Jornal Laboratório da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Facom/UFBA) Nº 21 - Agosto de 2009
VILA BRANDÃO
DROGAS
CIDADE
Davi contra Golias no PDDU
Templos e Clínicas medem eficiência
Rios urbanos agonizam
Pág. 04 e 05
Pág. 14 e 15
Pág. 21 a 23 Victor Soares
O luxo e o lixo: Catadores desafiam apartheid no Cidade Jardim
Pág. 16 a 18
Expediente/ Editorial
Jornal Laboratório da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia Endereços: Rua Barão de Geremoabo, s/n, Campus de Ondina CEP. 40.170-115 Salvador/Bahia jornaldafacom@yahoo.com.br Editoração eletrônica Fernando Duarte Assistente de fotografia Frederico Fagundes Secretária de Redação Camila Queiroz Subeditora Gabriela Vasconcellos Editor Responsável Malu Fontes, professora DRT-BA 1.480 Produção da disciplina Oficina de Jornalismo Impresso, semestre 2009.1: Ana Margarida Almeida, Camila Queiroz, Carol d’Avila, Frederico Fagundes, Gabriela Vasconcellos, Giacomo Degani, Guilherme Vasconcelos, Iali Moradillo, Joseane Bispo, Julien Karl, Livia Montenegro, Luis Fernando Lisboa, Maitane Roa, Mariana Almofrey, Mariana Sebastião, Nelson Oliveira, Paloma Ayres, Paula Amor, Paula Boaventura, Rafael Freire, Raiza Tourinho, Rebeca Caldas, Renato Cordeiro, Rodrigo Fiusa, Verena Paranhos, Victor Gazineu, Victor Soares Diretor da Facom (2005-2009) Professor Giovandro Ferreira Reitor da UFBA (2006-2010) Professor Naomar Almeida Filho Tiragem: 5.000 exemplares
Jornal Laboratório - FACOM/UFBA - Agosto de 2009
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Cidade, lixo e conflitos
mbora nunca tenha se falado tanto em tolerância, como conceito, no campo das ciências sociais, paradoxalmente, a sua antítese nunca foi tão comum na vida de verdade. Nas ruas das grandes metrópoles, nas relações entre os países e nas formas como são implementadas políticas públicas que vão de encontro às práticas sociais, o signo da intolerância e do conflito é evidente. Nesta edição, o Jornal da Facom traz como tema de capa o conflito estabelecido em torno de um dos maiores desafios das cidades: o lixo. Enquanto a imprensa nacional denuncia o absurdo inaceitável da exportação ilegal do mais desqualificado tipo de lixo da Inglaterra para o Brasil, não custa lembrar que esse extrato marcador da vida contemporânea, os dejetos, gera conflitos mais corriqueiros e vulgares na próxima esquina. Em um dos bairros de classe média alta de Salvador, o Cidade Jardim, moradores e catadores de lixo batem boca e trocam olhares recíprocos de ira por conta do lixo cotidianamente produzido pelos moradores e revolvido pelo exército de pessoas que vivem de recolher dele algo que seja trocável por algum
dinheiro. Do outro lado da Cidade, tendo como cenário o pedaço de terra habitado há décadas por gente pobre e espremido entre a Baía de Todos os Santos e os endinheirados da Ladeira da Barra, tem lugar um outro conflito. As famílias da Vila Brandão, uma vila de gente pobre encravada entre o Iate Clube da Bahia e as encostas da Ladeira da Barra e do Corredor da Vitória enfrentam os interesses poderosos dos empresários da construção civil e das autoridades públicas municipais hoje imbuídas em redesenhar o traço urbanístico de Salvador no novo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Salvador, o PDDU, uma espécie de mapa que diz o que pode e
o que não pode ser mantido ou construído na cidade. A proposta pública é varrer do lugar a Vila Brandão, um nicho de baixa renda diante do poder do dinheiro que não perdoa o fato de ver o mar lambendo uma área tão nobre ocupada por desempoderados. Para além dos conflitos entre aqueles que têm poder e quem não tem voz nem vez, a cidade segue seu fluxo urbano cortada por canais de água que antes se encaixavam no conceito de rios e hoje, sobretudo em função do lixo, são esgotos correndo a céu aberto sem que se vislumbre qualquer ação que vise ressuscitá-los. Os rios moribundos estão por todas as áreas de Salvador, nobres e periféricas. Mas, como nem tudo é conflito e estagnação, a criatividade é uma bênção e um luxo. Graças à sua, Maurício Lídio, aluno da Facom, acaba de ganhar dois prêmios nacionais do segmento do audiovisual. Esses e outros temas, como a vulnerabilidade do Corpo de Bombeiros em Salvador, o mercado do sexo no homossexualismo masculino e as estratégias usadas para combater a dependência química, da religião às clínicas de desintoxição, são abordados nesta 21ª edição do JF.
De novo sem ‘i’ A equipe do JF informa aos seus leitores, mais uma vez, que a ausência da vogal ‘i’ em muitos dos textos de suas edições em nada refere-se a eventuais erros de digitação ou diagramação. A razão é um problema técnico da gráfica responsável pela impressão do jornal, que provoca a supressão da letra ‘i’ em grande parte das palavras que a contém.
CIDADE
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Bombeiro desafia sucateamento Falta de equipamentos, número insuficiente de homens, quartéis e orçamento atrelado à PM são maiores entraves Vinicius Campos/LabFoto
Insuficiência e desgaste de equipamentos dificultam a ação dos bombeiros
Gabriela Vasconcellos Livia Montenegro
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ncêndios como os ocorridos em um prédio comercial na Barra e no Instituto de Química da Universidade Federal da Bahia (UFBA) serviram para acender a luz vermelha indicando a vulnerabilidade do corpo de bombeiros da Bahia, de sua estrutura insuficiente para incêndios de grandes proporções e, sobretudo envolvendo substâncias químicas e tóxicas. Atualmente, dos 27 estados brasileiros, em apenas três o Corpo de Bombeiros é incorporado à Polícia Militar, como é o caso da Bahia. Desde 1984, a administração dos bombeiros tornou-se responsabilidade do Comando Geral da PM, que está subordinada à Secretaria de Segurança Pública do Estado. A Bahia conta hoje com uma estrutura de 2.000 bombeiros, sendo que, de acordo com a Convenção da ONU (Organização das Nações Unidas) a relação quantitativa ideal é de um bombeiro para cada 1.000 habitantes. Em uma conta rápida, uma ci-
dade como Salvador, com aproximadamente três milhões de habitantes, necessitaria de 3.000 bombeiros para atender adequadamente a população. Em Salvador há três quartéis de bombeiros, localizados na Barroquinha, na Calçada e na região do Iguatemi. Esse número também é pequeno para atender à demanda da cidade, pois se ocorrer um incidente em bairros distantes, como por exemplo, em Cajazeiras, em horário de tráfego intenso, o acesso rápido é impossível, quando, em emergências dessa natureza a rapidez no atendimento é decisiva. Outro fator que contribui para dificultar a ação dos bombeiros é o fato de Salvador ser uma cidade que cresceu de forma desordenada, sem uma política séria de uso do solo, com encostas cheias de barracos onde dificilmente a chegada dos bombeiros pode se dar. A demora no atendimento constitui-se em uma das principais queixas da população, devido à insuficiência de bombeiros e quartéis na cidade. “A finalidade do Corpo de Bombeiros é extinguir incêndios e intervir em situações nas quais haja pessoas em
risco eminente de vida. A eficiência da ação dos bombeiros está em um tempo-resposta que não deveria ser mais do que cinco minutos”, afirma o Coronel Vasconcelos, há 32 anos no Corpo de Bombeiros. Edifício comercial na Barra De acordo com o coronel, o edifício Farol Praia Center, localizado próximo ao Farol da Barra, não tinha uma estrutura adequada para combater incêndios e a falta de hidrantes dificultou a ação dos bombeiros. Mas, testemunhas do incidente, afirmam que a situação precária da corporação – mangueiras furadas e sem pressão suficiente – retardou a extinção do incêndio. Segundo o coronel, as mangueiras furam todos os dias, até mesmo com os estilhaços que caem dos prédios e não havia pressão porque o prédio não tinha sistema de combate a incêndio por hidrante, o que é obrigatório. Instituto de Química O incêndio no Instituto de Química da UFBA não significou apenas um prejuízo financeiro, profissional, acadêmico e afetivo sem precedentes. Serviu também para mostrar as deficiências do Corpo de Bombeiros. Segundo o professor do Departamento de Físico-Química, Emerson Sales, a corporação não quis admitir que não tinha preparação suficiente para debelar um incêndio daquela extensão, já que envolvia materiais tóxicos e inflamáveis. “Os bombeiros não tinham máscaras, não estavam preparados para lidar com gases explosivos e material inflamável”, afirmou Sales. De acordo com o coronel, não houve falhas na atuação. O que faltou foi uma estrutura necessária para controlar incidentes como o ocorrido. “Se o bombeiro tinha ou não condições, fomos solicitados, chega-
mos lá e extinguimos. Caberia à universidade dispor dos equipamentos necessários para proceder a extinção do incêndio”, afirmou. Ainda segundo o coronel, havia no Instituto alguns extintores, mas foram utilizados de forma imprópria. “Usaram todos os extintores inadequadamente, ou seja, faltou treinamento às pessoas que trabalham no local”. Infra-estrutura precária Em outros estados, nenhuma edificação é liberada sem o aval do Corpo de Bombeiros. Este aval é necessário porque fiscaliza as condições de segurança das novas construções. Em Salvador, o órgão responsável pela liberação dos imóveis é a SUCOM (Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo do Município). A Bahia, segundo o coronel Vasconcelos, é o único estado que não possui Código de Segurança contra incêndios. Este código permite aos bombeiros atuar administrativamente fiscalizando, interditando e coibindo obras que não se adequem às normas de segurança. A aprovação do código de controle de incêndio do estado da Bahia e uma política educacional voltada para a população, no sentido de formar uma consciência preventiva, contribuiria para uma melhor atuação dos bombeiros. A fiscalização das obras proporcionaria uma melhor infra-estrutura na cidade, já que seriam incorporadas normas de segurança desde os projetos, fazendo com que os danos causados em incidentes como os ocorridos recentemente na Barra e no Instituto de Química fossem minimizados. Um maior investimento do estado na corporação também é fundamental, pois esta carece de equipamentos e aprimoramento de sua infra-estrutura.
URBANISMO Jornal Laboratório - FACOM/UFBA - Agosto de 2009
Ameaçada, Vila Brandão resiste Comunidade de Vila Brandão resiste para enfrentar a especulação imobiliária e o novo PDDU Julien Karl Rodrigo Fiusa
Petruska Araujo, uma das lideranças da comunidade. Ainda em maio, outra moradora conhecida como “Nea”, foi a Brasília entregar ao presidente Lula um novo dossiê, agora mais completo, incluindo documentos, fotografias e o vídeo produzido pela moradora Ana Pi, postado no youtube. No site de vídeos, o movimento dos moradores da Vila Brandão está publicizado também em inglês. Talvez por conta disso o episódio já foi, inclusive, tema de manifestações anti-globalização nas cidades de Berlim e Frankfurt, na Alemanha, e em Viena, na Áustria. É importante observar que a comunidade, há algum tempo é um lugar bastante procurado por estrangeiros em temporadas na Bahia, como espanhóis, franceses e alemães, jovens que preferem locais tranqüilos e uma vida comunitária. A presença desses estrangeiros, muitos deles politizados, intensifica a luta contra a desapropriação e promove diversas atividades educativas como idas ao teatro, aulas de dança, saraus e shows para os moradores da Vila. Segundo Ste-
Julien Karl
com ela, grande parte da comunidade não tem consciência política forVila Brandão, localizada mada para lutar na ladeira da barra, habipelos seus direitada por pessoas de baixa tos. “É difícil. renda – apesar de situada nessa Fico e luto nobre região de Salvador – foi porque amo surpreendida no dia 20 de março este lugar”, excom a notícia de que as moradias plica. do local seriam desapropriadas. A principal O Decreto, assinado no dia 19 de dificuldade enmarço pelo prefeito João Henrique contrada pelos (PMDB) e publicado no dia 20 na articuladores do edição do Diário Oficial, anunmovimento tem ciando a expropriação da Vila, sido integrar contempla o novo PDDU (Plano a maioria dos Diretor de Desenvolvimento Urmoradores em bano) que visa reestruturar toda a torno da causa. orla marítima de Salvador. No entanto, Desde o dia da divulgação do aqueles que Decreto no Diário Oficial do muparticipam esnicípio, a população da Vila tem tão conscientes se articulado em atividades para da importância Moradores discutem resistência mobilizar tanto os próprios morade lutar pelo didores quanto a opinião pública em reito de permanecer morando no com uma Medida Cautelar, junto defesa de suas moradias. Foi crialocal. Dessa maneira, as reivindi- à Defensoria Pública, para anular da a comissão Resistência 69 anos cações continuam, não somente os efeitos do Decreto. O defensor Vila Brandão. No dia 23 de março, em forma de manifestações e responsável pela Medida Eduardo uma criança da Vila, Beatriz, teve gritos de socorro, mas também Stoppa, em entrevista cedida ao a oportunidade de entregar um através de eventos JF, afirmou que a ação movida dossiê e uma rosa chamados de “Do- pela Prefeitura contem erros e, da nas mãos do presimingo de Ação Vila forma como foi escrita, não tem dente Lula, que veio Brandão”, já houve possibilidade de seguir adiante. a Salvador lançar o três. Nesses encon- “O Decreto está irregular porque Programa Território tros são realizadas não especifica, individualmente, da Cidadania, no Teatro Castro Alves. A ação movida pela Prefeitura contem erros e da palestras sobre a situ- quais as residências e os moradoNo mês seguinte, forma como foi escrita não tem possibilidade de ação da comunidade res atingidos. Além disso, o poder e atividades de lazer. público é obrigado a deixar bem os moradores fizeseguir adiante. “O propósito não é especificado o que pretende fazer ram interrupções Eduardo Stoppa, defensor público somente resguardar com a área, o que também não foi esporádicas de um a Vila, protegê-la, é feito pela Prefeitura”. Contudo, minuto no trânsito do Corredor da Vitória com car- fani, professora de francês e mo- preciso fazer isso integrando-a conclui o advogado: “nada imtazes e panfletos. “Para nossa sur- radora há um ano, “agora não é com os bairros ao redor mostran- pede que a Prefeitura anule este presa, em vez de reclamar da len- tempo para fazer uma educação do seu valor e beleza”, argumenta Decreto e realize outro”. Em audiência pública realizatidão do trânsito, a população se progressiva. O Decreto de desa- Stefani. A luta já foi parar no Judi- da na Câmara de Vereadores, em mostrou sensibilizada com nossa propriação está aí. É preciso uma causa e nos deu apoio”, afirmou educação de choque”. De acordo ciário. Os moradores entraram abril, a falta de informações no
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URBANISMO
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Julien Karl
pronunciar. A assessoria de imprensa da SEDHAM (Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, Habitação e Meio Ambiente) alegou que Abreu não dispunha e solicitou o envio de perguntas por e-mail. Entretanto, até o fechamento desta edição, perguntas como “O que se pretende fazer em Vila Brandão?” e “Quantas pessoas terão seus imóveis desapropriados na Vila?” estão sem resposta por parte da Prefeitura de SalvaVila tem criminalidade zero e espaços de lazer dor. As únicas aleEmbora parte da população logações e informações obtidas da Secretaria dizem que o Decreto cal não tenha o título de posse da não determina uma desapropria- terra, a maioria paga o IPTU (Imção, mas sim “tornar a área de uti- posto sobre a Propriedade Prelidade pública para fins de desa- dial e Territorial Urbana) em dia. propriação”. Ou seja, não decreta Alguns agitavam seus comprova desapropriação imediata, mas antes de pagamento na audiência permite que ela possa ser feita a e reclamavam por não ter água caqualquer momento, o que poderia nalizada. O IPTU é aplicado pelos criar uma tensão e instabilidade municípios sobre qualquer proainda maiores na vida dos mora- priedade imóvel na zona urbana. No entanto, o dinheiro arrecadadores. do não precisa ser obrigatoriamente aplicado no local onde é cobrado.
