquitetura em Enxaimel, em edição bilíngue, português e alemão. Foi feito um levantamento fotográfico e descritivo de 90 casas em Lajeado, 113 em Forquetinha e 25 em Canudos do Vale, totalizando 228 moradias em estilo enxaimel, todas muito antigas. O autor desse documentário, tão rico em dados, propõe o sonho de um roteiro turístico, denominado pelo professor Collischonn como Rota do Enxaimel. Para o Parque Histórico de Lajeado, foram transferidas 17 dessas casas. O parque foi inaugurado em 8 de dezembro de 2002. O mesmo fenômeno arquitetônico se deu em Estrela, Teutônia, Westfália, Imigrante, Colinas, Arroio do Meio, Cruzeiro do Sul, Santa Clara do Sul e outros municípios do Vale.

Após pegar fogo, prédio construído por imigrantes foi demolido em 98

por pedras ou tijolos. Os tirantes de madeira dão estilo e beleza às construções do gênero, produzindo um caráter estético privilegiado. Outras características são a robustez e a grande inclinação dos telhados. A umidade característica da região sul impôs a necessidade de implantação de uma estrutura feita de pedra, afastando o contato direto com o chão, para a madeira não apodrecer.

Primeiro projeto arquitetônico de estilo enxaimel

Ainda que normalmente se faça uma ligação natural entre o enxaimel e a Alemanha, a ver-

dade é que o estilo não tem uma origem determinada. Embora seu desenvolvimento maior tenha sido em território germânico e regiões vizinhas, especialmente no período renascentista, se sabe que o povo etrusco, habitante da região da península itálica, já praticava a técnica desde o século VI a.C. Além de fortes, as casas eram baratas e de construção simples. As toras grossas de madeira eram postas primeiro. Entre

as vigas verticais e nas extremidades das paredes, eram colocadas as horizontais. Algumas em ângulo para evitar inclinação. Pronta a “caixa”, os espaços eram completados com materiais disponíveis de acordo com a região: no RS, há fechamentos com taipa, barro socado, tijolos maciços rebocados e até mesmo pedras grés cortadas. Em Santa Catarina, há maior ocorrência de tijolos maciços sem uso de reboco.


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A fé católica e evangélica na imigração

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grito “Esta Terra tem Dono” do cacique guerreiro Sepé Tiaraju, na Guerra Guaranítica, nunca ecoou nos palácios de Portugal, Espanha e muito menos, dois séculos depois, no Brasil e na Europa. Por isso, a colonização se deu em meio às florestas onde caingangues, coroados e outros índios caçavam, pescavam e viviam. Os imigrantes não sabiam nada sobre a proximidade das áreas indígenas nos vales do RS. Os índios defendiam o território e os confrontos se tornaram inevitáveis, especialmente em terras mais distantes de São Leopoldo. Com certeza, um dos efeitos mais sentidos no início da colonização, após a posse dos lotes coloniais, era a distância entre as famílias. Não havia estradas que facilitassem a comunicação. Apenas trilhos e piques, que originaram as picadas. O isolamento deixava as pessoas angustiadas, especialmente na busca de algum recurso para a saúde e demais necessidades. Os imigrantes também sentiam falta de se encontrar em comunidades, como faziam na velha pátria, especialmente aos domingos. No início, eram poucas as famílias católicas. Raramente, recebiam alguma visita de padre, vindo de Gravataí, cuja Paróquia Nossa Senhora dos Anjos, criada em 1773, tinha vastas extensões. Seus limites, realmente, foram oficializados somente em 1848. Os primeiros registros paroquiais foram feitos em Gravataí. Duas décadas depois, em 27 de maio de 1846, foi criada a Freguesia de São Leopoldo e logo vieram os primeiros padres jesuítas que também falavam alemão. Eles visitaram todas as novas linhas coloniais, chegando também ao Vale do Taquari. A grande maioria dos imigrantes era luterana. Todos os evangélicos eram tratados pelas autoridades como não católicos. Na Constituição do Brasil Império, de 1824, consta: “Ninguém deve ser perseguido por causa de sua religião, desde que ele respeite a religião do Estado e não fira a moral pública”. Mas o artigo

Primeiro modelo da Igreja Matriz Santo Inácio

Igreja evangélica na Pinheiro Machado (Lajeado)

Em Gravataí foram feitos os primeiros registros paroquiais

1ª igreja evangélica no RS foi construída em 1828, em Campo Bom, na época pertencente a São Leopoldo

5º prescrevia: “A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com o seu culto doméstico ou particular, em casas para isto destinadas, sem forma exterior de templo.” O Código Criminal do Império, em seu artigo 276, estabelecia: “Caso membros duma religião, que não seja a do Império, celebrarem seus cultos numa construção que tenha a forma de templo, os mesmos devem ser dispersos pelo juiz de paz e ser punidos com uma multa de 2 a 12 mil réis.” A partir de 1863, os matrimônios realizados por um pastor, legalmente registrado perante o governo, passaram a ter validade

legal. Mesmo assim, casamentos mistos só podiam ser celebrados pelo padre católico e os filhos obrigatoriamente tinham que aderir ao catolicismo. Até mesmo direitos políticos estavam limitados aos não católicos, como determinava o artigo 95 da Constituição: “Não podem ser deputados na Câmara pessoas que professam outra religião que a do Império.”