Moradora argumenta diante de autoridades
Julien Karl
Decreto e a ausência de um objetivo claro para a desapropriação da Vila ficaram patentes na fala do Secretário de Desenvolvimento Urbano do Município, Antonio Abreu: “Não temos qualquer informação sobre a Vila Brandão. O que temos é uma idéia para o local de realizar um mirante e uma pista de cooper para que toda a população da cidade tenha acesso à bela vista da Baía de Todos os Santos”. Indignado com esta fala, um dos presentes deixou o secretário sem palavras: “Por que não fazer a pista de cooper nas encostas do Corredor da Vitória e aproveitar para tornar público os piérs dos prédios de luxo construídos de forma irregular?”. Ana Patrícia, presidente da Associação de Moradores, argumentou: “Nós merecemos respeito. Nunca tivemos qualquer apoio da Prefeitura. Até a coleta de lixo somos nós que fazemos. Nossa Vila tem criminalidade zero, temos um mirante e ele está aberto à visitação. Muitos já descem lá para ver o por do sol. Cobramos providência e queremos que a Prefeitura vá lá para saber como vivemos e do que precisamos, antes de querer fazer qualquer projeto”. Procurado pelo JF, o secretário Antonio Abreu não quis se
Vila tem 70 anos de história Apesar de se chamar Brandão, a Vila tem uma história com um só protagonista: Seu Antonio Florentino. Para compreender a trama que envolveu a criação do logradouro, o JF entrevistou Adriana, Arivaldo e Alex (filhos do fundador da Vila) e Margarida Sampaio, uma de suas quatro ex-mulheres, além de antigos moradores como Raimunda Souza e “Seu”
Charles. Tudo começou há cerca de 70 anos, quando “Seu” Antônio, como era conhecido, construiu a primeira casa nos paredões da Vitória, recém-chegado de Santo Antônio de Jesus. Florentino havia sido contratado por Osório Brandão, um rico dono de terras, para tomar conta de um terreno. Tempos depois, iniciou a construção das primeiras casas com os túneis de zinco catados depois do carnaval, os vasos de lixo da época, aos poucos, foi ocupando outras áreas e substituindo as primeiras por casas de concreto, dando lugar à Vila Brandão. Quando começou a alugá-las veio a reivindicação e a luta foi parar na Justiça. Antônio Florentino ganhou a batalha judicial e seus filhos e netos torcem hoje para que a Vila repita o feito. “Seu” Antônio faleceu em 2007, com 101 anos. Teve 18 filhos dos quais a maioria ainda vive na comunidade e constitui a espinha dorsal da população local. Fez de tudo: foi Pai de Santo, jardineiro, comerciante, construtor, feirante e um grande empreendedor, dando origem a uma luta que ainda promete vários desdobramentos.
cidade
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Muito além da farinha e do ovo Com pitada de solidariedade, trotes ganham cara nova. Mas será que a iniciativa politicamente correta funciona? Livia Montenegro Luis Fernando Lisboa Mariana Almofrey
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uando começa um novo semestre na maioria das faculdades brasileiras, é dada a largada para a temporada de ‘caça aos bichos’, maneira carinhosa encontrada pelos veteranos para chamar os novos estudantes universitários, os ‘vulgos’ calouros. O primeiro contato dentro da universidade entre estas duas tão distintas espécies se dá no famigerado trote. Ele é considerado por muitos como um rito de passagem que marca o abandono da adolescência e a entrada na dura realidade universitária. Café,
farinha de trigo, ovos e mais alguns ingredientes culinários (ou não) vão parar, como numa receita, misturados na cabeça dos jovens ingressos no meio acadêmico. Mas, nem sempre os trotes ficam somente na área culinária e são limitados a recheios de risadas. Nos últimos anos, o fenômeno tem ido parar nas delegacias. Por isso, é cada vez mais comum nos noticiários ver manchetes em que estudantes universitários são acusados de abusar das tais brincadeiras de mau gosto contra os vulneráveis calouros. Os excessos por parte dos veteranos aliam toques de sadismo e tornam os trotes cada vez mais violentos, humilhantes e desrespeitosos, acumulando-se sob a forma de denúncias Livia Montenegro
Organizadores do trote solidário com o mascote da Hemoba
nas delegacias e instâncias de defesa dos direitos humanos. Uma vez atingindo níveis intoleráveis, algumas instituições reagiram contra essa modalidade de violência universitária. As mortes provocadas por trotes violentos levaram universidades, pais e próprios estudantes a condenarem esse tipo de ação. No Brasil, os mais conhecidos exemplos de episódios aparentemente iniciados como brincadeiras que acabaram malsucedidas e de maneira trágica ocorreram em 1990, quando George Mattos, de 23 anos, calouro do curso de Direito da Fundação de Ensino Superior de Rio Verde, em Goiás, morreu de parada cardíaca quando tentava fugir do trote. Em 22 de fevereiro de 1993, o estudante Edison Tsung Chi Hsueh, que não sabia nadar e foi atirado em uma piscina, morreu afogado, vítima do trote praticado por veteranos do curso de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Em Salvador, no final de 2008, um calouro do curso de Administração da UFBA foi atropelado durante o trote. Devido a casos como esses, a realidade dos trotes começou a ser modificada pelos próprios estudantes. O objetivo era fazer com que a brutalidade de uns não acabasse com a tradição de brincadeiras e festas que muitos recém-chegados na universidade esperam ter. Por todo o país, começaram a ser vistas iniciativas que propõem a realização de modalidades diferentes de trotes, socialmente responsáveis. Elas vêm começando a ganhar espaço, ainda que de forma tímida, e são chamados de trotes solidários. Veterano consciente trata ‘bixo’ como gente Os chamados trotes solidários ou cidadãos visam integrar e conscienti-
zar os calouros. As atividades vão da coleta de alimentos não-perecíveis e roupas a campanhas de doação de sangue para hospitais e centros de saúde. Os criadores desses trotes os enxergam como um modo de estimular os calouros a se descobrirem, desde o primeiro dia de aula, como agentes transformadores e positivamente intervencionistas das práticas sociais, como agentes quebradores de paradigmas para ensinar a aprender diferente, como afirma André Tavares, ex-estudante de medicina da Universidade Federal do Ceará, criador do projeto “Calouro Humano: Ensinando a Aprender Diferente”. Segundo Susy Rocha, atual presidente do Diretório Central de Estudantes (DCE) da UNIFACS, premiada pelo projeto Trote Ambiental & Responsabilidade Social, o trote solidário “pelo menos desperta no estudante um novo olhar sobre os problemas e sua participação em toda essa discussão”. “Além de ampliar a vivência dos recém-ingressos na Universidade, os trotes solidários representam um grande benefício para a comunidade em torno dela”, garante Igor Vasconcelos, estudante de Ciências da Computação da UFBA e envolvido com trotes solidários. “A partir do momento em que tomamos essa iniciativa, mostramos não somente para os calouros que estão chegando, mas também para veteranos, professores e funcionários e a comunidade em geral, que a universidade não é só uma fábrica de conhecimentos. Ela também é um lugar onde podemos desenvolver ideias em benefício de uma comunidade criadora de expectativas de melhorias, em nós universitários”, argumenta. O que se faz por aí... Em todo o país são realizadas ações de conscientização social. Em
CIDADE
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Mariana Almofrey
nos mostram a importância de ações sociais que envolvam os estudantes universitários, além de ser uma forma de protesto aos trotes violentos”. Mas nem sempre é assim. Na UFBA, os alunos do curso de Ciências da Computação realizavam tradicionalmente um trote solidário que consistia na arrecadação de alimentos. Segundo Igor Vasconcelos, de 2007 pra cá esse trote foi se desarticulando, as equipes se desmotivaram para arrecadar os alimentos e nem chegavam mais a completar a arrecadação mínima estabelecida. No segundo semestre de 2008, Igor decidiu, junto com o colega de curso Aton Figueiredo, reformular o trote. Buscaram uma iniciativa que começasse com os calouros de Computação, mas que atingisse toda a comunidade universitária. Dessa mudança surgiu o projeto da campanha “Trote Solidário, Sua vida correndo em outras veias”. Nos dias 15 e 16 de abril deste ano a iniciativa saiu do papel e foi concretizada por cinco estudantes da UFBA e quatro do ensino médio, em parceria com a Hemoba (Fundação de Hematologia e Hemoterapia da Bahia). Qualquer pessoa saudável acima de 18 anos e com mais de 50 kg pôde doar sangue num posto instalado na antiga Biblioteca do Instituto de Matemática, localizada ao lado do PAF I. “Os calouros não tinham desculpas. Com o posto lá, tudo fica mais fácil”, explica a estudante do primeiro semestre de Psicologia, Patrícia Gabriele. Mesmo assim, muito poucos foram doar. Géssica Aquino, caloura do curso de Psicologia da UFBA, acredita que os estudantes do seu curso chegam a universidade com o ideal de perceber as necessidades do próximo. Mas ao ver apenas dois estudantes, de um total de 42 recém-ingressos, indo doar sangue pela causa do “Trote Solidário”, ela admite que ficou frustrada. “Dias antes todos falaram que iriam, mas na hora, nada”, comenta
Géssica Aquino, caloura do curso de Psicologia da UFBA, doa sangue
2000, uma pesquisa realizada pela Fundação Educar D. Paschoal, instituição localizada em Campinas (São Paulo) e vinculada à educação para a cidadania como estratégia de transformação social e econômica, apontava que 54% das universidades brasileiras já praticavam o trote solidário. Essa mesma fundação estimula a prática do trote cidadão, realizando anualmente a premiação “Trote da Cidadania”, em que busca envolver calouros e veteranos nas ações sociais. No ano de 2007, o projeto “Educação - Eu Abracei Essa Ideia”, coordenado por Genilson Coutinho, recebeu a terceira colocação na premiação. Através da realização de um show beneficente para 2.000 pessoas, 1.500 mil cadernos e 2.000 lápis foram arrecadados para creches e escolas, com as quais o DCE da UNIFACS desenvolvia trabalhos voluntários. O Trote Cidadão da Federação Nacional dos Estudantes de Administração (FENEAD) é outro exemplo dessa onda solidária. Criado em 1998 e apoiado pelo Ministério da Educação, o trote já mobilizou mais de 100.000 estudantes em mais de 200 Faculdades/Universidades em cerca de 20 estados brasileiros. Marcelo Guimarães, ex-membro da Comissão Organizadora do Trote
(COT) e ex-estudante de Administração, explica que o projeto é uma iniciativa da FENEAD, mas em diversas faculdades foi estendido para outros cursos. Em Salvador, a Faculdade Ruy Barbosa é um exemplo dessa extensão. Marcelo diz que, na época que fazia parte da COT, os membros convidavam os estudantes para ir junto à entrega dos donativos arrecadados. “Era um grande momento, pois estreitava o contato da realidade daqueles que estavam sendo ajudados com os estudantes.” Para os organizadores, é gratificante ver um trabalho se concretizando em resultados práticos. Para Coutinho, a sensibilização do calouro é nítida: “No semestre seguinte ele já é um multiplicador de novas ideias para os novos calouros e isso já é um processo de transformação de comportamento”. E funciona? O desafio dos trotes solidários é fazer com que as ideias colocadas em prática sejam perpetuadas no semestre seguinte. Susy Rocha afirma que, na UNIFACS, no fim de 2008 já existia uma equipe trabalhando para o trote solidário de 2009. Segundo ela, o estímulo para que os estudantes perpetuem o trote “vem dos resultados obtidos nos anos anteriores que
Patrícia, uma das duas alunas que participaram. A estudante afirma que, na Semana dos Calouros, os veteranos falaram muito da iniciativa, enfatizando a participação dos futuros psicólogos como um “compromisso com o próximo”. No entanto, os calouros de Psicologia afirmam que para que mais pessoas participem da campanha é necessária uma divulgação que reforce a importância do ato. “A divulgação foi boa, mas talvez se no dia da doação alguém passasse pelas salas pra dar uma lembrada, chamar a atenção do pessoal, houvesse uma mobilização maior”, sugere Géssica. Quando perguntado sobre a adesão dos calouros à campanha, Vasconcelos afirma que alguns compareceram ao posto de coleta. “Eu vi uns quatro [entram 40 alunos a cada semestre no curso], mas deve ter tido mais gente, pois não fiquei o tempo todo na campanha”. Mesmo com a pouca adesão dos calouros, o resultado da campanha superou as expectativas dos organizadores. Foram coletadas 152 bolsas de sangue. “No segundo dia nós tivemos que dispensar o pessoal porque já tinha sido atingido o limite: 110 bolsas. A receptividade foi bem maior do que a esperada”, afirma o estudante de Ciências da Computação. A campanha do “Trote Solidário” acontecerá novamente no segundo semestre desse ano. Desta vez, o posto da Hemoba será montado no Pavilhão de Aulas do Canela, “para que o pessoal que não pôde doar aqui, por algum motivo de horário ou comodidade, possa doar lá”, justifica Vasconcelos. “A parceria entre a UFBA e a Hemoba tem que ter continuidade. Não podemos fazer campanhas pontuais”, conclui Graça Freire, coordenadora de Captação da Hemoba. É incontestável o viés solidário da campanha, mas ao lembrar que a participação dos calouros não foi tão satisfatória, alguns estudantes se perguntam se chamá-la de trote é ainda a melhor maneira de se referir a ela.
CIDADE
Empurra, Aratu!
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Poucos falam sobre o assunto, mas bandas contam com ajuda generosa de emissoras de TV para obter sucesso Divulgação blog de Luana Monalisa
Luana Monalisa e banda: sucesso rápido e empurrãozinho generoso
Joseane Bispo Paloma Ayres
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o estado onde não se nasce, estreia, surgem bandas e cantores a cada dia, buscando o reconhecimento nas paradas de sucesso e na mídia. O carnaval é o terreno mais propício para se fazer notar e, quem sabe, ser agraciado com premiações. Para conseguir o tão sonhado espaço na mídia e prestígio junto ao público, não basta apenas ter talento e carisma: bom empresário e assessoria são ingredientes essenciais para alavancar a carreira de um artista. Melhor ainda se for administrada por pessoas ligadas a veículos de comunicação, encurtando o caminho para o estrelato e, literalmente, para o estúdio. Um exemplo declarado disso é a banda Na Pegada, comandada pela vocalista Luana Monalisa, que não esconde sua relação umbilical com a TV Aratu. Embora a maioria das bandas e de cantores/cantoras prefira não revelar esse tipo de ligação,
algumas demonstram na prática os benefícios que tal aliança proporciona em suas trajetórias, principalmente aquelas que estão em ascensão, para quem uma apresentação em qualquer programa de TV significa vários degraus rumo à popularidade. Em entrevista ao site Bahia Notícias, em março deste ano, Luana Monalisa admitiu que a relação com a retransmissora do SBT na Bahia influencia em seu reconhecimento diante do público e da mídia em geral. “Eu acho que influenciou, sim. Mas ficar conhecido por ficar conhecido, não adianta nada. Eu acho que se você não tiver competência, trabalho, talento, você não vai para lugar nenhum. Então, isso é uma junção de tudo e de você saber aproveitar as oportunidades da vida. É isso que eu estou fazendo”, argumenta Luana. Um outro caso de promoção semelhante é o da produtora musical Penteventos (ex-Pentaeventos) que, especula-se, teve como um dos cinco sócios fundadores, em 1997, o atual deputado federal ACM Neto (DEM-BA), fato noticiado na revista Istoé, em 2001, embora seu pai,
o senador ACM Júnior (DEM-BA), tenha negado a informação. Sabese que os atuais sócios são Lucas Cardoso e Flávio Maron, este último primo de ACM Neto. O jornal Gazeta Mercantil, no mesmo ano, afirmou que a Penteventos era “a ponte entre os artistas e a Rede Bahia”, fato contestado pelo então gerente de produção, Sandro Melo. Lucas Cardoso também nega qualquer associação entre a Penteventos e a Rede Bahia, assim como qualquer privilégio da produtora na emissora. “Realizamos projetos em parceria com todos os veículos, não só com a Rede Bahia. Nossos artistas precisam de mídia como quaisquer outros, sem ela não se chega a lugar nenhum”, garante. (Quase) nada a declarar Não é difícil supor que existam outros exemplos dessa controvertida relação entre bandas e emissoras de televisão. Entretanto, esse assunto é um tabu entre as pessoas do meio artístico. O produtor musical e diretor de eventos da Saltur, órgão municipal de Turismo de Salvador, Jonga Cunha, afirma que essa é uma prática muito comum no Brasil, não só no meio musical. “A troca de favores entre artistas e veículos acontece desde sempre, mas isso não é ético. Há uma baderna geral, neste aspecto, não existe uma lei para regulamentar uma relação tão tênue”, pontua Cunha. Por sua vez, o jornalista Cristóvão Rodrigues também questiona o caráter ético dessa associação. Sobre a premiação da Na Pegada, como “Banda Revelação” e Luana Monalisa, como “Cantora Revelação” do Troféu Dodô e Osmar, prêmio patrocinado pela TV Aratu, Rodrigues acha que a repercussão da banda junto ao público não pareceu suficiente para a premiação. “Foi
uma forçação de barra”, finaliza. Contrariando essa declaração, Luana acredita que a receptividade do público foi grande. “Eu recebi vários cartazes durante o percurso, com frases tipo ‘Na Pegada é a banda revelação’. Ás vezes eu lia nos lábios das pessoas lá embaixo apontando para mim, dizendo ‘Você é a revelação’”, destaca. Osmar Martins, o “Marrom”, jornalista e colunista de música do jornal Correio da Bahia, também vê com estranheza a vitória de Luana no Dodô e Osmar, embora evite tecer maiores comentários sobre o assunto. “Quanto a Luana Monalisa, eu prefiro não entrar nessa questão, porque foi tudo muito estranho”, se esquiva Marrom, que aponta a fórmula de sucesso. “Se não tiver talento e qualidade, não adianta. Claro que a mídia ajuda e é fundamental para propagar, mas se o produto não for bom...”. A produção da Na Pegada rebate as críticas sobre a veracidade dos critérios usados para a premiação. “Não sei o porquê de tanto questionamento, a premiação foi voto popular, não teve armação nem compramos nenhum troféu. O povo foi quem elegeu”, defende Thiago Phileto, empresário da Banda. E sobre a suposta relação com a TV Aratu, o empresário é categórico: “não temos nenhuma parceria com a Aratu, nem a emissora tem nenhuma influência sobre a Na Pegada. Ela apenas proporcionou uma grande abertura para a Banda e apoio, como a mídia baiana em geral. Já me chateei muito com esses comentários, não tenho culpa se o povo preferiu Na Pegada a Fantasmão e Luana Monalisa a Larissa Luz”, desabafa Phileto. No entanto, um detalhe curioso chama atenção: coincidentemente, o telefone de contato da banda é um dos ramais da TV Aratu.