Religiosos se organizaram em comunidades Ao iniciar a colonização em São Leopoldo, em 1824, na margem esquerda do Rio Taquari, existia a sede da Freguesia de São José de Taquari, onde havia o primeiro

pároco desde 1765. Na margem direita, estava a sede da Freguesia de Santo Amaro, desde 1773. Entretanto, os párocos não se deslocavam para administrar os sacramentos no interior de suas vastas freguesias. Quando iniciou a colonização em Lajeado e Estrela, em 1855, os primeiros imigrantes levavam seus filhos à pia batismal de suas respectivas igrejas matrizes, em Taquari e Santo Amaro. A iniciativa de confortar os imigrantes em suas necessidades espirituais em Lajedo e Estrela coube aos padres jesuítas, que vinham como missionários de São José do Hortêncio e de Dois Irmãos. A vinda de padres e pastores às novas colônias em Lajeado e Estrela interessava aos fundadores das respectivas colonizações, como incentivo aos novos migrantes e imigrantes na compra de seus lotes coloniais. Assim, dos nove filhos de Antô-

nio Fialho de Vargas e sua esposa Maria Inácia da Conceição, fundadores da Colônia dos Conventos, dois se tornaram sacerdotes jesuítas e três filhas, religiosas. Foi no sobrado deles, sobre o alto do paredão, atual bairroCarneiros, que o jesuíta padre Inácio José Kellner, de 9 a 11 de novembro de 1860, rezou missas, fez batizados e casamentos. Incentivou um grupo de pioneiros a fundar a Comunidade São José, no atual bairro Conventos, cuja primeira capela foi inaugurada em 1870. Havia então na Colônia dos Conventos em torno de 140 católicos, correspondendo a 62% 1ª igreja evangélica do estado, construída em Campo Bom 1ª Igreja Matriz Santo Inácio, de Lajeado. Depois de fazer registros paroquiais em Gravataí, o padre Kellner visitou a nova comunidade de São Vitor, em Novo Paraíso, onde encontrou vários migrantes que foram seus paroquianos em São José do Hortêncio. Depois dessa primeira visita do padre Kellner, se multiplicaram os atendimentos. Foi fundada a freguesia de Santo Antônio em Estrela, em 1873. A igreja matriz iniciou pequena, com torre de madeira. Em 1879, foi ampliada em torno de 117 metros quadrados. A Paróquia de Santo Inácio em Lajeado foi instalada em 1881. A construção iniciou em 1874, para servir de capela. Em 1881, foi ampliada em forma de T para servir de igreja matriz. Também a igreja evangélica organizou suas comunidades. O registro de batismo evangélico mais antigo, encontrado no Vale do Taquari, está nos livros paroquiais de Conventos, onde o pastor itinerante Philipp Andreas Weber batizou Jacob Scherer Filho, em janeiro de 1861, na Colônia de Conventos. Era filho do pioneiro Jacob Scherer e de Catharina Weide. A comunidade evangélica de Estrela foi oficialmente organizada em 1873. Depois dos pastores itinerantes Oto Recke e Filipe André Weber, mais diuturnamente vinha atender o pastor Wilhelm Kleingünther.


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Escolas comunitárias às crianças

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nquanto novos imigrantes se distanciavam de São Leopoldo para abrir outras linhas coloniais, enfrentavam índios e animais selvagens, outros se preocupavam com a desastrada política de Dom João VI de ter anexado o território do Uruguai ao Brasil, denominando-a Província Cisplatina. Para garantir o domínio, o filho imperador Dom Pedro I precisou reforçar o minguado Exército brasileiro com jovens imigrantes. Foram incorporados para lutar pelo Brasil, em 1825, incentivados pelo líder da Colônia de São Leopoldo Daniel Hillebrand. Entretanto, o maior problema dos pioneiros imigrantes era a escolaridade dos filhos. Como ainda falavam apenas a língua alemã, não poderiam esperar uma iniciativa do governo imperial para construir uma escola para imigrantes em São Leopoldo, muito menos uma escola onde aprendessem a falar a língua portuguesa. A iniciativa de construir escolas com o próprio suor partiu dos pais. “Onde havia um homem ou uma mulher de mais idade, impossibilitado de trabalhar na roça e que sabia ler e escrever melhor do que os demais, a eles os moradores mandavam seus filhos. No início, para alguns meses, mais tarde, por um ano ou mais. Foi assim que surgiram as primeiras escolas” , escreveu o padre Theodoro Amstad em seu livro Cem Anos de Germanidade no Rio Grande do Sul 1824-1924. Só no primeiro grupo de pioneiros, em torno de 20 crianças já faziam os pais pensar em escola. Na terceira leva, semanas depois, o navio Germânia trouxe mais 32. Esses números aumentavam rapidamente. Era preciso encontrar uma solução, mesmo que fugisse de qualquer formalidade legal, mas apenas ajudasse os filhos a aprender a escrever, ler, fazer contas, receber e responder cartas, cantar