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Das raves aos telões de shows Destaque no cenário local, Vjs ainda reclamam de cachês
H
á cerca de duas décadas, com o crescimento da música eletrônica, um personagem ganhava espaço: o DJ. Os DJs e a música eletrônica abriram uma nova perspectiva no campo musical, tornando remixes e samplers parte da rotina dos músicos e ouvintes. Porém, desde o início do século XXI, outra figura indispensável do mundo das raves tem ganhado espaço fora destas: o VJ, um artista que, trabalhando ao vivo, manipula e encadeia sequências de vídeos (em inglês, vjing). A performance do VJ consiste em escolher ou criar vídeos que dialoguem com as outras atividades do evento, de modo que seja criada uma atmosfera de sinestesia. O intuito do vjing é buscar atingir esse estágio, no qual os sentidos se misturam. “O VJ trabalha em sinergia com o DJ, a banda, o ambiente, o público, os performers, dançarinos ou atores e juntos produzem o discurso da obra”, diz Luciano Santana, também conhecido como VJ cRaZyMoNkEy, Popularização - Para Daniel Lisboa (VJ hare), só a partir do momento em que a edição dos vídeos pode ser feita nos PCs de cada VJ é que o vjing obteve mais espaço para se difundir. “Antes era muito caro pagar por uma ilha de edição. Assim, a gente não tinha como manipular o material filmado. Com softwares específicos nos computadores, ficou muito mais simples e barato”, afirma Lisboa. Ao mesmo tempo em que os VJs começavam a montar suas próprias ilhas de edição, o vjing começou a se popularizar na Bahia, a partir das raves promovidas pelo coletivo Soononmoon - ao qual Davi Cavalcanti
(VJ Gabiru) e Daniel Lisboa deram contribuições. Outro incentivador da cena foi o festival Universo Paralello, que desde 2003 ocorre no sul do estado e é direcionado para diversos estilos de música eletrônica. Para Andrigo de Lázaro (VJ Koyrana), os VJs baianos foram rápidos no gatilho. “Para qualquer VJ é indispensável ir ao Universo Paralello e nisso os VJs de Salvador saíram na frente”, opina. Mudança de rumo Apesar do forte vínculo estabelecido com a música eletrônica, alguns VJs não se restringiram a participar de eventos neste formato. No Terreiro Circular, coletivo criado em 2005, os VJs tiveram importância fundamental fora do âmbito das raves. O grupo foi contemplado com um edital do governo da Bahia, que financiava grupos multimídia para disseminar a arte eletrônica no interior do estado através de workshops e apresentações. Segundo Vince de Mira, vocalista da banda Lampirônicos e coordenador do projeto, foi a partir da experiência do Terreiro que a banda passou a atentar para o lado audiovisual de seus shows, frequentemente produzido por Daniel Lisboa. Lisboa, por sua vez, se diz cansado de trabalhar em festas de música eletrônica. “Esse tipo de festa nunca pagou bem aos VJs. A gente foi descobrindo outros filões, como os camarotes de grandes festas, que também começaram a nos requisitar”, explica Lisboa, que já foi VJ do camarote do Festival de Verão e projetou vídeos na frente e no fundo do trio do Motumbá, no carnaval de 2007. Além disso, shows de diferentes estilos também passaram a convidar VJs. As apresentações de
Manu Chao e Orquestra Imperial, através do projeto “Sua Nota É um Show”, contaram com projeções de Daniel Lisboa e Marcondes Dourado, respectivamente. Lisboa, porém, afirma que muitos convites aparecem em cima da hora, não permitindo que se crie mais eficientemente a fatia audiovisual de um show. “É um trabalho diferenciado, você pode matar um show se você botar uma imagem errada, tem que estar muito Zona Múndi apresenta o vjing a público diversificado conectado com a banda”, complementa. sim tão otimista. Muitos resolveram As edições do evento Zona Mún- se mudar da cidade, como os VJs di, que estão sendo realizadas entre cRaZyMoNkEy, Gabiru e Koyrana. os meses de março e julho na área Para o primeiro, com a falta de diexterna do Museu de Arte Moderna nheiro, muitas vezes o VJ se torna da Bahia (MAM), são um exemplo supérfluo para festas de fora do cirde como ainda é importante integrar cuito eletrônico. “Acho que a cena Salvador ao circuito da arte eletrôni- VJ não existe, mas sim a de música ca. Segundo Vince de Mira, também eletrônica”. Luciano Matos, produidealizador desse projeto, o evento tor da Nave e do Baile Esquema acontece para centralizar experiên- Novo, festas que já adotaram o vjing, cias dispersas que combinam arte, aponta um motivo para essa situatecnologia e mercado. “Na Bahia, ção: muitas vezes as festas são feimuita gente pensa em cultura digi- tas com recursos próprios e o lucro tal, mas poucas são as ações voltadas vem da bilheteria. “Nesse contexto, para a área, mesmo sabendo que as muitas vezes VJ é luxo”, lamenta. novas tendências artísticas e mer- O VJ Gabiru, no entanto, vê, na escadológicas passam por essas no- cassez de recursos financeiros, um vas interfaces com o ciberespaço”, problema comum a todos os artistas: afirma. “nós, VJs, estamos no mesmo barco de quem trabalha e vive de arte em Luxo qualquer lugar. Ou seja, vivemos No entanto, o cenário não é as- cheio de dificuldades”, assevera. Divulgação
Frederico Fagundes Nelson Oliveira
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Câncer a longo prazo
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Embate sobre continuidade ou proibição do uso de amianto reacende disputa entre saúde e economia Reprodução
tor de paredes, o fato é que o debate sobre a utilização de substâncias tóxicas se dá quase sempre em torno do nível seguro de exposição ou da inexistência de parâmetros confiáveis para a segurança. A lógica apresentada pelas empresas é a de que a diferença entre um remédio e um veneno está na dose. O Instituto Brasileiro do Crisotila (IBC), em nota enviada ao JF, defende o que chama de uso controlado do asbesto: “A legislação brasileira [Lei Federal 9.055/95] considera seguro o limite de 2 fibras/cm3. Conforme definido em Acordo Nacional Para Uso Controlado do Amianto das fábricas do setor de fibrocimento brasileiro, o praticado é abaixo 0,1 fibra/cm3, 20 vezes menor do que determina a lei federal”. A Eternit, maior fabricante de telhas e caixas-d’água de fibrocimento do país, afirma que adota o mesmo índice de exposição reduzido. A multinacional pertence ao grupo SAMA e defende que o crisotila, amianto branco, é menos agressivo que o anfibólio, o marrom, alvo de denúncias de contaminação e proibido no Brasil. A diferença básica entre os dois tipos, segundo o IBC e a empresa, se dá na biopersistência, o tempo que uma partícula inalada permanece no pulmão antes de ser eliminada pelo organismo: mais de um ano para o anfibólico e de cerca de dois dias e meio para o crisotila. A diretora do Centro de Estudo
Eternit Simões Filho: 1.250 trabalhadores podem perder emprego
Renato Cordeiro
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aparentemente inofensivo pó de madeira provoca câncer na cavidade nasal. Ainda não se sabe se o problema vem da madeira ou de algum elemento químico utilizado no beneficiamento. A relação causa-efeito foi comprovada em publicação de maio de 2009 da Agência Internacional para Pesquisa de Câncer (IARC), ligada à Organização Mundial de Saúde (OMS). A mesma tabela do IARC contendo carcinogênicos traz o amianto, ou asbesto, material básico utilizado na fabricação de telhas e caixas d’água, causador de insuficiência respiratória crônica. O amianto do tipo crisotila, único ainda empregado no país e citado no documento, é objeto de um projeto de lei que pretende proibir o uso e a exploração da fibra. Por trás da polêmica em torno do produto, no entanto, esconde-se uma disputa entre economia e saúde pública.
O relator do Grupo de Trabalho do Amianto na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, deputado Edson Duarte, do Partido Verde baiano, garante não ter tomado partido na questão. “Não quero defender campanhas pró ou contra, mas aspectos técnicos”, afirmou. Ele admite que mesmo o asbesto crisotila é tóxico, mas põe na balança os empregos gerados pela matéria-prima. “A cidade de Minaçu, por exemplo, vive em torno da exploração do amianto”, diz o parlamentar, citando aquela que é considerada a maior mina de exploração de crisotila da América Latina, a de Cana Brava, no norte de Goiás. Segundo estudos publicados pela Secretaria de Planejamento deste estado, entre 1995 e 1999, a mina, de propriedade do grupo SAMA, foi responsável por uma participação média de 94,41% do total arrecadado em tributos na região. A seara da exposição Seja o uso do benzeno no setor químico ou do solvente por um pin-
da Saúde do Trabalhador (CESAT), a médica Letícia Nobre, discorda: “O processo carcinogênico pode acontecer independentemente do tempo e da intensidade da exposição. Isso vale para o amianto, o benzeno e muitas substâncias. E o problema pode evoluir mesmo depois de cessada a exposição”. Sobre a contaminação pelo amianto marrom, a Eternit declarou em nota que “não nega o passivo anterior ao uso controlado do amianto. Pelo contrário, foi próativa a fim de monitorar a saúde dos trabalhadores e compensar eventuais problemas provenientes deste passivo.” Antecedentes Justamente na relação com os (ex)funcionários está uma das principais críticas feitas pelo presidente da Associação Baiana dos Expostos ao Amianto (ABEA), Belmiro Silva dos Santos, um dos primeiros funcionários da Eternit na Bahia. Segundo ele, apenas três pessoas foram indenizadas até hoje por contaminação por asbesto, com valores em torno de 22 mil reais. Santos trabalhou na organização entre 1968 e 1971 e afirma que, mais de 20 anos depois, em 1996, um ano depois da regulamentação do asbesto, foi um dos ex-trabalhadores convocados pela Eternit para fazer exames, cujos resultados não foram informados. “Eles não me deram o resultado. Em 1999, fui fazer um check-up e o médico constatou uma alteração no pulmão. Perguntou onde trabalhei, disse que com amianto.” A associação foi fundada três anos mais tarde, após a realização de um seminário sobre o uso do minério, promovido pelo Ministério Público. Os resultados dos exames, segundo Santos, só começaram a ser divulgados depois da assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta envolvendo
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ocupacionais quando se submetem a um exame médico que detecta um câncer. “Um taxista, por exemplo, pode ter passado 20 anos como operador de um processo químico. Isso muitas vezes não é perguntado. Se o trabalhador fumou, alguma vez na vida, todo mundo faz vinculação com o cigarro e esquece do ambiente de trabalho”, considera. Outro problema, segundo Letícia Nobre, é que a única substânMudanças na produção cia que recebeu atualização em A diretora do CESAT aponta relação ao conhecimento cientícomo solução para o problema a fico e tecnológico foi o benzeno. troca da matéria-prima: “A primeira “O Pólo Petroquímico usa, certacoisa a fazer é a substituição, se houmente, entre 25 e 30 substâncias ver possibilidade. Por exemplo, o carcinogênicas reconhecidas e benzeno, na indústria sucroalcooleinenhuma delas teve um processo ra, foi substituído pelo n-hexano. semelhante ao do benzeno. Não Na indústria química e petroquímise discute, não se coloca nem em ca não dá pra substituir, então se pauta”. trabalha com controle tecnológico Da mesma forma que o amianto está envolvido em denúncias de contaminação que se alastraram pela região de Bom Jesus da Serra, a cidade de Santo Amaro, no Recôncavo baiano, tem uma Câncer ocupacional na Bahia tem antecedentes de repercussão mundial história que é referência mundial. s discussões sobre o uso do amianto hoje não pode ser comparada a aquela verifi- Lá o problema é o chumbo, que ainda hoje lembram dois momentos marcantes no cada no início dos anos 90. “De lá pra cá foram causa problemas, de acordo com Adailson histórico de contaminação de trabalhadores implementados programas que mudaram as re- Pereira Moura, presidente da Associação das na Bahia: o benzeno, no Pólo Petroquímico lações empresariais, no sentido da troca de ex- Vítimas por Contaminação por Chumbo e de Camaçari, e o chumbo, em Santo Ama- periências de boas práticas de segurança. Hoje, Cádmio (AVICCA). “Ainda hoje nascem criro da Purificação. Mudam os atores, mas as empresas do Pólo estão submetidas ao PGR, anças contaminadas por chumbo”, afirma. os roteiros dos episódios guardam seme- o Plano de Gerenciamento de Risco, e precisam Segundo ele, 419 pessoas morreram por caunão apenas evitar, mas prever situações que po- sa da contaminação, cujo epicentro foi uma lhanças. O benzeno teve destaque no final dos anos dem levar a acidentes. Na auditoria, pegamos fábrica que explorava o metal, pertencente a 80 e começo dos 90. A Nitrocarbono S/A pessoas das empresas, o funcionário de uma um grupo francês e depois vendida ao Grupo (hoje pertencente à petroquímica Braskem), audita a outra”, explica. Quanto ao banimento Trevo. no Pólo de Camaçari, teve pelo menos três do carcinogênico, defende-se com uma metáMoura morava em frente à fábrica, onde trabalhadores mortos e vários outros con- fora: “Como você zeraria o lixo gerado em sua trabalhou por sete meses, entre maio e dezemtaminados pelo benzenismo, contaminação casa? Comendo casca de banana? Há limite. bro de 1993. “Em 90 dias, eu já estava com leva a, entre outras doenças, a leucemia. Na Podemos reduzir, reciclar”. 89mg/L, quando o máximo que a OrganizaMédico e professor da Escola Baiana de época, os discursos pró e contra o estabeleção Mundial de Saúde permitia, na época, era cimento do nexo causal dividiram, inclusive, Medicina, Marco Antônio Vasconcelos Rêgo, 40. Hoje, a Organização recomenda 0 mg/L. a imprensa baiana, cujo comportamento di- concorda com a tese de que a situação do ben- Mesmo passado todo esse tempo, meus exaante do assunto foi tema de pesquisa de Ma- zeno é melhor, mas acredita que os problemas mes ainda acusam chumbo alto”. Entre as seria Ligia Rangel: Epidemia e Mídia: sentidos passados ainda têm reflexos: “Certamente quelas, ele enumera problemas degenerativos não temos registro de 10% dos trabalhadores no joelho, dores, insônia e problemas no fígaconstruídos em narrativas jornalísticas. O superintendente de segurança, saúde e que sofreram algum tipo de contaminação. É do. O Grupo Trevo, segundo o presidente da meio-ambiente do Comitê de Fomento In- a ponta do iceberg”. Segundo Rêgo, os traba- AVICCA, ofereceu 500 reais de indenização dustrial de Camaçari (COFIC), Aurinézio lhadores mais velhos, já aposentados, muitas às viúvas. Para os ex-trabalhadores, o valor Calheira, acredita que a realidade do benzeno vezes não têm estabelecido nexos de doenças foi de 2.200 reais.
Eternit, ABEA e MP. De 310 ex-trabalhadores que passaram pelo CESAT até o final de 2008 para investigação, o presidente da ABEA afirma ter contabilizado, com relatórios médicos atestados pelo Centro e emissão de Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), 26 casos de placas pleurais, 20 casos de fibrose pulmonar e três mortes por problemas pulmonares. “Outros 29 óbitos, apesar de terem apresentado sintomas idênticos, não passaram por exames concluídos em tempo hábil. Não podemos dizer que foram provocados por exposição à poeira do amianto, mas tinham os mesmos sintomas”, afirma. Santos suspeita que a contaminação ultrapassou os limites da empresa e atingiu parentes dos trabalhadores. “Aqui, ainda não confirmei, mas em São Paulo há casos de esposas de ex-trabalhadores com câncer de pulmão por lavar a
roupa do marido. Hoje, a roupa é lavada na empresa”, informa. Quanto à contaminação que se dá fora da fábrica, Letícia Nobre cita o caso de Bom Jesus da Serra, no Centro-Sul da Bahia, onde uma mina da SAMA funcionou entre os anos 40 e 70. O descuido com o local levou a região a ter alta contaminação por amianto: “Lá, o minério foi usado até para pavimentação da cidade. Imagine o risco”.
Mais do mesmo A
para reduzir a exposição ao mínimo possível.” Letícia acredita que a lógica também poderia ser aplicada ao asbesto, com resultados ainda melhores: “Existem substitutos para praticamente todas as utilizações do amianto. É possível trocá-lo por outras fibras, outras matérias-primas, algumas sintéticas, como polietileno ou polipropileno. É uma questão de investimento em pesquisa tecnológica”, conclui. Para a Eternit, a medida traria implicações econômicas: “É importante lembrar que os produtos de fibrocimento, pelo excelente custo-benefício, têm uma função social no País e é praticamente a única alternativa da população de baixa renda. A substituição do amianto crisotila por fibras sintéticas acarretaria em um aumento superior a 40% nos custos de produção”.
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Faconiano premiado
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Bárbara, vídeo de Maurício Lídio, já foi premiado em dois festivais importantes do audiovisual brasileiro Camila Queiroz Paula Amor
E
ntre os alunos da Facom há grande interesse pela área de Cinema. Como a grade curricular da faculdade oferece poucas alternativas, uma das saídas é a inscrição em editais e premiações. “É a motivação de querer chegar a algum lugar no cinema, porque sentar e esperar cair do céu, não adianta”, diz Maurício Lídio, estudante do 4º semestre do curso de Produção Cultural, vencedor do Grande Prêmio Vivo do Cinema Brasileiro na categoria Melhor Filme de Celular, com o vídeo Bárbara. O prêmio existe há sete anos e é considerado pelos profissionais de cinema o Oscar do cinema brasileiro. A empresa de telefonia celular passou a patrociná-lo a partir do ano passado, quando foi criada a categoria Melhor Filme de Celular. “Muita gente pensa que é um evento da Vivo, mas não é”, assegura Lídio, que também enviou um vídeo no ano passado, para a mesma categoria, mas não foi selecionado. “Era sobre o processo de criação de um vídeo, no qual eu, o ator, era o criador que queria participar do concurso, mas estava com problemas de criatividade”. Este ano, seu filme, Bárbara, foi selecionado entre os finalistas e conquistou o prêmio máximo na categoria. Para não precisar de atores, Lídio usou a boneca Barbie como protagonista do vídeo, sem se dar conta, inicialmente, de que o brinquedo que virou ícone fashion estava completando 50 anos em março. “Eu sabia que queria fazer com a Barbie. Queria matar a Barbie, na verdade (risos)”, conta. A partir daí, surgiu a idéia de elaborar uma ficção abordando a saída encontrada pelos ícones quando envelhecem ou perdem a fama. Lídio contou com a ajuda de sua irmã para
a produção do vídeo. “Ela tem a casa completa da Barbie e montou toda para mim. A gente filmou um dia antes do prazo final de inscrição”. Como prêmio, levou o troféu Grande Otelo, o mesmo recebido por filmes de destaque do cinema brasileiro em 2008, como Ensaio Sobre a Cegueira, Estômago e Meu nome não é Johnny. “Não tinha idéia da dimensão do prêmio, só sabia que tinha um. Foi o reconhecimento do que eu fiz, ganhei mais estímulo”. Em 2007, Maurício ficou em segundo lugar no Concurso de Vídeos Armadores da Aliança de Controle ao Tabagismo. Com o tema tabagismo passivo, fez um desenho filmado de um menino que convivia com pessoas que fumavam e que, ao longo do vídeo, ia perdendo as cores à medida que mantinha contato com elas. Lídio contou para a equipe JF que sempre gostou muito de Cinema: “gosto não só de ver o filme, mas olhar os extras, ver como se faz”. O reduzido número de faculdades que oferecem graduação nessa área na Bahia o impossibilitou de estudar Cinema, sua vontade desde os 16 anos. Para se aprofundar mais na área, busca participar de cursos de roteiro e direção e de festivais. “Sempre que tem algum, faço alguma besteirinha. Estou sempre fazendo vídeos para mandar”, garante. O vídeo Bárbara concorreu também no Festival do Minuto, saindo vitorioso como o Melhor Minuto do Mês de maio, recebendo R$ 500,00 e o troféu Minuto. Desde o início, Lídio estava esperançoso e contou com os votos do público para conquistar o prêmio. “Idéia muito boa, bem realizado. É um humor negro sutil e muito bem elaborado, utilizando a música clichê de maneira adequada. Criativo e interessante,” diz Fernanda Pessoa, de São Paulo, em comentário postado no site do festival. Segundo o curador do festival, “A Barbie se sucidando é o
Camila Queiroz
“O que aparecer, eu tô dentro”
máximo”. “Minha expectativa era que meu vídeo fosse premiado, não tanto pelo dinheiro, mas pela importância deste festival, sobretudo em relação às novas mídias”, diz Lídio. O Festival do Minuto trabalha com a seleção de vídeos de até 60 segundos, tanto de amadores quanto de profissionais. Pioneiro neste formato no mundo, o festival acontece desde 1991 e já recebeu mais de 15.000 filmes de mais de 40 países, segundo o site oficial do concurso. São diversas categorias premiadas e Bárbara concorreu na categoria Tema Livre. Bárbara, por enquanto, ainda não está participando de outro concurso. De acordo com Lídio, “Festival à vista por agora não tenho, mas estou
sempre de olho. Assim que pintar categoria de vídeo digital, em celular, ou qualquer forma que encaixe Bárbara, com certeza me jogarei”. Satisfeito com as duas premiações, Lídio espera, em breve, poder contribuir com muito mais para o audiovisual da Bahia. Quando questionado se pensa em viver de cinema, Lídio assegura: “é isso que eu quero. Sei que no Brasil, em especial na Bahia, viver de cinema é coisa de herói, mas estou aberto às várias vertentes do audiovisual”. Mesmo consciente quanto às dificuldades enfrentadas por quem atua na área, diz que enquanto puder viver de cinema, o fará, seja como profissão ou como paixão. “O que aparecer, tô dentro”.