Traço da identidade dos imigrantes, estilo arquitetônico enxaimel é visto em várias cidades da região

o total de 23.732 estudantes. São números levantados pelo padre Teodoro Amstad, até o ano de 1922, em livro já citado.

Primeiras escolas no Vale do Taquari

Primeira escola evangélica no RS foi construída em 1828

e fazer algumas habilidades domésticas. E claro, como efeito, aprender o catecismo e conhecer a história sagrada da Bíblia. Estabelecia a legislação da época: que a instrução pública deve ser obrigatória a todos os pais de família a fazerem os filhos frequentarem as escolas de idioma nacional, sem que possam ser admitidos em ensinação de outro idioma sem que saibam ler, escrever e pelo menos as quatro operações de aritmética, na linguagem do país. E que nas escolas particulares de meninos não possam

ser admitidas meninas e que a mesma obrigação que têm os professores públicos de irem à missa com seus alunos, tenham igualmente os mestres particulares assim como de não darem escola em dias santos e de festas nacionais. Sabe-se que nos primeiros cem anos da colonização no RS, em 38 comunidades católicas, foram abertas 310 escolas, com 13.463 alunos. Em 41 comunidades evangélicas, foram abertas 300 escolas, com 10.366 alunos. Totalizando, os imigrantes abriram 610 escolas confessionais, para atender

A colonização no Vale do Taquari iniciou em Lajeado em 20 de março de 1855, quando Antônio Fialho de Vargas inaugurou seu sobrado sobre o paredão, na margem direita do Rio Taquari, atual bairro Carneiros. Como ele teve nove filhos, sua esposa Maria Inácia foi a primeira educadora e alfabetizadora. Depois, prosseguiam os estudos em Taquari, na escola de Manuel de Azambuja Cidade, que tinha em torno de 60 alunos, por volta de 1850. A colonização em Estrela iniciou em outubro de 1855. Para construir sua fama de 1º lugar nas estatísticas com menor número de analfabetos do Brasil – segundo Rudolfo Maria Rath em O Paladino, de julho de 1939, a comunidade local iniciou cedo a abertura de escolas comunitárias, desde a fundação da Picada Novo Paraíso. Como grande parte do Arqui-

vo Municipal foi destruída depois de 1973, não há documentos. A história está, entretanto, nos relatos dos descendentes para informar com segurança que os primeiros pastores e padres tiveram a decisiva influência de incentivar as aulas aos primeiros colonizadores a oferecer aos seus filhos. Não havia, contudo, grandes preocupações com as formalidades de cadernos de chamada, provas e demais requisitos formais de uma escola. Conforme os poucos documentos registrados, consta como a mais antiga escola particular evangélica de Canabarro, hoje bairro de Teutônia. Na época, em 1869, pertencia a Estrela, que ficava junto à casa comercial de Carlos Emílio Arnt, o segundo diretor da Colônia de Teutônia. Vindo especialmente da Alemanha para lecionar, Ernst Jahnfrüchter foi professor e pastor, abrindo uma escola também em Languiru, no ano seguinte. Ao regressar, em 1873, para a Alemanha, foi substituído pelo pastor Ferdinand Häuser. São informações do professor Friedhold Altmann. A Escola Paroquial São Luís é a mais antiga da comunidade católica de Estrela, aberta em 1875, sendo Jacó Lorschieder seu primeiro professor, indicado pelos padres jesuítas, logo após a posse do pároco, em 24 de julho de 1873. Para procurar os documentos de Lajeado antes da sua emancipação, seria correto recorrer aos arquivos de Estrela, mas lá não há nada. Olhando-se no Arquivo dos Padres Jesuítas, em Porto Alegre, as crônicas das Cartas Ánuas fazem referências aos terrenos que os padres adquiriram de Antônio Fialho de Vargas para a ampliação de capela a ser transformada em igreja matriz, em 1881 e construir nova escola. Ora, supõe-se existir uma “velha escola”, que existia ao lado da “velha” capela, ambos de 1872 ou 1873, onde hoje está o Colégio Estadual Presidente Castelo Branco.