Vale a pena conferir O vídeo Bárbara já foi visto por mais de 1.163 internautas no You Tube. Para conferir, acesse: http://www.youtube.com/watch?v=V_UAf0Zv2zM Acesse também: Site oficial do evento: http://www.academiabrasileiradecinema.com.br/ Site Festival do Minuto: http://www.festivaldominuto.com.br/
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Para sempre bikud@s
Na universidade, ex-estudantes do Steve Biko mantêm os ideais aprendidos no Instituto
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rganizações não governamentais, instituições sem fins lucrativos e espaços de educação às vezes conseguem resultados tão significativos na execução de suas atividades ultrapassam os feitos realizados pelos órgãos estatais. Em Salvador, o Instituto Cultural Steve Biko é um exemplo desses espaços que estimulam a reflexão para questões sociais e trabalham para o aprimoramento e crescimento intelectual de jovens e adultos negros de Salvador. Com 17 anos de existência, o Instituto Steve Biko, ou simplesmente “Biko”, como é carinhosamente chamado pelo grupo, já aprovou mais de 1.000 alunos afro-descendentes em faculdades e universidades através do projeto do pré-vestibular. Além dele, o Biko concentra ainda suas atividades no “Mentes e Portas Abertas”, preparando pessoas para ingressar em carreiras no setor público, no “Oguntec”, fomentando a pesquisa em Ciência & Tecnologia voltada para jovens, em um curso de inglês, outro de aprendizagem em tecnologia digital e a oferta da disciplina Cidadania e Consciência Negra, voltada para a ampliação do domínio do conceito de cidadania entre os estudantes, de modo a possibilita-los ter aceso a informações sobre sua ancestralidade. Muitos jovens já beneficiados têm histórias para contar sobre a importância do Steve Biko em suas vidas. Dos 300 que entram no projeto por ano, 35% ingressam na universidade e uma parcela significativa entra no mercado de trabalho. É o caso de Caio Cavalcanti, estudante de Sistemas de Informação da Uneb. Sua avaliação sobre o Biko é bas-
tante positiva: “O instituto é uma ótima oportunidade para qualquer pessoa amadurecer como cidadão. Ele proporciona que você entre em uma situação de mudança contextualizada na sociedade brasileira. As transformações ocorrem envolvendo a identidade de forma psicológica, social, física e até mesmo religiosa”. Apesar do pré-vestibular ser uma das principais atividades, Cavalcanti afirma que a real importância do instituto, mesmo para aqueles que não conseguem entrar na universidade, são os novos parâmetros de cultura e auto-estima que cada participante dos projetos da Aluna integrante do Projeto Oguntec ao lado de painel de cientistas negros instituição levarão para a vida explica a estudante. toda. diz que um caso especial o emocioNem sempre a intenção dos alu- na. Uma estudante que conseguiu A proposta do Steve Biko é contribuir para a educação da popula- nos que entram no instituto é a de entrar na faculdade de medicina pelo ção negra de Salvador, valorizando a discutir assuntos de identidade ou Programa Universidade para Todos ancestralidade através de disciplinas coisa parecida. Às vezes nem sabem e promete usar o diploma em prol específicas ou oferecendo educação do que se trata realmente o Biko e da sua comunidade, depois de socientífica a estudantes afro-descen- o procuram buscando o acesso ao frer preconceito quando manifestou dentes do ensino médio, além de pré-vestibular ou outras atividades a um médico seu desejo de seguir a outras alternativas em seu leque de voltadas para pessoas que não têm mesma carreira. Quando questionaprojetos. Geise Oliveira, estudante condições de buscar instituições do sobre a situação de jovens brande Produção Cultural da UFBA, diz particulares. Mesmo assim, todos cos que também têm baixa renda e que desde o momento que entrou no acabam por apreender as reflexões seu acesso ao instituto, Lázaro expliBiko, em um projeto chamado Con- sobre a identidade negra na socie- ca que os preconceitos sofridos por sórcio Social da Juventude, do Minis- dade. É o caso de Elisan da Silva, um jovem branco e um negro são tério do Trabalho e do Emprego, no estudante de geografia da UFBA, diferentes: “No Brasil de hoje, nós qual permaneceu até a sua aprovação que entrou no pré-vestibular do Biko vivemos numa sociedade pigmenna universidade, após o pré-vestibu- em 2007 com um único objetivo: ser tocrática. Isso quer dizer que quanto lar, diversas mudanças aconteceram aprovado numa universidade. Após mais clara for a sua pele, mais oporem suas concepções. A reflexão um ano, havia estabelecido com o tunidades você tem. Nós escolhemos sobre questões identitárias relacio- instituto uma relação que ultrapas- o público mais discriminado, que é nadas foi fundamental para Geise: sava essa meta. “Ao final do ano, a justamente o público negro. É uma “o instituto fez uma total revolução aprovação era apenas uma das metas. questão de ação afirmativa, não de em minha vida logo quando entrei! Era apenas um detalhe em compara- preconceito contra brancos”. Hoje Despertei para a minha representa- ção a todo o aprendizado adquirido”, os dados da coordenação afirmam ção na mídia e na sociedade. Acordei afirma Silva. que há alunos do Biko em Cuba e Lázaro Cunha, diretor do Insti- nos Estados Unidos. Sobre todas as pra rever conceitos instaurados em minha família com relação a minha tuto, diz ser uma grande satisfação conquistas, Lázaro afirma: “Me sinto cor, antes chamada de morena, e ao fazer parte da história desses jovens parte da resistência e da luta do povo meu cabelo, antes chamado de ruim”, através do Biko. Quando fala deles, negro pelos direitos humanos”. Acervo Steve Biko
Carol d’avila Mariana Sebastião
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Entre a fé e a ciência
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Orgãos públicos e igrejas evangélicas apresentam métodos diferentes para a recuperação de usuários de drogas Iali Moradillo Paula Boaventura
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mbora não existam dados oficiais sobre a quantidade de usuários de drogas em Salvador, a estimativas utilizadas pelo Ministério da Saúde (MS) indicam que na capital baiana existam aproximadamente 200 mil dependentes químicos, já que, segundo cálculos do próprio Ministério, no mínimo 6% das populações das capitais brasileiras têm transtornos decorrentes do uso de drogas. A professora Célia Baqueiro, pesquisadora do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (CETAD) e coordenadora do Observatório Baiano Sobre Substâncias Psicoativas, ainda em fase de implantação, afirma que, na capital, o perfil do usuário de substâncias psicoativas (SPAs) é formada por jovens do sexo masculino. Quando se trata das mulheres, verifica-se a predominância de ansiolíticos (tranqüilizantes) e inibidores de apetite.
Segundo a pesquisadora, um dos grandes problemas atuais de saúde pública não são as drogas ilegais, e sim as lícitas, como o cigarro e o álcool, sendo que o uso de bebidas muita vezes é estimulado pela própria família. Em Salvador, as drogas lícitas lideram o ranking de consumo, seguidas dos inalantes (como lança-perfume e cola de sapateiro), da maconha, cocaína e, em menor quantidade, do crack. Entretanto, para o delegado Carlos Habib, titular da Delegacia de Tóxicos e Entorpecentes (DTE), há um aumento considerável do uso de crack nas classes baixas e médias. “O crack faz girar em torno de si a prostituição, a violência e a formação de grupos. Tem que ter uma atenção especial para ele. Eu acho que se deve até ter uma punição diferenciada para o traficante do crack, porque seu poder destrutivo é maior para a saúde do usuário”, afirma. Redução de Danos A perspectiva adotada pelos ser-
Paula Boaventura
Consumo de drogas em espaços públicos torna-se corriqueiro
viços públicos nas três esferas de governo, sob orientação do MS, é a de redução de danos. Por essa abordagem, objetiva-se não apenas reduzir gradualmente o uso das SPAs mas viabilizar meios de fazer com que a droga não traga ainda mais prejuízos à saúde do usuário. Alguns exemplos de estratégias de redução de danos são o estímulo para a troca de seringas e, assim, evitar doenças infectocontagiosas, como a AIDS, a realização de campanhas como a “se beber, não dirija” e a orientação aos usuários de crack para utilizar cachimbos e evitar ferimentos. “O objetivo é encontrar um meio caminho, não impor nada, apenas reduzir o dano que a droga pode causar ao indivíduo. Caso resulte na interrupção do uso, ótimo, mas, se não, evitar que ele contraia doenças, cause acidentes ou se machuque, já é considerado sucesso”, explica Célia. As secretarias de saúde municipais e estaduais oferecem recursos para o tratamento de usuários de SPAs através dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Em Salvador, há um centro estadual especializado em álcool e drogas, o CAPSad, que está em processo de municipalização e atende cerca de 900 pessoas por mês, no bairro de Pernambués. Na Bahia, apenas 13 centros públicos atendem a população dependente de drogas. O CAPSad funciona como ambulatório, onde os usuários são acolhidos e encaminhados para tratamentos mais adequados. O atendimento tanto pode ser não intensivo, três vezes por mês, como intensivo, no qual o paciente passa todo o dia no centro durante o período de trata-
mento, embora sem internar-se. Existem ainda os serviços de extensão permanentes, mantidos pela Universidade Federal da Bahia e ligados à Faculdade de Medicina, como o CETAD, coordenado pelo professor Antônio Nery Filho, e o Aliança Redução de Danos Fátima Cavalcante (ARD-FC), coordenado pelo professor Tarcísio Andrade. Ambos oferecem atendimento clínico para usuários de substâncias psicoativas, além de programas educacionais e ações comunitárias, partindo da mesma perspectiva do Ministério da Saúde, ou seja, a redução de danos. O CETAD, inclusive, foi o primeiro centro a trabalhar com essa estratégia na Bahia. Atualmente, o órgão tem o apoio da Prefeitura de Salvador e do Governo do Estado, registrando uma média mensal de 1.500 atendimentos. Já a ação do ARD-FC é mais expressiva entre usuários do Centro Histórico, onde, em 2008, houve uma média de 2.500 atendimentos/mês. Comunidades Terapêuticas Paralelamente à ação dos centros mantidos por políticas governamentais e acadêmicas, há os serviços mantidos por instituições privadas, sobretudo religiosas, que se apresentam frequentemente como grupos de ajuda mútua e como comunidades terapêuticas (CTs), mais conhecidas como centros de recuperação. Estas comunidades diferenciam-se dos serviços públicos por terem como única finalidade o estágio de abstinência do paciente e por utilizarem o procedimento da internação. A primeira comunidade terapêutica no mundo, conhecida como Synanonn, foi inaugurada na Califórnia (EUA), em 1958, e lançou as bases que configuram essa forma de tratamento, prevalecente até hoje. Seus
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gas, mas sim, com as causas. A perspectiva de trabalhar com as causas que levam ao uso de drogas é compartilhada tanto pelas instituições religiosas, quanto pelas instituições públicas, mas há uma separação ideológica quando se trata da atuação de profissionais nas CTs.
Legalização A complexidade do assunto não é verificada apenas na saúde pública e nos tipos de atenção dispensada ao usuário. No terreno da seguÁlcool é apontado como a principal droga causadora de dependência nas capitais brasileiras rança pública, o tema objetivos são alcançar a condição de medicamentos e nem inclui o aten- é polêmico, principalmente quando abstinência plena, através da trans- dimento por profissionais de saúde, se inclui na discussão a hipótese da formação do estilo de vida e das o que faz com que muitos desses legalização das drogas. Para alguns terapias em grupo. Hoje, algumas espaços não busquem apoio gover- especialistas, a legalização poderia das comunidades terapêuticas não namental, pois seus responsáveis diminuir expressivamente a viofilantrópicas se profissionalizaram preferem que não haja intervenção lência gerada pelo tráfico. Para estes, observa-se que o número de e já oferecem tratamentos técnicos, em seus procedimentos. mortes relacionadas às drogas são com a presença de psiquiatras e mais consequência do comércio do psicólogos. Divergências Para Antonio Nery Filho e para que dos efeitos das substâncias em Custo acessível João Martins, coordenadores do si. O professor Antonio Nery enSegundo Solange Sena, assis- CETAD e do CAPSad, respectente social do CETAD, no trata- tivamente, os serviços de natureza xerga a legalização como a solução mento em uma CT profissional, religiosa podem ter como reflexo ideal: “Não vejo outra alternativa “o paciente não gasta menos que alguns efeitos em determinados pa- senão a legalização do comércio 800 reais por dia, custo que foge cientes, mas não na maioria, devido da droga. Mas há outras coisas a da realidade econômica da maio- à falta de uma equipe médica. “O fazer. Não basta legalizar, teria que ria populacional da cidade”. “Já que acontece com esses locais é urba-nizar a região, oferecer mais nos centros religiosos, paga quem que, de um modo geral, não tratam escolas, melhorar as condições de puder, porém a assistência é apenas to-xicômanos, mas apenas usuários habitação. O poder público tem espiritual”, explica. Os centros re- esporádicos. O sistema religioso mais coisas a fazer. Para lidar com ligiosos, em sua maioria de origem trata uma população especial, não a violência re-lacionada ao tráfico, protestante, oferecem serviços de faz um diagnóstico e o tratamento não vejo outra alternativa senão a tratamento com internação a um é um tratamento de fé”, analisa legalização”. Já o delegado Carlos Habib se posiciona contrário à lecusto acessível às camadas popula- Nery. cionais de baixa renda. Por outro lado, o pastor Israel galização. “A minha posição e a do A igreja Assembléia de Deus Ferreira, presidente da ADESAL, departamento é radicalmente contra (ADESAL), por exemplo, mantém salienta que a ausência de profis- a legalização, por não termos visto 60 CT’s na Bahia. O tratamento sionais de saúde nas CTs da igreja nenhum estudo do que pode aconfeito em seus centros, como na que representa é proposital, pois tecer. Existe muita especulação. Já maioria dos demais ligados a outras elas não visam trabalhar com as foi liberada em países de primeiro institui-ções religiosas, não utiliza consequências dos efeitos das dro- mundo e voltaram atrás”.
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Comunidades Terapêuticas da Assembléia de Deus A primeira casa de reabilitação fundada pela Assembléia de Deus foi a Comunidade Desafio Jovem Peniel, há 27 anos, em Feira de Santana, sob a coordenação do pastor Israel Ferreira. O procedimento terapêutico das 60 comunidades mantidas pela igreja segue hoje um padrão mundial, estabelecido pelo primeiro centro criado, nos anos 50, em Nova York (EUA). Conforme explica Ferreira, “não se usa medicamentos. Trabalhase basicamente a motivação, a mudança de hábitos e de ponto de vista, através da fé e do apoio da família”. Cada comunidade é coordenada por um líder religioso que conta com uma equipe formada por voluntários, em sua maioria pessoas que já fizeram o tratamento nos centros, o que garante, segundo o pastor, a continuidade do tratamento sem alterações notórias na estratégia tradicional. Não há presença de médicos, psicólogos ou assistentes sociais. O tratamento dura nove meses e é dividido em três fases: libertação das drogas, aprendizado e reintegração social. Durante toda a permanência, as pessoas internadas aprendem a tocar instrumentos musicais, realizam tarefas nos sítios das CT’s e participam de terapias de grupo, nas quais dão seu testemunho, são estimuladas a crer na própria recuperação e fazem estudos bíblicos. A manutenção das casas é feita à base de doações de membros da igreja e de empresas, além da ajuda de custo dada pelas famílias dos internados. Como já ressaltado, a metodologia de trabalho e a característica não-científica do tratamento levam os dirigentes a não buscar apoio governamental para evitar intervenções.
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Lixo provoca conflitos e transto
Bairro nobre de Salvador é cenário de con Victor Soares
Sujeira, cachorros e mau cheiro incomodam moradores
Victor Soares Giácomo Degani
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s moradores do Cidade Jardim, um dos bairros mais nobres de Salvador, convivem há mais de 20 anos com catadores de lixo que vivem em favelas vizinhas e diariamente recolhem resíduos dos prédios. De um lado, quem paga um dos IPTUs mais caros de Salvador reclama da bagunça e do mau cheiro gerado quando os catadores reviram as caixas de lixo. Enquanto eles querem a pobreza e a miséria longe das suas casas, do outro lado os catadores de lixo lutam para conseguir uma forma de sobreviver, pois faltam outras
oportunidades de emprego no mercado de trabalho. São vários os personagens que compõem o cenário do bairro. Além de moradores e catadores, estão presentes também vendedores ambulantes de quinquilharias de toda ordem, feirantes, o carro da pamonha, taxistas, guardadores de carro e funcionários dos prédios. O fato é que o bairro nobre, localizado ao lado do Candeal Pequeno, tornou-se palco de uma forte desigualdade social, onde pobres e ricos ocupam o mesmo espaço e os conflitos são inevitáveis. Os catadores do Jardim A reportagem do JF encontrou os dois catadores de lixo
mais conhecidos do bairro. A visão de ambos, apesar de trabalharem praticamente juntos diariamente é distinta. Nice, que cata lixo no bairro há um ano, relaciona-se bem com a vizinhança e até admitiu que alguns dos condôminos facilitam o seu serviço. “Eles acabam me ajudando, dão luvas e colocam o lixo em um horário
bom pra eu trabalhar”. Em contrapartida, garante que faz a sua parte: “Abro o lixo, cato o que serve e depois deixo tudo arrumadinho nos sacos, para não fazer bagunça”. Já Luis “Fodinha do Candeal”, como diz preferir se identificar, lembra que, de bonzinhos, os moradores não têm nada. O catador, conhecido por atuar no local há cerca de 20 anos, é mais crítico em relação aos moradores dos prédios. “Eles não querem que a gente cate, querem é que a gente fique lá embaixo com uma faca, esperando para roubar”, revolta-se. Enquanto Nice trabalha com luvas e se preocupa com a higiene, ‘Fodinha’ cata o lixo nas condições mais precárias, sem luvas e sem camisa, exposto a todos os riscos que a manipulação de detritos representa. A coleta é feita manualmente e sem maiores preocupações. Após revirar os sacos, eles reúnem todo o lixo em um terreno baldio, sob árvores, entre um edifício e um shopping de serviços do bairro. Sacos e mais sacos de lixo ficam amontoados e expostos a céu aberto, atraindo a presença de ratos e baratas e gerando um forte mau cheiro nas imediações. Depois de todo o processo, os materiais coletados são vendidos, quinzenalmente, para uma coope-
Os moradores estão movendo uma ação na Prefeitura para retirá-los daqui. Tem até gente influente aqui no prédio que vai ajudar no processo. Reginaldo, administrador de condomínio
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ornos em ruas do Cidade Jardim
nflito cotidiano entre moradores e catadores plexos tanto moradores mitiu que o repórter conquanto catadores do local: versasse diretamente com um princípio de incêndio o porteiro do prédio e o no terreno baldio onde se diálogo inicial se deu por armazena o lixo recolhido interfone. Na segunda tenpelos catadores. Pouco se tativa, Reginaldo, o admisabe sobre o que, de fato, nistrador do condomínio, Eles não querem que a gente cate. provocou o fogo, mas a Querem é que a gente fique lá embaixo permitiu o acesso à garatensão no bairro gerou gem para a realização da uma série de boatos e es- com uma faca, esperando para roubar. entrevista e falou sobre as Luis ‘Fodinha’, catador de lixo peculações a respeito dos medidas que estão sendo supostos mandantes ou tomadas para afastar os responsáveis pelo ocorrido. Uma catadores do bairro: “Os moraprimeira versão defende que os planejado pelos próprios mora- dores estão movendo uma ação usuários de drogas teriam dado dores dos prédios, com o obje- junto à Prefeitura para retirá-los início ao fogo, acidentalmente, ao tivo de expulsar os catadores. daqui. Tem até gente influente A reportagem do JF tentou aqui no prédio que vai ajudar no jogar bitucas de cigarro no terreno. Outra fonte, que não quis acesso ao Pallazo Reale, um dos processo”. se identificar, levantou a possi- suntuosos edifícios do bairro. O Além disso, os funcionários do Fogo cruzado Um episódio deixou per- bilidade de o incêndio ter sido excesso de segurança não per- Pallazo Reale só estão autorizados a colocar o lixo na rua quanVictor Soares do o caminhão de coleta estiver próximo de passar, para evitar que os catadores se mobilizem em busca do lixo. Reginaldo disse, ainda, que está sendo implantada no prédio uma política interna de reciclagem. São muitas as reclamações de moradores quanto aos percalços gerados pelos catadores no bairro. Cássia Valéria, moradora do Cidade Jardim, destacou a dificuldade de movimentação de pedestres nas calçadas dos bairros, enfrentada principalmente por deficientes físicos: “Quem anda de cadeira de rodas, com carrinho de bebê, ou até mesmo a pé, tem uma enorme dificuldade de transitar no bairro por causa do lixo no meio das calçadas”. Os animais peçonhentos e as doenças que podem ser causadas por eles também preocupam a moradora: “São ratazanas enormes. Aquilo mais parece um foco de leptospirose”. Ela cita ainda a imensa maioria de cachorros Catadores transformam calçada em centro de triagem de lixo rativa, da qual os catadores não participam. Óbvio que o di-nheiro arrecadado com o traba-lho não é suficiente para suprir todas as necessidades básicas dos catadores. “Ganho uns 200 ou até 300 reais por mês, dependendo do quanto trabalho”, informa Nice. Ironicamente, os catadores acreditam que os reflexos da crise financeira internacional podem ter feito os preços dos materiais despencarem: “Uma tal de crise, que vem lá dos Estados Unidos e do Japão, baixou o preço de tudo. O quilo do papelão custa agora apenas cinco centavos”, lamenta Fodinha.
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que acompanham um casal de catadores, todos, aparentemente, infectados por doenças, tendo em vista o aspecto físico deteriorado dos animais e as condições do pêlo com escoriações visíveis. A maioria dos vasilhames de lixo dos condomínios é deixada à beira das calçadas. Em alguns bairros de Salvador, condomínios encontraram soluções mais higiênicas para o armazenamento, como a construção de pequenos anexos nos prédios aos quais os catadores têm acesso, o que evita que se espalhe sujeira pelas ruas e calçadas. Para Cássia Valéria, independentemente de qual será a resolução do problema no bairro, ela precisa ser rápida. “Assim não pode continuar. É complicado para nós, que temos que conviver com o lixo, o mau cheiro e os riscos de doenças, e para os catadores, que ficam expostos às doenças”, reclama. O fato é que nem os moradores e nem a Prefeitura se preocupam concretamente com a dignidade dos catadores que circulam pelo Cidade Jardim. Qualquer que seja a solução tomada, ela precisa ser pensada de forma a não simplesmente expulsá-los para fora do bairro, como parece ser a vontade de parte da classe média que vive no local. A Constituição Federal de 1988 prevê o princípio da dignidade da pessoa humana, o que significa que todos que vivem no Brasil deveriam ter direto à saúde, educação, moradia e alimentação de qualidade. Os catadores não recebem qualquer assistência dos poderes públicos, vide o caso de Fodinha, que trabalha há mais de 20 anos no local. “Quando tem coisa boa, a gente bota pra dentro mesmo”, referindo-se ao fato de ingerir os restos de comida encontrados em meio a toda sujeira e que acabam frequentemente servindo como alimento para os que vivem do lixo.
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Zé Fodinha é o protagonista entre os catadores do local
Segundo reportagem do Ibahia.com Ecologia, são produzidas cerca de 115 mil toneladas de lixo por mês na capital baiana. Apesar disso, apenas 2,3 mil toneladas são recicladas mensalmente, o equivalente a apenas 2% de tudo o que é produzido. De acordo com a Limpurb, a situação é um pouco melhor. Dados da instituição indicam que 5% dos dejetos são reciclados.
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ma reportagem publicada no jornal A Tarde, em 22 de Fevereiro de 2009, mostrou como é a vida do catador de latinhas no Carnaval de Salvador. Flávio Costa, repórter do jornal, disfarçou-se de catador e durante quatro horas da festa seguiu o trajeto dos blocos catando latinhas. A experiência foi relatada em detalhes nas páginas do jornal. O jornalista vivenciou diretamente a invisibilidade que rodeia os catadores de latinhas,
uma minoria social completamente ignorada pelas pessoas que curtem a festa e por toda a sociedade. São infinitas as adversidades encontradas pelos que passam as noites de carnaval – e todo o resto do ano – à procura de detritos que podem ser reutilizados. Os chamados profissionais do lixo são obrigados a conviver com urina, ratos, baratas e muita sujeira. As condições de trabalho são subumanas e totalmente degradantes. Ao fim de todo
o trabalho, o pior de tudo é receber pelo esforço quantias desprezíveis, enquanto milhões de pessoas ao lado dos catadores diverte-se ao som das atrações carnavalescas. O repórter de A Tarde, por exemplo, não conseguiu ficar mais de quatro horas exercendo o ofício: “Ao chegar no meio do circuito Barra-Ondina, já entorpecido pelo cansaço, com uma fome canina, dei-me por vencido”, confessa.
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Bienal marcada por caos
Considerada uma das mais fracas, a 9ª Bienal do Livro decepcionou por falta de estrutura e acervo limitado
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9ª edição da Bienal do Livro, realizada em Salvador no período de 17 a 26 de abril, no Centro de Convenções, recebeu, aproximadamente, 272 mil visitantes e foi marcada por insatisfações de todas as ordens. Embora os organizadores garantam que houve recorde de público e vendas em relação às edições anteriores, o público e os expositores fazem uma avaliação oposta. As fortes chuvas que caíram na capital baiana, associadas à estrutura deteriorada do Centro de Convenções, aos preços elevados dos livros e à considerada má organização do evento frustrou a maioria dos participantes. Desastre Os dois sebos presentes na Bienal, o Troca Livros e o Pituba, foram os mais prejudicados pela infra-estrutura precária do Centro de Convenções, administrado pela Bahiatursa, empresa oficial de turismo do Governo do Estado. Durante o evento, o Centro apresentava sinais evidentes de corrosão, ferrugem e buracos em todo o teto, ausência de ar condicionado, fios elétricos expostos, além de uma série de outros problemas decorrentes da falta de manutenção. Com as fortes chuvas, os estandes onde estavam instalados os dois sebos foram inundados, gerando uma perda de, aproximadamente, 15 mil reais em livros. A proprietária do Sebo Pituba, Tatiana Queiroz, afirmou que a perda em seu estande não foi total porque a água atingiu apenas os livros que estavam expostos no chão. Já para o Sebo Troca Livros, o prejuízo foi maior. “Nós perdemos mais porque a água escorreu pelas estantes, até os pirulitos e pipocas que estávamos dando às crianças molharam”, lamentou a proprietária, Elane Barbosa.
A Fagga Eventos, responsável pela organização da Bienal, informou que a Bahiatursa, através de seu seguro, irá ressarcir todos os prejuízos. Mas, segundo Elane, não há qualquer previsão de quando esse dinheiro será reposto. “Eu não quero ser procurada daqui a dois ou três meses. Nós temos contas para pagar e quando eles vão nos indenizar?” Ainda segundo Elane, participante do evento pela terceira vez, essa foi a pior Bienal em relação à organização. Em meio à confusão gerada pelas chuvas, os estandes atingidos não receberam nenhum apoio imediato da organização do evento. De acordo Sebo Pituba sofreu prejuízos de mais de R$5.000 em livros com a proprietária do Troca Livros, faltou ajuda dos organizadores. dois sebos conti-nuavam imprecisas. se não fossem esses problemas, pra Foi preciso “gritar” para que os ex- No balcão de informações, uma fun- mim seria ótimo. Em relação à propositores recebessem auxílio na retira- cionária afirmava apenas que havia paganda, foi bom”. da dos materiais e organização de um dois sebos, mas não sabia identificar o novo estande, acarretando ainda mais local onde o Troca Livros estava funcio- Ingressos prejuízos, como conta Tatiane, do nando ou se ainda estava presente na A entrada da Bienal do Livro cusSebo Pituba: “A terça-feira foi o me- Bienal. Durante o evento, houve ainda tou seis reais este ano. Com este valhor dia da Bienal e nós não tivemos rumores de que os sebos não estarão lor, o cliente tinha direito a um bônus como vender. Com a confusão, mis- presentes na Bie-nal de 2011. A asses- de três reais para efetuar compras turaram-se todos os livros e a gente soria afirmou que o interesse de expor dentro do evento. “Essa é uma inié da livraria, da editora, e não dos or- ciativa do Governo e da Secretaria de não sabia mais o que tinha”. ganizadores. “Se o sebo nos procurar, Cultura, para que a venda seja maior eles irão participar, não há boicote de que o esperado. Com esse bônus E mais prejuízos... A mudança de local do Sebo Troca nossa parte”, assegurou. esperamos que as pessoas tenham Livros acarretou novos prejuízos, pois um incentivo a mais para comprar faltou informação para o público Balanço Final livros”, justificou Beth Soares, reEnquanto uns comemoravam presentante da Fagga. Esta seria uma quanto à nova localização. Quando os visitantes chegavam ao evento pro- o sucesso de vendas e de público, boa iniciativa, não fosse a atitude dos curando pelos sebos, as informações aqueles que tiveram problemas com expositores de se negarem a aceitar o eram imprecisas e os responsáveis pela a estrutura do local eram só insatisfa- bônus como pagamento. A alegação orientação ao público informavam que ção. “Esse ano, para nós, em relação às era a de que o reembolso demoraria não havia sebos no evento. “Tivemos outras bienais, foi péssimo. Essa hora muito a vir. De acordo com a Fagque chamar a atenção deles para que in- nós estávamos rindo à toa, brincando, ga, os estandes não são obrigados a formassem que o sebo estava presente contando as vantagens de estar aqui aceitar os tickets de bônus e a demora na Bienal do Livro. Pediram desculpas dentro, mas esse ano, infelizmente, do pagamento ocorre porque é predizendo que foi apenas um equívoco”, foi decepcionante”, lamentou Elane. ciso contabilizar a venda de todos os queixou-se Elane. A equipe do JF veri- Para Tatiana, o único ponto positivo estandes que aceitaram receber os ficou, no último dia do evento, que as foi a divulgação que o evento propor- tickets, processo que demora cerca de informações sobre a localização dos cionou ao sebo. “Eu gostei da Bienal, um mês. Gabriela Vasconcellos
Gabriela Vasconcellos Livia Montenegro
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Lugar de velho é na escola Antenadas com as transformações sociais, faculdades criam cursos livres para idosos Rebeca Caldas
Alunos soltam a voz na aula de canto, uma das preferidas pelos idosos
Raíza Tourinho Rebeca Caldas
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ue animal caminha com quatro pés pela manhã, dois ao meio-dia, três à tarde e é mais fraco quando tem mais pernas? O homem, respondeu Édipo. Ele engatinha quando pequeno, anda com as duas pernas quando é adulto e usa bengala na velhice. Se o herói da mitologia grega vivesse neste início do Séc. XXI, precisaria de mais tempo para decifrar o enigma da esfinge. Com a ampliação dos estudos, dos avanços medico-científicos e dos serviços destinados à terceira idade tem-se o aumento da expectativa de vida e a tendência é que duas pernas sejam suficientes na velhice. Foi-se o tempo em que ser idoso significava ociosidade à espera da morte. Hoje, os mais velhos conseguem ser saudáveis, trabalhar por mais tempo, criar novas interações sociais. Enfim, aproveitar essa fase da vida para experimentar o que an-
tes não era possível pelo excesso de atividades no auge da vida produtiva. Essas transformações ocorrem ao mesmo tempo em que a população mundial está envelhecendo e os índices de crescimento da população dos países estão caindo. Ou seja, em um futuro próximo, a sociedade terá muito menos jovens e muito mais idosos. O Brasil já vive essas mudanças. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os brasileiros acima de 80 anos somavam 1,8 milhão de pessoas em 2000 e serão 13,7 milhões em 2050. O mercado de trabalho vem se adequando a essa nova realidade, abrindo espaço para idosos até mesmo como modelos de propagandas. Aliás, posar para câmeras está mesmo em alta. Com cada vez mais freqüência, vê-se ensaios fotográficos sensuais para revistas e calendários protagonizados por mulheres acima de 65 anos. Além disso, o cenário do crescimento da população de idosos abre novas possibilidades de trabalho para os
jovens, com a emergência de profissões voltadas para terceira idade, como cuidadores de idosos, enfermeiros, terapeutas ocupacionais e geriatras. Seguindo esta tendência, a área de educação também investe cada vez mais nesse segmento, com a abertura de cursos voltados para idosos, visando reintegrá-los à sociedade, com aulas relacionadas à criação de novas interações sociais, à melhoria da saúde física e à atualização de informações.
Faculdade da vovó Depois de passar dois meses no Hospital Espanhol, cuidando do marido que faleceu vítima de Acidente Vascular Cerebral (derrame), a professora aposentada Elvira Viana, 84 anos, decidiu sair de Caetité, interior do estado, e morar com a filha em Salvador. Com a mudança de cidade veio também a solidão. A filha trabalhava o dia todo e, sem o marido nem conhecidos, Elvira começou a sentir sintomas de depressão. Histórias como essas são comuns com idosos. Segundo a gerontóloga e diretora da Faculdade da Felicidade, Maria Lúcia Carvalho, é o que se denomina de Síndrome do Ninho Vazio. Com famílias cada vez menores, com membros que trabalham o dia todo, os aposentados ficam em casa sem ocupações e solitários, o que gera depressão, característica principal da síndrome. A partir dessa percepção, surgiram cursos voltados para essa faixa etária, cujo tempo livre é extenso e há poucas coisas para se fazer. Os primeiros cursos para idosos surgiram em 1973, na França, com o objetivo de retardar o processo de envelhecimento através d exercícios
físicos e mentais. No Brasil, existem em 2009 cerca de 200 cursos voltados para essa faixa etária. Geralmente funcionam em instituições de ensino superior e com disciplinas diversas, a exemplo de filosofia, tai-chi-pai-lin, italiano e surf. Muitas dessas instituições utilizam o nome de fantasia de faculdade, visando possibilitar aos alunos um ambiente de ensino superior. O público é composto pela classe média e as mensalidades variam entre 180 e 250 reais. Segundo Graça Senna, gerontóloga e diretora da Faculdade Livre da Maturidade, está havendo uma mudança de perfil em relação aos idosos. Hoje a imagem das avós que ficam costurando em casa é substituída pela vovó animada que gosta de sair com os amigos e viajar. “Elas estão descobrindo novos modos de envelhecer”, conclui. Compostas em sua maioria por mulheres, as faculdades para idosos oferecem um novo meio de vida, além de possibilitar a descoberta de novas aptidões. “Eu nem sabia que era capaz”, afirma Alvina Cunha, 57, que faz canto e teatro há cinco meses. Os idosos melhoram a auto-estima e o relacionamento com familiares depois que ingressam nesses cursos. Com um novo ânimo para a vida, Arzelir Valadão, 82, conta que agora tem mais assuntos para conversar com os netos e não percebe o tempo passar. “Eu não me sinto envelhecer. Tenho muitas coisas ainda para realizar”, comenta. Diferentemente do que ocorre nas graduações comuns, os alunos desse tipo de faculdade não tem a menor pressa para sair. Depois que a filha a matriculou, a professora Elvira vai à faculdade diariamente, há dois anos, e afirma: “acho que vou ficar aqui até morrer”.
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Rios: descaso e degradação Camila Queiroz Gabriela Vasconcellos
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hhh! Eu bebia água desse rio, tomava banho. Uma água dessa não fazia mal a pessoa nenhuma. O rio era bem cheio, aí agora é esgoto”. É difícil de acreditar, mas o pescador Cipriano, 72 anos, descreve a história de um rio de Salvador – o rio Lucaia, que desemboca no Largo da Mariquita, no Rio Vermelho. Ao longo do tempo, este e todos os rios que cortam a cidade de Salvador foram degradados por anos e anos de lançamento indevido de lixo doméstico e industrial, transformando-se em esgotos e lamaçais fétidos a céu aberto. Por volta da década de 70, Salvador sofreu uma explosão demográfica que resultou em expansão urbana sem planejamento e ocupação desordenada do solo. O poder público ignorou as mudanças e nunca atuou de forma integrada na criação de sistemas infra-estruturais de esgotamento sanitário. Assim, os recursos naturais da cidade foram degradando-se em ritmo acelerado e os rios são os principais reflexos disso. Falta informação sobre os rios “É impressionante, mas em geral não se tem informações sobre nossos rios. Isso representa descaso com a cidade”, considera Lafayette Dantas, professor adjunto de Engenharia Ambiental da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Não há nenhum órgão municipal que se responsabilize, de forma direta, pelos rios de Salvador. “O IMA (Instituto do Meio Ambiente) fazia regularmente as pesquisas sobre os rios até 1985. Com a eleição de Mário Kertész, ficou estabelecido, em acordo com o IMA, que a Prefeitura de Salvador assumiria essa pesquisa anualmente,
Gabriela Vasconcellos
Onde antes corriam águas limpas, hoje acumulam-se dejetos sob a invisibilidade do poder público
O rio Lucaia segue seu curso levando garrafas plásticas, peixes mortos, folhas, latas e etc
o que não foi feito. Desde 86 não ocorre”, afirma Lúcia Politano, do Grupo Águas (Grupo de Estudos sobre Águas, Ambiente e Sociedade da UFBA). A SMA (Superintendência do Meio Ambiente) é responsável por promover política ambiental e desenvolvimento sustentável em Salvador. Entretanto, não dispõe de acervo sobre os recursos hídricos da cidade: não há material, nem dados consistentes. Como justificativa, o chefe do setor de monitoramento, Benedito Venceslau, afirma que o órgão, criado há quatro anos, ainda está em fase de estruturação. Quando fundada, a superintendência elaborou “um programa de recuperação e conservação das bacias hidrográficas. Uma das ações era o mapeamento dos rios da cidade. A demanda que criamos culminou no projeto criado pela UFBA, Grupo Águas, de pesquisas, do qual passamos a ser parceiros”,
explica Venceslau. O Grupo Águas, fundado em 2005, é uma iniciativa da UFBA com o propósito de discutir uma política de gestão para os rios de Salvador. Já fez a divisão de bacias hidrográficas e está elaborando um sistema de indicadores da qualidade dos rios por bacias, em parceria com órgãos da Prefeitura, como a SMA. De que rios estamos falando? Segundo o mapa disponibilizado pelo Grupo Águas, existem 10 bacias hidrográficas em Salvador: Subúrbio, Cidade Baixa, Cobre, Jaguaribe, Ipitanga, Pituaçu, Camarajipe, Lucaia, Barra e Pituba. O rio do Cobre, situado na bacia de mesmo nome, é o único rio de Salvador passível de ser utilizado para o abastecimento de água e para lazer, embora essas atividades já estejam sendo comprometidas pela poluição. Ao se aproximar, por exemplo, da cachoeira do Parque de São Bartolomeu, muito utilizada
para o culto afro-religioso e para o banho, é possível sentir o cheiro de esgoto. Jaguaribe, Cobre, Camarajipe, Lucaia e Barra são as mais importantes bacias da cidade. Um problemão O principal fator poluente dos rios de Salvador é o esgoto doméstico, fruto da deficiência do esgotamento sanitário, pois ainda há muito lançamento indevido por residências não ligadas ao sistema. O órgão res-ponsável por este serviço é a EMBASA (Empresa Baiana de Águas e Saneamento S.A). Em 1995, o órgão iniciou o Projeto Bahia Azul, cuja meta era atingir 80% dos domicílios de Salvador, uma vez que apenas 26% da população tinha acesso à rede de esgotamento sanitário. O projeto não atingiu seu objetivo. Quatro anos após o seu término, 79% da população tem acesso à coleta e ao tratamento de esgoto.