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Mucker para tratar os males do corpo e alma

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o serem estabelecidas as primeiras colônias no estado, iniciaram os primeiros conflitos. Um dos mais conhecidos é o do episódio mucker. Trata-se de um movimento ou conflito social na região colonial do Ferrabrás, no município de Sapiranga, na época chamado Fazenda Pai Eterno. O casal João Jorge Maurer e Jacobina Mentz era conhecido no vilarejo pelo curandeirismo. Os conhecimentos do rapaz vinham do quartel, onde aprendeu a enfermagem. Ele ajudava a comunidade local, atraindo principalmente as pessoas mais necessitadas. Na época, a falta de médicos e remédios obrigava muita gente a caminhar por quilômetros em busca de atendimento. Nas receitas, chás e ervas. Ganhou fama de wunderdocter (doutor maravilhoso). A mulher Jacobina tinha tendências ao misticismo, interpretando manifestações da natureza (raios, trovões, enchentes e secas) como a Ira de Deus. Quedas, machucados e mortes ganhavam como explicações a revolta de Deus. Muitos diziam que ela sofria de perturbações psicológicas. Por vezes, entrava em crise, com sinais de sonambulismo. Então citava passagens bíblicas. A mistura de curandeirismo e misticismo religioso, em meio a uma colônia pobre, distante e abandonada, sem professores, pastores e padres, provocou em torno da casa dos Maurer um centro de novas esperanças para a saúde, a família, a sociedade, desde 1868. Talvez conduzida pelo seu cunhado, o pseudo-pastor e professor João Jorge Klein, Jacobina escolhia e interpretava versí-

sos e cumpriram pena na prisão. Parte dos remanescentes migrou para Pirajá, em Nova Petrópolis. Outra fugiu para as florestas do Vale do Taquari, especialmente em Linha Bastos, Marques de Souza, a partir de 1876. Algumas famílias ainda migraram para Picada May. Muitos refugiados do conflito foram viver em Fuchs-Eck, em Travesseiro, Bela Visa do Fão, Roca Sales e Teutônia. Depois do episódio, essas famílias se sentiam acuadas e perseguidas. Formou-se um tipo de preconceito contra os muckers. O ódio entre os grupos perdurou por alguns anos, razão pela qual se tornou tabu. Várias publicações foram realizadas sobre o episódio. A última foi o filme A Paixão de Jacobina (2002), criticada por historiadores por haver vacilos históricos. Segundo registros históricos, Filipina Maurer, irmã de Jacobina Maurer, foi empregada doméstica na casa comercial de Carlos Jaeger. Tinha 20 anos quando foi presa, em 19 de julho de 1874. Cumpriu pena e se

Sepultura de um dos seguidores de Jacobina, Jacó Fuchs

culos da Bíblia para acertar no receituário do marido, para consolar aflitos, resolver problemas. Com os anos, enfim, instituiu uma nova “religião”. No início, pregava a vaidade, orgulho e apego dos bens. Verberava uma série de comportamentos, especialmente de autoridades policiais, religiosas, educacionais. Com o tempo, proibia votar nas eleições, frequentar bodegas ou escolas, capelas e igrejas, onde estavam os maus políticos, os homens de negócio, os enganadores da cultura e da religião. Logo adquiriu adversários, que acusavam de charlatão. Jacobina atraía a raiva dos que chamava de spötter, isso é, debochadores: delegados e comissários, comerciantes, caixeiros-viajantes, professores, padres

jesuítas e pastores evangélicos, e até da imprensa, principalmente o empresário, político e jornalista teuto-brasileiro Carlos von Koseritz. As intrigas dos dois grupos, mucker e spötter, no decorrer dos anos, chegaram fatalmente a brigas e provocações. Depois, vieram vinganças e ataques, de ambos os lados, como incêndios de casas, destruição de bens ou mesmo linchamento de pessoas. As prisões e perseguições duraram meses. Tudo terminou com a intervenção do Exército.

Jacobina Mentz Maurer

A fuga para o Vale do Taquari Poucos conseguiram fugir do ataque final do Exército. Alguns dos fanáticos foram pre-