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Gabriela Vasconcellos
Em meio à boemia do Rio Vermelho rio agoniza
Segundo Cantídio Duarte, superintendente de esgotamento sanitário da EMBASA, com os recursos do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), 60 mil novas ligações serão realizadas nos próximos dois anos, elevando o percentual para 90%. Entretanto, a cidade cresce mais rápido do que os projetos de saneamento. “É difícil chegar a 100%, pois a cidade cresce, as habitações desordenadas continuam. Não conheço nenhuma cidade que seja 100% esgotada no Brasil. Estamos com 79%. Nossa meta é chegar a 90% e depois a 100%”, declara Duarte. As habitações de-sordenadas a que ele se refere não oferecem infra-estrutura ideal para a instalação de redes de coleta de esgoto, sendo necessário a EMBASA investir em tecnologia para atingir esses domicílios. Uma das soluções apontadas pela EMBASA para a ampliação do sistema de esgotamento é a construção, já iniciada, de um novo emissário submarino na Boca do Rio, já que o emissário existente no Rio Vermelho
está atingindo sua capacidade máxima. A função do emissário é transportar os esgotos coletados até o fundo do mar, a 2.750 m de distância da costa e a 27 metros de profundidade, distância segura para não afetar a balneabilidade das praias. Segundo o professor titular em Saneamento da UFBA, Luiz Roberto Santos Moraes, não há necessidade de construir um novo emissário. “O programa Bahia Azul se propôs a fazer a tubulação de esgoto em Salvador para coletar e jogar no emissário. Fez as ligações, gastou-se muito dinheiro e a população não ligou suas casas à rede de esgoto, que continuou sendo despejado nos rios. Então o governo do Estado, para despoluir as praias, tomou a decisão de barrar os rios, conduzir suas águas, juntamente com o esgoto, para o emissário. Isso fez com que o emissário do Rio Vermelho chegasse quase à sua vazão plena”, explica Moraes. Mesmo em alguns lugares em que o Bahia Azul possibilitou coleta dos esgotos, a população, geralmente de
baixa renda, não faz as ligações para integrar suas casas à rede de esgotamento. O fato de conviver em locais com condições sanitárias precárias, segundo a assistente social da EMBASA, Hilda Dias, não desperta nas pessoas a importância de se fazer tais ligações. Além disso, no momento em que estas são realizadas, a população é obrigada, por lei estadual, a pagar uma tarifa correspondente a 80% do valor da conta de água, taxa considerada absurda. De acordo com o professor Moraes, o maior problema é que a EMBASA nunca apropriou os custos de seu sistema, ou seja, nunca deixou claro quanto custa sua operação e sua manutenção, a fim de justificar determinado valor, que poderia ser mais barato ou mais caro, a depender dos números apresentados nessa apropriação. “Essa porcentagem (80%) é definida por nós engenheiros quando fazemos o sistema de esgotamento sanitário. Baseados em pesquisas, supomos que 80% da água que o homem [utiliza] volta para o sistema de esgotamento sani-
tário. Então a EMBASA ‘pegou’ esse coeficiente de contribuição de esgoto e estabeleceu o valor da tarifa a ser cobrada”, assegura Moraes. Para não pagar a tarifa, algumas pessoas lançam o esgoto produzido em suas casas diretamente nos rios ou conectam suas tubulações diretamente à rede de drenagem de água pluvial, estruturas como a boca de lobo, que captam a água da chuva direcionando-a diretamente nos rios. “Assim, uma água que está correndo para o rio e que deveria ser pura e só de chuva, mistura-se com o esgoto e causa a mortandade dos rios de Salvador”, afirma Luiz Muniz, assessorchefe da SUMAC (Superintendência de Manutenção e Conservação da Cidade). Para incentivar as ligações sanitárias, a EMBASA oferece o serviço de instalação e facilidade de crédito no pagamento das tubulações. Riscos para a população Segundo Eduardo Mendes, biólogo e professor da UFBA, os riscos a que a população está submetida são mais de 300 doenças, fruto do contato direto e indireto com os rios poluídos e contaminados, transmitidas através de vírus, bactérias, parasitas e insetos. Em Salvador, a dengue e as muriçocas são os riscos mais relevantes. As pessoas da região do rio Lucaia, no Largo da Mariquita, sofrem diariamente com a poluição. Tontura, enjôo, dor de cabeça e problemas respiratórios causadas pelo mau cheiro são algumas das dificuldades enfrentadas no convívio diário com o rio, um esgoto a céu aberto. “A gente já chegou a distribuir máscara quando o cheiro estava muito forte”, conta Luís Fernando Bernardes, funcionário de uma loja de material de construção das imediações. O estado de degradação do rio Lucaia prejudica o comércio local, com o afastamento de clientes. “Eles falam que tá fedendo, tá cheio de mosquito, de barata e tem cada rato enorme, que parece preá”, reclama Lúcia, 27 anos, há dois anos trabalhando em um salão de beleza do local.
CIDADE
Jornal Laboratório - FACOM/UFBA - Agosto de 2009
A solução seria... Para parte da população que mora ou trabalha próximo aos rios de Salvador, a cobertura dos canais seria a melhor solução para os problemas de alagamentos e odor, além de proporcionar um ambiente de lazer e convívio social. O pensamento de “é um esgoto, tire e tape” é comum, afinal o incômodo diário e a descrença de que tal esgoto possa vir a se tornar um córrego limpo que possa ser utilizado para diversos fins, como abastecimento e lazer, se sobrepõe à consciência de que um recurso natural está sendo esquecido, sendo mais fácil colocar os problemas estruturais e seculares da cidade embaixo do tapete. A obra de urbanização da Avenida Centenário foi um exemplo disso. No dia 21 de setembro de 2008, a Prefeitura Municipal de Salvador inaugurou a “nova” Avenida Centenário, projeto que tinha o objetivo de acabar com o alagamento em épocas de chuva e proporcionar conforto e praticidade aos moradores da região, através da construção de uma área de lazer com nova pavimentação, iluminação, parque infantil, jardins, equipamentos de ginástica, ciclovia, pista de cooper e quiosques. Segundo dados da Prefei-
tura, a obra foi aprovada por 86% da população. Projetos similares estão em andamento em outros pontos da cidade, como o Imbuí e a Vasco da Gama. Infelizmente, a população não foi informada das verdadeiras condições do rio que foi coberto, o rio dos Seixos. Segundo o professor Moraes, o rio dos Seixos, que deságua próximo ao Morro do Cristo, na Barra, era um dos mais limpos da cidade, pois “a bacia da Barra é uma das que tem o maior número de casas ligadas à rede de esgoto, o que diminui a possibilidade de o esgoto ir para o corpo d’água”. De acordo com Lafayette Dantas, um estudo ambiental foi solicitado para a viabilização das obras. As análises apresentadas comprovavam que o rio estava em fase de recuperação. Em alguns pontos era possível encontrar peixes e vegetação. “Já havia vida dentro do rio, um processo já adiantado de recuperação. Foi uma decisão política que tinha um cunho de fazer uma obra para aparecer para a cidade e ao mesmo tempo superfaturar. A população precisa ser melhor informada sobre como o homem maneja a cidade, sobre quais interesses são defendidos”, complementa Moraes.
Gabriela Vasconcellos
Até carrinho de bebê se vê nas águas do rio Lucaia
Segundo o assessor-chefe da SUMAC, o rio dos Seixos havia perdido sua caracterização de rio, já que suas laterais eram revestidas de concreto e a água já não corria em seu leito normal. Assim, a cobertura do canal proporcionou uma melhor infraestrutura para a região, reflexo, inclusive, de um clamor social. “A cobertura do canal é muito melhor do que deixar o rio lá. A contrapartida social foi imensa. Ele aberto não trazia nenhum tipo de benefício às comunidades. Hoje você vê as crianças do Calabar, bairro humilde da Centenário, brincando ali”, argumenta. A cobertura dos rios, para alguns, é a melhor solução, a mais imediata. Para Antônio Vidal, frentista de um posto de gasolina próximo à foz do rio Lucaia, por exemplo, “seria o mais correto, o mais rápido, cobrir o rio. Revitalizar seria muito demorado”. Projetos assim contribuem para a perda de memória da população sobre a importância de um rio e sua existência na cidade. De acordo com Dantas, a revitalização pode custar mais caro do que a cobertura dos rios, mas é o preço pago por um passado sem políticas públicas adequadas. “Então, há um rio que você tapa para esquecer que existe. Você tem que solucionar o problema do esgotamento e não escondê-lo embaixo do tapete”, argumenta. Ainda segundo Dantas, é preciso pagar o preço agora para que no futuro seja possível devolver esse bem precioso, essencial para a vida, a sociedade, para garantir uma melhor qualidade de vida. Conscientizar é preciso É difícil acreditar que possa existir um rio limpo em Salvador, principalmente porque o poder público não articula projetos de educação ambiental. Antes de qualquer coisa, é preciso entender que os canais que cheiram mal, poluídos, que alagam
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na época de chuvas, são, na verdade, rios. Sendo rios, são um bem social que proporcionaria lazer, água doce e ambiente saudável para todos, desde que houvesse ações a fim de promover intervenções de recuperação, preservação e monitorização. “É preciso resgatar para o desenho urbano de uma cidade essas características naturais e a água tem um apelo muito grande. O rio tem um apelo muito grande. Então, trabalhar para mostrar que não é um canal, não é uma vala de esgoto, mas sim um recurso natural em que as pessoas poderiam estar se deleitando, acho que é uma obrigação”, afirma Moraes. O clamor social é grande quando se trata de projetos urbanístico como o da Centenário, pois não há discussão sobre os impactos a longo prazo que esse tipo de projeto acarreta. A população não acredita na revitalização, pois não tem memória do que seja um rio em Salvador, de modo que a cobertura torna-se o melhor caminho para a solução dos problemas imediatos. Segundo Dantas, a educação formal necessita incentivar as crianças a pensar o ambiente, porém os professores não têm essa cultura e não são preparados para ensinar algo inovador, repensar o modelo ambiental que se tem. Além disso, ele crê que a sociedade não entende que é importante participar e contribuir. O engenheiro acredita que não há um responsável pela Educação Ambiental, o que requer uma ação conjunta entre órgãos públicos e setores privados. “Uma cidade com mais de três milhões de habitantes, densa em termos de ocupação, é difícil de dar uma solução imediata para a questão de esgotamento. É possível reverter alguns casos. É uma questão de opção. O que queremos de nossa cidade? É uma coisa que tende a mudar a cultura da sociedade, a percepção do ambiente urbano. A gente sente que a cidade está evoluindo para uma artificialização, cobrindo, e principalmente, colocando embaixo do tapete toda a sujeira”, acredita Dantas.
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ECONOMIA
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Homens à venda
Garotos de programa passam despercebidos usando alguns dos lugares mais comuns da cidade como ponto de trabalho André Cerqueira
afirmem que o maior movimento ocorre nas madrugadas. “A gente não pode fazer nada”, conta um policial que não quis se identificar. Depois do entardecer, a prática se acentua de forma simples, mas perigosa, principalmente pelo fato dos encontros acontecerem entre pessoas que nunca se viram e a escuridão do local aumentar o risco de assaltos. Este ritual é formado por garotos de programa aglomerados na escuridão, encostados na parede de trás do Farol que aguardam a abordagem de clientes e, muitas vezes, fazem os programas ali mesmo, praticamente em meio à passagem de outros interessados.
Banheiros públicos de Salvador: locais de assédio e prostituição
Luis Fernando Lisboa Verena Paranhos
A
prostituição masculina pode estar na escuridão de becos e guetos de Salvador, mas também nos lugares mais familiares da cidade. Shopping centers, bibliotecas e pontos turísticos são locais que abrigam este tipo de atividade e comumente não são vistos por olhos desatentos. Segundo Maurício Tavares, professor da Faculdade de Comunicação da UFBA, “hoje existe uma cartografia que antes não existia”, apesar dos lugares gays tradicionais ainda permanecerem como points deste tipo de prostituição. O Grupo Gay da Bahia (GGB) elabora anualmente o Guia Gay, um roteiro GLS que indica bares, saunas e locais de paquera para o público homossexual. Élcio Gomes, historiador que pesquisa a prostituição masculina desde 2005, afirma que na maioria dos locais apontados pelo guia pode-se ver facilmente a prostituição masculina. “O terceiro piso
do Center Lapa, o Farol da Barra, o Cristo, a Barraca Aruba (na Boca do Rio), além de saunas e clubes, são conhecidos no mundo homossexual como lugares de prostituição”, diz. Em qualquer lugar O ex-garoto de programa André Cupolo acrescenta à lista os banheiros da Estação da Lapa e os da Biblioteca Central dos Barris. No entanto, a associação entre o roteiro do Guia Gay e o da prostituição masculina não preocupa Marcelo Cerqueira, presidente do GGB, para quem a política do grupo é um grande “guarda-chuva” que abriga a todos, inclusive garotos de programa. Além do público local, de acordo com Tavares, o Porto da Barra sobrevive como ponto de prostituição por causa do público estrangeiro, que frequenta o local principalmente no verão. Ainda na região da Barra, o Farol também serve como vitrine para boys exporem seus “produtos”. Comerciantes do local dizem que michês frequentam o Farol inclusive durante o dia, embora policiais
O Centro Os boys encontram no Centro de Salvador um grande leque de opções para “caçarem” seus clientes, devido à concentração de saunas e clubes gays. Élcio Gomes explica que existem diferentes tipos de saunas e a figura do garoto de programa está presente naquelas conhecidas como de “cliente para boy”. Nestas, o cliente além do programa, paga para entrar na sauna (cerca de R$ 15), pelo quarto e pelo preservativo, enquanto o boy paga ao estabelecimento cerca de 30% do valor da entrada. Gomes relata que a prostituição masculina se dá como um trabalho em que são feitos acordos prévios entre clientes e boys. “Nos acordos, o garoto de programa determina que para ser ativo é um preço (cerca de R$ 50) e para ser passivo outro (por volta de R$ 100). Se o cliente quer que o boy ejacule, o preço torna-se ainda mais alto, pois é muito difícil ejacular várias vezes ao dia”, exemplifica. Um clube de sexo gay é uma das
peculiaridades do Centro, que trouxe para Salvador algumas novidades da Europa, como o dark room e as cabines, a preços acessíveis: R$ 8 para menores de 25 anos e R$ 10 para maiores. De acordo com André Cupolo, ex-boy e proprietário do clube, ambos se destinam a proporcionar sexo anônimo: “é aquela história de você entrar, fazer sexo e sair como se não tivesse feito com ninguém”, define. O dark room é um salão escuro onde são exibidos filmes eróticos e os usuários fazem sexo abertamente. Já as cabines, são cubículos, equipados com TV, interligados por buracos, onde se pode inserir o pênis para que a pessoa da outra cabine faça sexo oral ou anal, sem que os parceiros visualizem o rosto um do outro. Um conhecido reduto homossexual do centro da cidade, o Beco dos Artistas, segundo comerciantes e garçons dos bares locais, não é um ponto de garotos de programa, mas resiste como um local de afirmação. Por imperar o público GLS, o beco é o melhor local para que se sintam à vontade para paquerar sem medo da reação do outro. Programa.com.br Com a expansão da internet, a prostituição masculina ganhou novo fôlego: os boys deixam as ruas e passam a trabalhar em frente às telas dos computadores, utilizando sites de relacionamentos, como manhut e gayromeo, além de salas de bate-papo. A equipe do Jornal da Facom manteve contato com alguns desses boys em sites de relacionamentos, onde eles tem perfis destinados à procura de clientes, e em salas de bate-papo, onde nicks (nomes de usuários) como garotos de programa ou a sigla GP deixam claro o que fazem ali. O estudante Wendel*, 22 anos, utiliza a internet para “caçar” clien-
ECONOMIA
tes. Ele diz que os contata em salas de bate-papo e depois os encaminha para um endereço de MSN. “Na conversa, eu acerto preços e detalhes, como local e duração”, conta. Wendel* diz ser autônomo, mas revela a existência do “cafetão online”, que faz a intermediação entre o prostituto e o cliente, gerenciando sites, criando anúncios e acertando os programas. Apesar de outros entrevistados desconhecerem a figura dessa nova modalidade de cafetões, Wendel afirma que eles ficam com 50% do valor pago pelo programa. O produto Marcelo Cerqueira afirma que é difícil quantificar o número de garotos de programa que atuam em Salvador, “porque, em potencial, todo homem pode virar um caçador, a depender da oferta”. A facilidade é determinante para o crescimento da prática entre jovens que precisam de algum dinheiro e usam essa necessidade como pretexto. “As desculpas são para eles mesmos, pois acham que fazem programas como uma coisa momentânea, para ganhar o dinheiro da droga ou comprar roupas”, afirma Cupolo. Wendel* revela que faz programas como se fossem “bicos”: consegue a grana e para por um tempo. “Comecei fazendo cinco programas e juntei o dinheiro para comprar um monitor para o meu computador”, revela o boy que há cerca de três anos só trabalha quando precisa. Apesar de reconhecer que os boys podem vir tanto das classes baixa e média, quanto da alta, Gomes diz que garotos de programa da cidade se identificam por usarem roupas de marca, cuidarem bem do corpo, fazerem academia. Eles têm, geralmente, entre 20 e 35 anos, “pois é necessário um certo vigor físico para transar várias vezes no mesmo dia”. Os boys não são “super-homens” e desenvolvem técnicas para terem diversas ereções ao dia. Comumente, antes de um programa, eles se masturbam e prendem um elástico ou plástico
fino entre o pênis e o saco escrotal para manterem a ereção. Cupolo diz que usava com frequência a técnica, um saber profissional, que quando bem feita não deixa sequelas. “Você faz a ereção e estrangula a base, de maneira que o sangue fica preso e o pênis roxo”, conta. Sexualidade Um dos pontos mais delicados na prostituição masculina é a sexualidade, pois, para a maioria dos garotos de programa, o fato de ter relações sexuais com homens não os torna homossexuais. “Uma boa parte desses michês são gays mal resolvidos, que usam o dinheiro como sobrevivência e até como um esconderijo para a sua sexualidade”, sentencia Maurício Tavares. Para ele, transar por dinheiro “na nossa cultura machista, apaga algumas vergonhas” mas nada mais é que um álibi: “o cara é passivo na relação sexual, mas não está sendo gay, está fazendo isso por dinheiro”, explica. O presidente do GGB complementa dizendo que, ao fazer sexo por dinheiro, o garoto de programa vence os preconceitos. Segundo ele, até os próprios homossexuais não os encaram como gays: “eles têm outra identidade. É isso que excita alguns clientes”. Cerqueira afirma que é rara a procura de mulheres pelo serviço, mas ressalva que a clientela varia muito, incluindo, até mesmo, homens casados. O medo do rótulo homossexual do grupo pode ser percebido em anúncios de sites, em que os garotos de programa dizem que só atendem mulheres ou casais, mas basta um telefonema para que mudem de ideia e aceitem prestar serviços a homens também. A equipe do JF fez o teste e, além da resposta positiva, conseguiu negociar o preço, que de R$ 300 ficou por R$ 250. Os michês de elite cobram até cinco vezes mais que os boys de sauna ou de rua, dependendo do acordo feito. Como em todo negócio, cada local tem seu preço e produto, mas sempre há quem
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Savana Caldas
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Fachada discreta reúne homossexuais nos Barris
compre. Para Cupolo, o perfil do cliente é qualquer um que possa pagar, “jovem ou velho, não importa”. Já Tavares define o cliente como um homem mais velho, de baixa autoestima e menos viril. Contudo, o professor diz que nem todos os clientes se encaixam nesse perfil. “Tem aqueles que, mesmo sendo bonitos e ricos, gostam de garotos de programa, por um gosto pessoal ou qualquer outro tipo de afinidade”. Riscos Apesar de ser uma prática comum, a prostituição masculina oferece riscos tanto a clientes quanto aos garotos de programa. Carlos*, 20 anos (que começou a se prostituir aos 16, quando teve que sair de casa devido à sua identidade sexual), revela que alguns clientes chegam a propor altas
quantias por programas sem o uso de camisinha. “Não vale a pena pelo risco”, conta. A insegurança das relações com garotos de programa é atestada pelo Guia Gay ao apresentar algumas dicas que podem evitar a violência homofóbica: “evite levar desconhecidos ou garotos de programa para casa; prefira fazer programas em hotéis, motéis e saunas; antes da transa acerte todos os detalhes: preço, duração, preferências eróticas (se ele aceita, por exemplo, ser passivo); se o encontro for na sua casa, tranque a porta e esconda a chave; não deixe armas, facas e objetos perigosos à vista”. Estas dicas funcionam como uma espécie de “manual de consumidor” para aqueles que não abrem mão de usar os serviços da prostituição, tentando precaver-se dos perigos que podem estar presentes nesta prática.