Casal João Jorge Maurer e Jacobina Mentz

mudou para Marques de Souza, onde viveu até 18 de abril de 1891, quando morreu. Na região de Forqueta, Arroio do Meio, iniciou uma família cujos fatos levaram a mais um crime da irracionalidade humana. João Jorge Fuchs Filho se casou com Cristina Noë, em 1889. Um dos irmãos, Jacó, se mudou para Marques de Souza e casou com Maria Renner, em abril do ano seguinte. O outro irmão Carlos foi para Forqueta, onde criou os irmãos menores e a irmã Elisabeta Fuchs casou-se com Jacó Gräbin, um remanescente mucker, oriundo de Linha Bastos. Eles tinham dois filhos: Jacó e Adão. Jacó foi vítima injusta de linchamento praticado por agricultores em 1898. Fora acusado de um crime cometido por Albino Schröder, músico e animador de bailes do distrito de Tamanduá. No dia 26 de dezembro de 1897, no intervalo de um baile, Schröder foi para casa e degolou a mulher Catarina Sofia Regelmeier e os filhos Luisa Paulina Teolina e Albino. A intenção era casar com uma moça mais jovem. Ele deu a culpa do assassinato aos muckers de Linha Bastos. Por essa razão, os colonos se revoltaram e lincharam Filipe Noë, Jacó Gräbin e os filhos Jacó e Adão, em 3 de janeiro de 1898. Anos depois, quando convalescia, Albino confessou a verdade. Fatos intensos como esses eram escondidos. Falta registro no relatório da Intendência, no Registro Civil de Óbitos, bem como nos livros paroquiais evangélicos. O único vestígio foi o sepultamento de Catarina Sofia. Ao que consta, Luís Künzel conseguiu fugir pelos matos de Bela Vista do Fão e passou a usar outro nome. João Jacó Fuchs, mais conhecido por Mule-Jacob, foi o jovem protagonista no episódio mucker. Antes do massacre final, fugiu para o mato e se refugiou nas florestas da região do Vale do Taquari, até se estabelecer no Mucker-Eck, ou Linha São João, em Travesseiro. Morreu em dezembro de 1908. Sua lápide está na propriedade de Arcildo Bruch.


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Festas populares dos imigrantes

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riundos de várias regiões, os imigrantes tinham na bagagem uma riqueza cultural incalculável, como língua, escola, modos de se trajar, alimentar, festas, costumes, fé, enfim, tradições. No livro Reminiscências, o professor Arno Sommer escreve sobre domingos de festas na colônia. As dificuldades iniciais forçaram a união de todos para um bem comum. O importante era que havia um ambiente de paz espiritual e de segurança. Por volta de 1888, algumas famílias apreciadoras de música tinham gramofones, raros na época. Em outras, pais e filhos tocavam instrumentos de sopro como gaita de boca. Formaram-se conjuntos musicais, compostos em geral por bandoneon, violino e flauta, que animavam as festas de aniversário, batizados e casamentos. O repertório diminuto era compensado pelo ardor com que procuravam animar os convidados, tocando e repetindo as famosas peças da época que todos acompanhavam em alemão ou traduzidas. Os músicos se reuniam para ensaiar e formar até uma orquestra. As bandinhas formaram o elemento fundamental na vida social da colônia. O canto coral foi um dos elos mais importantes na preservação da língua e cultura dos nossos antepassados. Com a criação das ligas de cantores e clubes, os corais tiveram uma grande influência na vida das comunidades principalmente junto às igrejas. Historicamente, podemos dizer que o canto coral veio junto com os imigrantes. Reuniam-se em festas no Natal, Páscoa, dia dos padroeiros e também em datas tristes, na despedida de entes queridos. Trabalhando de dia, ensaiavam canto e música à noite, quando havia luar. Animavam cultos, missas, devoções dominicais e festas comunitárias. Em Teutônia, o professor Heinrich Friedrich

desde 1966 tenha esse nome, ininterruptamente, completando meio século, sempre no mês de maio. Quando o vereador Waldemar Laurido Richter foi secretário de Cultura em Lajeado, pelo centenário do município, em 1991, com seus dois filhos, fundou grupos folclóricos. Ainda hoje, como prefeito de Forquetinha, mantém grupos na cidade. Deutscher Sänger Bund (Teutônia). Sociedade Cantores Aliança

Festa da cumeeira Os imigrantes construíam suas casas em mutirão, to-

dos ajudando o carpinteiro. A casa não era mera construção predial, mas o lar da família, destinado às gerações que lá nasciam e viviam. A pedra fundamental era colocada pelo dono que martelava o primeiro prego. Ao chegar à cumeeira, acontecia a festa de agradecimento a todos que ajudaram na edificação. No topo da construção, colocava-se uma pequena árvore enfeitada com fitas ou uma coroa (richtkranz). Seguia-se um dia de festa.

Oktoberfest

Foto mostra Schützenverein de Linha Clara, que foi fundada em 1891

Wilhelm Sommer dava aulas durante o dia. À noite, regia seis corais, com ensaios de segunda a sábado. No livro Colonização de Teutônia e Corvo, Ruben Gerhardt resgatou uma foto da Sociedade Cantores Aliança, primeira sociedade de 32 cantores masculinos da Linha Frank, fundada em 1877 e ainda em atividade.