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SÓ SE VÊ NA UFBA
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Chuva transtorna UFBA Desabamentos e inundações confrontam Universidade Nova com velhas precariedades Victor Soares
Victor Soares
T
oda a população de Salvador enfrentou problemas nos dois últimos meses por conta das chuvas intensas que caíram na cidade. O cenário não foi diferente para estudantes, funcionários e freqüentadores da Universidade Federal da Bahia. Mesmo em tempos de Universidade Nova, o fato é que a infra-estrutura não tem como adequar às tendências contemporâneas praticadas no projeto pedagógico às estruturas físicas e, assim, como no resto da cidade, A UFBA velha e a nova sucumbiram do mesmo modo e juntas às chuvas torrenciais do verão baiano. Os transtornos causados nos campi e unidades da universidade foram os mais diversos e trágicos possíveis. Desde alagamentos de trechos, quedas de galhos e de árvores inteiras aos já costumeiros desabamentos de partes de estruturas e partes do teto de uma das residências universitárias.
Em dias de chuva o acesso à Universidade torna-se impossível em vários pontos
a interrupção de energia elétrica em mais de 12 laboratórios do Instituto de Ciências da Saúde (ICS). As unidades ficaram sem energia por 30 horas. Vale dizer que o ICS, que hoje comporta mais de 100 pesquisadores, não conta com sequer um gerador para imprevistos como este. Gubio Soares Campos, professor Apagão no ICS e pesquisador do Instituto se mosEm abril, uma cajazeira de mais trava revoltado diante do episódio e de 20 metros de altura caiu, derru- em entrevista a um jornal local debando quatro postes de 11 metros sabafou: “Aqui não tem um gerador, no Vale do Canela, o que ocasionou que não é um aparelho caro. Isso já se falou várias vezes e Victor Soares a Reitoria não toma providências”. O ICS mantém em seus laboratórios células e reagentes que precisam ser conservados a temperaturas abaixo de 70°C negativos. Com a falta de energia só foi possível mantê-los a 5°C negativos. Os pesquisadores ressaltam que acidentes previsíveis Aguaceiro na entrada da Biblioteca Central
dessa natureza têm como ser evitados, ao mesmo tempo em que argumentam que há descaso para com os centros de pesquisa acadêmica, relembrando o episódio do incêndio no Instituto de Química, cujos prejuízos materiais e acadêmicos até hoje são imensuráveis. Sem atendimento As imediações da Reitoria da UFBA também foram palco de um contratempo. Um galho de uma árvore de grande porte caiu nas proximidades do edifício e atingiu uma idosa na cabeça e em outras partes do corpo. Gertrudes Pereira, de 91 anos, teve traumatismo craniano e escoriações nos membros inferiores. Imediatamente após o acidente, embora este tenha acontecido praticamente em frente ao Hospital das Clínicas, não pôde ser removida para o interior do hospital e esperou um longo tempo por uma ambulância para removê-la para o Hospital Geral do Estado, sob o argumento de que o HC, pertencente à UFBA e vinculado ao curso de Medicina, não atende casos de emergência, o que
revoltou populares que passavam pelo local e socorreram a vítima. Em nota, a direção do Hospital se limitou a informar que a poda das árvores vem sendo feita periodicamente e que, segundo a Prefeitura do Campus Universitário (PCU, órgão que cuida da manutenção de todas as estruturas da UFBA), providências foram tomadas para prevenir outros acidentes. Teto desabou Os estudantes que moram na residência universitária da UFBA do Canela sentiram na pele e na cabeça o descuido clássico da Universidade com as unidades de residência. Parte do teto de um dos quartos da unidade que fica no Canela desabou durante as chuvas de maio e, de novo, o incidente foi atribuído somente à chuva. A situação do prédio, conforme as queixas constantes dos residentes já vinha se agravando antes mesmo do início das chuvas. Infiltrações históricas nas paredes, acúmulo de mofo e limo e problemas com a fiação elétrica são apenas alguns dos problemas com os quais quem precisa morar em uma das residências da universidade têm que tolerar. Biblioteca sobre as águas Diante de todas as catástrofes decorrentes das chuvas ou a elas atribuídas por conveniência, o fato é que somente o sol e o tempo seco podem garantir que a comunidade universitária possa deslocar-se pelos campi e freqüentar as instalações sem sentir medo. A Biblioteca Central Reitor Macêdo Costa, por exemplo, no campus de Ondina, ficou completamente alagada e intransitável durante as semanas nas quais os índices pluviométricos estiveram além dos padrões esperados para esse período do ano.
FACONISTAS
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Tão grande e tão pequena Salvador tem circuito provinciano para agenda de shows internacionais
Rodrigo Fiuza
Guilherme Vasconcelos Rafael Freire
O
que Madonna, Elton John, Rolling Stones, Radiohead e Iron Maiden têm em comum além de serem grandes nomes da música internacional? Todos eles, nos últimos anos, apresentaram-se no Brasil e nem sequer cogitaram a possibilidade de tocar para o público soteropolitano. Quando o assunto é música, a capital conhecida mundialmente como símbolo da diversidade, do multiculturalismo e do sincretismo rítmico esbarra em uma mentalidade provinciana e no amadorismo das produções. Idealizadas, no máximo, para receber atrações locais e nacionais de médio porte, as casas de shows de Salvador – a terceira maior cidade do país, com quase três milhões de habitantes – são, salvo raríssimas exceções, desprezíveis. A maioria é pequena demais e não tem estrutura sequer para comportar shows de pequeno porte com condições satisfatórias de segurança e conforto. Os estabelecimentos do ramo que se destacam na cidade, quando comparados com os melhores de outras capitais, se tornam motivo de piada e dão a exata dimensão do abismo que separa Salvador dos padrões mínimos exigidos para promover shows de proporções internacionais. Enquanto Recife, que tem aproximadamente a metade da população de Salvador e trouxe recentemente bandas como Scorpions, Iron Maiden e Deep Purple, dispõe do Chevrolet Hall, uma das mais modernas casas de eventos do Brasil, com 18 mil m² de área construída e capacidade para 16 mil pessoas, a capital baiana tem, como principal destaque, a Concha Acústica do TCA (Teatro Castro Alves), com suas conhecidas
limitações de acesso, restrições de horários, por localizar-se em área residencial, e capacidade reduzida de público (cerca de 5.400 pessoas). Pagode São Paulo e Rio de Janeiro, paradas obrigatórias de toda e qualquer atração internacional no Brasil, têm, cada uma, pelo menos três ou quatro casas de espetáculo – como, por exemplo, o Citibank Hall, o Credicard Hall e o Via Funchal – projetadas e equipadas para comportar artistas e públicos diversos. A excelência estrutural dos estabelecimentos, que vai desde a facilidade de acesso até a qualidade do aparato de som, permite que em uma mesma casa se apresentem tanto Zeca Pagodinho, um dos principais ícones do samba nacional, quanto o Oasis, uma das mais elogiadas bandas de rock dos anos noventa. A falta de ambientes adequados para a realização de shows internacionais não é, contudo, um obstáculo insuperável. Poder-se-ia utilizar, sem grandes dificuldades, espaços abertos, como estádios e parques de exposições. Não faltam exemplos Brasil afora: U2 no estádio do Morumbi em São Paulo, Iron Maiden no Jockey Club em Recife, Rolling Stones na praia de Copacabana no
Rio. No entanto, essa alternativa parece não ser considerada pelos empresários para diversificar e expandir o leque de opções dos baianos. Uma das explicações para tal desinteresse passa, certamente, pela hegemonia do Pagode e do Axé, gêneros que proporcionam rentabilidade garantida o ano inteiro. Entretanto, o argumento, muitas vezes empregado, de que não há público na região para consumir um show de Madonna ou Rolling Stones, por exemplo, é uma conjectura fundamentada na inversão da lógica da lei da oferta e da procura. Os empresários e as produtoras de eventos impõem um cardápio bastante limitado ao público e, ainda assim, arvoram-se em portavozes do gosto popular, como se a procura determinasse e modelasse a oferta, e não o contrário. Terceiro escalão O baixo poder aquisitivo da população de Salvador (segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a cidade tem a segunda menor renda per capita do país entre as capitais, à frente apenas de Teresina) é outro empecilho freqüentemente apontado pelas produtoras de eventos. Argumentase que os investimentos necessários para promover shows internacionais
não trariam retorno. Mais uma vez, o assunto cai no campo da suposição. Como demonstram experiências bem-sucedidas em cidades como Recife e Manaus, as superproduções internacionais atraem público de outros cidades e estados, movimentando a economia e o turismo locais. Fenômeno semelhante ocorre, por exemplo, no período do carnaval. Os blocos mais procurados e, conseqüentemente, os mais caros (com preços que ultrapassam os exorbitantes R$ 1.000,00) têm as suas fantasias vendidas com facilidade e antecedência espantosas. Ou seja, é a elite econômica que, aqui ou em qualquer lugar do mundo, banca a indústria do entretenimento. Diante dessa realidade de completa inexistência de grandes shows internacionais – os músicos estrangeiros que vêm a Salvador são, quase sempre, do segundo ou terceiro escalão do cenário internacional –, quem deseja prestigiar tais eventos tem, necessariamente, que viajar para outras capitais. Perde o público e perde a cidade, que deixa de recolher impostos e de gerar riqueza em razão do amadorismo e da crença falaciosa em três mitos: a ausência de espaços adequados, a escassez de público e o baixo poder aquisitivo da população.
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OUTROS OLHARES
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O canto da cidade é meu. E seu
Ana Margarida Almeia
U
m dia destes, na praia do Porto, no meio de uma conversa com um professor de capoeira (na praia, todos são professores de alguma coisa, da música ao samba), ele diz: “Turista assim que nem vocês a gente
vê lá do Farol e já conhece.” E eu com tanto trabalho para ficar morena. Podemos chamar a um sítio nosso quando o senhor do quiosque nos estende o jornal de todos os dias e uns amendoratos (perdição) sem ser necessário pedir ou a senhora da loja nos deixa trazer o pão fiado porque a bolsa ficou em casa. E podemos todos fazer parte da terra da alegria. Senão, alguém me mentiu. Em outra conversa: “Cara, se traição fosse flor, Salvador seria um jardim”. Sei de outro jeito. Se traição de alunos de intercâmbio fosse árvore, teríamos na Bahia uma verdadeira floresta amazônica”. Aos 20 anos, uma relação com alguém, sobretudo que está longe, deve basear-se sempre na liberda-
de. Devemos aprender a construir laços, daqueles tão frágeis que nunca se vão soltar, em vez de nós que apertam (Bahia de Todos Nós?). Respeitar a partir da liberdade que pode ser estar com alguém. Outra vez: “O que se passa aqui, fica por aqui mesmo. “Estamos no Brasil.” Não estamos aqui para sermos outra pessoa. Não existem intervalos sem deixar uma das duas vidas para trás. Ou, pelo menos, menos completa. O mundo é de possibilidades, mas temos de escolher. Importante é sorrir. Devemos enredar-nos no meio do “eu quero mais é beijar na boca” ou deixar-nos levar pela boquinha da garrafa. Cada pessoa tem o seu jeito de bem querer e “é preciso amar as pessoas como
se não houvesse amanhã”. Todas as formas de gostar, de amar e de sentir são válidas, devem ser respeitadas e se escolhemos estar com alguém deve ser pelo gosto e a beleza da verdade. Ter saudades tuas. “Podíamos nunca aqui ter chegado, mas a verdade é que chegamos. Se as pessoas pensassem um pouco mais nisso veriam que a vida não merece tanta preocupação”. A frase é Lermontov, um herói do nosso tempo. Portugal e Brasil são, definitivamente países irmãos. Ninguém nunca vê o Big Brother, mas todo o mundo sabe quem é Max e Francine. Ana Margarida Almeia é estudante portuguesa em intercâmbio na Facom
Uma basca a mais no Brasil
Maitane Anitua Roa
S
ou uma euskaldun (basca) vivendo em Salvador. No Brasil, saboreamos a liberdade em toda sua intensidade (já que desde a guerra e a pósguerra nunca tivemos que deixar de nos considerar euskaldunes aqui). Tenho deixado de fazer distinção entre euskaldunes e
brasileiros. Na minha opinião, somos complementares. A primeira impressão que tive desta cidade foi que havia lugar para todos. Não só para as pessoas, como também para as culturas. A condição de euskaldun pode ser levada com absoluta normalidade. Acho que os euskaldunes residentes no Brasil, em geral, embora alguns ainda não tenham chegado a dominar a língua oficial, vivem em consonância com o povo brasileiro. Com o portuñol dá para se atravessar o país, mas isso não é por méritos próprios, se deve à inteligência e paciência do pessoal daqui. O euskera (a língua basca), suscita verdadeira curiosidade. Uma pessoa em particular sempre me pede para que fale em euskera, e sempre fica atô-
nita. Apesar de conhecer quatro idiomas, nenhum deles serve-lhe para encontrar alguma semelhança com a minha língua. Esta particularidade tem me dotado de um toque de encanto e graça na acolhedora cultura brasileira. A maioria dos euskaldunes do Brasil chegaram há muito tempo e trabalhava em metalurgia, construção etc. e, após anos de trabalho, hoje quase todos desfrutam do descanso. Mas a situação não é a de antes. A economia atual obriga todos a apertar o cinto. A globalização está conduzindo a um novo processo de adaptação e esta série de acontecimentos leva a fixar o olhar na Euskal Herria (embora o trabalho e a adaptação não possam ser abandonados da noite para o dia, em grande parte porque os filhos e netos das famílias sen-
tem-se brasileiros). Já que estou falando do Brasil, tenho que fazer alusão aos carnavais. Cada vez que vejo essa bela linguagem corporal, sinto uma espécie de tremor físico. Esse espetáculo tão alegre, colorido, musical e criativo se mistura ao formoso aurresku (baile típico euskaldun) que sobrevive em mim, e, juntos, formam um binômio sem igual. Ao falar sobre os euskaldunes do Brasil, o faço referindo-me ao nosso caráter eusko-brasileiro. Quando estou aqui, penso constantemente na Euskal Herria e, quando estiver lá, estou convencida de que sonharei em voltar ao Brasil.
Maitane Anitua Roa é estudante basca em intercâmbio na Facom
PIMENTA
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peroba No auge da chuvarada diluviana em Salvador, o prefeito João Henrique Carneiro foi parar no Hospital Aliança com dores torácicas e pressão alta. Após ter alta, concedeu entrevista a um programa de TV local. Devidamente besuntado com óleo de peroba, revelou que um dos motivos para a alta de sua pressão foi a preocupação com a população pobre de Salvador, maior vítima da chuva. Disse ainda que o que mais o atingia era a impotência da Prefeitura. Por falta de verbas.
Gramados distintos O cenário futebolístico brasileiro segue as tendências socio-econômicas do país. A diferença de qualidade entre os times de uma região e de outra é maior que a barriga de Ronaldo antes da lipoaspiração. Os clubes da Região Sul e de São Paulo estão repletos de craques e sempre na liderança dos campeonatos nacionais e internacionais. Já os clubes locais, Bahia e Vitória, rebolam com jogadores pífios, dívidas impagáveis e visível falta de estrutura.
Carnaval junino
Inutilidade pública
A maioria das emissoras de rádio oferece ‘serviços’ de horóscopo. As previsões são as mais óbvias e repetem-se para os diferentes signos: ‘siga suas convicções; a privacidade é importante; hoje é um bom dia para você fazer novos contatos’. Além disso, anuncia-se também a ‘cor e os números do dia’ para cada signo. Como se vê, um conjunto de informações sem as quais não é nada auspicioso sair de casa. Ao invés disso, os ouvintes de bom senso ficariam bem alegrinhos se fossem contemplados com informações mais úteis.
Gordinhos do PMDB As fotos que ilustram as reportagens sobre política na Bahia andam cada vez mais pesadas, achatadas, rechonchudas. Não por conta da alta resolução fotográfica, mas porque os protagonistas da vez são mais que cheinhos. Basta ver a silhueta do ministro Geddel Vieira Lima, da Integração Nacional, e de seu irmão, Lúcio Vieira Lima, presidente do PMDB-BA. A vida pública costuma fazer bem aos tecidos adiposo de seus protagonistas.
Tudo bem que o carnaval baiano seja incensado pelos baianos como o mais famoso do mundo. Mas daí a ignorar os limites cronológicos do calendário e fazer o axé invadir o São João, é um abuso. Não bastasse a profusão das bandas de forró eletrônico ancoradas em coreografias e guarda-roupas de gosto duvidoso, com trocentos bailarinos, todo axezeiro que se preza enche seu cofrinho no São João. Os órgãos oficiais de turismo convidam o Brasil para a festa, mas esquecem de avisar a distância das cidades em relação a Salvador, a falta de estrutura hoteleira e a condição homicida das rodovias.
Datashow
Alguns alunos do JF rebatem os professores Maurício Tavares e André Setaro quanto à intolerância de ambos, manifestada na edição anterior, quando ao uso de datashow por professores. Diante das afirmativas de Tavares e Setaro, segundo as quais o equipamento é a junção perfeita entre preguiça e ignorância, um aluno contra-argumenta usando a tese de que o protesto não passa de saudosismo. O argumento: antigamente, aulas eram ministradas por catedráticos que, do alto de sua sabedoria, as proferiam oralmente sem auxílio de qualquer instrumento. Veio o quadro negro e muitos devem ter se manifestado. Tempos depois, o retro-projetor e mais inquietações. Chega o datashow, um recurso multimídia que é o máximo da convergência em sala de aula. Embora os professores tenham reiterado a boa prática do aparelho, a escolha do tom de suas colunas e, principalmente, dos títulos terminaram por condenar injustamente o pobre aparelho.
Novolinguismo
VIP?
Toda capital que se preza tem vida noturna ativa. Salvador também. E não se trata de atividades ilícitas como reunião Com a palavra, Maurício Tavares: “O querido aluno não entendeu o texto. Deve ter sido de drogados em praças públicas, assaltos em diversas o efeito de muitas aulas com o mau uso do datashow. Não tem saudosismo no protesto. modalidades ou infratores do trânsito – isso também. Mas É apenas um alerta para que outros alunos tão ansiosos pelo ‘novo’ não se deixem a boate mais famosa da cidade fechou. Fechou e disse que enganar com pobres pirotecnias tecnológicas. Não ataquei o instrumento, mas o modo está mudando de endereço, mas antes disso fez questão com às vezes ele é utilizado” de manchar o nome da casa e a memória dos clientes – esses, já não tão VIP’s como antigamente. Cruzar a porta da balada que ficava em frente ao Farol da Barra, um dia, custou três dígitos. Nos últimos meses, porém, a exigência era bem mais barata: ser mal vestido, Editor: Mané Jacobina brega e ter cara de dezoito anos recém-alcançados.
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FACONISTAS
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Nem Deus Salva Frederico Fagundes Mariana Nogueira
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lguém sabe explicar o motivo do surgimento de tantos bares e casas noturnas com nomes relacionados a santidades em Salvador? É estratégia de marketing, aproveitando-se da religiosidade baiana sempre entre o divino e profano, moda passageira, tentativa de recorrer aos céus para fugir da falência ou constatação de que ‘Deus vende’? Fashion na Igreja Com dívidas de sobra, a boate Fashion Club fechou as portas. Reabriu como Nova Fashion, mas, como de nova não tinha nada, fechou de novo. Para espantar maus fluidos, os
novos sócios rebatizaram o espaço de “Madrre”. Passado o frisson inicial, a fina flor da sociedade baiana deixou de freqüenta-la. Há quem jure que o Divulgação despenhadeiro começou num dia em que Deus deu as costas às imediações e uma gangue de granfinos matou um policial em frente ao local. Outro caso urucubento é o do antigo Botequim Nobel, antigo Foguete Bar, antiga Satélite. O local acaba de ser reaberto com o nome de Noviça Beer Club. A nova casa tem uma boate open bar onde
aspirantes a noviça podem cometer vários pecados: entrar com carteiras de identidade falsificadas, embriagar-se até passar mal e rebolar até o chão com roupinhas nem um pouco divinas. As santinhas do pau oco que não conseguem entrar no “Noviça” podem tentar o Convento Music Bar (antigo bar Jardins), onde dançarinas fantasiadas de beatas sensuais fazem as honras da casa e deixam correr à solta os pensamentos pecaminosos. Pedindo ao santo Outros estabeleci-
mentos preferiram recorrer aos santos em vez de tentar um apelo direto a Deus. Os bons desempenhos do Santo Antônio Botequim e do São Jorge Botequim mostram que, muitas vezes, um pistolão junto ao divino garante resultados melhores que tentativas de contatos diretos. O Trindade Music Bar também parece ir muito bem, obrigado. Sinal de que fazer referência à Santíssima Trindade faz efeito, coisa que não aconteceu com o Água Benta. Os donos tentaram, chamaram padres, derramaram água benta e até deram o nome do líquido sagrado no bar. Mas não teve jeito, nos primeiros meses de 2009 dona falência veio buscar mais um pobre boteco com sua foice. Deus deve ter coisa melhor para fazer do que render-se a tais homenagens.
Índios na Expobahia? Victor Gazineu
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o período entre 15 e 19 de abril, foi realizada no Parque de Exposições de Salvador a sétima Expobahia. Dentre as diversas atrações, a que mais surpreendeu o público foi a presença de uma aldeia indígena Karirí-Xocó, de Palmeira dos Índios, Alagoas. A novidade, divulgada como uma homenagem à semana do índio, fez com que várias pessoas, movidas pela curiosidade, visitassem o local para apreciar o artesanato e a presença dos índios. Entretanto, por trás dessa valorização, escondia-se uma polêmica: os índios estavam sendo realmente homenageados ou estariam ali como uma atração à parte, exótica, para atrair mais público para o evento?
A Expobahia sempre foi reconhecida e anunciada ao público como uma exposição de animais e um evento de leilões. Mesmo quando há atrações alternativas, como parque de diversões e shows musicais, a imagem da exposição sempre esteve associada à questão rural, principalmente à venda de animais de raças valorizadas no mercado. Não por acaso, na maioria dos anúncios publicitários são destacadas as presenças das mais diversas raças de animais e de grandes produtores e agropecuaristas ávidos por fechar negócios. Em meio a isso, desta vez instalou-se uma aldeia como uma atração a mais. No site Guia da Tribuna, um dos espaços midiáticos que anunciaram a presença dos índios na Expobahia, a tribo foi citada apenas no final do texto, após a abordagem dos diferentes tipos de animais e
raças presentes no evento. Do mesmo modo se comportou a Rede Bahia, retransmissora da Rede Globo. Ao fazer matérias de divulgação do evento, primeiro apresentou os animais para só depois mostrar os índios realizando seus rituais costumeiros como o Ouricuri e a dança do Toré. O que se viu, portanto, sob o argumento de homenagear os índios, foi uma estratégia para atrair mais público, convidando-o para ver ‘índios de verdade’, apresentados subliminarmente como uma
Daniel Sound
categoria exótica, transplantada para o meio de uma feira de animais. Como nem todos estão interessados em ver exposição de bois e cavalos, achou-se uma maneira de atrair gente ávida por experiências mais antropológicas. Pena que tudo não passava de uma fachada no limite da ofensa.
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Uma ameaça à liberdade André Setaro
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legislação paulista que proíbe o fumo em todos os lugares (públicos e privados) da capital do mais rico estado brasileiro é uma lei autoritária e fascista que praticamente reduz o fumante à condição de um marginal, de um paria. É uma lei que afronta o princípio da liberdade individual e diria mesmo da liberdade, assegurada na Constituição, de ir e vir. O fumante, ainda que o cigarro seja nocivo à sua saúde, tem o direito de fumar, e, com a lei em vigor na capital paulista (o mau exemplo tende a se espalhar para os outros estados ou virar mesmo uma lei federal abrangente), quem gosta de fumar seu cigarrinho está limitado a fazê-lo somente dentro de casa. A citada lei é tão severa que proíbe até a existência dos horríveis fumódromos. Quem fuma gosta de fazê-lo
no exercício de alguma atividade (escrevendo, lendo, batendo um papo, quando se está a beber com seus pensamentos solitários e em parceria, e o cigarro, nestas oportunidades, tem um excelente papel de coadjuvante). Fumar em fumódromos se constitui num exercício do patético, porque o indivíduo fica a jogar fumaça, em pé, diante de desconhecidos, que também fazem o mesmo. O governador José Serra compareceu ao programa de Luciana Gimenez, o sensacionalista “Super Pop”, para fazer propaganda de sua psicose antitabagista. Uma médica, com uma engenhoca tipo bafômetro, acompanhou a repórter por ambientes fechados de São Paulo para verificar a influência maléfica do cigarro em
pessoas não-fumantes. Colocado o aparelho na boca, o não-fumante, que tinha permanecido mais de uma hora num lugar esfumaçado, mostrava, no registro digital, que tinha já índice de um quase-fumante, porque fumante passivo. Neste caso, o ideal seria que bares e restaurantes, entre outros lugares públicos, tivessem alas especiais para abrigar os amantes do fumo (que não são poucos, diga-se de passagem). A lei, contudo, draconiana, não permite o cigarro nem em hotéis. Tudo vem em decorrência, na verdade, da estúpida “onda” do politicamente correto, que tem sua origem nos Estados Unidos. Até a indústria cinematográfica de Hollywood não mais permite que os personagens dos filmes fumem, exceção apenas àqueles doentes e marginais que têm, na sua estruturação psicológica, a adição de ser também um fumante para melhor definir a sua personalidade mar-
ginal. Já nos filmes europeus, mais civilizados neste sentido, fuma-se a valer, principalmente nos franceses (apesar de lei também que proíbe, agora, de se fumar em locais públicos na França). Observando os filmes americanos de décadas pretéritas, nota-se que quase todos os personagens fumam a valer. Nas situações as mais dramáticas, quando, por exemplo, o soldado está agônico a morrer num filme de guerra, por exemplo, seu companheiro, antes do seu último suspiro, acende, para ele, um cigarro, com o qual este derradeiro suspiro é dado. Cheguei a observar que em “O homem de alcatraz” (1961), de John Frankenheimer, Burt Lancaster está a fumar em todas (mas em todas mesmo) as tomadas. André Setaro é Mestre em Belas Artes e professor da Facom/UFBA
Rico menino pobre Maurício Tavares
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a minha variada, e vasta, lista de amiguinhos às vezes encontro umas figuras um tanto imprevisíveis. Uma delas é um rapaz pobre, forte e alto (192 cm) que tem mania de boas maneiras. A obsessão dele, que no início achei muito saudável, ultimamente tem me irritado. Achei bacana quando, por exemplo, ele me perguntou como eu conseguia mastigar sem fazer barulho. Legal. Acho super nojento quem come de boca aberta e ainda faz aquele barulho de cavalo comendo capim. Mas quando ele me repreendeu porque chamei um garçom do Bar do Chico, um bar popular da Barra com mesas no meio da rua, com um psiu ou quando ele falou que não eu não devia cortar a
alface com os talheres já que ele tinha visto no Fantástico uma “aula” de Glória Kalil em que ela condenava tais procedimentos errados meu pisca-pisca começou a piscar. Pensei, como pensam meu amigos gays-homofóbicos, “essa Coca-Cola é Fanta!”. Estereótipos à parte ter que fazer com o garfo uma trouxinha de alface tem um pouco de frescura, não tem não? Chamar o garçom desligado de um bar barulhento no meio da rua com um estalar de dedos é francesinho demais! Acho que normas de etiqueta são necessárias quando tem alguma razão prática. É lógico que em uma refeição não se deve beber antes de usar o guardanapo. O copo (no Brasil adoram usar o nome taça em vez de copo, tão brega-chic!) tem que ficar limpo para
o sabor da bebida não ser alterado e pra o copo não ficar ensebado. É claro que o sabor de alguns queijos, como de algumas carnes, fica alterado quando não recebem o corte certo. Mas por que a coitada da alface, tão anoréxica, não pode ser retalhada em pedacinhos. Ah, Glorinha, se eu fosse como tu deixava essa mania de meter o dedo no... Em boas maneira, como em tudo na vida, é preciso ter bom-senso e saber analisar o contexto.Apesar de tentar seguir as normas de etiqueta da corte de Luís XV meu amiguinho não segue as normas de civilidade do nosso mundinho urbano (eu ia dizer contemporâneo mas quem agüenta mais tanta contemporaneidade!). Fico puto da vida quando ele não retorna uma ligação que faço. Só retor-
na quando é do interesse dele. Isso é uma insuportável demonstração de egoísmo. E as constantes ligações a cobrar com a famosa musiquinha “Tem um pobre na linha chamando...” Isso é uma verdadeira epidemia. Mas o golpe mortal ele me dá quando, depois de comer, palita os dentes cobrindo a boca com a mão. Será que não dá pra usar o fio dental no banheiro? Tira esse palito da boca, querido! O hábito do cachimbo faz a boca torta. Maurício Tavares é Doutor em Comunicação e professor da Facom/UFBA
PERFIL
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O Príncipe dos Barris
André Cupolo, ex-boy e dono de um clube de sexo nos Barris, fala sobre seus ofícios e a cena gay soteropolitana Savana Caldas
18 anos, numa academia de ginástica, foi convidado para fazer o primeiro show como stripper. “Do strip-tease veio a prostituição e depois todo o resto”, conta. Hoje, aos 41 anos, após ter vivido muito tempo na Europa como garoto de programa e stripper, é dono de um clube de sexo para gays em Salvador. A idéia do clube, localizado nos Barris, veio, diz, para suprir uma carência do mercado gay soteropolitano, oferecendo coisas que aqui não existiam, como o sistema de dark room e cabines. Ao criar o clube, Cupolo deixou de se prostituir, mas não perdeu o contato com garotos de programa. Passou a ser usuário assíduo do “produto” que ele mesmo vendia, talvez pelo fato de ser sexualmente compulsivo, como ele mesmo diz. “Se o boy me interessar, eu pago. Dinheiro pra mim não é problema. Prefiro ter um bom serviço que uma chateação”. Dono de opiniões polêmicas, Cupolo é radical quanto à sua opção sexual: “Se você disser: ‘Vamos sair com uma mulher’, eu dou um tiro na testa dela. Eu odeio mulher.” Diz que não teria relações sexuais com uma mulher nem que “Tom Cruise dissesse: ‘Só vou com você, se você for com ela.’” Um dos casos que contou, entre gargalhadas, gestos e piruetas, foi o de quando contra-
A importância de ser high level
Luis Fernando Lisboa Verena Paranhos
A
bandeira colorida na porta de uma discreta casa nos Barris faz pensar que ali há algo ou alguém que não merece passar despercebido. As suspeitas são constatadas ao entrarmos e conhecermos André Cupolo, que, desde criança, já se diferenciava por seu sonho diferente. Aos 11 anos, Cupolo já sabia que queria ser prostituto. Apesar de suas irmãs dizerem que isso não era profissão e chamarem-no de louco, ele argumentava: “Não é para a sua mentalidade religiosa!”. Cupolo chegou a ser eleito o dono do abdômen mais bonito de Salvador e foi campeão de fisi-culturismo. Talvez não soubesse que estava dando os primeiros passos para a realização do seu sonho. Quando tinha
tou um garoto de programa que anunciava num jornal: “Deus Grego, loiro, 22 cm, ativo”. A primeira coisa que disse quando viu o boy foi: “Eu acho que você deveria mudar seu perfil, porque de Deus grego você não tem nada, nem os 22 cm”. Na hora da “pegação”, o rapaz não se mostrou ativo e Cupolo o escrachou de vez: “Nós acertamos uma coisa ao telefone, mas você não está correspondendo. Saia daqui agora, não vou te dar nada, nem o dinheiro do transporte”. Mas o divertimento sexual do ex-boy não se limita a garotos de programa. Ele diz que “cansa” de cantar homens heterossexuais em qualquer lugar e julga seu método como agressivo. “Quando o cara me interessa, digo: ‘Nossa, que pedaço de mau caminho’, como qualquer outra pessoa diria. Ele pode até me dar um murro, mas eu canto.” Geralmente, a primeira resposta obtida é: “Eu tenho mulher.” Mas Cupolo retruca: “Não foi essa a pergunta que fiz. Eu não me interesso por sua mulher. Tenho interesse é em você.” Durante sua trajetória como boy, André Cupolo teve que fazer a barba, malhar, escovar os cabelos mais do que qualquer outro homem, pois sua profissão exigia. Para ele, o pior problema de ser prostituto é ter que manter o “produto”. “Estar sempre arrumado é um stress”, conta. Entretanto, diz orgulhoso se diferenciar dos outros por sempre ter trabalhado em high level: ter etiqueta, saber se aproximar dos clientes, entregar cartões, etc. “Eu não conversava sobre coisas profissionais em festas, mas discretamente ia ao banheiro, retocar a maquiagem”,
revela sua estratégia. Ele se gaba de sempre ter sido profissional: enquanto os prostitutos daqui cobravam 50 reais, ele cobrava 400. Assim, economizou para abrir o clube. O “Príncipe dos Barris” não perde a oportunidade de tentar mostrar o quanto aprendeu na Europa: a maioridade na Rússia é de 14 anos, a prostituição na Suiça é tributada. Mas ressalta que se sentiu um analfabeto quando passou a frequentar bares e clubes europeus, pois só falava um pouco de inglês (segundo ele, português não conta), enquanto os outros prostitutos falavam três ou quatro idiomas. Hoje, se gaba de falar alemão, francês e inglês e defende que um boy pode ter mais habilidades que aspirantes a jornalistas, como nós, que só arranham no inglês. Cupolo parece bastante marcado pelo preconceito de uma sociedade religiosa e a critica ferrenhamente. “Só na cabeça de gente hipócrita que prostituição é ilegal e ilícita”. Para ele, a cultura brasileira não se adequa ao talento das pessoas: “Por que é melhor fazer faculdade de Direito se o meu talento é outro?”, questiona. O ex-boy trata atividade e passividade, outro ponto polêmico na seara da prostituição masculina, com naturalidade semelhante, dizendo que esses conceitos são coisas da Igreja. “Não tem nada a ver quem ‘dá’ e quem ‘come’, nem com a sexualidade”. Para ele, cada um deveria ter liberdade de escolher se quer sair com um travesti, um boy ou uma mulher. “Cada um pode escolher o prato que come. Um dia você come caviar, no outro come bacalhau”.