Danças folclóricas

A cultura do canto coral é uma das contribuições dos imigrantes para formação da identidade regional

As danças folclóricas existem há muito tempo em cidades do RS, SC e mesmo em SP. O Grupo de Danças Folclóricas de Estrela é o mais antigo do Brasil em atividade ininterrupta, fundado em 1964. Dividido em 12 categorias, é um dos responsáveis, por meio da dança, pela forte identificação étnica alemã do município. Além da Alemanha, já se apresentou em vários países e cidades brasileiras. Em Estrela, também ocorre o Baile do Chucrute desde 1964, embora

A mais famosa de todas as festas alemãs é a Oktoberfest (Festa de Outubro), que se realiza anualmente, desde 1810, em Munique, Alemanha. Sua origem é de cunho religioso, baseada na Bíblia, a solenidade com as primícias nas colheitas. No RS, a Oktoberfest foi iniciada em 1911 pela Turnerbund, hoje Sogipa. Hoje ocorre nos estados da Região Sul. As mais conhecidas do RS são de Santa Cruz do Sul, Igrejinha e Santa Rosa. Em Santa Catarina, a mais divulgada é a de Blumenau.

Schützenfest A Festa do Rei do Tiro tem origem na Alemanha, nos séculos 13 e 14. Essa tradição veio junto com os nossos imigrantes, surgindo o schützenverein (sociedades de tiro ao alvo). Anualmente, após a realização, quem fizer o maior número de pontos ou o ponto mais elevado é coroado rei. A Festa do Tiro ou Tiro Rei, de tradição alemã, que ocorre todos os anos na Sociedade Cultura e Recreativa de Linha Clara, em Teutônia, foi fundada em 1891. Schützenverein eram sociedades esportivas para a prática de tiro ao alvo. Suas fontes desapareceram no período da campanha nacionalista da II Guerra Mundial, pois a polícia getulista identificou a sociedade como corporação paramilitar nazista. Lageadenser Schützenverein ou Sociedade Lajeadense de Tiro tem mais de um século de história, talvez criada em função da Revolução Federalista de 1893-1895. Na assembleia de 16 de dezembro 1905, sob a presidência de Carlos Jaeger, elegeu-se nova diretoria, assim constituída: presidente, Frederico Jaeger; vice-presidente, Luís Filipe Hexsel; 1o secretário, Frederico Schardong Filho; 2o, Guilherme Franke; tesoureiro, Carlos Spohr Filho – conforme consta em O Alto Taquary, de 24 de dezembro 1905. É uma das precursoras do atual Clube Tiro e Caça.


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Kerbs do passado no Vale do Taquari

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o primeiro jornal de Lajeado, O Alto Taquary, de 8-1-1905, há o anúncio do kerb de São Caetano, em Arroio do Meio, promovido por “Krambunho”, apelido de Filipe Scherer Sobrinho. Há menção de kerb em Arroio Alegre, em 30-1-1905, promovido por J. Hamester. Em Encantado, quando segundo distrito de Lajeado, o empresário João Ferri ampliou sua casa comercial para instalar um salão de festas e bailes. Entre os eventos, destacava-se o Kerb no Encantado, como em 29-6-1905 – conforme o mesmo jornal, de 25-6-1905. Nas edições seguintes, há outras festas de kerb. Até onde a memória alcança, em Lajeado, o kerb sempre foi festejado. Encontramos no jornal A Semana, de 17-71933, a notícia de que “a Paróquia de Santo Inácio de Loyola, desta vila, comemorará mais uma festa do seu padroeiro a 6 de agosto próximo vindouro, reinando para esta tradicional festa bastante animação. O C. S. Lajeadense que realizará os Kerb nos dias 6, 7 e 8 está tomando providências para revesti-los da maior animação. A Sociedade Ginástica local, por motivos de força maior, irá levar a efeito os seus “Kerb” em as noites de 30 e 31 do corrente.” Também os evangélicos realizaram suas festas de kerb por toda a parte. O kerb em Estrela era festejado sempre no fim de semana mais próximo de 13 de junho, Dia de Santo Antônio, padroeiro do município. Em Novo Paraíso, os bailes de kerb ocorriam no Salão de Pedro Petter, como nos dias 21, 22 e 23-10-1928 – conforme O Paladino, de 20-10-1928. Em Canabarro, Teutônia, as três alegres noitadas de kerb eram no último fim de semana de janeiro, nos dias 26, 27 e 28 – conforme O Paladino, 18-1-1941, com bailes no salão de Guilherme Schneider Sobrinho. Na semana anterior, era feste-

jado em Bom Retiro do Sul. Em Cruzeiro do Sul, era comemorado na segunda semana depois da Páscoa. O kerb de São Miguel, de Linha Sítio, era no primeiro fim de semana depois de 29 de setembro, Dia de São Miguel.

Kerb é a festa mais antiga A palavra kerb deriva da expressão alemã kirchweihfest, que se traduz como festa de inauguração da igreja. A palavra kerb vem do alemão kerbe e seu verbo kerben significa corte e entalhar. Ainda no século 18, em várias regiões da Alemanha, quando era inaugurada uma igreja ou capela, no portão de madeira da entrada principal, erguida em forma de arco, se fazia um entalhe ou um corte, repetido a cada ano, no seu aniversário, festejado pela comunidade e vizinhança. Assim, se sabia quantos anos tinha a igreja, desde a inauguração. O hábito de festejar o aniversário de inauguração ou do santo padroeiro também foi trazido pe-

Festa familiar de Kerb na casa de Balduíno Pilger, lá por 1940, em Nova Berlim da Forquetinha, em Canudos do Vale, hoje Baixo Canudos

los imigrantes. Conforme o pastor evangélico brasileiro, aposentado e residente na Alemanha, Ernesto Schliepper, não só os evangélicos luterano-reformados celebravam o kerb, como também os católicos. “Na Baviera, hoje, se celebra

no terceiro domingo de outubro o Dia da Igreja, em alemão kirchtag. Este foi introduzido com intuito de aglomerar em uma data as diversas festas de kerb, se bem que se mantêm os kerb no dia do padroeiro da igreja/capela ou na data de consagração do templo.” O kerb mais antigo que se conhece no Brasil é festejado em Dois Irmãos, cujos primeiros imigrantes zarparam do porto de Hamburgo em 1827 no veleiro Cäcilia. No Canal da Mancha, o navio sofreu grandes avarias em uma tormenta, conta a pro-

No Vale do Taquari, tanto evangélicos quanto católicos realizavam os bailes de kerb em outubro

fessora Maria Clarice Arandt. Segundo ela, quando o comandante julgou a embarcação perdida, pôs-se a salvo com a tripulação em dois botes salva-vidas deixando os pobres entregues a seu destino. “O navio já adentrava para um dos lados e os ocupantes viam a chegada da hora derradeira, quando um dos imigrantes de nome Altmayer propôs que todos fizessem a promessa de que, caso fossem salvos e aportassem no Brasil, se consagrasse esse dia de suas chegadas como feriado oferecido ao santo do dia e que tal costume permanecesse pelos anos afora, de descendente em descendente. E Deus atendeu a essa oração de modo notório.” Ao fim, o navio cada vez mais inclinado para o lado pode se erguer novamente. Philipp Schmitz sugeriu: ‘Vamos tentar cortar os mastros.’ O plano foi aceito e, como bons carpinteiros, Schmitz e seus ajudantes, em pouco tempo, derrubaram os mastros. O navio, agora, podia erguer-se novamente, mas era um destroço, pois flutuava sem mastro nem vela. Em cima desse pedaço de navio, os náufragos ainda vagaram por três semanas em águas de alto mar, até que um navio inglês os encontrou e levou-os para o porto mais próximo na Inglaterra, Plymouth. Ali, eles permaneceram cerca de dois anos e já estavam quase se dispondo a ficar para sempre na Inglaterra. Conta-se que, certo dia, estando as mulheres alemãs a lavarem a roupa na praia, passou por ali o capitão do navio Cäcilia. Sob o comando da firme mão da senhora Bohnemberger, todas as lavadeiras puseram-se a surrar o capitão com a roupa molhada, provocando riso dos ingleses que a isso assistiam. Por essa época, da estada dos alemães na Inglaterra, (...) um novo navio foi fretado, a fim de realizar a travessia até o Brasil. Foi nesse navio que finalmente aportaram aqui, em 29 de setembro de 1829, os imigrantes vindos de Treveris. Na Baumschneiss, onde muitos fixaram residência, ainda hoje é festejado como feriado o dia 29 de setembro, por meio de michelskerb, ou Kerb de São Miguel.


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Brummers foram fermento cultural

O

início das ameaças de guerra no Rio da Prata coincidiu com o fim da Primeira Guerra do Schleswig, que deixou um grande contingente de soldados do exército de Schleswig-Holstein disponível. Em 6 de setembro de 1850, o gabinete do Marquês de Olinda, temendo uma nova guerra contra o ditador argentino Juan Manuel Ortiz de Rosas, decidiu mandar ao Brasil soldados profissionais de infantaria e artilharia na Alemanha. O coronel Sebastião do Rego Barros foi encarregado de contratar os soldados. O artigo 2º do Contrato dos Legionários recrutados garantia uma área de terra gratuita, de 22.500 braças quadradas de solo fértil, em uma das províncias do Império, de preferência na Província do RS ou de Santa Catarina. Pelo artigo 3º, o governo pagava as despesas de viagem, ida e volta, e uma gratificação de 25 talers prussianos, pagos na hora da partida do navio, depois de deduzidas as despesas com o embarque. Embarcaram para o Brasil 12 companhias, total aproximado de 1, 8 mil homens e começaram a chegar ao Rio de Janeiro em junho de 1851. Cada companhia consistia de um capitão, um tenente, dois alferes, um primeiro sargento, dois segundo sargentos, um furriel, seis cabos, seis anspeçadas, dois tambores e 140 soldados. No Brasil, foram recebidos com grandes honras. A tropa tinha elementos muito heterogêneos. Os oficiais tinham grandes rivalidades entre si, que foram se aprofundando durante a viagem até a frente de batalha no sul do Brasil. Além disso, vários recrutas promoviam frequentes arruaças. Os soldados alemães acamparam em Pelotas, em 6 de julho de 1851. Apesar do treinamento militar, os soldados não conheciam a língua,

alimentação, condições meteorológicas, falta de estradas, pontes e, especialmente, a tática militar e sua integração com o Exército brasileiro. As modernas carroças com canhões, trazidas da Áustria, para nada serviam nos banhados da região. A decisão tinha sido tomada por gente de gabinete do Rio de Janeiro, que nada entendia das características bélicas da região de campanha. Afinal, na Batalha de Monte Caseros, em 3-2-1852, apenas 80 brummers estavam na retaguarda do Exército brasileiro. Três se feriram. Rosas embarcou em um navio inglês, em fuga para Londres, antes do corneteiro dar o sinal da derrota argentina. A guerra logo acabou e os soldados foram desmobilizados. A maioria só usava roupas militares. A muito custo, conseguiram comprar roupas civis ou mesmo usadas. Muitos dos soldados da Legião Alemã preferiram ficar no Brasil. Receberam o apelido brummer, o que em alemão sig-

Franz Lothar de La Rue

nifica zangão e resmungão, se sentindo mal pagos. O primeiro soldo foi em moeda de cobre, que eles faziam zunir no balcão das bodegas. Outros optaram por receber terras em regiões distantes, entre as quais, Estrela. De sentido inicialmente pejorativo, os brummers começaram a se orgulhar do apelido, por sentirem que eram líderes e pioneiros em tudo. Nos quartéis alemães, tinham aprendido rudimentos em enfermagem, construção, carpintaria, ferraria, funilaria. Os brummers foram imigrantes melhor preparados, irrequietos, politizados, inclinados à iniciativa própria, como que o fermento do progresso no meio em que viviam. Além das profissões mencionadas, vários foram professores, pastores, músicos, agrimensores, construtores de moinhos, comerciantes, navegadores. Alguns fizeram carreira política, sendo o mais conhecido o jornalista, professor, advogado e mais tarde deputado Carlos

Susana e Júlio Jorge Schnackx

Von Koseritz, que se destacou na defesa dos direitos políticos dos imigrantes. É homenageado com nome de rua em Lajeado.

Os mais notáveis No Vale do Taquari, os brummer mais notáveis foram: Júlio Jorge Schnack, Gustav Heinrich Göllner, capitão Pedro Schneider, Conrado Frederico Sudbrack, João Diderico Hauschild, Carlos Oto Mieth, Ernesto Bechlin, Pedro Jorge Kölln e Franz Lothar de la Rue. No cemitério evangélico de Novo Paraíso, está a sepultura de Wilhelm ou Guilherme Heydt, um dos pioneiros na Colônia de Estrela. O Alto Taquary, de 16-7-1905, noticiou a morte, no dia 4 de julho, do “velho” Wendt, sem mencionar o prenome, com 84 anos de idade, lembrando ter sido um brummer, morador na Linha Geraldo. O Schützenverein Germânia o homenageou com três salvas de tiros sobre a sepultura. Sem dúvida, o mais notável de todos foi Franz Lothar de la Rue, primeiro diretor da Colônia de Teutônia. Morreu com 47 anos, em 11- 7-1871, em Porto Alegre, por ter contraído doença, adquirida no período da colonização. Um dos brummers que mais se destacou em Lajeado foi Julius Georg Schnack, líder comunitário em Estrela, Lajeado e Arroio do Meio. Nasceu

em 16-2-1830, em Schleswig-Holstein, Alemanha. Preferiu ficar no Brasil e aceitou um pedaço de terra em Novo Paraíso, Estrela, onde foi auxiliar de agrimensor. Em 1857, casou-se com Susana Carlota Köhnlein. Depois, se mudou para São Caetano, então Lajeado, onde participou da campanha emancipacionista. Candidato a conselheiro municipal nas eleições de 15-10-1891, obteve 183 votos. Nas eleições de 20-7-1896, obteve 666 votos, escolhido para presidente da mesa, na 2ª legislatura. Em 3-4-1897, renunciou o mandato, por motivos de doença. Morreu em São Caetano, em 19-3-1924, e a mulher, em dezembro de 1926, estando na lápide a gravação Hier ruh’n zwei Müde (Aqui jazem dois cansados). Em Lajeado, viveram vários brummers: Ernesto Ludovico Müzell foi contratado para medir os lotes coloniais na Fazenda dos Conventos (1853-1855) e em Forquetinha (1858). Conrado Frederico Sudbrack abriu casa comercial em Conventos. Ernesto Germano Döbber se dedicou ao magistério e foi pastor evangélico em Conventos e Forquetinha. Em Conventos, também viveram João Diderico Hauschild, Carlos Oto Mieth, Pedro Jorge Kölln, Augusto Gutjahr, pedreiro, e Ernesto Bechlin, agricultor.


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